A vida em Castelo Negro seguia certos padrões; as manhãs
eram dedicadas à esgrima, e as tardes, ao trabalho. Os
irmãos negros atribuíam aos novos recrutas muitas tarefas
diferentes, para ver o que sabi am fazer. Jon adorava as
raras tardes em que era enviado para a floresta com
Fantasma a fim de trazer caça para a mesa do Senhor
Comandante, mas para cada dia passado a caçar, doze
eram de Donal Noye, no armeiro, girando a roda de
amolar enquanto o ferreir o de um braço só afiava
machados cegos pelo uso, ou manejando o fole enquanto
Noye batia o metal ie uma nova espada. Nos outros dias,
distribuía mensagens, montava guarda, limpava estábulos,
colocava penas nas setas, dava assistência a Meistre
Aemon com suas aves ou a Bowen Marsh com suas contas
e inventários.
Naquela tarde, o comandante da guarda o enviou para a
gaiola do guindaste com quatro bar ris de pedra recém-
esmagada, para que espalhasse cascalho sobre os caminhos
gelados do topo da Muralha. Era um trabalho solitário e
aborrecido, mesmo com Fantasma lhe fazendo companhia,
mas Jon descobriu que não se importava. Num dia claro,
podia-se ver metade do mundo do topo da Muralha, e o ar
estava sempre frio e tonificante. Ali podia pensar, e deu
por si pensando em Samwell Tarly... e, estranhamente, em
Tyrion Lannister. Gostaria de saber o que Tyrion faria
com o rapaz gordo. A maioria dos homens mais depressa nega
uma verdade dura do que a enfrenta, dissera-lhe o anão com
um sorriso. O mundo estava cheio de co vardes que
fingiam ser heróis; era preciso uma singular forma de
coragem para se admitir covarde, como fizera Samwell
Tarly.
O ombro machucado fazia com que o trabalho avançasse
lentamente. A tarde já chegava ao fim quando Jon
terminou de encher os caminho s de cascalho. Deixou-se
ficar lá em cima para ver o sol se pôr, colorindo o céu
ocidental com a cor do sangue. Por fim, enquanto o ocaso
caía sobre o norte, Jon rolou os barris vazios de volta à
gaiola e fez sinal aos homens do guindaste para que o
baixassem.
A refeição da noite tinha quase acabado quando ele e
Fantasma chegaram à sala comum. Um grupo de irmãos
negros jogava dados sob o efeito do vinho quente perto
do fogo. Seus amigos, dando risada, encontravam -se no
banco mais próximo da parede oeste. Py p estava no meio
de uma história. O orelhudo filho do pantomimeiro era
um mentiroso nato, possuía cem vozes diferentes, e vivia
suas histórias mais que as contava, representando todos
os papéis à medida que iam sur gindo, num momento um
rei e no seguinte um criador de porcos. Quando o
personagem era uma criada de cervejaria ou uma princesa
virgem, usava uma aguda voz de falsete que levava todos
às lágrimas com as gargalhadas que eram incapazes de
evitar, e seus
eunucos
eram sempre caricatu ras
fantasmagóricamente fiéis de Sor Alliser. Jon tirava tanto
prazer das palhaçadas de Pyp como qualquer outro, mas
naquela noite afastou-se e, em vez de se juntar aos
amigos, dirigiu-se para a ponta do banco, onde Samwell
Tarly estava sentado sozinho, tão longe dos outro s como
podia.
Terminava a última das tortas de porco que os
cozinheiros tinham servido no jantar quando Jon sentou -
se à sua frente. Os olhos do gordo esbugalharam -se ao ver
Fantasma.
- Isto é um lobo?
- Um lobo gigante - Jon respondeu. - Chama-se Fantasma.
O lobo gigante é o símbolo da Casa do meu pai.
- O nosso é um caçador andante - disse Samwell Tarly.
- Gosta de caçar?
O gordo estremeceu.
- Detesto - parecia outra vez prestes a chorar.
- Que se passa agora? - perguntou-lhe Jon. - Por que está
sempre tão assusta do?
Sam fixou os olhos no resto de sua torta de porco e
abanou a cabeça débilmente, assustado demais até para
falar. Um estrondo de gargalhadas encheu o salão. Jon
ouviu Pyp guinchando com voz aguda. Pôs-se em pé.
- Vamos lá para fora.
A gorda cara redonda olhou-o com suspeita.
- Por quê? Que vamos fazer lá fora?
- Conversar - disse Jon. - Já viu a Muralha?
- Sou gordo, não sou cego - Samwell Tarly retrucou. -
Claro que a vi, tem duzentos metros de altura - mas
levantou-se assim mesmo, enrolou um manto debruado de
peles em volta dos ombros e saiu da sala comum atrás de
Jon, ainda desconfiado, como se suspeitasse de que algum
truque cruel o esperava na noite. Fantasma caminhou ao
lado deles.
