vida. A essa altura, a princesa aproxima-se de Vaes Dothrak, onde
puxar uma lâmina significa a morte. Se eu lhes contasse o que os
dothrakis fariam a um pobre homem que a usasse numa khaleesi,
nenhum dos senhores dormiria esta noite - afagou uma bochecha
empoada. - Agora, veneno. . as lágrimas de Lys... Digamos que Khal
Drogo nunca precisaria saber que não foi uma morte natural.
Os olhos sonolentos do Grande Meistre Pycelle abriram-se de
repente. Olhou de soslaio para o eunuco.
- Veneno é a arma de um covarde - queixou-se o rei.
Ned já ouvira o suficiente.
- Quer enviar assassinos contratados para matar uma garota de
catorze anos e ainda se encobre em subterfúgios acerca da honra? -
empurrou a cadeira para trás e pôs-se em pé. - Faça-o você, Robert.
O homem que decreta a sentença deve brandir a espada. Olhe-a nos
olhos antes de matá-la. Observe suas lágrimas, escute suas últimas
palavras. Pelo menos isso você lhe deve.
- Deuses - praguejou o rei, com a palavra explodindo em sua boca
como se mal conseguisse conter a fúria. - E você ainda fala sério,
raios o partam - estendeu a mão para o jarro de vinho que tinha
junto do cotovelo, achou-o vazio e o atirou à parede, estilhaçando-o.
- Já não tenho vinho nem paciência. Basta disto. Só me interessa que
a coisa seja feita.
- Não participarei de um assassinato, Robert. Faça o que quiser, mas
não me peça que coloque meu selo nisto.
Por um momento Robert pareceu não entender o que Ned estava
dizendo. O desafio não era um prato que ele saboreasse com
frequência. Lentamente, seu rosto mudou à medida que a com-
preensão chegava. Seus olhos se estreitaram e uma vermelhidão
subiu-lhe pelo pescoço por trás da gola de veludo. Irado, apontou o
dedo para Ned.
- É a Mão do Rei, Lorde Stark. Fará o que ordeno ou encontrarei
uma Mão que o faça.
- Desejo-lhe sucesso - Ned desprendeu o pesado prendedor que lhe
segurava as dobras do manto, a ornamentada mão de prata que era o
distintivo do seu cargo. Colocou-o na mesa em frente do rei,
entristecido pela memória do homem que o colocara em sua roupa,
do amigo que amara. -Julgava-o melhor homem que isto, Robert.
Julgava que tínhamos encontrado um rei mais nobre.
A cara de Robert estava roxa.
- Rua - coaxou, engasgando-se em sua raiva. - Rua, maldito, estou
farto de você. O que está esperando? Sai, corre de volta para
Winterfell. E assegure-se de que eu nunca mais olhe para a sua cara,
ou juro que terei a sua cabeça na ponta de uma lança!
Ned fez uma reverência e virou-se, sem mais uma palavra.
Conseguia sentir os olhos de Robert postos em suas costas. Enquanto
saía a passos largos da sala do conselho, a discussão foi reatada
quase sem uma pausa.
- Em Bravos há uma sociedade conhecida como os Homens Sem
Rosto - sugeriu o Grande Meistre Pycelle.
- Faz alguma idéia do preço que eles custam? - protestou Mindinho.
- Poder-se-ia contratar um exército de mercenários comuns por
metade do preço, e isso para dar cabo de um mercador. Nem me
atrevo a pensar no que pediriam por uma princesa.
O barulho da porta se fechando em suas costas silenciou as vozes.
Sor Soros Blount montava guarda fora da sala, usando o longo
manto branco e a armadura da Guarda Real. Deu uma rápida
olhadela curiosa pelo canto do olho, mas não fez pergunta alguma a
Ned.
O tempo estava pesado e opressivo quando Ned atravessou a
muralha interior, de regresso à Torre da Mão. Podia sentir no ar a
ameaça de chuva, que agora receberia de bom grado. Poderia fazê-lo
sentir-se um pouco menos sujo. Quando entrou em sua sala privada,
mandou chamar Vayon Poole. O intendente veio de imediato.
- Mandou me chamar, senhor Mão?
-Já não sou a Mão - disse-lhe Ned. - O rei e eu discutimos. Vamos
regressar a Winterfell.
- Começarei a fazer os preparativos de imediato, senhor.
Precisaremos de uma quinzena para preparar tudo para a viagem.
- Talvez não tenhamos uma quinzena. Talvez nem tenhamos um dia.
O rei mencionou algo sobre ver minha cabeça na ponta de uma
lança - Ned franziu a sobrancelha. Não acreditava verdadeiramente
que o rei lhe fizesse mal, Robert não. Agora estava zangado, mas,
uma vez que Ned estivesse em segurança, longe de sua vista, sua
raiva arrefeceria, como acontecia sempre.
Sempre? Súbita e desconfortavelmente, deu por si lembrando-se de
Rhaegar Targaryen. Morto há quinze anos, e Robert o odeia tanto
como sempre odiou, Era uma ideia perturbadora... e havia o outro
assunto, que envolvia Catelyn e o anão, do qual Yoren o prevenira na
noite anterior. Isso viria à luz em breve, era tão certo como o nascer
do sol, e com o rei numa fúria negra daquelas... Robert podia não se
importar nem um pouco com Tyrion Lannister, mas sentiria o
orgulho atingido, e não havia modo de dizer o que a rainha faria.
- Talvez seja mais seguro se eu partir mais cedo - ele disse a Poole. -
Levarei minhas filhas e alguns guardas, O resto de vocês podem nos
seguir quando estiverem prontos. Informe Jory, mas não diga a mais
ninguém, e não faça nada antes que eu parta com as meninas. O
castelo está cheio de olhos e ouvidos, e prefiro que não se saiba dos
meus planos.
- Será feito conforme ordena, senhor.
Depois de Poole partir, Eddard Stark foi até a janela e sentou-se,
pensando. Robert não lhe deixara alternativa que conseguisse
vislumbrar. Devia agradecê-lo. Ia ser bom regressar a Winterfell.
Nunca devia ter partido. Seus filhos o esperavam lá. Talvez fizesse
com Catelyn um novo filho quando regressasse, ainda não eram
velhos demais. E, nos últimos tempos, sempre dava por si sonhando
frequentemente com neve, com o profundo sossego da mata de lobos
à noite.
E, no entanto, a ideia de partir também o irritava, Ainda havia tanto
a fazer. Robert e seu conselho de covardes e aduladores iam reduzir
o reino à miséria se ninguém os controlasse... ou, o que era pior,
iam vendê-lo aos Lannister em pagamento dos seus empréstimos. E
a verdade sobre a morte de Jon Arryn ainda lhe fugia. Encontrara
alguns fragmentos, o bastante para convencer-se de que Jon tinha
sido de fato assassinado, mas isso nada mais era que o rastro de um
animal no chão da floresta. Ainda não avistara o animal
propriamente dito, embora o sentisse ali, à espreita, escondido,
traiçoeiro.
Lembrou-se de repente que podia regressar a Winterfell pelo mar.
Ned não era nenhum marinheiro e, em circunstâncias normais, teria
preferido a estrada do rei, mas, se embarcasse, poderia passar pela
Pedra do Dragão e falar com Stannis Baratheon. Pycelle enviara um
corvo através das águas com uma carta delicada de Ned pedindo a
Lorde Stannis para regressar ao seu lugar no pequeno conselho. Até
aquela altura não houvera resposta, mas o silêncio só lhe
aprofundava as suspeitas. Estava certo de que Lorde Stannis
partilhava do segredo que levara à morte de Jon Arryn. A verdade
que procurava podia bem estar à sua espera na antiga fortaleza
insular da Casa Targaryen.
E quando a tiver nas mãos, o que será? E mais seguro que alguns
segredos se mantenham escondidos. Estes são por demais perigosos
para partilhar, mesmo com aqueles que ama e em quem confia. Ned
tirou da bainha, que tinha presa ao cinto, o punhal que Catelyn lhe
trouxera. A faca do Duende. Por que quereria o anão ver Bran
morto? Decerto para silenciá-lo. Outro segredo, ou apenas um fio
diferente da mesma teia?
Poderia Robert estar envolvido? Não lhe parecia, mas há algum
tempo tampouco lhe parecera que Robert seria capaz de ordenar o
assassinato de mulheres e crianças. Catelyn tentara preveni-lo.
"Conhece o homem" ela dissera. "O rei é um estranho para você."
Quanto mais depressa saísse de Porto Real, melhor. Se algum navio
zarpasse para o norte de manhã, seria bom estar lá dentro. Voltou a
chamar Vayon Poole e o enviou às docas para investigar, discreta,
mas rapidamente.
- Encontre-me um navio rápido com um capitão hábil - disse ao
intendente. - Não me interessa o tamanho das cabines ou a qualidade
de seus equipamentos, desde que seja rápido e seguro. Desejo partir
imediatamente.
Poole tinha acabado de se retirar quando Tomard anunciou um
visitante.
- Lorde Baelish deseja vê-lo, senhor.
Ned sentiu-se tentado a mandá-lo embora, mas pensou melhor.
Ainda não estava livre; até que estivesse, tinha de fazer os jogos
deles.
- Mande-o entrar, Tom.
Lorde Petyr entrou na sala privada tão à vontade que era como se
nada de incomum tivesse se passado de manhã. Trajava um gibão
fendido de veludo em tons de creme e prata, um manto cinza de
seda debruado de pele negra de raposa, e seu habitual sorriso
irônico.
Ned o saudou friamente.
- Posso saber o motivo desta visita, Lorde Baelish?
- Não lhe tomarei muito tempo, estou a caminho do jantar com a
Senhora Tanda. Empadão de lampreia e leitão assado. Ela alimenta
algumas ideias de me casar com a filha mais nova, e por isso tem
sempre uma mesa espantosa. A bem da verdade, mais depressa me
casaria com um porco, mas que ela não saiba. Gosto mesmo de
empadão de lampreia.
- Que eu não o afaste das suas enguias, senhor - disse Ned com um
desdém gelado. - Neste momento não consigo pensar em ninguém
cuja companhia menos deseje do que a sua.
- Ah, estou certo de que se pensar um pouco será capaz de arranjar
alguns nomes. Varys, por exemplo. Cersei. Ou Robert. Sua Graça está
muito irada. Falou do senhor durante algum tempo depois de ter-se
retirado esta manhã. Julgo recordar que as palavras insolência e
ingratidão surgiram com frequência.
Ned não lhe deu qualquer resposta, nem ofereceu ao hóspede uma
cadeira. Mas Mindinho sentou-se mesmo assim.
- Depois de sair, coube a mim convencê-los a não contratar os
Homens Sem Rosto - prosseguiu alegremente. - Em vez disso, Varys
fará discretamente saber que transformaremos em um -abre quem
quer que trate da jovem Targaryen.
Ned sentiu-se repugnado.
- Então agora concedemos títulos a assassinos.
Mindinho encolheu os ombros.
- Os títulos são baratos. Os Homens Sem Rosto, ao contrário, são
caros. Na verdade, fiz mais pela jovem Targaryen do que o senhor
com toda a sua conversa sobre a honra. Pois que algum mercenário
bêbado com visões de nobreza tente matá-la. O mais certo é que a
tentativa seja un desastre, e depois os dothrakis ficarão em guarda.
Se enviássemos um Homem Sem Rosto contra ela, seria o mesmo
que enterrá-la.
Ned franziu a sobrancelha.
- Senta-se no conselho e fala de mulheres feias e beijos de aço, e
agora espera que eu acredite mie tentou proteger a moça? Por que
espécie de tolo me toma?
- Bem, na verdade, por um enorme - disse Mindinho, rindo.
- Acha sempre o assassinato assim tão divertido, Lorde Baelish?
- Não é o assassinato que acho divertido, Lorde Stark, é o senhor.
Governa como um homem que dança em gelo frágil. Arrisco-me a
dizer que causará um nobre barulho. Julgo que ouvi abrir-se a
primeira fenda esta manhã.
- A primeira e a última - disse Ned. - Para mim, basta.
- Quando pretende regressar a Winterfell, senhor?
- Assim que puder. Que lhe interessa isso?
- Não interessa..., mas se, por acaso, ainda aqui estiver quando cair a
noite, ficarei feliz em levá-lo a esse bordel que o seu homem Jory tem
procurado com tanta ineficácia - Mindinho sorriu. - E nem sequer
contarei à Senhora Catelyn.
Catelyn
- Senhora, devia ter avisado sobre sua vinda - dissedhe Sor Donnel
Waynwood enquanto os cavalos subiam a passagem. - Teríamos
enviado uma escolta. A estrada de altitude já não é tão segura para
um grupo tão pequeno como o seu.
- Para nossa tristeza ficamos sabendo disso, Sor Donnel - Catelyn
respondeu. Por vezes sentia-se como se o coração tivesse se
transformado em pedra; seis bravos homens tinham morrido para
trazê-la até ali, e nem sequer conseguia arranjar dentro de si forças
para chorar as suas mortes. Até seus nomes se desvaneciam. - Os
homens dos clãs atormentaram-nos noite e dia. Perdemos três
homens no primeiro ataque, e mais dois no segundo, e o criado do
Lannister morreu de uma febre quando suas feridas ulceraram.
Quando ouvimos a aproximação de seus homens, julguei que
estivéssemos perdidos - tinham-se preparado para uma última luta
desesperada, com as armas na mão e as costas encostadas a uma
rocha. O anão amolava o gume de seu machado e dizia uma
brincadeira mordaz qualquer quando Bronn distinguiu o estandarte
que precedia os cavaleiros, a lua e o falcão da Casa Arryn, azul-
celeste e branco. Catelyn nunca vira nada mais bem-vindo.
- Os clãs tornaram-se mais ousados desde que Lorde Jon morreu -
disse Sor Donnel. Era um jovem atarracado de vinte anos, diligente e
modesto, de nariz largo e cabelos castanhos espessos e abundantes. -
Se dependesse de mim, levaria cem homens até as montanhas, os
arrancaria de seus esconderijos e lhes daria algumas valentes lições,
mas sua irmã proibiu. Ela nem sequer permitiu que seus cavaleiros
participassem do torneio da Mão. Quer manter todas as nossas
espadas perto de casa, para defender o Vale... contra o quê, ninguém
sabe bem. Sombras, dizem alguns - olhou-a com ansiedade, como se
se tivesse lembrado subitamente de quem ela era. - Espero não ter
sido inconveniente, senhora. Não pretendi ofender.