- Nunca pensei que fosse assim - Sam disse enquanto
caminhavam, com as palavras transformando-se em vapor
no ar frio. Já bufava e arquejava, tentando acompanhar
Jon. - Os edifícios estão todos ruindo, e é tão... tão...
- Frio? - uma dura geada caía sobre o castelo, e Jon ouvia
o suave ranger de ervas cinzentas sob suas botas.
Sam confirmou com a cabeça, ostentando uma expressão
infeliz.
- Detesto o frio - disse. - Na noite passada acordei na
escuridão e o fogo tinha se apagado, e tive certeza de que
ia congelar antes que a manhã chegasse.
- Deve ser mais quente no lugar de onde você vem.
- Nunca tinha visto neve até o mês passado. Vínhamos
atravessando as terras acidentadas, eu e os homens que
meu pai enviou para me trazerem para o norte, e esta
coisa branca começou a cair como uma leve chuva. A
princípio pensei que era belíssima, como pena s caindo do
céu, mas continuou, e continuou, até que fiquei gelado até
os ossos. Os homens tinham crostas de neve barbas e
mais sobre os ombros, e ela continuava a cair. Temi que
nunca mais parasse.
Jon sorriu.
A Muralha erguia-se à frente deles, brilhand o fracamente
à luz de uma meia-lua. No céu as ardiam, límpidas e
nítidas.
- Eles vão me obrigar a subir até lá em cima? - Sam
perguntou. Seu rosto azedou como leite velho quando
olhou para as grandes escadas de madeira. - Eu morro se
tiver de subir aquilo.
- Há um guindaste - Jon o apontou. - Podem subi-lo numa
gaiola.
Samwell Tarly fungou.
- Não gosto de lugares altos.
Aquilo foi demais. Jon franziu as sobrancelhas, incrédulo.
- Mas você tem medo de tudo? - perguntou. - Não consigo
entender. Se é mesmo tão co varde, o que está fazendo
aqui? Por que um covarde haveria de querer se juntar à
Patrulha da Noite?
Samwell Tarly o olhou por um longo momento, e sua face
redonda pareceu cair para den tro de si própria. Sentou-se
no chão coberto de geada e desatou a chora r, com
enormes soluços estrangulados que lhe estremeciam todo
o corpo. Jon Snow só pôde parar e ficar vendo. Tal como
a queda de neve nas terras acidentadas, aquelas lágrimas
pareciam não ter fim.
Foi Fantasma que soube o que fazer. Silencioso como uma
sombra, o lobo gigante branco aproximou-se e começou a
lamber as lágrimas quentes no rosto de Samwell Tarly. O
rapaz gordo gritou, surpreso... E, por algum milagre, seus
soluços transformaram-se em gargalhadas.
Jon Snow riu com ele. Depois, sentaram-se no chão
gelado, aconchegados aos mantos com Fantasma entre
ambos. Jon contou a história de como ele e Robb tinham
encontrado os lobinhos recém-nascidos no meio da neve
do fim do verão. Parecia agora te rem se passado mil anos.
Pouco depois, deu por si falando de Winterfell.
- Às vezes sonho com o castelo - ele disse. - Caminho
pelo seu longo salão vazio. Minha voz ecoa pelo lugar, mas
ninguém responde, e eu ando mais depre ssa, abrindo
portas, gritando no mes. Nem sequer sei quem procuro. Na
maior parte das noites é meu pai, mas às vezes é Robb,
ou minha irmã mais nova, Arya, ou meu tio - pensar em
Benjen Stark o entristeceu, ele continuava desaparecido. O
Velho Urso enviara patrulhas à sua procura. Sor Jeremy
Rykker liderara duas buscas e Quorin Halfhand partira da
Torre Sombria, mas nada tinham encontrado além de um
punhado de sinais que o tio deixara nas árvores para
marcar o caminho. Nas terras altas pedregosas do
noroeste as marcas paravam abruptamente, e todos os
sinais de Ben Stark esvaneciam -se.
- Alguma vez encontra alguém no seu sonho? - Sam quis
saber.
Jon balançou a cabeça.