- Palavras francas não me ofendem, Sor Donnel - Catelyn sabia o que
a irmã temia. Sombras, não, os Lannister, pensou, olhando de relance
para onde o anão seguia junto a Bronn. Os dois tinham se tornado
íntimos como ladrões desde que Chiggen morrera. O homenzinho
era astuto demais para o seu gosto. Ao chegarem às montanhas, era
seu cativo, atado e indefeso. E agora? Ainda seu cativo, mas cavalgava
com um punhal enfiado no cinto e um machado atado à sela, usando
o manto de pele de gato-das-sombras que ganhara do cantor nos
dados e a cota de malha que recuperara do cadáver de Chiggen.
Quarenta homens flanqueavam o anão e o resto de seu esfarrapado
bando, cavaleiros e homens de armas a serviço de sua irmã Lysa e do
jovem filho de Jon Arryn, e no entanto Tyrion não mostrava sinal de
medo. Poderei ter me enganado?, interrogou-se Catelyn, e já não era
a primeira vez. Poderia ele afinal ser inocente em relação a Bran, a
Jon Arryn e a todo o resto? E se fosse, o que isso faria dela? Seis
homens tinham morrido para trazê-lo até ali.
Resoluta, afastou as dúvidas.
- Quando chegarmos à sua fortaleza, ficaria grata se pudesse mandar
chamar imediatamente Meistre Colemon. Sor Rodrik está febril
devido às feridas - mais de uma vez temera que o galante velho
cavaleiro não sobrevivesse à viagem. Ao final, já quase não se
aguentava sobre o cavalo, e Bronn insistira para que ela o
abandonasse à sua sorte, mas Catelyn não quisera ouvi-lo. Em vez de
abandoná-lo, tinham-no atado à sela, e ordenara ao cantor Marillion
que o vigiasse.
Sor Donnel hesitou antes de responder.
- A Senhora Lysa ordenou que o meistre permanecesse
permanentemente no Ninho da fenia para tratar de Lorde Robert -
ele respondeu. - Temos um septão no portão que trata dos nossos
feridos. Ele poderá cuidar dos ferimentos de Sor Rodrik.
Catelyn depositava mais fé nos conhecimentos de um meistre que
nas orações de um septão. Ia dizer isso quando viu as ameias na
frente deles, longos parapeitos construídos diretamente na rocha das
montanhas, de ambos os lados da estrada. Onde a passagem se
estreitava, até se transformar num desfiladeiro que quase não era
largo o bastante para que quatro homens cavalgassem lado a lado,
torres de vigia idênticas agarravam-se às vertentes rochosas, unidas
por uma ponte coberta de pedra cinzenta desgastada pelo tempo que
se arqueava sobre a estrada. Rostos silenciosos vigiavam através de
seteiras nas torres, nas ameias e na ponte. Quando já tinham quase
subido até o topo, um cavaleiro saiu ao seu encontro. O cavalo e a
armadura eram cinza, mas no manto trazia o ondulado azul e
vermelho de Correrrio, e um brilhante peixe negro trabalhado em
ouro e obsidiana prendia as dobras do manto ao ombro do homem.
- Quem quer passar o Portão Sangrento? - ele gritou.
- Sor Donnel Waynwood, com a Senhora Catelyn Stark e seus
companheiros - respondeu o jovem cavaleiro.
O Cavaleiro do Portão ergueu o visor.
- Bem que a senhora me parecia familiar. Está longe de casa,
pequena Cat.
- Tal como o senhor, tio - disse ela sorrindo, apesar de tudo por que
passara. Voltar a ouvir aquela rouca voz de fumo a levava de volta
vinte anos, até os dias da sua infância.
- Minha casa está às minhas costas - disse ele rudemente.
- Sua casa está no meu coração - disse-lhe Catelyn. - Tire o elmo.
Quero voltar a ver seu rosto.
- Temo que os anos não o tenham melhorado - disse Brynden Tully,
mas quando ergueu o elmo Catelyn viu que mentia. Tinha as feições
enrugadas e gastas, e o tempo roubara-lhe o tom ruivo do cabelo e
deixara-o apenas grisalho, mas o sorriso era o mesmo, tal como as
espessas sobrancelhas, grossas como lagartas, e o riso em seus olhos,
de um azul profundo.
- Lysa soube que vinha?
- Não houve tempo para enviar a notícia - disse-lhe Catelyn. Os
outros aproximavam-se atrás dela. - Temo que cavalguemos à frente
da tempestade, tio.
- Peço autorização para entrar no Vale - disse Sor Donnel. Os
Waynwood estavam sempre prontos para a cerimônia.
- Em nome de Robert Arryn, Senhor do Ninho da Águia, Defensor do
Vale, Verdadeiro Protetor do Leste, convido-os a entrar livremente e
encarrego-os de manter a paz - respondeu Sor Brynden. - Venham.
E assim Catelyn o seguiu por sob a sombra do Portão Sangrento,
onde uma dúzia de exércitos se desfez em pedaços durante a Era dos
Heróis. Do outro lado das fortificações, as montanhas abriam-se de
súbito numa paisagem de campos verdejantes, céu azul e montanhas
de cumes nevados que a fez ficar sem respiração. O Vale de Arryn,
banhado na luz da manhã.
Estendia-se à sua frente, até as névoas do leste, uma terra tranquila
de rico solo negro, rios lentos e largos e centenas de pequenos lagos
que brilhavam como espelhos ao sol, protegida por todos os lados
pelos picos que a aconchegavam. Nos seus campos crescia alto o
trigo, o milho e a cevada, e nem mesmo em Jardim de Cima as
abóboras eram maiores ou os frutos, mais doces do que ali. Estavam
na extremidade ocidental do vale, onde a estrada de altitude
ultrapassava a última passagem de montanha e começava a sinuosa
descida até as terras planas, duas milhas mais abaixo. O Vale ali era
estreito, não tinha mais de meio dia de viagem de largura, e as mon-
tanhas setentrionais pareciam tão próximas que Catelyn quase podia
estender a mão e tocá-las. Erguendo-se acima de todos encontrava-se
o pico escarpado chamado Lança do Gigante, uma montanha que até
as montanhas obrigava a olhar para cima, com o cume perdido em
névoas geladas três milhas e meia acima do fundo do vale. Pela sua
maciça vertente ocidental corria a torrente fantasmagórica conhecida
como Lágrimas de Alyssa. Mesmo daquela distância Catelyn
distinguia o brilhante fio prateado, uma linha clara na rocha escura.
Quando o tio percebeu que ela parara, aproximou o cavalo e
apontou.
- Fica ali, junto às Lágrimas de Alyssa. Tudo o que se vê daqui é um
lampejo branco de vez em quando, se se olhar com atenção e o sol
bater nas paredes da maneira certa.
Sete torres, dissera-lhe Ned, como punhais brancos atirados na
barriga do céu, tão altas que, ao se subir aos parapeitos e olhar para
baixo, vê-se as nuvens.
- A viagem demora quanto tempo? - ela perguntou.
- Podemos chegar ao sopé da montanha ao cair da noite - disse Tio
Brynden -, mas a subida demorará mais um dia.
A voz de Sor Rodrik Cassei soou vinda de trás.
- Senhora - disse -, temo que não possa avançar mais hoje - tinha o
rosto abatido sob as novas barbas irregulares, e parecia tão cansado
que Catelyn temeu que caísse do cavalo.
- Nem deve fazê-lo - ela disse. - Já fez cem vezes mais do que eu
poderia pedir. Meu tio me acompanhará o resto do caminho até o
Ninho da Águia. O Lannister tem de vir comigo, mas você e os
outros devem descansar aqui e recuperar as forças.
- Será uma honra tê-los como hóspedes - disse Sor Donnel com a
grave cortesia dos jovens. Do grupo que partira com ela da
estalagem junto ao entroncamento, além de Sor Rodrik, só Bronn,
Sor Willis Wode e o cantor Marillion restavam.
- Senhora - disse Marillion, fazendo o cavalo avançar. - Peço-lhe
permissão para acompanhados até o Ninho da Águia, para que possa
assistir ao fim da história como assisti ao seu início - o rapaz parecia
fatigado, mas estranhamente determinado; tinha um brilho febril nos
olhos.
Catelyn nunca pedira ao cantor que os acompanhasse; era uma
escolha que ele próprio tinha feito, e não saberia dizer como tinha
conseguido sobreviver à viagem quando tantos homens mais
corajosos jaziam mortos e esperando por seus enterros na estrada. E,
no entanto, ali estava, com uma barbinha mal-arranjada que o fazia
quase parecer um homem. Talvez lhe devesse alguma coisa por ele
ter chegado até ali.
- Muito bem - ela respondeu.
- Eu também vou - anunciou Bronn.
Daquilo ela já gostava menos. Bem sabia que sem Bronn nunca teria
chegado ao Vale; o mercenário era o mais feroz guerreiro que já vira,
e sua espada os ajudara a abrir caminho até a segurança. Mas, apesar
de tudo, Catelyn não gostava do homem. Era certo que possuía cora-
gem, e força, mas não havia bondade nele, e pouca lealdade. E vira-o
cavalgar junto do Lannister com demasiada frequência, conversando
em voz baixa e rindo de algum gracejo privado. Teria preferido
separá-lo do anão ali e agora, mas depois de aceitar que Marillion
prosseguisse até o Ninho da Águia não encontrava nenhum modo
amável de negar a Bronn o mesmo direito.
- Como quiser - ela respondeu, embora tenha notado que ele não lhe
pedira propriamente imorização.
Sor Willis Wode ficou com Sor Rodrik, e, com eles, um septão de fala
mansa, já tratando ias feridas de ambos. Os cavalos, pobres animais
em farrapos, também foram deixados para trás. Sor Donnel
prometeu enviar aves até o Ninho da Águia e os Portões da Lua com
a notícia de sua chegada. Montarias descansadas foram trazidas dos
estábulos, cavalos de montanha de ternas seguras e pelo grosso, e
uma hora depois se puseram de novo a caminho. Catelyn pôs-se n
lado do tio ao começarem a descida até o fundo do vale. Atrás
vinham Bronn, Tyrion Lannister. Marillion e seis dos homens de
Brynden.
Só quando já tinham percorrido um terço do caminho pela trilha da
montanha, bem fora do alcance dos ouvidos dos outros, é que
Brynden Tully se virou para ela e disse:
- Então, criança. Fale-me dessa sua tempestade.
-Já não sou uma criança há muitos anos, tio - Catelyn lhe disse, mas
contou-lhe tudo. Levou mais tempo do que poderia acreditar falando
da carta de Lysa, da queda de Bran, do punhal do assassino, e de
Mindinho, e de seu encontro acidental com Tyrion Lannister na
estalagem do entroncamento.
O tio ouviu em silêncio, com as pesadas sobrancelhas a projetarem
uma sombra sobre os olhos à medida que iam se franzindo mais.
Brynden Tully sempre soubera escutar todos... menos o pai de
Catelyn. Era irmão de Lorde Hoster, cinco anos mais novo, mas os
dois travavam uma guerra desde sempre, desde que Catelyn se
recordava. Durante uma de suas discussões mais acaloradas, Catelyn
tinha então oito anos, Lorde Hoster chamara Brynden "a ovelha
negra do rebanho Tully". Rindo, Brynden fez notar que o símbolo de
sua casa era uma truta saltante e, portanto, deveria ser um peixe
negro, e não uma ovelha, e desse dia em diante tornara-o seu
emblema pessoal.
A guerra não terminara até o dia dos casamentos de Catelyn e de
Lysa. Foi no banquete de casamento que Brynden disse ao irmão que
abandonaria Correrrio para servir Lysa e o novo mando, o Senhor do
Ninho da Águia. Lorde Hoster não pronunciara o nome do irmão
desde esse dia, segundo o que lhe dizia Edmure em suas raras cartas.
E, no entanto, durante todos os anos de infância e juventude, foi
Brynden, o Peixe Negro, que os filhos de Hoster procuraram com
suas lágrimas e suas histórias, quando o pai estava muito ocupado ou
a mãe doente demais. Catelyn, Lysa, Edmure.. e, sim, até mesmo
Petyr Baelish, o protegido do pai deles... Escutara-os a todos
pacientemente, tal como a escutava agora, rindo de seus triunfos e
solidarizando-se com seus infantis infortúnios.
Quando ela acabou, o tio permaneceu em silêncio por muito tempo,
enquanto o cavalo ia escolhendo o caminho pela íngreme trilha
rochosa.
- Seu pai precisa ser informado - ele disse por fim. - Se os Lannister
se puserem em marcha, Winterfell é remoto, e o Vale está protegido
atrás de suas montanhas, mas Correrrio fica exatamente no caminho
deles.
- Tive o mesmo receio - admitiu Catelyn. - Pedirei a Meistre
Colemon que envie uma ave quando chegarmos ao Ninho da Águia -
tinha também outras mensagens para enviar: as ordens que Ned lhe
dera para seus vassalos, para que preparassem as defesas do Norte. -
Como está o ambiente no Vale? - ela perguntou.
- Hostil - admitiu Brynden Tully. - Lorde Jon era muito amado, e
sentiu-se o insulto intensamente quando o rei nomeou Jaime
Lannister para um cargo que os Arryn tiveram durante quase
trezentos anos, Lysa nos ordenou que chamássemos ao seu filho o
Verdadeiro Protetor do Leste, mas ninguém se deixa enganar. E sua
irmã não está sozinha nas dúvidas sobre o modo como a Mão
morreu. Ninguém se atreve a dizer que Jon foi assassinado, pelo
menos abertamente, mas a suspeita lança uma longa sombra - olhou
para Catelyn, de boca apertada. - E há o rapaz.
- O rapaz? Que há com o rapaz? - ela abaixou a cabeça ao passar sob
uma projeção de rocha e por uma curva apertada.
A voz do tio estava perturbada.
- Lorde Robert - ele suspirou. - Seis anos, enfermiço e propenso a
chorar quando lhe tiram as bonecas. O herdeiro legítimo de Jon
Arryn, por todos os deuses, mas há quem diga que ele é fraco demais
para se sentar na cadeira do pai. Nestor Royce foi intendente
supremo durante estes últimos catorze anos, enquanto Lorde Arryn
servia em Porto Real, e muitos sussurram que ele deveria governar
até que o rapaz fosse maior de idade. Outros crêem que Lysa deveria
voltar a se casar, e depressa. Os pretendentes já se aglomeram como
corvos num campo de batalha. O Ninho da Águia está cheio deles.
- Eu podia ter previsto isso - disse Catelyn. Não era de admirar, Lysa
ainda era nova, e o reino da Montanha e Vale era um belo presente
de casamento. - Lysa vai tomar outro esposo?
- Ela diz que sim, desde que encontre um homem que lhe convenha -
disse Brynden Tully -, mas já rejeitou Lorde Nestor e uma dúzia de
outros homens adequados. Jura que desta vez será ela a escolher o
senhor seu esposo.
- O senhor, mais que todos, dificilmente pode censurá-la por isso.
Sor Brynden resfolegou.