- Nem uma só pessoa. O castelo está sempre vazio -
nunca falara a ninguém sobre aquele sonho, e não
compreendia por que motivo o contava agora a Sam, mas
de algum modo sentia-se bem falando dele. - Até os
corvos desapareceram da colônia, e as cavalariças estão
cheias de ossos. Isso sempre me assusta. Então começo a
correr, abrir portas com violência, subir os de graus da
torre três de cada vez, gritando por alguém, por quem
quer que seja. Então, dou por mim em frente à porta para
as criptas. Lá dentro tudo está negro, e vejo os degraus
que descem em espiral. Sem saber como, sei que tenho de
descer, mas não quero fazê-lo. Tenho medo do que pode
haver lá à minha espera. Os velhos Reis do I nverno estão
lá, sentados em seus tronos com lobos de pedra a seus
pés e espadas de ferro sobre os joelhos, mas não é deles
que tenho medo. Grito que não sou um Stark, que aquele
não é o meu lugar, mas não serve de nada, tenho de ir,
seja como for, e, port anto, começo a descer, tateando as
paredes enquanto vou avançando, sem uma tocha que me
alumie o caminho. Fica cada vez mais escuro, até que me
dá vontade de gritar - parou, de cenho franzido,
embaraçado. - E é então que sempre acordo - com a pele
fria e pegajosa, tremendo na escuridão de sua cela.
Fantasma salta para a cama, ao seu lado, e seu calor é tão
reconfortante como o nascer do dia. Ele volta a adormecer
com o rosto enterrado no pelo branco e grosso do lobo
gigante. - Você sonha com Monte Chifre? - Jon perguntou.
- Não - a boca de Sam apertou-se e endureceu. -
Detestava aquilo - coçou Fantasma atrás da orelha,
pensando, e Jon deixou o silêncio respirar. Depois de um
longo tempo, Samwell Tarly começou a falar. Jon Snow
escutou em silêncio, e ficou s abendo como foi que um
covarde confesso veio parar na Muralha.
Os Tarly eram uma família antiga na honra, vassalos de
Mace Tyrell, Senhor de Jardim de Cima e Protetor do Sul.
Como filho mais velho de Lorde Randyll Tarly, Samwell
nascera herdeiro de ricas terras, uma fortaleza forte e
uma grande espada cheia de histórias chamada Veneno de
Coração, forjada de aço valiriano e passada de pai para
filho havia quase quinhentos anos.
Mas todo o orgulho que o senhor seu pai poderia ter
sentido com o nascimento de Samwell desapareceu quando
o rapaz cresceu roliço, mole e desajeitado. Sam gostava de
ouvir música e criar as próprias canções, vestir suaves
veludos, brincar na cozinha do castelo ao lado dos cozi -
nheiros, absorvendo os cheiros doces enquanto ia
roubando bolos de limão e tortas de mirtilo. Suas paixões
eram os livros, os gatos e a dança, mesmo desastrado
como era. Mas ficava doente à vista de sangue e chorava
até ao ver uma galinha ser morta. Uma dúzia de mestres
de armas chegou e partiu de Monte Chifre t entando
transformar Samwell no cavaleiro que o pai desejava. O
rapaz recebeu insultos e bengaladas, bateram-lhe e
fizeram-no passar fome. Um homem o obrigou a dormir
vestido de cota de malha para deixá -lo mais belicoso.
Outro vestiu-lhe a roupa da mãe e o obrigou a percorrer
o muro exterior do castelo, a fim de lhe incutir valor
através da vergonha. Mas ele só foi se tornando mais
gordo e mais assustado, até que o desapontamento de
Lorde Randyll se transformou em ira, e a ira em desprezo.
- Uma vez - confidenciou Sam, com a voz transformada
num murmúrio - vieram dois ho mens ao castelo, bruxos
de Qarth, de pele branca e lábios azuis. Mataram um
auroque macho e obrigaram-me a tomar banho no sangue
quente, mas isso não me deu a coragem que tinham
prometido. Fiquei doente e com vômitos. Meu pai mandou
açoitá-los.
Por fim, depois de três meninas em outros tantos anos, a
Senhora Tarly deu ao senhor seu esposo um segundo
filho. Desse dia em diante, Lorde Randyll ignorou Sam,
dedicando todo seu tempo ao rapaz mais n ovo, uma
criança feroz e robusta, mais a seu gosto. Samwell
conheceu vários anos de uma doce paz, com sua música e
seus livros.
Até a madrugada do décimo quinto dia do seu nome,
quando foi acordado e lhe apresenta ram o cavalo selado e
pronto. Três homens de armas o acompanharam até um
bosque próximo de Monte Chifre, onde o pai esfolava um
veado. "Você é agora quase um homem feito, e o meu
herdeiro", disse Lorde Randyll Tarly ao filho mais velho,
enquanto ia tirando a pele da carcaça.
"Não me deu motivo algum para deserdá-lo, mas também
não lhe permitirei herdar a terra e o título que devem
pertencer a Dickon. A Veneno de Coração deve passar
para as mãos de um homem suficientemente forte para
brandi-la, e você nem é digno de lhe tocar o punho.
Portanto, decidi que hoje anunciará seu desejo de vestir o
negro. Irá renunciar a qualquer pretensão à he rança do
seu irmão e partirá para o norte antes do cair da noite.