- E não censuro, mas... parece-me que Lysa só está jogando o jogo da
corte. Aprecia o divertimento, mas creio que sua irmã pretende ser
ela a governante até que o filho tenha idade suficiente para ser
Senhor do Ninho da Águia na realidade, e não apenas no título.
- Uma mulher pode governar tão sabiamente como um homem -
Catelyn retrucou.
- A mulher certa pode fazê-lo - disse o tio, olhando-a de soslaio. -
Não tenha ilusões, Cat. Lysa não é como você - hesitou por um
momento. - A bem da verdade, temo que não vá achar sua irmã tão...
prestativa como gostaria.
Catelyn não compreendeu.
- O que o senhor quer dizer?
- A Lysa que regressou de Porto Real não é a mesma mulher que foi
para o sul quando o marido foi nomeado Mão. Aqueles anos lhe
foram duros. Você deve saber. Lorde Arryn foi um esposo
cumpridor, mas o casamento deles era feito de política, não de
paixão.
- Tal como o meu.
- Começaram do mesmo modo, mas o resultado do seu foi mais feliz
que o de sua irmã. Dois natimortos, quatro abortos, a morte de
Lorde Arryn... Catelyn, os deuses concederam a Lysa só aquele filho,
e eia vive agora apenas por ele, pobre rapaz. Não admira que tenha
preferido fugir a vê-lo entregue aos Lannister. Sua irmã tem medo,
filha, e são os Lannister que ela mais teme, Correu para o Vale,
esgueirando-se da Fortaleza Vermelha como um ladrão na noite, e
tudo para tirar o filho da boca do leão... e agora você trouxe o leão
até a sua porta,
- Acorrentado - Catelyn o corrigiu. Uma fenda abriu-se à sua direita,
caindo até a escuridão. Puxou as rédeas do cavalo e escolheu o
caminho com passos cautelosos.
- Ah! - o tio deu uma olhadela por sobre o ombro para onde Tyrion
Lannister fazia sua lenta descida atrás deles. - Vejo um machado em
sua sela, um punhal no cinto e um mercenário que o segue como
uma sombra faminta. Onde estão as correntes, querida?
Catelyn moveu-se desconfortável na sela.
- O anão está aqui, não por vontade dele. Com ou sem correntes, é
meu prisioneiro. Lysa não desejará menos que ele responda pelos
seus crimes que eu. Foi seu esposo que os Lannister assassinaram, e
foi a sua carta que primeiro nos preveniu a respeito deles.
Brynden Peixe Negro dirigiu-lhe um sorriso cansado.
- Espero que tenha razão, filha - suspirou, num tom que dizia que ela
se enganava,
O Sol já estava bem a oeste quando a ladeira começou a perder a
inclinação sob os cascos dos cavalos. A estrada alargou-se e
endireitou-se e, pela primeira vez, Catelyn reparou em flores silves-
tres e ervas que cresciam ao redor. Depois de atingirem o fundo do
vale, o avanço tornou-se mais rápido e andaram um bom tempo a
meio galope por bosques verdejantes e pequenos lugarejos so-
nolentos, passando por pomares e trigais dourados, patinhando
através de uma dúzia de córregos batidos pelo sol. O tio enviou um
porta-estandartes à frente deles, com um estandarte duplo
esvoaçando no mastro: o falcão e a lua da Casa Arryn no topo, e por
baixo seu peixe negro. Carroças de agricultores, mercadores e
cavaleiros de Casas menores afastavam-se para lhes dar passagem.
Mesmo assim, já tinha anoitecido por completo quando atingiram o
robusto castelo que se erguia no sopé da Lança do Gigante. Archotes
tremeluziam no topo de suas muralhas e o crescente da lua dançava
nas águas escuras de seu fosso. A ponte levadiça estava içada e a
porta, descida, mas Catelyn viu luzes ardendo na guarita,
derramando-se das janelas das torres quadradas que ficavam por
trás.
- Os Portões da Lua - disse o tio quando o grupo puxou as rédeas
dos cavalos. Seu porta-estandartes dirigiu-se à borda do fosso a fim
de saudar os homens na guarita. - O domínio de Lorde Nestor. Ele
deve estar à nossa espera. Olhe para cima.
Catelyn dirigiu os olhos para cima, e mais para cima, e mais ainda. A
princípio tudo o que viu foram rocha e árvores, a massa da grande
montanha envolvida na noite, tão negra como um céu sem estrelas.
Mas depois reparou no brilho de fogos distantes muito acima deles;
uma torre fortificada, construída na íngreme vertente da montanha,
cujas luzes eram como olhos cor de laranja que olhavam das alturas.
Acima dessa torre havia outra, mais elevada e mais distante, e uma
terceira ainda mais alta, não mais que uma tremeluzente centelha
contra o céu. E por fim, lá onde os falcões pairavam, um lampejo
branco ao luar. Foi assaltada pela vertigem ao olhar para as torres
claras tão longe acima dela.
- O Ninho da Águia - ouviu Marillion murmurar, espantado. A voz
penetrante de Tyrion Lannister intrometeu-se.
- Os Arryn não devem ser lá muito amigos de companhia. Se planeja
nos fazer escalar aquela montanha no escuro, preferia que me
matasse já aqui.
- Passaremos a noite aqui e subiremos de manhã - disse-lhe Brynden.
- Mal consigo esperar - respondeu o anão. - Como é que subimos até
lá em cima? Não tenho experiência em montar cabras.
- Mulas - disse Brynden, sorrindo.
- Há degraus escavados na montanha - Catelyn completou. Ned
falara-lhe deles quando lhe contara sobre a juventude passada ali
com Robert Baratheon e Jon Arryn.
O tio confirmou com a cabeça.
- Está muito escuro para vê-los, mas os degraus estão lá. São
bastante íngremes e estreitos para cavalos, mas as mulas conseguem
subi-los ao longo da maior parte do caminho. A trilha é guardada
por três castelos intermédios, Pedra, Neve e Céu. As mulas nos
levarão até Céu.
Tyrion Lannister olhou de relance para cima, com ar de dúvida.
- E depois disso?
Brynden sorriu.
- Depois disso, o caminho é íngreme demais até para mulas. Fazemos
a pé o resto do trajeto. Ou talvez você prefira subir num cesto. O
Ninho da Águia agarra-se à montanha diretamente por cima de Céu,
e em seus subterrâneos há seis grandes guinchos com longas
correntes de ferro para transportar mantimentos a partir do castelo
inferior. Se preferir, senhor de Lannister, posso organizar as coisas
para que suba com o pão, a cerveja e as maçãs.
O anão soltou uma gargalhada.
- Bem gostaria de ser uma abóbora - ele respondeu. - Infelizmente, o
senhor meu pai ficaria sem dúvida muito desgostoso se seu filho de
Lannister fosse ao encontro de seu destino como um carregamento
de nabos. Se vão subir a pé, receio que deva fazer o mesmo. Nós, os
Lannister, somos dotados de algum orgulho.
- Orgulho? - retrucou Catelyn em tom duro. O tom irônico e as
maneiras fáceis do anão a tinham irritado, - Alguns chamariam isso
de arrogância. Arrogância e avareza, e desejo de poder.
- Meu irmão é sem dúvida arrogante - respondeu Tyrion Lannister. -
Meu pai é a alma da avareza, e minha querida irmã Cersei deseja o
poder em cada momento que passa acordada. Eu, no entanto, sou
inocente como um cordeirinho. Devo balir agora? - e sorriu.
A ponte levadiça começou a descer, rangendo, antes que Catelyn
pudesse responder, e ouviram o som de correntes oleadas quando a
porta levadiça foi puxada para cima. Homens de armas trouxeram
tochas ardentes para lhes alumiar o caminho, e o tio os levou através
do fosso. Lorde Nestor Royce, Intendente Supremo do Vale e
Guardião dos Portões da Lua, esperava no pátio por eles, rodeado
pelos seus cavaleiros,
- Senhora Stark - ele a cumprimentou, fazendo uma reverência. Era
um homem maciço, com o peito em forma de barril, e sua reverência
era desajeitada.
Catelyn desmontou à sua frente.
- Lorde Nestor - ela retribuiu. Só conhecia o homem por reputação.
Primo de Bronze Yohn, pertencente a um ramo menor da Casa
Royce, mas mesmo assim um senhor formidável por direito próprio.
- Tivemos uma viagem longa e cansativa. Peço a hospitalidade de seu
teto por esta noite, se possível.
- Meu teto é seu, senhora - retorquiu bruscamente Lorde Nestor -,
mas sua irmã, a Senhora Lysa, enviou uma mensagem do Ninho da
Águia. Deseja vê-la de imediato. O resto do seu grupo ficará alojado
aqui e será enviado para cima à primeira luz da madrugada.
O tio saltou do cavalo.
- Que loucura é esta? - disse ele sem cerimônia, Brynden Tully nunca
fora homem que suavizasse as palavras. - Uma subida noturna, sem
sequer uma lua cheia? Até Lysa deve saber que isto é um convite
para um pescoço quebrado.
- As mulas conhecem o caminho, Sor Brynden - uma moça seca e
dura, de dezessete ou dezoito anos, adiantou-se ao lado de Lorde
Nestor, Tinha os cabelos escuros cortados curtos, lisos, e usava
couros de montar e uma leve cota de malha prateada. Fez uma
reverência a Catelyn, mais graciosa que a do seu senhor. - Prometo,
senhora, que nenhum mal lhe acontecerá. Será minha honra levá-la
para cima. Fiz a subida às escuras um cento de vezes. Mychel diz que
meu pai deve ter sido um bode.
A moça soava tão pretensiosa que Catelyn teve de sorrir.
- E tem um nome, jovem?
- Mya Stone, ao seu dispor, senhora.
Mas a disposição era amarga; foi um esforço para Catelyn manter o
sorriso. Stone era um nome de bastardo no Vale, tal como Snow no
Norte e Flowers em Jardim de Cima; em cada um dos Sete Reinos o
costume tinha criado um apelido para as crianças nascidas sem nome
de mrruha. Catelyn não tinha nada contra aquela jovem, mas de
repente não pôde deixar de pensar z: bastardo de Ned na Muralha, e
o pensamento a fez sentir-se ao mesmo tempo zangada e culpada.
Lutou para encontrar palavras para uma resposta.
Lorde Nestor preencheu o silêncio.
- Mya é uma moça inteligente e, se promete levá-la em segurança até
a Senhora Lysa, eu acredito. Até hoje nunca me deixou na mão.
- Então, coloco-me nas suas mãos, Mya Stone - disse Catelyn. - Lorde
Nestor, encarrego-o de manter meu prisioneiro sob guarda estrita.
- E eu o encarrego de trazer ao prisioneiro uma taça de vinho e um
capão bem torrado antes que morra de fome - disse o Lannister. -
Uma mulher também seria agradável, mas suponho que isso seja
pedir demais - o mercenário Bronn riu em voz alta.
Lorde Nestor ignorou o gracejo.
- Conforme desejar, minha senhora, assim será feito - só então olhou
para o anão. - Levem o senhor de Lannister para uma cela na torre e
dêem-lhe comida e bebida.
Catelyn despediu-se do tio e dos outros no momento em que Tyrion
Lannister era levado, e seguiu a bastarda através do castelo. Duas
mulas esperavam junto à muralha superior, seladas e prontas. Mya a
ajudou a montar uma delas enquanto um guarda num manto azul-
celeste abria o estreito portão dos fundos. Do outro lado do portão
estendia-se uma densa floresta de pinheiros e abetos, e a montanha
era como uma muralha negra, mas os degraus estavam lá,
profundamente entalhados na rocha, subindo até o céu.
- Algumas pessoas acham mais fácil com os olhos fechados - disse
Mya ao levar as mulas através do portão e para a floresta escura. -
Quando ficam assustadas ou tontas, por vezes agarram-se à mula
com muita força. E as mulas não gostam disso.
- Eu nasci uma Tully e me casei com um Stark - disse Catelyn. - Não
me assusto facilmente. Você vai acender um archote? - os degraus
eram negros como breu.
A moça fez uma careta.
- Os archotes só nos cegam. Numa noite clara como esta, a lua e as
estrelas são o suficiente. Mychel diz que tenho os olhos de uma
coruja - montou e instigou a mula a subir o primeiro degrau. O
animal de Catelyn seguiu-a por vontade própria.
- Você já tinha falado de Mychel antes - disse Catelyn. As mulas
marcaram o ritmo, lento, mas constante. Estava perfeitamente
satisfeita com isso.
- Mychel é o meu amor - Mya explicou. - Mychel Redfort. É
escudeiro de Sor Lyn Corbray. Devemos nos casar assim que seja
armado cavaleiro, no ano que vem ou no outro a seguir.
Soava tanto como Sansa, tão feliz e inocente com seus sonhos.
Catelyn sorriu, mas seu sorriso estava tingido de tristeza. Sabia que
Redfort era um nome antigo no Vale, com o sangue dos Primeiros
Homens nas veias. Ele até podia ser o seu amor, mas nenhum
Redfort jamais desposaria uma bastarda. Sua família encontraria um
par adequado para ele, uma Corbray, Waynwood ou Royce, ou talvez
a filha de alguma Casa maior de fora do Vale. Se Mychel Redfort
chegasse a deitar com aquela moça, seria do lado errado dos lençóis.
A subida era mais fácil do que Catelyn esperava. As árvores estavam
muito próximas, inclinando-se sobre o caminho e criando assim um
sussurrante teto verde que afastava até a lua, e por isso parecia que
estavam se deslocando através de um longo túnel negro. Mas as
mulas tinham pernas seguras e eram infatigáveis, e Mya Stone
parecia de fato ter sido abençoada com olhos da noite. Arrastaram-se
para cima, percorrendo um caminho sinuoso ao longo da face da
montanha à medida que os degraus iam se torcendo e curvando.
Uma espessa camada de musgo-de-pinheiro atapetava o solo, e as
ferraduras das mulas faziam apenas o mais suave dos sons contra a
rocha. O silêncio a acalmou, e o balanço gentil do animal embalou
Catelyn na sela. Não muito tempo depois, estava tentando combater
o sono.
Talvez tenha cochilado por um momento, porque, repentinamente,
um maciço portão ferrado ergueu-se à sua frente.
- Pedra - anunciou alegremente Mya, desmontando. As poderosas
muralhas de pedra estavam coroadas por lanças de ferro, e duas
grossas torres redondas elevavam-se acima da fortaleza. O portão
abriu-se com o grito de Mya. Lá dentro, o corpulento cavaleiro que
comandava o castelo intermédio saudou Mya pelo nome e ofereceu-
lhes espetos de carne assada e cebolas recém-saídas do fogo. Catelyn
até então não percebera a fome que sentia. Comeu no pátio, em pé,
enquanto os cavalariços colocavam suas selas em mulas descansadas.
O molho quente correu-lhe pelo queixo abaixo e pingou sobre seu
manto, mas estava faminta demais para se importar.
Depois, foi montar numa nova mula e voltou a sair para a luz das
estrelas. A segunda parte da subida pareceu a Catelyn mais
traiçoeira. A trilha era mais íngreme, os degraus, mais desgastados, e
aqui e ali cobertos por cascalho e pedra partida. Mya teve de
desmontar meia dúzia de vezes para tirar pedras caídas do caminho.
- Não vai querer que sua mula quebre uma pata aqui em cima - ela
disse.
Catelyn foi obrigada a concordar. Sentia agora mais a altitude. As
árvores cresciam mais dispersas ali, e o vento soprava com maior
vigor, em rajadas intensas que a puxavam pela roupa e lhe atiravam
os cabelos nos olhos. De tempos em tempos, os degraus dobravam-se
sobre si mesmos e conseguia ver Pedra abaixo delas e, mais abaixo,
os Portões da Lua, cujos archotes não eram mais brilhantes que
velas.
Neve era menor que Pedra, uma única torre fortificada e uma
fortaleza e estábulo de madeira escondidos atrás de um muro baixo
de pedra solta. Mas apertava-se de encontro à Lança do Gigante de
modo a dominar toda a escada de pedra acima do castelo intermédio
inferior. Um avanço inimigo sobre o Ninho da Águia teria de lutar a
partir de Pedra, degrau a degrau, enquanto pedras choviam de Neve.
Seu comandante, um jovem cavaleiro ansioso de face esburacada,
ofereceu-lhes pão e queijo e a possibilidade de se aquecerem na sua
fogueira, mas Mya declinou.
- Devemos continuar, senhora - disse. - Se lhe for conveniente - e
Catelyn anuiu.
De novo foram-lhes dadas outras mulas. A dela, um macho, era
branca. Mya sorriu ao vê-lo.
- O Branquinho é um bom macho, minha senhora. Pernas firmes, até
mesmo no gelo, mas precisa ter cuidado. Ele escoiceará se não gostar
da senhora.
O macho branco pareceu gostar de Catelyn, não houve coices, graças
aos deuses. Também não havia gelo, e por isso também se sentia
grata.
- Minha mãe diz que, há centenas de anos, era aqui que a neve
começava - disse-lhe Mya. - Cá em cima estava sempre branco, e o
gelo nunca derretia - encolheu os ombros. - Nem sequer me lembro
de alguma vez ter visto neve abaixo da montanha, mas talvez tenha
sido assim em épocas passadas.
Tão jovem, pensou Catelyn, tentando imaginar seja fora assim. A
moça vivera metade da vida no verão, e isso era tudo o que conhecia.
Quis dizer-lhe: O inverno está para chegar, filha. As palavras
subiram-lhe aos lábios, e quase as disse. Talvez estivesse por fim
transformando-se numa Stark.
Acima de Neve, o vento era uma coisa viva, uivando em torno delas
como um lobo na campina, e depois se transformando em nada,
como se as atraísse para a complacência. Ali as estrelas rireciam mais
brilhantes, tão próximas que quase podia tocá-las, e o crescente da
lua era enorme ao céu negro e limpo. Enquanto subiam, Catelyn
descobriu que era melhor olhar para cima que rara baixo. Os
degraus estavam fendidos e quebrados, de séculos de gelo e degelo e
dos passos de —contáveis mulas, e a altitude lhe trazia o coração à
garganta, até mesmo na escuridão. Quando negaram a uma
depressão entre duas agulhas de rocha, Mya desmontou.
- É melhor levar as mulas pelas cordas - ela avisou. - O vento pode
ser um pouco assustador aqui, minha senhora,
Catelyn desmontou rigidamente nas sombras e olhou para o caminho
que as esperava: seis metros de comprimento e quase um de largura,
mas com um precipício de cada lado. Ouvia o vento gritar. Mya
avançou com ligeireza, seguida por uma mula tão calma como se
estivessem percorrendo uma muralha. Agora era a vez de Catelyn.
Mas, assim que deu o primeiro passo, o medo endureceu suas
mandíbulas. Conseguia sentir o vazio, os vastos abismos negros de ar
que se abriam ao redor. Parou, tremendo, com medo de se mover. O
vento gritava-lhe e a puxava pelo manto, tentando empurrá-la para
fora daquela crista. Catelyn arrastou o pé para trás, no mais nmido
dos passos, mas o macho estava atrás dela, e não podia recuar. Vou
morrer aqui, pensou. Sentia os suores frios que lhe escorriam pelas
costas abaixo.
- Senhora Stark - chamou Mya por sobre o abismo. A voz da moça
parecia vir de uma distancia de mil léguas. - Está bem?
Catelyn Tully Stark engoliu o que restava de seu orgulho.
- Eu.. eu não sou capaz de fazer isto, criança - ela gritou.
- É sim - disse a bastarda. - Eu sei que é capaz. Veja como o
caminho é largo,
- Não quero olhar - o mundo parecia girar à sua volta, montanha,
céu e mulas rodopiando como o pião de uma criança. Catelyn fechou
os olhos para recuperar a firmeza da respiração entrecortada.
- Vou buscá-la - disse Mya. - Fique imóvel, senhora.
Mover-se era talvez a última coisa que Catelyn faria naquele
momento. Ouviu o grito agudo do vento e o som arrastado do couro
roçando na rocha. E então Mya estava ali, tomando-a gentilmente
pelo braço.
- Mantenha os olhos fechados, se preferir. Largue a corda agora. O
Branquinho tomará conta de si próprio. Muito bem, minha senhora.
Eu a levo, é fácil, a senhora verá. Dê agora um passo. Isso mesmo,
mexa o pé, faça-o deslizar em frente. Vê? Agora o outro. É fácil.
Poderia atravessar correndo. Outro, vamos. Sim - e assim, pé ante pé,
passo a passo, a bastarda levou Catelyn a atravessar, cega e
tremendo, enquanto o macho branco seguia plácidamente atrás delas.
O castelo intermédio chamado Céu não era mais que um muro alto
de pedra solta em forma de crescente, erguido contra a vertente da
montanha, mas nem mesmo as torres sem topo de Valíria teriam
parecido mais belas a Catelyn Stark. Ali começava finalmente a neve;
as pedras desgastadas de Céu estavam cobertas de geada, e longos
pingentes de gelo pendiam das encostas mais acima.
A alvorada rompia no leste quando Mya Stone gritou um olá aos
guardas, e os portões se abriram para deixá-las entrar. Dentro das
muralhas havia apenas uma série de rampas e uma grande confusão
de rochedos e pedregulhos de todos os tamanhos. Não havia dúvida
de que seria a coisa mais fácil do mundo começar ali uma avalanche.
Uma gruta abria-se na face da rocha à frente delas.
- Os estábulos e as casernas ficam ali - disse Mya. - A última parte
do caminho é por dentro da montanha. Pode ficar um pouco escuro,
mas pelo menos estará livre do vento. As mulas não vão mais além.
Depois daqui, bem, é uma espécie de chaminé, mais parecida com
uma escada de mão em pedra do que com degraus propriamente
ditos, mas não é tão mau. Mais uma hora e estaremos lá.
Catelyn olhou para cima. Conseguia ver as fundações do Ninho da
Águia diretamente por cima da cabeça, claras à luz da alvorada. Não
podiam ser mais de uns cento e oitenta metros até lá. A parte de
baixo parecia uma pequena colmeia branca. Lembrou-se do que seu
tio dissera sobre cestos e guinchos.
- Os Lannister podem ter seu orgulho, mas os Tully nascem com
mais bom-senso. Cavalguei o dia inteiro e a maior parte da noite.
Diga-lhes para baixar um cesto. Subirei com os nabos.
Quando Catelyn Stark finalmente chegou ao Ninho da Águia, o sol
estava bem acima das montanhas. Um homem atarracado, de cabelos
grisalhos, com um manto azul-celeste e a lua e o falcão no peitoral
de ferro martelado, a ajudou a sair do cesto. Sor Vardis Egen, capitão
da guarda de Jon Arryn. A seu lado estava Meistre Colemon, magro e
nervoso, com cabelo de menos e pescoço de mais.
- Senhora Stark - disse Sor Vardis -, o prazer é tão grande como
inesperado.
Meistre Colemon inclinou a cabeça em sinal de acordo.
- De fato é, minha senhora, de fato é. Enviei uma mensagem à sua
irmã. Ela deixou ordens para ser acordada no instante de sua
chegada.
- Espero que tenha tido uma boa noite de repouso - disse Catelyn
com certa acidez no tom que pareceu passar despercebida.
Saiu da sala dos guinchos acompanhada pelos homens e subiu uma
escada em espiral. O Ninho da Águia era um castelo pequeno pelos
padrões das grandes casas; sete esguias torres brancas, tão juntas
como setas numa aljava, sobre uma saliência da grande montanha.
Não tinha necessidade de estábulos, oficinas de ferrreiros ou canis,
mas Ned dizia que seu celeiro era tão grande como o de Winterfell e
as suas torres podiam albergar quinhentos homens. A Catelyn, no
entanto, pareceu estranhamente deserto quando o atravessou, com os
salões de pedra clara cheios de ecos e vazios,
Lysa a esperava sozinha no aposento privado, ainda vestida com a
camisa de dormir. Seus longos cabelos ruivos caíam-lhe soltos sobre
os ombros brancos e pelas costas. Uma criada estava em pé atrás
dela, escovando os nós da noite, mas, quando Catelyn entrou, a irmã
pôs-se em pé, sorrindo.
- Cat - disse, - Ah, Cat, como é bom vê-la. Minha querida irmã -
correu pelo quarto afora e envolveu a irmã nos braços. - Tanto
tempo - murmurou Lysa contra seu corpo. - Ah, tanto, tanto tempo.
Na verdade, tinham sido cinco anos; cinco anos cruéis para Lysa, que
lhe tinham cobrado seu preço. A irmã era dois anos mais nova, mas
agora parecia a mais velha. Mais baixa que Catelyn, o corpo de Lysa
tornara-se mais largo, e o rosto, pálido e inchado. Tinha os olhos
azuis dos Tully, mas os dela eram claros e aguados, sem nunca parar
quietos. A pequena boca tornara-se petulante. Enquanto a abraçava,
Catelyn recordou a garota magra de peito erguido que esperara a seu
lado naquele dia, no septo de Correrrio. Tão encantadora e cheia de
esperança. Tudo o que restava da beleza da irmã era a grande
cascata de espessos cabelos ruivos que lhe caíam até a cintura.
- Está muito bem - mentiu Catelyn -, mas. . parece cansada.
A irmã se afastou do abraço.
- Cansada. Sim. Ah, sim - pareceu então reparar nos outros; a criada,
Meistre Colemon, Sor Vardis. - Deixem-nos - disse-lhes. - Desejo
conversar com minha irmã a sós - permaneceu de mão dada com
Catelyn enquanto eles se retiravam..
... e deixou-a cair no instante em que a porta se fechou. Catelyn viu
seu rosto mudar. Era Buo se o sol tivesse se escondido atrás de uma
nuvem.
- Será que perdeu o juízo? - exclamou Lysa. - Trazê-lo para cá, sem
um pedido de licença, sem sequer um aviso, arrastando-nos para as
suas querelas com os Lannister...
- Minhas querelas? - Catelyn mal podia acreditar no que acabara de
ouvir. Um grande fogo ardia na lareira, mas não havia sinal de calor
na voz de Lysa. - As querelas começaram por serem suas, irmã. Foi
você quem me enviou aquela maldita carta, foi você quem escreveu
que os Lannister assassinaram seu marido.
- Para preveni-la, para que pudesse ficar longe deles! Nunca pretendi
lutar com eles! Deuses, Cat, sabe o que você fez?
- Mãe? - disse uma vozinha. Lysa virou-se, com o pesado roupão
rodopiando à sua volta. Robert Arryn, Senhor do Ninho da Águia,
estava na porta, agarrado a uma esfarrapada boneca de pano e
olhando-as com grandes olhos. Era uma criança dolorosamente
magra, pequena para a idade e toda a vida enfermiça, e de tempos
em tempos estremecia. Os meistres chamavam àquilo a doença dos
tremores. - Ouvi vozes.
Não era de se espantar, pensou Catelyn, Lysa estivera quase gritando.
Mas mesmo assim sua irmã a olhou com punhais nos olhos.
- Esta é sua tia Catelyn, querido. Minha irmã, a Senhora Stark.
Lembra-se?
O menino a olhou de relance, sem expressão.
- Acho que sim - respondeu, pestanejando. Da última vez que
Catelyn o vira ele tinha meros de um ano de idade.
Lysa sentou-se junto ao fogo e disse:
- Vem com sua mãe, meu doce - endireitou-lhe a roupa de dormir e
mexeu nos seus finos cabelos castanhos. - Ele não é lindo? E também
é forte. Não acredite no que se diz por aí. Jon sabia. A semente é
forte, ele me disse. Foram suas últimas palavras. Só dizia o nome de
Robert, e me agarrou o braço com tanta força que deixou marcas.
Diga-lhes, a semente é forte. Sua semente. Se queria que todos
soubessem como o meu bebê se tornaria um rapaz bom e forte.
- Lysa - disse Catelyn -, se você tiver razão quanto aos Lannister, isto
é mais um motivo para agirmos rapidamente. Nós...
- Na frente da criança, não - Lysa a repreendeu, - Ele tem um humor
delicado, não tem, querido?
- Este menino é Senhor do Ninho da Águia e Defensor do Vale -
lembrou-a Catelyn -, e estes não são tempos para delicadezas. Ned
pensa que se poderá chegar à guerra.
- Silêncio! - Lysa exclamou. - Está assustando o menino - o pequeno
Robert espreitou Catelyn por sobre o ombro e começou a tremer.
Sua boneca caiu sobre a esteira e ele se apertou contra a mãe, - Não
tenha medo, meu bebê adorado - Lysa sussurrou. - Sua mãe está
aqui, nada te fará mal - abriu o roupão e expôs um seio pálido e
pesado, completamente vermelho. O menino agarrou-se a ela
ansiosamente, enterrou o rosto em seu peito e começou a sugar, Lysa
afagou-lhe os cabelos.
Catelyn estava sem palavras. O filho de Jon Arryn, pensou, incrédula.
Recordou seu filho Rickon, de três anos, com metade da idade
daquele menino e cinco vezes mais feroz. Não admirava que os
senhores do Vale estivessem nervosos. Pela primeira vez
compreendeu a razão por que o rei tentara tirar a criança da mãe e
criada com os Lannister...
- Aqui estamos a salvo - disse Lysa. Catelyn não tinha certeza se para
si mesma ou se para o filho.
- Não seja estúpida - disse Catelyn, com a ira crescendo dentro dela.
- Ninguém está a salvo. Se pensa que se esconder aqui fará com que
os Lannister a esqueçam, está muito enganada.