Se assim não fizer, então amanhã tere mos uma caçada, e
em algum lugar nesses bosques seu cavalo t ropeçará e
você será atirado da sela para a morte... ou pelo menos
será isso que direi à sua mãe. Ela tem um coração de
mulher, encontra nele lugar até para estimá -lo, e não
tenho nenhum desejo de lhe causar desgosto. Mas qu e não
passe por sua cabeça que será realmente assim tão fácil se
pensar em me desafiar. Nada me dará mais prazer que
caçá-lo como o porco que você é." Seus braços estavam
vermelhos até os cotovelos quando pousou a faca de
esfolar. "E é assim. Sua escolha é esta. A Patrulha da
Noite" o pai enfiou a mão no veado, arrancou -lhe o
coração e apertou-o na mão, vermelho e a pingar, "ou
isto”.
Sam contou a história com uma voz calma e sem vida,
como se fosse algo que tivesse aconte cido a outra pessoa,
não a ele. E estranhamente, pensou Jon, não chorou, nem
mesmo uma vez. Quando terminou, ficaram sentados lado
a lado escutando o vento por um tempo. Não havia mais
nenhum som no mundo inteiro.
Por fim, Jon disse:
- Devíamos voltar para a sala comum.
- Por quê? - Sam perguntou.
Jon encolheu os ombros,
- Há cidra quente para beber, ou vinho temperado, se
preferir. Em algumas noites, Dareon canta para nós, se
lhe agradar. Era um cantor antes... bem, não era mesmo,
mas quase; era um aprendiz de cantor.
- Como veio parar aqui? - Sam quis saber.
- Lorde Rowan de Bosquedouro o encontrou na cama com
sua filha. A moça era dois anos mais velha, e Dareon jura
que ela o ajudou a entrar pela janela, mas, aos olhos do
pai, foi violação, e aqui está ele. Quando Meistre Aemon o
ouviu cantar, disse que tinha uma voz que era mel
derramado sobre o trovão - Jon sorriu. - Sapo às vezes
também canta, se é que se pode chamar aquilo canto.
Canções de taberna que aprendeu com seu pai bêbado.
Pyp diz que tem uma voz que é mijo derramado sobre um
peido - e os dois riram juntos daquilo .
- Gostaria de ouvi-los - Sam admitiu -, mas eles não vão
me querer lá - tinha o rosto perturbado. - Ele vai me
fazer lutar outra vez amanhã, não vai?
- Vai - Jon foi forçado a dizer.
Sam pôs-se desajeitadamente em pé.
- É
melhor
que
eu
tente
dormir
-
enrolou-se
atabalhoadamente no manto e arrastou-se para longe.
Os outros estavam ainda na sala comum quando Jon
regressou, acompanhado apenas por Fantasma.
- E onde você estava? - Pyp perguntou.
- Conversando com Sam - ele respondeu.
- Ele é verdadeiramente covarde - Grenn interveio. - Na
hora do jantar, ainda havia lugares no banco quando ele
recebeu sua torta, mas estava assustado demais para vir
se sentar conosco.
- O Senhor do Presunto pensa que é bom demais para se
juntar a gente como nós - sugeriu Jeren.
- Vi-o comer uma torta de porco - Sapo disse com um
sorrisinho. - Acham que ele seria um irmão? - e desatou a
soltar grunhidos.
- Parem com isso! - exclamou Jon com voz zangada.
Os outros rapazes calaram -se, surpreendidos pela súbita
fúria.
- Ouçam-me - disse Jon mais calmo, e contou-lhes como as
coisas deveriam acontecer, Pyp o apoiou, como já sabia
que faria, mas, quando Halder falou, foi uma surpresa
agradável. Grenn a princípio mostrou -se preocupado, mas
Jon conhecia as palavras que o fariam mudar de idéia. Um
por um, todos cerraram fileiras, Jon persuadiu alguns,
lisonjeou outros, envergonhou os restantes, e fez ameaças
onde eram necessárias. No fim, estavam todos de acordo...
Todos, menos Rast.
- Vocês, meninas, façam o que quiserem - ele disse -, mas
se Thorne me mandar lutar com a Senhora Porquinha, vou
cortar para mim uma fatia de bacon - riu na cara de Jon e
deixou todos ali.
Horas mais tarde, enquanto o castelo dormia, três dos
rapazes fizeram uma visita à cela de Rast. Grenn segurou -
lhe os braços, enquanto Pyp s e sentava sobre suas pernas.
Jon conseguiu ouvir a respiração acelerada de Rast quando
Fantasma saltou para cima de seu peito. Os olhos do lobo
selvagem ardiam como brasas enquanto os dentes
mordiscavam a pele lisa da garganta do rapaz, o suficiente
apenas para fazê-lo sangrar.
- Lembra-se? Nós sabemos onde você dorme - disse Jon
em voz baixa.
Na manhã seguinte, Jon ouviu Rast contar a Albett e a
Sapo como a navalha tinha escorre gado enquanto se
barbeava.
Daquele dia em diante, nem Rast nem nenhum dos outr os
machucou Samwell Tarly. Quando Sor Alliser os fazia
confrontá-lo, defendiam-se e afastavam seus golpes lentos
e desajeitados. Se o mestre de armas gritava por um
ataque, dançavam em frente e davam uma pancadinha
ligeira na placa de peito, no elmo ou na perna de Sam.
Sor Alliser irritava-se, ameaçava-os e os chamava de
covardes, mulheres e coisas piores, mas Sam permaneceu
incólume. Algumas noites mais tarde, a pedido de Jon,
juntou-se a eles para a refeição da noite, sentando -se no
banco ao lado de Halde r. Passaram-se mais quinze dias até
ganhar coragem para se juntar à conversa, e, ao fim de
algum tempo, já ria das caretas de Pyp e brincava com
Grenn como qualquer outro.
Samwell Tarly podia ser gordo, desajeitado e assustado,
mas não era nenhum tolo. Uma noite visitou Jon em sua
cela.
- Não sei o que você fez - disse -, mas sei que fez alguma
coisa - e afastou timidamente seus olhos. - Nunca tinha
tido um amigo.
- Nós não somos amigos - disse Jon, pousando a mão no
amplo ombro de Sam. - Somos irmãos.
E eram, pensou consigo mesmo depois de Sam se retirar.
Robb, Bran e Rickon eram os filhos de seu pai, e ainda os
amava, mas Jon sabia que nunca fora realmente um deles,
Catelyn Stark assegurara-se disso. Os muros cinzentos de
Winterfell podiam ainda assombrar seus sonhos, mas
Castelo Negro era agora a sua vida, e seus irmãos eram
Sam, Grenn, Halder e Pyp, e os ou tros renegados que
vestiam o negro da Patrulha da Noite.
- Meu tio disse a verdade - ele segredou a Fantasma,
perguntando a si mesmo se algum dia voltaria a ver
Benjen Stark para lhe dizer isto.
Eddard
- É o torneio da Mão que está causando todos os
problemas, senhores - queixou-se o Comandante da
Patrulha da Cidade ao conselho do rei.
- O torneio do rei - corrigiu Ned, já estremecendo. -
Garanto-lhes, a Mão não deseja de sempenhar nele nenhum
papel.
- Chame como desejar, senhor. Têm chegado cavaleiros de
todo o reino, e para cada cavaleiro recebemos dois
cavaleiros livres, três artesãos, seis homens de armas, uma
dúzia de mercadores, duas dúzias de meretrizes e mais
ladrões do que me atrevo a adivinhar. Este maldito calor
já rinha tomado a cidade inteira numa febre, e agora, com
todos esses visitantes... na noite passada tivemos um
afogamento, uma rixa de taberna, três lutas com faca s, um
estupro, dois incêndios, incontáveis assaltos e uma corrida
bêbada de cavalos ao longo da Rua das Irmãs. Na noite
anterior uma cabeça de mulher foi encontrada no Grande
Septo, flutuando na lagoa do arco -íris. Ninguém parece
saber como foi parar lá ou a quem pertence.
- Que horror - exclamou Varys com um estremecimento.
Lorde Renly Baratheon foi menos compreensivo.
- Se não é capaz de manter a paz do rei, Janos, talvez a
Patrulha da Cidade deva ser coman dada por alguém que
seja.
Janos Slynt, um homem robusto e de fortes maxil ares,
inchou como um sapo irritado, com sua grande cabeça
calva começando a enrubescer.
- Nem o próprio Aegon, o Dragão, seria capaz de manter a
paz, Senhor Renly. Preciso de mais homens.
- Quantos? - Ned perguntou, inclinando -se para a frente.
Como sempre, Robert não se incomodara em estar
presente na sessão do conselho, e assim cabia à sua Mão
falar por ele.
- Tantos quantos for possível obter, Senhor Mão.
- Contrate cinquenta novos homens - disse-lhe Ned. -
Lorde Baelish lhe arranjará o di nheiro.
- Ah, sim? - Mindinho retrucou.
- Sim. Se foi capaz de encontrar quarenta mil dragões de
ouro para uma bolsa de campeão, certamente também o
será para reunir alguns cobres a fim de manter a paz do
rei - Ned voltou a se virar para Janos Slynt. - Também lhe
darei vinte boas espadas da guarda de minha própria Casa
para servir com a Patrulha até que a multidão parta.
- Muito agradecido, Senhor Mão - disse Slynt com uma
reverência. - Prometo-lhe que será dado bom uso.
Quando o Comandante se retirou, Eddard virou-se para o
resto do conselho.
- Quanto mais depressa esta loucura terminar, melhor me
sentirei - como se a despesa e os problemas não fossem
aborrecimento bastante, todos insistiam em dizer "o
torneio da Mão", como se fosse ele sua causa. E Robert
parecia pensar honestam ente que devia se sentir honrado!