Lysa cobriu a orelha do filho com a mão.
- Mesmo se conseguissem trazer um exército pelas montanhas e
atravessassem o Portão Sangrento, o Ninho da Águia é inexpugnável.
Você viu com seus próprios olhos. Nenhum inimigo poderá nos
atingir aqui em cima.
Catelyn quis bater na irmã. Então percebeu que seu tio Brynden
tentara preveni-la daquilo.
- Nenhum castelo é inexpugnável.
- Este é - insistiu Lysa. - Todos assim dizem. A única questão é: o
que farei com este Duende que você me trouxe?
- Ele é um homem mau? - perguntou o Senhor do Ninho da Águia,
com o seio da mãe saltando-lhe da boca, com o mamilo molhado e
vermelho.
- Um homem muito mau - disse-lhe Lysa enquanto se cobria -mas eu
não vou deixar que ele faça mal ao bebê.
- Faça-o voar - disse Robert em tom ansioso.
Lysa afagou os cabelos do filho.
- Talvez façamos - murmurou. - Talvez seja isso mesmo o que
faremos.
Eddard
Foi encontrar Mindinho na sala comum do bordel, conversando
amigavelmente com uma mulher alta e elegante que usava um
vestido de penas sobre uma pele tão negra como tinta. Perro da
lareira, Heward e uma jovem roliça jogavam prendas. Segundo
parecia, ele por enquanto tinha perdido o cinto, o manto, a cota de
malha e a bota direita, ao passo que a jovem tinha sido forçada a
desabotoar a camisa até o peito. Jory Cassei estava em pé, junto a
uma janela riscada pela chuva, com um sorriso perverso no rosto,
observando Heward virando as peças e gostando do que estava
vendo.
Ned parou na base da escada e calçou as luvas.
- E tempo de nos retirarmos. Meu assunto aqui está tratado,
Heward pôs-se em pé de um salto, recolhendo apressadamente suas
coisas.
- Como quiser, senhor - disse. - Vou ajudar Wyl a trazer os cavalos -
e encaminhou-se para a porta a passos largos.
Mindinho gastou seu tempo nas despedidas. Beijou a mão da mulher
negra, sussurrou um gracejo qualquer que a fez rir alto, e dirigiu-se
vagarosamente para Ned.
- Seu assunto - disse com ligeireza -, ou de Robert? Diz-se que a
Mão sonha os sonhos do rei, fala com a voz do rei e governa com a
espada do rei. Será que isso também quer dizer que rode com a. .
- Lorde Baelish - interrompeu Ned -, o senhor tem muito
atrevimento. Não sou ingrato pela sua ajuda. Poderíamos ter levado
anos para encontrar este bordel sem o senhor. Mas isso não quer
dizer que pretendo suportar sua zombaria. E já não sou a Mão do
Rei.
- O lobo gigante deve ser um animal irritadiço - disse Mindinho,
torcendo a boca.
Caía uma chuva morna de um céu negro sem estrelas quando se
encaminharam para os estábulos. Ned puxou o capuz do manto
sobre a cabeça. Jory trouxe-lhe seu cavalo. O jovem Wyl veio logo
atrás, trazendo a égua de Mindinho com uma mão, enquanto a outra
lutava com o cinto e as ataduras das calças. Uma prostituta barata
espreitava da porta do estábulo, rindo para ele.
- Vamos regressar agora ao castelo, senhor? - Jory perguntou. Ned
confirmou com a cabeça e saltou para a sela. Mindinho, ao seu lado,
também montou. Jory e os outros os acompanharam.
- Chataya dirige um estabelecimento de primeira linha - disse
Mindinho enquanto avançavam. - Estou meio decidido a comprá-lo.
Descobri que os bordéis são um investimento muito mais lucrativo
que os navios. As prostitutas raramente se afundam, e quando são
abordadas por piratas, ora, os piratas pagam em boa moeda como
qualquer outra pessoa - Lorde Petyr riu da própria piada.
Ned deixou que continuasse a tagarelar. Passado algum tempo, o
homem sossegou, e prosseguiram em silêncio. As ruas de Porto Real
estavam escuras e desertas. A chuva empurrara as pessoas para
dentro das portas e batia na cabeça de Ned, morna como sangue e
inexorável como as velhas culpas. Gordas gotas de água corriam-lhe
pelo rosto abaixo.
"Robert nunca se limitará a uma cama", dissera-lhe Lyanna, em
Winterfell, na noite, há muito tempo, em que seu pai prometera a
mão da filha ao jovem Senhor de Ponta Tempestade. "Ouvi dizer que
fez um filho em uma moça qualquer no Vale." Ned segurara o bebê
nos braços; dificilmente poderia negá-lo, e tampouco mentiria à irmã,
mas assegurara-lhe que o que Robert fizera antes da promessa não
tinha importância, que era um homem bom e fiel, e que a amaria de
todo o coração. Lyanna apenas sorrira. "O amor é doce, querido Ned,
mas não pode mudar a natureza de um homem."
A moça era tão jovem que Ned não se atrevera a lhe perguntar a
idade. Não havia dúvida de que tinha começado virgem; os melhores
bordéis eram sempre capazes de encontrar uma virgem, se a bolsa
fosse suficientemente gorda. Tinha cabelos ruivo-claros e o nariz
salpicado de sardas, e quando soltou um seio para dar o mamilo ao
bebê, Ned vira que também o peito era sardento.
- Dei-lhe o nome Barra - dissera, enquanto a criança mamava. -
Parece-se tanto com ele, não parece, senhor? Tem o seu nariz, seu
cabelo...
- Parece - Eddard Stark tocara os cabelos finos e escuros do bebê.
Fluía entre seus dedos como seda negra. Julgava recordar-se de que a
primeira filha de Robert tivera o mesmo cabelo fino.
- Conte-lhe quando o vir, senhor, se lhe... se lhe for conveniente.
Conte-lhe como ela é linda.
- Contarei - Ned prometeu à moça. Era esta a sua maldição. Robert
era capaz de jurar um amor eterno e esquecê-lo antes do cair da
noite, mas Ned Stark mantinha seus votos. Pensou nas promessas
que fizera a Lyanna quando ela jazia, à morte, e no preço que pagara
para cumpri-las.
- E diga-lhe que não tive mais ninguém. Juro, senhor, pelos deuses
antigos e pelos novos. Chataya disse que eu podia tirar meio ano, por
causa do bebê e por ter esperança de que ele volte. Por isso, o
senhor vai lhe dizer que estou à espera, não é verdade? Não quero
jóias nem nada disso, só quero ele. Sempre foi bom para mim, de
verdade.
Ainda bem para você, pensou Ned de um modo vazio.
- Direi, filha, e prometo-lhe que Barra não passará necessidades.
Então ela sorrira, um sorriso tão trêmulo e doce que lhe destroçara o
coração. Cavalgando pela noite chuvosa, Ned viu o rosto de Jon Snow
à sua frente, tão semelhante a uma versão mais nova do seu. Se os
deuses eram tão duros com os bastardos, pensou sombriamente, por
que enchiam os homens de tais apetites?
- Lorde Baelish, o que sabe dos bastardos de Robert?
- Bem, para começar, ele tem mais do que o senhor.
- Quantos?
Mindinho encolheu os ombros. Fios de chuva puxavam para baixo a
parte de trás de seu manto.
- Será que importa? Se se dormir com mulheres suficientes, algumas
lhe darão presentes, e Sua Graça nunca foi tímido nesse aspecto. Sei
que ele reconheceu aquele rapaz em Ponta Tempestade, aquele que
gerou na noite do casamento de Lorde Stannis, Dificilmente poderia
fazer outra coisa. A mãe é uma Florent, sobrinha da Senhora Selyse,
uma de suas camareiras. Renly diz que Robert levou a moça para
cima durante o banquete e estreou o leito de núpcias enquanto
Stannis e a noiva ainda dançavam. Lorde Stannis pareceu pensar que
isso manchou a honra da Casa da esposa, e quando o rapaz nasceu, o
enviou para Renly - dirigiu a Ned uma olhadela pelo tanto do olho. -
Também ouvi segredar que Robert arranjou um par de gêmeos com
uma criada no Rochedo Casterly, há três anos, quando viajou para
oeste, para o torneio de Lorde Tywin. Cersei mandou matar os bebês
e vendeu a mãe a um negociante de escravos que estava de passa-
gem. Era afronta demais ao orgulho dos Lannister, tão perto de casa.
Ned Stark fez uma careta. Contavam-se histórias feias como aquela
de todos os grandes senhores no reino. Ele conseguia acreditar com
suficiente facilidade que Cersei Lannister seria capaz de tal coisa...
Mas o rei permitiria que algo assim acontecesse? O Robert que
conhecera não o teria permitido, mas este mesmo Robert também
nunca tivera, como agora, tanta prática de fechar os olhos às coisas
que não desejava ver.
- Por que teria Jon Arryn tomado um súbito interesse pelos filhos
ilegítimos do rei? O homem mais baixo encolheu um par de ombros
encharcados.
- Ele era a Mão do Rei. Sem dúvida, Robert pediu-lhe que lhes
assegurasse a subsistência. Ned estava molhado até os ossos e sua
alma tinha se arrefecido.
- Tinha de ser mais que isso, caso contrário, por que matá-lo?
Mindinho sacudiu a chuva dos cabelos e soltou uma gargalhada.
- Agora compreendo. Lorde Arryn soube que Sua Graça enchera as
barrigas de umas quantas prostitutas e mulheres de pescadores e por
isso teve de ser silenciado. Não surpreende. Permita a um homem
assim que viva e, em seguida, é provável que ele diga que o Sol nasce
no oriente,
Ned não podia dar àquilo nenhuma resposta além de um olhar
carregado. Pela primeira vez em anos, deu por si pensando em
Rhaegar Targaryen. Gostaria de saber se Rhaegar frequentara
bordéis; não sabia bem por que, mas achava que não.
A chuva caía agora com mais força, fazendo arder os olhos e
tamborilando no chão. Rios de agua negra corriam pela colina abaixo
quando Jory gritou "Senhor", com a voz rouca de alarme, E, no
instante seguinte, a rua estava cheia de soldados.
Ned vislumbrou cotas de malha sobre couro, luvas e caneleiras,
capacetes de aço coroados ror leões dourados. Seus mantos aderiam-
lhes às costas, ensopados de chuva. Não teve tempo de contar, mas
havia pelo menos dez, uma fila deles, a pé, bloqueando a rua, com
espadas e lanças de ponta de ferro. Ouviu Wyl gritar "Atrás!", e
quando virou o cavalo havia mais atrás deles, cortando-lhes a
retirada. A espada de Jory saiu da bainha, tilintando.
- Deixem-nos passar, ou morrerão!
- Os lobos estão uivando - disse o líder. Ned podia ver a chuva que
lhe escorria pelo rosto,
- Mas é uma alcateia muito pequena.
Mindinho fez avançar seu cavalo, um passo cuidadoso de cada vez.
- Que significa isto? Este é a Mão do Rei.
- Este era a Mão do Rei - a lama abafava o ruído dos cascos do
garanhão baio puro-sangue. A linha abriu-se para deixá-lo passar.
Num peitoral dourado, o leão de Lannister rugia em desafio. - Agora,
a bem da verdade, não tenho certeza do que ele é.
- Lannister, isto é uma loucura - disse Mindinho. - Deixe-nos passar.
Somos esperados no castelo. Que pensa que está fazendo?
- Ele sabe o que está fazendo - disse Ned calmamente.
Jaime Lannister sorriu.
- É bem verdade. Estou à procura de meu irmão. Lembra-se do meu
irmão, não é mesmo, Lorde Stark? Esteve comigo em Winterfell, De
cabelos claros, olhos desiguais, uma língua afiada. Um homem baixo.
- Lembro-me bem dele - respondeu Ned.
- Parece que encontrou alguns problemas na estrada. O senhor meu
pai está bastante aborrecido. Não tem por acaso alguma ideia de
quem possa desejar mal a meu irmão, não é?
- Seu irmão foi capturado às minhas ordens, a fim de responder
pelos seus crimes - disse Ned Stark.
Mindinho grunhiu de consternação.
- Meus senhores...
Sor Jaime arrancou a espada da bainha e incitou o garanhão a
avançar.
- Mostre-me o seu aço, Lorde Eddard. Eu o matarei como a Aerys se
tiver de ser, mas preferiria que morresse com uma lâmina na mão -
dirigiu a Mindinho um olhar frio e desdenhoso. - Lorde Baelish, eu
sairia daqui com alguma pressa se não quisesse ficar com manchas
de sangue nas dispendiosas roupas.
Mindinho não precisava ser instado.
- Chamarei a Patrulha da Cidade - prometeu a Ned. A linha dos
Lannister abriu-se para deixá-lo passar e atrás dele se fechou.
Mindinho enterrou os calcanhares na égua e desapareceu atrás de
uma esquina.
Os homens de Ned tinham puxado as espadas, mas eram três contra
vinte. Olhos observavam de janelas e portas próximas, mas ninguém
pensava em intervir. Seu grupo estava montado, os Lannister, a pé,
exceto o próprio Jaime. Uma investida poderia libertá-los, mas
pareceu a Eddard Stark que tinham uma tática mais segura.
- Mate-me - disse ele ao Regicida -, e Catelyn com certeza matará
Tyrion.
Jaime Lannister empurrou o peito de Ned com a espada dourada que
derramara o sangue do último dos reis-dragão.
- Mataria? A nobre Catelyn Tully de Correrrio, matar um refém?
Penso.. que não - suspirou. - Mas não estou disposto a arriscar a
vida de meu irmão com a honra de uma mulher -Jaime recolheu a
espada dourada à bainha. - Portanto, suponho que o deixarei correr
para Robert, para lhe contar como o assustei. Pergunto-me se ele se
importará - Jaime atirou os cabelos molhados para trás e virou o
cavalo. Depois de ultrapassar a linha dos homens de armas, dirigiu-se
ao capitão. - Tregar, certifique-se de que nenhum mal aconteça a
Lorde Stark.
- Como quiser, senhor.
- Apesar disso... não vamos querer que ele saia daqui inteiramente
impune, portanto - através da noite e da chuva, Ned vislumbrou o
branco do sorriso de Jaime -, mate seus homens.
- Não! - Ned Stark gritou, levando a mão à espada. Jaime já seguia a
galope lento pela rua quando ouviu Wyl gritar. Homens
aproximavam-se de ambos os lados. Ned abateu um, lançando
estocadas nos fantasmas em mantos vermelhos que caíam diante de
si, Jory Cassei enterrou os calcanhares no cavalo e saiu em disparada.
Um casco ferrado com aço pegou um guarda Lannister na cara com
um cruncb repugnante. Um segundo homem afastou-se
cambaleando, e por um instante Jory esteve livre. Wyl praguejou
quando o puxaram de cima do cavalo moribundo, com espadas
golpeando entre a chuva. Ned galopou para ele, fazendo cair sua
espada sobre o elmo de Tregar. A sacudidela do impacto o fez ranger
os dentes. Tregar caiu de joelhos, com o leão do capacete fendido ao
meio e o sangue escorrendo-lhe pelo rosto. Heward golpeava as mãos
que tinham agarrado o freio de seu cavalo quando uma lança o
acertou na barriga. De repente, Jory estava de novo entre eles, com
uma chuva vermelha caindo de sua espada.
- Não! - gritou Ned. - Jory, afaste-se! - o cavalo de Ned escorregou
debaixo dele e estatelou-se na lama. Houve um momento de uma dor
cegante e um sabor de sangue na boca.
Ned os viu cortar as pernas do cavalo de Jory e arrastado para o
chão, as espadas subindo e descendo quando o cercaram. Quando o
cavalo de Ned voltou a se pôr em pé, o Senhor Stark tentou se
levantar, mas voltou a cair, sufocado em seu grito. Viu o osso
quebrado que espreitava da barriga de sua perna. Foi a última coisa
que viu por algum tempo. A chuva caía, e caía, e caía.
Quando voltou a abrir os olhos, Lorde Eddard Stark estava só com
seus mortos. Seu cavalo aproximou-se, detectou o desagradável
cheiro de sangue e afastou-se a galope. Ned começou a arrastar-se
pela lama, rangendo os dentes com a agonia que sentia na perna.
Pareceu demorar anos. Rostos observavam de janelas iluminadas por
velas, e então começou a aparecer gente de vielas e de portas, mas
ninguém fez um gesto para ajudar.
Mindinho e a Patrulha da Cidade encontraram-no ali, na rua,
embalando nos braços o corpo de Jory Cassei.
Os homens de manto dourado tiraram de algum lugar uma maca,
mas a viagem de volta ao castelo foi uma névoa de agonia, e Ned
perdeu os sentidos mais de uma vez. Lembrava-se de ver a Fortaleza
Vermelha erguer-se à sua frente à primeira luz cinzenta da alvorada.
A chuva escurecera a pedra cor-de-rosa claro das maciças muralhas,
deixando-as da cor do sangue.
Logo a seguir era o Grande Meistre Pycelle quem se erguia à sua
frente, segurando uma taça e sussurrando:
- Beba, senhor. Aqui. O leite da papoula, para suas dores - lembrava-
se de engolir e de Pycelle dizer a alguém para aquecer o vinho até
ferver e lhe arranjar seda limpa, e foi a última coisa que ouviu.
Daenerys
O Portão dos Cavalos de Vaes Dothrak era composto por dois
gigantescos garanhões de bronze, empinados, cujos cascos
encontravam-se trinta metros acima da estrada, formando um arco
pontiagudo.
Dany não saberia explicar por que necessitava a cidade de portão se
não tinha muralhas... tampouco edifícios que ela conseguisse ver. Mas
ali estava, imenso e belo, com os grandes cavalos enquadrando a
distante montanha púrpura atrás deles. Os garanhões de bronze
atiravam longas sombras sobre a grama ondulante quando Khal
Drogo fez o khalasar passar sob seus cascos e avançar ao longo do
caminho dos deuses, ladeado pelos seus companheiros de sangue.
Dany seguia-os montada em sua prata, escoltada por Sor Jorah
Mormont e o irmão Viserys, de novo a cavalo. Depois do dia em que
o abandonara, naquele mar de plantas, para que regressasse a pé ao
khalasar, os dothrakis tinham passado a chamá-lo, entre risos, Khal
Rhae Mhar, o Rei dos Pés Feridos. Khal Drogo oferecera-lhe um lugar
numa carroça no dia seguinte, e Viserys aceitara. Na sua teimosa
ignorância, nem compreendera que zombavam dele: as carroças
destinavam-se a eunucos, aleijados, mulheres prestes a dar à luz, os
muito jovens e os muito velhos. Assim, ganhou mais um nome: Khal
Rhaggat, o Rei Carroça. O irmão de Dany pensara que o gesto era a
maneira de o khal se desculpar pelo mal que a irmã lhe fizera.. Ela
pedira a Sor Jorah que não lhe contasse a verdade, para que não se
sentisse envergonhado, O cavaleiro respondeu que um pouco de ver-
gonha não faria mal nenhum ao rei.. , mas acabou fazendo o que ela
pediu. Foram necessárias muitas súplicas, e todos os truques de cama
que Doreah lhe ensinara, para que Dany conseguisse fazer com que
Drogo aceitasse que Viserys voltasse a se juntar à cabeça da coluna,
- Onde está a cidade? - perguntou ao passarem sob o arco de bronze.
Não havia edifícios à vista, nem pessoas, via-se apenas o campo e a
estrada, delimitada por fileiras de antigos monumentos provenientes
de todas as terras que os dothrakis tinham saqueado ao longo dos
séculos.
- Lá à frente - respondeu Sor Jorah. - No sopé da montanha.
Para lá do portão dos cavalos, deuses pilhados e heróis roubados
erguiam-se de ambos os lados da coluna. Divindades esquecidas de
cidades mortas ameaçavam o céu com seus relâmpagos quebrados
quando Dany passou com sua prata a seus pés. Reis de pedra
olhavam-na do alto de seus tronos, com os rostos lascados e
manchados, e até os nomes perdidos na névoa do tempo. Donzelas
ágeis e jovens dançavam em pedestais de mármore, vestidas apenas
de flores, ou despejavam ar de jarras estilhaçadas. Monstros erguiam-
se no campo junto à estrada; dragões negros de ferro com jóias no
lugar dos olhos, grifos rugidores, manticoras com suas caudas de
espinhos prontas para atacar e outras bestas de que não conhecia o
nome. Algumas das estátuas eram tão belas que lhe roubavam a
respiração; outras, tão disformes e horríveis que Dany quase não
suportava olhá-las. Estas últimas, disse Sor Jorah, tinham
provavelmente vindo das Terras das Sombras para lá de Asshai.
- São tantas - ela disse, enquanto sua prata avançava lentamente -, e
de tantas terras. Viserys estava menos impressionado.
- O lixo de cidades mortas - disse com desprezo, e tomando cuidado
de falar no Idioma Comum, que poucos dothrakis compreendiam,
mas, mesmo assim, Dany deu por si olhando de relance os homens
do seu khal para se assegurar de que não o tinham ouvido. Ele
prosseguiu em tom jovial: - Tudo o que esses selvagens sabem fazer
é roubar as coisas que homens melhores construíram... e matar -
soltou uma gargalhada. - Eles sabem mesmo como matar. De outro
modo não teriam utilidade alguma para mim.
- Eles agora são o meu povo - disse Dany, - Não devia chamá-los de
selvagens, irmão.
- O dragão fala como lhe apetece - disse Viserys... no Idioma
Comum. Deu uma olhadela por cima do ombro a Aggo e Rakharo,
que seguiam atrás deles, e concedeu-lhes um sorriso gozador. -
Como veem, aos selvagens falta a esperteza para compreender o
discurso dos homens civilizados - um monólito de pedra desgastada
pelo musgo, com quinze metros de altura, erguia-se sobre a estrada.
Viserys olhou-o com tédio no olhar. - Quanto tempo teremos de nos
arrastar por entre essas ruínas antes que Drogo me dê o meu
exército? Estou ficando farto de esperar.
- A princesa tem de ser apresentada ao dosb khaleen..
- Às feiticeiras, pois - interrompeu o irmão -, e vai haver uma
pantomima qualquer de profecias por causa do cachorrinho que ela
tem na barriga, já sei. Que tenho eu com isso? Estou farto de comer
carne de cavalo, e o fedor desses selvagens me deixa doente - cheirou
a larga manga pendente de sua túnica, onde tinha por hábito colocar
um sache. Não ajudou grande coisa. A túnica estava nojenta. Todas
as sedas e pesadas lãs que Viserys tinha trazido de Pentos estavam
manchadas pela dura viagem e apodrecidas pelo suor.
Sor Jorah Mormont disse:
- O Mercado Ocidental terá alimentos mais do seu agrado, Vossa
Graça. Os mercadores das Cidades Livres vão lá vender seus
produtos. A seu tempo, o khal honrará sua promessa.
- É melhor que o faça - disse Viserys em tom sombrio. - Foi-me
prometida uma coroa, e pretendo possuí-la. Ninguém escarnece do
dragão - ao ver uma obscena imagem de uma mulher com seis seios
e cabeça de furão, afastou-se para inspecioná-la mais de perto.
Dany sentiu-se aliviada, mas não menos ansiosa.
- Rezo para que o meu sol-e-estrelas não o deixe à espera por muito
tempo - disse a Sor Jorah quando o irmão se afastou o suficiente
para não ouvi-la.
O cavaleiro olhou com dúvida para Viserys.
- Seu irmão deveria ter esperado em Pentos. Não há lugar para ele
num khalasar. Illyrio tentou preveni-lo.
- Ele partirá assim que tiver seus dez mil homens. O senhor meu
esposo prometeu uma coroa dourada.
Sor Jorah soltou um grunhido.
- Sim, Khaleesi, mas... os dothrakis olham para essas coisas de forma
diferente de nós, ocidentais. Já lhe disse isso, tal como Illyrio, mas seu
irmão não escuta. Os senhores dos cavalos não são mercadores.
Viserys pensa que a vendeu, e agora quer receber seu pagamento.
Mas Khal Drogo diria que a obteve de presente. Sim, dará em troca
um presente a Viserys.. no momento que escolher. Não se exige um
presente, em especial a um khal. Não se exige nada de um khal.
- Não está certo fazê-lo esperar - Dany não sabia por que estava
defendendo o irmão, mas estava. - Viserys diz que poderia varrer os
Sete Reinos com dez mil guerreiros dothrakis.
Sor Jorah resfolegou.
- Viserys nem conseguiria varrer um estábulo com dez mil vassouras.
Dany não podia fingir surpresa com o desdém na voz do cavaleiro.
- E se.. e se não fosse Viserys? - perguntou. - Se fosse outra pessoa a
liderá-los? Alguém mais forte? Poderiam realmente os dothrakis
conquistar os Sete Reinos?
O rosto de Sor Jorah tomou uma expressão pensativa enquanto seus
cavalos avançavam juntos pelo caminho dos deuses.
- Nos meus primeiros tempos de exílio, olhava para os dothrakis e via
bárbaros seminus, tão selvagens como seus cavalos. Se me tivesse
feito esta pergunta naquela época, princesa, eu teria dito que mil
bons cavaleiros não teriam dificuldade em pôr em debandada cem
vezes mais dothrakis.
- Mas e agora?
- Agora - disse o cavaleiro - estou menos seguro. Eles montam a
cavalo melhor que qualquer cavaleiro, são completamente
destemidos, e seus arcos têm maior alcance que os nossos. Nos Sete
Reinos, a maior parte dos arqueiros guerreia a pé, protegida por uma
muralha ou por uma barricada de paus aguçados. Os dothrakis
disparam do dorso dos cavalos, avançando ou em retirada, não
importa, são tão mortíferos de uma forma como de outra... e há
tantos, senhora. Só o senhor seu esposo conta com quarenta mil
guerreiros montados no seu khalasar.
- É realmente tanto assim?
- Seu irmão Rhaegar levou esse número de homens para o Tridente -
admitiu Sor Jorah -, mas os cavaleiros não eram mais que um
décimo. O resto eram arqueiros, cavaleiros livres e soldados
desmontados, armados de lanças e piques. Quando Rhaegar caiu,
muitos deixaram as armas e fugiram do campo de batalha. Quanto
tempo pensa que uma tal gentalha aguentaria contra a carga de
quarenta mil guerreiros, uivando com sede de sangue? Quão bem os
protegeriam seus coletes de couro fervido e as cotas de malha
quando as setas caíssem como chuva?
- Não muito tempo - ela respondeu -, e mal.
Ele confirmou com a cabeça.
- Mas note, princesa, que, se os senhores dos Sete Reinos tiverem a
esperteza que os deuses concederam a um ganso, nunca se chegará a
este ponto. Os cavaleiros do mar de plantas não apreciam as artes do
cerco. Duvido que conseguissem tomar até mesmo o mais fraco dos
castelos dos Sete Reinos. Mas se Robert Baratheon fosse
suficientemente tolo para lhes dar batalha...
- E é? - perguntou Dany. - Um tolo?
Sor Jorah ponderou por um momento.
- Robert deveria ter nascido dothraki - disse por fim. - Vosso khal
diria que só um covarde se esconde atrás de muralhas de pedra em
vez de enfrentar o inimigo de espada na mão. O Usurpador
concordaria. É um homem forte, bravo... e suficientemente
imprudente para defrontar uma horda dothraki em campo aberto.
Mas os homens em volta dele, bem, os seus flautistas tocam outra
melodia. O irmão Stannis, Lorde Tywin Lannister, Eddard Stark... -
cuspiu.
- O senhor odeia esse Lorde Stark - disse Dany.
- Roubou-me tudo o que amava por causa de uns quantos caçadores
furtivos piolhentos e de sua preciosa honra - disse Sor Jorah em tom
amargo. Ela compreendeu que a perda ainda lhe doía, O cavaleiro
mudou rapidamente de tema. - Ali está - anunciou, apontando. -
Vaes Dothrak. A cidade dos senhores dos cavalos.
Khal Drogo e seus companheiros de sangue levaram-nos através do
grande bazar e do Mercado Ocidental, e pelas largas ruas em frente.
Dany os seguia de perto em sua prata, observando a estranheza que
a rodeava. Vaes Dothrak era ao mesmo tempo a maior e a menor
cidade que ú vira. Calculou que devia ser dez vezes maior que
Pentos, uma vastidão sem muralhas nem limites, com largas ruas
varridas pelo vento, pavimentadas de capim e lama e atapetadas de
flores silvestres. Nas Cidades Livres do Oeste, as torres, as mansões,
os casebres, as pontes e as lojas amontoavam-se umas em cima das
outras, mas Vaes Dothrak espalhava-se langorosamente, tostando ao
calor do sol, antiga, arrogante e vazia.
Até os edifícios eram muito estranhos aos seus olhos. Viu pavilhões
de pedra talhada, mansões de capim entrelaçado tão grandes como
castelos, vacilantes torres de madeira, pirâmides de degraus
revestidas de mármore, longos salões abertos ao céu. Em lugar de
muros, alguns locais estavam rodeados por sebes espinhosas.
- Nenhum deles é parecido com outro - disse.
- Em parte, seu irmão disse a verdade - admitiu Sor Jorah. - Os
dothrakis não constroem. Há mil anos, quando queriam fazer uma
casa, escavavam um buraco na terra e cobriam-no com um teto de
capim entrelaçado. Esses edifícios foram construídos por escravos
trazidos das terras que saquearam, e cada um foi erguido segundo o
estilo do respectivo povo.