- O reino prospera com tais eventos, senhor - disse o
Grande Meistre Pycelle. - Trazem aos grandes a
oportunidade de alcançar a glória e aos pequenos um
intervalo em suas aflições.
- E põem moedas em muitos bolsos - acrescentou
Mindinho. - Todas as estalagens da ci dade estão cheias, e
as rameiras caminham de pernas arqueadas, tinindo seus
bolsos a cada passo.
Lorde Renly soltou uma gargalhada.
- É uma sorte que meu irmão Stannis não esteja entre
nós. Lembram-se daquela ocasião em que propôs que se
proibissem os bordéis? O rei lhe perguntou se gostaria
talvez de proibir também que se comesse, cagasse e
respirasse, já que estava com a mão na massa. A bem da
verdade, por vezes pergunto a mim mesmo como foi que
Stannis conseguiu arranjar aquela feia mulher que tem.
Vai para a cama de casado como quem marcha para o
campo de batalha, com uma ex pressão sombria nos olhos
e determinado a cumprir seu dever.
Ned não se juntou às gargalhadas,
- Também me interrogo a respeito de seu irmão St annis.
Pergunto a mim mesmo quando é que ele tenciona dar
por finda sua visita à Pedra do Dragão e recuperar seu
lugar neste conselho.
- Sem dúvida assim que tenhamos escorraçado todas estas
prostitutas para o mar - Mindinho respondeu, provocando
mais gargalhadas.
- Já ouvi falar de prostitutas mais que o suficiente para
um dia só - disse Ned, levantando-se. - Até amanhã.
Harwin guardava a porta quando Ned regressou à Torre
da Mão.
- Chame Jory aos meus aposentos e diga ao seu pai para
me selar o cavalo - disse-lhe Ned com demasiada
brusquidão.
- Será feita a sua vontade, senhor.
A Fortaleza Vermelha e o "torneio da Mão" estavam
desgastando-o até o osso, refletiu Ned enquanto subia.
Ansiava pelo conforto dos braços de Catelyn, pelos sons
de Robb e Jon cruzando espa das no pátio de treinos, pelos
dias frescos e noites frias do Norte.
Em seus aposentos, despiu as sedas que usava no conselho
e sentou-se um momento com o livro enquanto esperava a
chegada de Jory. As linhagens e histórias das Grandes Casas dos
Sete Reinos, com descrições de muitos grandes senhores e nobres
senhoras e de seus filhos, pelo Grande Meistre Malleon.
Pycelle falara a verdade: era uma leitura tediosa. Mas Jon
Arryn lhe pedira, e Ned tinha certeza de que ele tinha
seus motivos. Ali havia algo, al guma verdade enterrada
naquelas quebradiças páginas amarelas, se ao menos
conseguisse vê-la. Mas, o quê? O volume tinha mais de um
século. Poucos homens de hoje eram nascidos quando
Malleon compilara suas poeirentas listas de casamentos,
nascimentos e mortes.
Voltou a abri-lo na seção sobre a Casa Lannister e virou
as páginas lentamente, atento, mesmo sem esperança de
que algo lhe saltasse à vista. Os Lannister eram uma
família antiga, seguindo sua linhagem até Lann, o Esperto,
um trapaceiro da Era dos Her óis que era, sem dúvida, tão
lendário como Bran, o Construtor, embora fosse muito
mais amado por cantores e contadores de histórias. Nas
canções, Lann era o tipo que tinha arrancado os Casterly
de Rochedo Casterly sem nenhuma arma além da
esperteza, e que roubara ouro do sol para tornar mais
claros os cabelos encaracola dos. Ned desejou que o
homem estivesse ali agora, para arrancar a verdade
daquele maldito livro.
Uma sonora pancada na porta anunciou Jory Cassei. Ned
fechou o livro de Malleon e lhe disse p ara entrar.
- Prometi à Patrulha da Cidade vinte homens da minha
guarda até o fim do torneio - ele isse. - Confio em você
para fazer a escolha. Dê o comando a Alyn e assegure-se
de que os homens são necessários para dar fim às lutas, e
não para iniciá-las - erguendo-se, Ned abriu uma arca de
cedro e tirou de lá uma leve túnica interior de linho. -
Encontrou o cavalariço?
- O guarda, senhor - disse Jory. - Ele jura que nunca mais
tocará num cavalo.
- Que tinha ele a dizer?
- Diz que conhecia bem Lorde Arryn. Que er am bons
amigos - Jory resfolegou. - Diz que a Mão dava sempre
aos rapazes uma moeda de cobre nos dias de seus nomes.
Que tinha jeito para os cavalos. Que nunca exigia demais
das montarias, e lhes trazi a cenouras e maçãs para que se
sentissem sempre contentes por vê-lo.