A maior parte das casas, até as maiores, parecia deserta.
- Onde estão as pessoas que vivem aqui? - Dany perguntou, O bazar
estava cheio de crianças correndo e homens gritando, mas fora dele
vira apenas alguns eunucos tratando de seus assuntos.
- Só as feiticeiras do dosh khaleen vivem permanentemente na cidade
sagrada, elas e seus escravos e criados - respondeu Sor Jorah -, mas
Vaes Dothrak é suficientemente grande para alojar todos os homens
de todos os khalasares, caso todos os khals decidam regressar ao
mesmo tempo à Mãe. As feiticeiras profetizaram que um dia isso
aconteceria e, portanto, Vaes Dothrak deve estar pronta para acolher
todos os seus filhos.
Khal Drogo finalmente parou perto do Mercado Oriental, onde as
caravanas vindas de Yi Ti, Asshai e das Terras das Sombras vinham
fazer negócio com a Mãe das Montanhas erguida sobre suas cabeças.
Dany sorriu ao recordar a jovem escrava de Magíster Illyrio e sua
conversa sobre um palácio com duzentos quartos e portas de prata
maciça. O "palácio" era um cavernoso salão de testas feito de
madeira, cujas paredes rudemente talhadas se elevavam a mais de
dez metros de altura, com um teto de seda cosida, uma vasta tenda
ondulada que podia ser montada para afastar as raras chuvas, ou
desmontada para acolher o céu sem fim. Em torno do salão havia
grandes pátios para cavalos, cheios de capim, delimitados por sebes
altas, covas para fogueiras e centenas de casas redondas de terra que
se projetavam do chão como colinas em miniatura, cobertas de hera.
Um pequeno exército de escravos adiantara-se à coluna para realizar
os preparativos para a chegada de Khal Drogo. Cada guerreiro que
saltasse da sela tirava do cinto o arakb e o entregava a um escravo
que se encontrava à espera, fazendo o mesmo com as demais armas
que transportava. Nem o próprio Khal Drogo estava isento daquela
obrigação. Sor Jorah explicara que em Vaes Dothrak era proibido
transportar uma lâmina ou derramar o sangue de um homem livre.
Até khalasares em guerra punham de lado suas divergências e
partilhavam a comida e a bebida à vista da Mãe das Montanhas.
Naquele lugar, segundo o que as feiticeiras do dosh khaleen tinham
decretado, todos os dothrakis eram um só sangue, um só khalasar,
uma só manada.
Cohollo aproximou-se de Dany quando Irri e Jhiqui a ajudavam a
descer de sua prata. Era o mais velho dos três companheiros de
sangue de Drogo, um homem atarracado e calvo, com um nariz
torcido e a boca cheia de dentes partidos, estilhaçados por uma clava
vinte anos antes, quando salvara o jovem khalakka de mercenários
que esperavam vende do aos inimigos do pai. Sua vida ficara ligada à
de Drogo no dia em que o senhor esposo de Dany nascera.
Todos os khals tinham os seus companheiros de sangue. A princípio
Dany os via como uma espécie de Guarda Real Dothraki, sob o
juramento de proteger seu senhor, mas eram mais que isso. Jhiqui
ensinaradhe que o companheiro de sangue era mais que um guarda;
eram os irmãos do khal, suas sombras, os mais ferozes de seus
amigos. "Sangue do meu sangue", era como Drogo lhes chamava, e
assim era; partilhavam uma só vida. As antigas tradições dos
senhores dos cavalos exigiam que quando o khal morresse seus
companheiros de sangue morressem com ele, para cavalgar a seu
lado nas terras da noite. Se o khal morresse pelas mãos de algum
inimigo, viveriam apenas o suficiente para vingá-lo, e então o
seguiriam alegremente para a sepultura. Jhiqui dizia que, em alguns
khalasares, os companheiros de sangue partilhavam o vinho do khal,
sua tenda e até suas esposas, embora nunca os seus cavalos. A
montaria de um homem era apenas sua.
Daenerys sentia-se feliz por Khal Drogo não aderir a esses costumes
antigos. Não teria gostado de ser partilhada. E conquanto o velho
Cohollo a tratasse com bastante gentileza, os outros a assustavam;
Haggo, enorme e silencioso, fitava-a com frequência com um ar
ameaçador, como se tivesse se esquecido de quem ela era, e Qotho
tinha uns olhos cruéis e mãos rápidas que gostavam de machucar.
Deixava nódoas negras na suave pele branca de Doreah sempre que a
tocava, e por vezes deixava Irri soluçando na noite. Até seus cavalos
pareciam temê-lo.
No entanto, estavam ligados a Drogo para a vida e para a morte, e
Daenerys não tinha alternativa senão aceitá-los. E por vezes dava por
si desejando que o pai tivesse sido protegido por homens assim. Nas
canções, os cavaleiros brancos da Guarda Real eram sempre nobres,
valentes e leais, mas o Rei Aerys tinha sido assassinado por um deles,
o rapaz bonito a quem chamavam agora Regicida, e um segundo, Sor
Barristan, o Ousado, passara para o lado do Usurpador. Gostaria de
saber se nos Sete Reinos todos os homens eram assim tão falsos.
Quando seu filho ocupasse o Trono de Ferro, iria assegurar-se de
que teria os seus próprios companheiros de sangue a fim de protegê-
lo contra a traição na Guarda Real,
- Khaleesi - disse-lhe Cohollo, em dothraki. - Drogo, sangue do meu
sangue, ordena-me que lhe diga que ele tem de subir esta noite a
Mãe das Montanhas, a fim de sacrificar aos deuses pelo seu regresso
em segurança.
Dany sabia que só se permitia aos homens pôr o pé na Mãe. Os
companheiros de sangue do khal iriam com ele, e regressariam na
alvorada.
- Diz ao meu sol-e-estrelas que sonho com ele e espero ansiosa seu
regresso - ela respondeu, agradecida. Dany ia se cansando mais
facilmente à medida que a criança crescia dentro de si; a verdade era
que uma noite de descanso seria muito bem-vinda. A gravidez só
parecia ter inflamado o desejo de Drogo por ela, e nos últimos
tempos seus abraços a deixavam exausta.
Doreah a levou para a colina oca que tinha sido preparada para ela e
para o khal Lá dentro fazia frio e estava escuro, como numa tenda
feita de terra.
- Jhiqui, um banho, por favor - ordenou, para lavar da pele a poeira
da viagem e encharcar os ossos cansados. Era agradável saber que
ficariam ali por algum tempo, que não precisaria montar sua prata
quando a manhã chegasse.
A água escaldava, tal como ela gostava.
- Darei esta noite os presentes ao meu irmão - decidiu, enquanto
Jhiqui lhe lavava o cabelo. - Ele deve parecer um rei na cidade
sagrada. Doreah, corra à sua procura e o convide para jantar comigo
- Viserys era mais simpático com a lysena do que com suas aias
dothrakis, talvez porque
Magíster Illyrio o deixara dormir com ela em Pentos, - Irri, vá ao
bazar e compre frutas e carne. Qualquer coisa, menos carne de
cavalo.
- Cavalo é melhor - Irri retrucou. - Cavalo torna um homem mais
forte.
- Viserys detesta carne de cavalo.
- Como quiser, Khaleesi.
Regressou com um pernil de carneiro e um cesto de frutas e
legumes. Jhiqui assou a carne tom ervamel e vagem-de-fogo, untando-
a com mel enquanto assava; e havia melões, romãs e ameixas, e uma
estranha fruta oriental que Dany não conhecia. Enquanto as aias
preparavam a refeição, Dany desempacotou a roupa que tinha
mandado fazer sob medida para o irmão: uma túnica e calções de
fresco linho branco, sandálias de couro atadas no joelho, um cinto
com medalhão de bronze, um colete de couro pintado com dragões
que exalavam fogo. Esperava que os dothrakis o respeitassem mais
caso se parecesse menos com um pedinte, e talvez a perdoasse por
tê-lo envergonhado naquele dia no campo. Afinal de contas, ainda era
o seu rei e seu irmão. Eram ambos sangue do dragão.
Estava preparando o último dos presentes, um manto de sedareia,
verde como a mata, com um debrum cinza-claro que realçaria o
prateado de seu cabelo, quando Viserys chegou, arrastando Doreah
pelo braço. O olho da mulher estava vermelho onde ele lhe batera.
- Como se atreve a enviar esta rameira para me dar ordens? - disse e
atirou rudemente a aia ao tapete.
A ira apanhou Dany completamente de surpresa.
- Só quis.. Doreah, o que você lhe disse?
- Khaleesi, mil desculpas, perdoe-me. Fui falar com ele, como me
pediu, e lhe disse que a senhora mandou que à senhora se juntasse
para o jantar,
- Ninguém manda no dragão - rosnou Viserys. - Eu sou o seu rei!
Devia ter lhe devolvido a cabeça dela!
A jovem lysena vacilou, mas Dany a acalmou com um toque.
- Não tenha medo, ele não te fará mal. Querido irmão, por favor,
perdoe, a moça se confundiu nas palavras, eu lhe disse que pedisse a
você que se juntasse a mim para o jantar, se isso fosse do agrado de
Vossa Graça - pegou-o pela mão e o fez atravessar o quarto. - Olhe.
Isto é para você - Viserys franziu as sobrancelhas, cheio de suspeita.
- Que é tudo isso?
- Roupas novas. Mandei fazer para você - Dany sorriu timidamente.
Ele a olhou e escarneceu.
- Trapos dothrakis. Agora se atreve a me vestir?
- Por favor... Ficará mais fresco e confortável, e pensei... talvez, que,
se se vestisse como eles, os dothrakis... - Dany não sabia como dizer
o que pretendia sem acordar o dragão.
- A seguir há de querer entrançar meu cabelo.
- Eu nunca... - por que ele era sempre tão cruel? Ela só queria ajudar.
- Não tem direito a uma trança, ainda não obteve nenhuma vitória.
Foi a coisa errada a dizer. A fúria brilhou nos olhos lilases do irmão,
mas ele não se atreveu a bater nela com as criadas observando e os
guerreiros do seu khas à porta. Viserys apanhou o manto e o
cheirou.
- Isto fede a estrume. Talvez o use como coberta para o cavalo.
- Mandei que Doreah o cosesse especialmente para você - ela disse,
ferida. - São roupas dignas de um khal
- Eu sou o Senhor dos Sete Reinos, não um selvagem manchado pelo
mato e com campainhas no cabelo - Viserys gritou e agarrou o braço
da irmã, - Esquece-se de quem você é, sua puta. Acha que aquele
barrigudo te protegerá se acordar o dragão?
Os dedos dele enterraram-se dolorosamente em seu braço, e por um
instante Dany sentiu-se de novo criança, vacilando perante sua raiva.
Estendeu a outra mão e agarrou a primeira coisa que tocou, o cinto
que esperara lhe oferecer, uma pesada corrente de medalhões
ornamentados de bronze. Brandiu-o com toda sua força.
Atingiu-o em cheio no rosto. Viserys a largou. Sangue correu de sua
bochecha, onde a saliência de um dos medalhões a cortou.
- É você quem se esquece de quem é - ela disse. - Não aprendeu nada
naquele dia no campo? Saia daqui imediatamente, antes que eu
chame meu khas para te arrastar para a rua, E reze para que Khal
Drogo não ouça falar disto, porque, se ouvir, lhe abrirá a barriga e
lhe dará para comer suas próprias entranhas.
Viserys pôs-se em pé atabalhoadamente.
- Quando ganhar o meu reino, lamentará este dia, puta - e saiu,
agarrado ao rosto ferido, deixando os presentes para trás.
Gotas de seu sangue tinham borrifado o belo manto de sedareia.
Dany encostou o suave tecido na face e sentou-se de pernas cruzadas
sobre as esteiras de dormir.
- Seu jantar está pronto, Khaleesi -Jhiqui anunciou.
- Não tenho fome - disse Dany com voz triste. Ficara subitamente
muito cansada. - Divida a comida entre vocês, e envie alguma a Sor
Jorah, por favor - após um momento, acrescentou: - Por favor,
alguém me traga um dos ovos de dragão,
Irri foi buscar o ovo com a casca de um profundo tom verde, que
mostrava salpicos de bronze entre as escamas quando o virava nas
pequenas mãos. Dany enrolou-se de lado, puxando o manto de
sedareia sobre o corpo e aninhando o ovo no espaço entre a barriga
inchada e os pequenos e tenros seios. Gostava de pegar neles. Eram
tão belos, e, por vezes, o simples fato de estar junto deles a fazia
sentir-se mais forte, mais corajosa, como se de alguma forma
retirasse força dos dragões de pedra encerrados lá dentro.
Estava ali deitada, agarrada ao ovo, quando sentiu o bebê mover-se
na barriga... como se estivesse estendendo uma mão, irmão para
irmão, sangue para sangue.
- Você é o dragão - segredou Dany para o filho -, o dragão
verdadeiro. Eu sei. Eu sei - sorriu, e adormeceu sonhando com a
terra natal.
Bran
Caía uma neve ligeira. Bran conseguia sentir os flocos derretendo em
seu rosto quando tocavam sua pele como a mais leve das chuvas.
Endireitou-se em cima do cavalo, observando a porta levadiça ser
içada. Esforçando-se o máximo possível para permanecer calmo, o
coração palpitava-lhe no peito.
- Estamos prontos? - Robb perguntou.
Bran acenou, tentando não mostrar o medo que sentia. Não estivera
fora de Winterfell desde a queda, mas estava determinado a sair com
tanto orgulho como qualquer cavaleiro.
- Então vamos - Robb encostou os calcanhares no seu grande
castrado cinzento e branco, e o cavalo avançou trotando sob a porta
levadiça.
- Vai - sussurrou Bran ao seu cavalo. Tocou-lhe levemente o pescoço
e a pequena potra castanha avançou. Bran a chamara Dançarina.
Tinha dois anos, e Joseth dizia que era mais inteligente do que um
cavalo tinha direito de ser. Tinham-lhe dado um treinamento especial
para responder às rédeas, à voz e ao toque. Até aquele momento,
Bran só a montara no pátio. A princípio, Joseth ou Hodor a puxavam
pela mão, enquanto Bran se sentava em seu dorso amarrado à
grande sela que o Duende tinha desenhado para ele, mas na última
quinzena montara-a sozinho, fazendo-a trotar, às voltas, tornando-se
mais ousado a cada circuito.