- Cenouras e maçãs - repetiu Ned. Esse rapaz parecia
ainda mais inútil que os outros. E era : ultimo dos quatro
que Mindinho tinha descoberto. Jory falara com todos
eles, um de cada vez. Sor Hugh fora brusco, pouco
informativo e arrogante, como só um homem que acabara
de ser armado cavaleiro sabe ser. Se a Mão desejava falar
com ele, o receberia com agrado, mas não seria
mrerrogado por um mero capitão da guarda... mesmo se o
dito capitão fosse dez anos mais velho e cem vezes melhor
espadachim.
A criada fora pelo menos agradável. Disse que Lorde Jon
tinha andado lendo mais do que s eria bom para sua saúde,
que andara perturbado e melancólico por causa da
fragilidade do filho e impaciente com a senhora sua
esposa. O ajudante de taverna, agora sapate iro, nunca
chegara a trocar uma palavra com Lorde Jon, mas estava
cheio de retalhos de mexericos de cozinha: que o senhor
andara discutindo com o rei, que só provava a comida,
que ia enviar o filho para ser criado em Pedra do Dragão,
que tomara um grande interesse pela criação de cães de
caça, que rmha visitado um mestre armeiro a fim de
encomendar uma nova armadura, toda trabalhada em
prata branca com um falcão azul de jaspe e uma lua de
madrepérola no peito. O próprio irmão do rei fora com
ele para ajudá-lo a escolher o desenho, dissera o
cavalariço. Não, não tinha sido o Senhor Renly; tinha sido
o outro, o Senhor Stannis.
- Nosso guarda disse mais alguma coisa digna de nota?
- O rapaz jura que Lorde Jon era tão forte como um
homem com metade da sua idade. Diz que montava
frequentemente com Lorde Stannis.
De novo Stannis, pensou Ned. Achou aquilo curioso. Jon
Arryn e ele tinham tido uma rela ção cordial, mas nunca
amigável. E quando Robert partira para o n orte, para
Winterfell, Stannis arrastara-se para Pedra do Dragão, a
fortaleza insular dos Targaryen que conquistara em nome
do rmão. Não dissera uma palavra sobre quando poderia
estar de volta.
- Onde iam nesses passeios? - Ned perguntou.
- O rapaz diz que visitavam um bordel.
- Um bordel? - Ned exclamou. - O Senhor do Ninho da
Águia e Mão do Rei visitava um bordel com Stannis
Baratheon? - balançou a cabeça, incrédulo, perguntando a si
mesmo o que Lorde Renly faria daquele boato. Os desejos
de Robert eram assunto para obscenas canções de taberna
por todo o reino, mas Stannis pertencia a um tipo
diferente de homem; somente um ano mais novo que o
rei, mas completamente diferente dele, austero, sem senso
de humor, inflexível, severo na sua idé ia de dever.
- O rapaz insiste que é verdade. A Mão levava consigo três
guardas, e o rapaz diz que brinca vam à visita quando ele
ia buscar seus cavalos depois de regressarem.
- Qual era o bordel? - Ned perguntou.
- O rapaz não sabia. Os guardas é que talvez saibam.
- É uma pena que Lysa os tenha levado para o Vale - disse
Ned secamente. - Os deuses estão fazendo tudo o que
podem para nos contrariar. Senhora Lysa, Meistre
Colemon, Lorde Stannis... todos os que poderiam
realmente conhecer a verdade sobre o que aconteceu a Jon
Arryn estão a mil léguas de distância.
- O senhor irá convocar Lorde Stannis a regressar de
Pedra do Dragão?
- Ainda não - Ned respondeu. - Só quando tiver uma
noção mais precisa sobre o que se passa aqui e onde ele
se encaixa - o assunto o importunava. Por que Stannis
partira? Teria desempenhado algum papel no assassinato
de Jon Arryn? Ou estaria com receio? Ned achava difícil
imaginar o que poderia assustar Stannis Baratheon, que já
aguentara Ponta Tempestade durante um ano de cerco,
sobrevivendo à custa de ratazanas e botas de couro
enquanto os se nhores Tyrell e Redwyne esperavam fora do
castelo com suas tropas, banqueteando -se à vista das
muralhas.
- Traga-me meu gibão, por favor. O cinza, com o símbolo
do lobo gigante. Quero que o ar meiro saiba quem sou.
Talvez o torne mais cooperante.
Jory dirigiu-se ao guarda-roupa.
- Lorde Renly é irmão tanto de Lorde Stannis quanto do
rei.
- No entanto, parece que não foi convidado para esses
passeios - Ned não sabia bem o que pensar de Renly, com
seus modos amistosos e sorrisos fáceis. Alguns dias antes,
ele o tinha chamado de canto para lhe mostrar um
requintado medalhão de ouro rosa. Lá dentro encontrava -
se uma miniatura pintada no vigoroso estilo myriano,
mostrando uma bela e jovem mulher com olhos de corça e
uma cascata de suave cabelo castanho.