Passaram sob a porta levadiça, sobre a ponte levadiça e através das
muralhas exteriores. Verão e Vento Cinzento vinham aos saltos ao
lado deles, farejando o vento. Logo atrás vinha Theon Greyjoy, com
seu arco e uma aljava cheia de setas de ponta larga; segundo lhes
dissera, tinha em mente abater um veado, Era seguido por quatro
guardas revestidos de cota de malha na cabeça e no tronco, e por
Joseth, um cavalariço magro como um espeto que Robb nomeara
mestre dos cavalos enquanto Hullen estava longe. Meistre Luwin
ocupava a retaguarda, montado num burro, Bran teria preferido que
ele e Robb tivessem saído sozinhos, só os dois, mas Hal Mollen nem
quisera ouvir falar da ideia, e Meistre Luwin o apoiara. Se Bran caísse
do cavalo ou se ferisse, o meistre estava determinado a estar junto
dele.
A porta do castelo ficava a praça do mercado, cujas barracas de
madeira se encontravam agora desertas. Avançaram pelas ruas
lamacentas da aldeia, passando por fileiras de pequenas casas bem-
arranjadas feitas de troncos e pedra nua. Menos de uma em cinco
estava ocupada, com finas linhas de fumaça enrolando-se sobre suas
chaminés. As outras se encheriam, uma a uma, à medida que fosse
ficando mais frio. Quando a neve caísse e os ventos gelados uivassem
do norte, dizia a Velha Ama, os agricultores deixariam seus campos
congelados e fortificações distantes, carregariam suas carroças e
então a Vila de Inverno ganharia vida. Bran nunca o vira, mas
Meistre Luwin dizia que esse dia se aproximava. O fim do longo
verão estava próximo. O inverno está para chegar.
Alguns aldeões seguiram ansiosamente com os olhos os lobos
gigantes enquanto os cavaleiros passavam por eles, e um homem
deixou cair a lenha que transportava, fugindo com medo, mas a
maior parte das gentes da terra já se habituara àquela visão.
Dobravam o joelho ao ver os rapazes, e Robb saudava cada um com
um aceno senhorial.
Com as pernas incapazes de apertar, o movimento oscilante do
cavalo fez a princípio com que Bran se sentisse instável, mas a
enorme sela com seu grosso arção dianteiro e o elevado apoio nas
costas o embalava confortavelmente, e as presilhas em torno do peito
e das coxas não lhe permitiriam cair. Após algum tempo, o ritmo
começou a parecer quase natural. A ansiedade desvaneceu-se e um
sorriso trêmulo nasceu em seu rosto.
Duas criadas estavam paradas sob o letreiro do Tronco Fumegante, a
cervejaria da aldeia. Quando Theon Greyjoy as chamou, a mais nova
ficou toda vermelha e cobriu o rosto. Theon esporeou a montaria
para se pôr ao lado de Robb.
- Doce Kyra - disse, com uma gargalhada. - Contorce-se como uma
doninha na cama, mas basta dizer-lhe uma palavra na rua para ficar
cor-de-rosa como uma donzela. Já te falei daquela noite em que ela e
Bessa...
- Aqui, onde meu irmão pode ouvir, não, Theon - preveniu Robb,
olhando para Bran de relance.
Bran afastou o olhar e fingiu não ter ouvido, mas podia sentir os
olhos de Greyjoy postos nele. Estaria sem dúvida sorrindo. Sorria
muito, como se o mundo fosse uma piada secreta que só ele era
suficientemente inteligente para compreender. Robb parecia admirar
Theon e gostar de sua companhia, mas Bran nunca simpatizara com
o protegido do pai.
Robb aproximou-se.
- Está indo bem, Bran.
- Quero ir mais depressa - ele respondeu.
Robb sorriu.
- Como quiser - pôs o castrado a trote. Os lobos correram atrás dele.
Bran agitou bruscamente as rédeas e Dançarina acelerou o passo.
Ouviu um grito de Theon Greyjoy e os cascos dos outros cavalos
atrás dele,
O manto de Bran enfunou-se, ondulando ao vento, e a neve pareceu
correr de encontro ao seu rosto. Robb estava bem adiantado,
lançando relances ocasionais por sobre o ombro a fim de se
assegurar de que Bran e os outros o seguiam. Bran voltou a sacudir
as rédeas. Suave como seda, Dançarina pôs-se a galope. A distância
diminuiu. Quando alcançou Robb no limiar da Mata de Lobos, a duas
milhas da Vila de Inverno, tinham deixado os outros muito para trás.
- Posso montar! - gritou Bran, sorrindo. Era quase tão bom como
voar.
- Eu faria uma corrida com você, mas temo que possa ganhar - o
tom de Robb era ligeiro e brincalhão, mas Bran viu sob o sorriso do
irmão que alguma coisa o perturbava.
- Não quero corridas - Bran olhou em volta à procura dos lobos
gigantes. Tinham ambos desaparecido na floresta. - Ouviu Verão
uivar ontem à noite?
- Vento Cinzento também estava inquieto - disse Robb. Tinha os
cabelos ruivos espetados e despenteados, e uma barba avermelhada
cobria-lhe o queixo, fazendo-o parecer ter mais que os seus quinze
anos. - Às vezes penso que eles sabem coisas. . que sentem coisas... -
Robb suspirou. - Nunca sei bem quanto posso lhe dizer, Bran.
Gostaria que fosse mais velho.
-Já tenho oito anos! - Bran retrucou. - Oito não é muito mais novo
que quinze, e sou o herdeiro de Winterfell depois de você.
- Pois é - Robb parecia triste, e até um pouco assustado. - Bran,
preciso te contar uma coisa. Chegou uma ave ontem à noite. De
Porto Real. Meistre Luwin me acordou.
Bran sentiu um temor súbito. Asas escuras, palavras escuras, dizia
sempre a Velha Ama, e nos últimos tempos os corvos mensageiros
vinham provando a verdade do provérbio. Quando Robb escrevera ao
Senhor Comandante da Patrulha da Noite, a ave que regressou
trouxe a noticia de que Tio Benjen continuava desaparecido. Depois
chegara uma mensagem do Ninho da Águia, da mãe, mas também
não trazia boas notícias. Ela não dizia quando pretendia regressar,
apenas que tomara o Duende prisioneiro. Bran de certo modo
simpatizara com o homenzinho, mas o nome Lannister punha-lhe
dedos frios passeando pela espinha. Havia algo a respeito dos
Lannister, algo de que se devia lembrar, mas quando tentava pensar
no que, sentia-se tonto e o estômago ficava duro como pedra. Robb
passara a maior parte daquele dia trancado com Meistre Luwin,
Theon Greyjoy e Hallis Mollen, Depois, cavaleiros partiram em
cavalos rápidos, levando as ordens de Robb a todo o Norte. Bran
ouviu falar de Fosso Cailin, a antiga fortaleza que os Primeiros
Homens tinham construído no topo do Gargalo. Ninguém chegara a
lhe dizer o que se passava, mas sabia que não era boa coisa.
E agora outro corvo, outra mensagem. Bran agarrou-se à esperança.
- Era a ave da mãe? Ela vai voltar para casa?
- A mensagem é de Alyn, em Porto Real. Jory Cassei está morto. E
Wyl e Heward também. Assassinados pelo Regicida - Robb levantou o
rosto para a neve e os flocos derreteram em suas bochechas. - Que
os deuses lhes dêem descanso.
Bran não soube o que dizer. Sentia-se como se tivesse levado um
murro. Jory era capitão da guarda doméstica de Winterfell desde
antes de Bran nascer.
- Mataram Jory? - lembrou-se de todas as vezes em que Jory o
perseguira pelos telhados. Via--o caminhando pelo pátio, em passos
largos, vestido de cota de malha e armadura, ou sentado no seu lugar
de costume no banco do Salão Grande, gracejando enquanto comia. -
Por que haveria alguém de matar Jory?
Robb balançou a cabeça com um ar entorpecido e uma clara dor nos
olhos.
- Não sei, e... Bran, isso não é o pior. Nosso pai foi apanhado debaixo
de um cavalo que caiu na luta. Alyn diz que ficou com a perna
destroçada e... Meistre Pycelle deu-lhe o leite da papoula, mas não
têm certeza de quando é que... quando é que ele.. - o som de cascos
o fez deitar um relance pela estrada, para onde Theon e os outros se
aproximavam. - Quando é que ele vai acordar - concluiu. Pousou
então a mão no punho da espada e prosseguiu na voz solene de
Robb, o Senhor. - Bran, prometo-lhe, aconteça o que acontecer, não
deixarei que isto seja esquecido.
Algo no seu tom fez com que Bran ficasse com mais medo ainda.
- Que vai fazer? - perguntou quando Theon Greyjoy refreava seu
cavalo ao lado deles.
- Theon pensa que devo chamar os vassalos - disse Robb.
- Sangue por sangue - pela primeira vez Greyjoy não sorria. O rosto
magro e escuro tomara um aspecto faminto, e cabelos negros
caíram-lhe sobre os olhos.
- Só o senhor pode chamar os vassalos - Bran disse enquanto a neve
caía lentamente ao redor do grupo.
- Se o senhor seu pai morrer - disse Theon -, Robb será o Senhor de
Winterfell.
- Ele não morrerá! - Bran gritou.
Robb tomou-lhe a mão.
- Ele não morrerá, nosso pai não morrerá - ele disse calmamente. -
Mesmo assim... a honra do Norte está agora em minhas mãos.
Quando o senhor nosso pai se afastou de nós, disse-me para ser forte
por você e por Rickon. Sou quase um homem-feito, Bran.
Bran estremeceu.
- Gostaria que nossa mãe estivesse de volta - disse, com ar infeliz,
Olhou em volta à procura de Meistre Luwin; via-se o seu burro
muito ao longe, trotando sobre uma colina. - Meistre Luwin também
diz para chamar os vassalos?
- O meistre é medroso como uma velha - Theon interveio.
- Nosso pai sempre escutou seus conselhos - recordou Bran ao
irmão. - E a mãe também.
- Eu o escuto - insistiu Robb. - Eu escuto toda a gente.
A alegria que Bran sentira com a cavalgada tinha desaparecido,
derretida como os flocos de neve em seu rosto. Não muito tempo
antes, a ideia de Robb chamar os vassalos e partir para a guerra o
teria enchido de excitação, mas agora sentia apenas terror.
- Podemos regressar? - perguntou. - Sinto frio.
Robb olhou em volta.
- Temos de encontrar os lobos. Pode continuar um pouco mais?
- Posso continuar tanto como você. - Meistre Luwin avisara-o de que
devia montar durante pouco tempo, temendo assaduras provocadas
pela sela, mas Bran não admitiria sua fraqueza perante o irmão.
Estava farto do modo como todos andavam sempre à sua volta,
perguntando como se sentia.
- Vamos então à caça dos caçadores - disse Robb. Lado a lado,
incitaram as montarias a sair da Estrada do Rei e entrar na Mata de
Lobos. Theon deixou-se ficar para trás e os seguiu muito depois,
conversando e gracejando com os guardas.
Estava agradável sob as árvores. Bran manteve Dançarina trotando
devagar, segurando as rédeas e olhando em redor enquanto
avançavam. Conhecia aquela floresta, mas tinha estado tanto tempo
confinado em Winterfell que era como se a estivesse vendo pela
primeira vez. Os cheiros enchiam-lhe as narinas; o cheiro forte,
penetrante e fresco das agulhas de pinheiro, o odor de folhas úmidas
apodrecendo na terra, os vestígios do cheiro animal de almíscar e dos
fogos das cozinhas distantes. Viu de relance um esquilo negro que se
movia entre os ramos cobertos de neve de um carvalho e parou para
estudar a teia prateada de uma aranha imperatriz.
Theon e os outros ficaram cada vez mais para trás, até que Bran
deixou de conseguir ouvir suas vozes. De longe, chegou-lhe o tênue
som de águas correntes. Foi ficando mais alto até chegarem ao
córrego. Lágrimas arderam-lhe os olhos.
- Bran? - perguntou Robb. - O que aconteceu?
Bran balançou a cabeça.
- Estava só me lembrando - disse ele. - Jory nos trouxe uma vez aqui
para pescar trutas. Você, eu e Jon. Lembra?
- Lembro - disse Robb, com a voz baixa e triste.
- Eu não apanhei nada - disse Bran -, mas Jon me deu o peixe dele
no caminho de volta a Winterfell. Vamos voltar a ver Jon?
- Vimos Tio Benjen quando o rei veio de visita - salientou Robb. - Jon
também nos visitará, você vai ver.
O córrego corria cheio e rápido. Robb desmontou e levou seu
castrado para atravessar o lado mais raso. Na parte mais profunda da
travessia, a água chegava-lhe até o meio das coxas. Amarrou o cavalo
a uma árvore do outro lado e voltou para buscar Bran e Dançarina.
A corrente estrumava em torno das rochas e das pernas, e Bran
conseguia sentir os salpicos no rosto enquanto Robb o levava pelo
riacho. Isso o fez sorrir. Por um momento voltou a sentir-se forte e
inteiro. Olhou para as árvores e sonhou subi-las até as copas, com
toda a floresta estendida abaixo.
Tinham já chegado ao outro lado do córrego quando ouviram o uivo,
um longo lamento que se erguia por entre as árvores como um
vento frio. Bran ergueu a cabeça para escutar.
- Verão - disse. E assim que falou, uma segunda voz juntou-se à
primeira.
- Mataram qualquer coisa - disse Robb enquanto voltava a montar. -
É melhor que eu vá buscá-los. Espera aqui, Theon e os outros devem
estar chegando.
- Quero ir com você - disse Bran.
- Eu os encontro mais depressa sozinho - Robb esporeou seu
castrado e desapareceu por entre as árvores.
Depois de o irmão partir, as árvores pareceram apertar-se ao redor
de Bran. A neve caía agora tom mais força. Onde tocava o solo,
derretia, mas, por todo lado, pedras, raízes e ramos estavam cobertos
por um fino manto branco. Enquanto esperava, estava consciente de
como se sentia desconfortável. Não sentia as pernas, que pendiam,
inúteis, nos estribos, mas a presilha que lhe rodeava o peito estava
apertada e provocava-lhe escoriações, e a neve que derretia tinha-se
infiltrado nas luvas e gelava-lhe as mãos. Perguntou-se por que
Theon, Meistre Luwin, Joseth e os outros demoravam.
Quando ouviu o restolhar de folhas, Bran usou as rédeas para fazer
Dançarina virar-se, esperando ver os amigos, mas os homens
esfarrapados que saíram para a margem do córrego eram--ihe
estranhos.
- Bons dias para os senhores - disse ele nervosamente. Bastou uma
olhadela para Bran compreender que os homens não eram
lenhadores nem agricultores. Ficou de súbito consciente da riqueza
das roupas que envergava. Tinha uma capa nova, de lã cinza-escuro
com botões de prata, e um pesado alfinete de prata segurava nos
ombros o manto forrado de peles. As botas e luvas também eram
forradas de peles.