Renly parecera ansioso por saber se a jovem lhe lembrava
alguém, e ficara desapontado quan do Ned não encontrou
resposta melhor que um encolher de ombros. Confessara
que a senhora era irmã de Loras Tyrell, Margaery, mas
havia quem dissesse que se parecia com Lyanna. "Não",
dissera-lhe Ned, assombrado. Seria possível que Lorde
Renly, que tanto se assemelhava a um Robert jovem,
tivesse imaginado uma paixão por uma mulher que achava
ser uma Lyanna jovem? Aquilo lhe pareceu mais que um
pouco bizarro.
Jory ergueu o gibão e Ned enfiou as mãos pelas cavas.
- Lorde Stannis talvez regresse para o torneio de Robert
- disse, enquanto Jory lhe atava a peça de roupa nas
costas.
- Isso seria um golpe de sorte, senhor - Jory respondeu.
Ned afivelou uma espada à cintura.
- Em outras palavras, não é provável - seu sorriso era
sombrio.
Jory enrolou o manto de Ned em torno de seus ombros e
o prendeu ao pescoço com o distin tivo da Mão do Rei.
- O armeiro vive em cima de sua loja, numa casa grande
que se ergue no topo da Rua do Aço. Alyn conhece o
caminho, senhor.
Ned acenou com a cabeça.
- Que os deuses ajudem aquele ajudante de teberna se
estiver me fazendo correr atrás de sombras - não seria
grande coisa como apoio, mas o Jon Arryn que Ned Stark
conhecera não era alguém que usasse armaduras
incrustadas de jóias e prata. A ço era aço; destinava-se à
proteção, não à ostentação. Era verdade que podia ter
mudado de ponto de vista. Certamente não seria o
primeiro homem a olhar de forma diferente para as coisas
depois de alguns anos passados na corte... , mas a mudança
era suficientemente marcada para levantar dúvidas em
Ned.
- Há mais algum serviço que eu lhe possa prestar?
- Suponho que é melhor que comece a visitar prostíbulos.
- Penoso dever, senhor - Jory sorriu, - Os homens ficarão
felizes por ajudar. Porther já fez cm bom começo.
O cavalo preferido de Ned estava selado e à espera no
pátio. Varly e Jacks puseram-se a seu lado quando
avançou pelo pátio. Seus capacetes de aço e cotas de
malha deviam estar abrasadores, mas não soltaram uma
palavra de queixa. Quando Lorde Eddard passou sob o
Portão do Rei e entrou no fedor da cidade, com o manto
cinza e branco pendendo de seus ombros, viu olhos em
roda a parte e esporeou a montaria até um trote. Os
guardas o seguiram.
Foi olhando para trás com frequência enquanto abriam
caminho pelas ruas cheias de gente da cidade. Tomard e
Desmond tinham deixado o castelo mais cedo, de manhã, a
fim de tomar posições no caminho que devia percorrer e
verificar se alguém os seguia, mas mesmo assim Ned não
se sentia confiante. A sombra da Aranha do Rei e dos seus
passarinhos o deixava inquieto como uma donzela na noite
de núpcias.
A Rua do Aço começava na praça do mercado, ao lado do
Portão do Rio, como era chamado nos mapas, ou Portão
da Lama, o nome que recebia habitualmente. Um
saltimbanco sobre per nas de pau caminhava por entre a
multidão como um grande inseto, arrastando uma horda
de crianças descalças aos gritos. Noutro lugar, dois
rapazes esfarrapados que não eram mais velhos que Bran
duelavam com paus, perante o sonoro encorajamento de
alguns e as furiosas pragas de outros. Uma velha acabou
com a competição ao se debruçar em uma janela e
despejar um balde de restos de cozinha sobre a cabeça
dos combatentes, A sombra da muralha, agriculto res
berravam ao lado de suas carroças: "Maçãs, as melhores
maçãs, baratas, metade do preço"; Melões-de-sangue,
doces como mel"; "Nabos, cebolas, raízes, aqui tem, aqui,
aqui temos nabos, cebolas, raízes, aqui tem".
O Portão da Lama estava aberto e um esquadrão de
Patrulheiros da Cidade vestidos com seus mantos
dourados apoiava-se nas lanças sob a porta levadiça.
Quando uma coluna de ho mens a cavalo apareceu vinda
do leste, os guardas desataram numa atividade frenética,
gritando ordens e afastando as carroças e o tráfego
pedestre a fim de deixar entrar o cavaleiro e s ua escolta.
O primeiro cavaleiro a entrar pelo portão transportava
um longo estandarte negro. A seda ondeava ao vento
como uma coisa viva; o tecido estava ornado com um céu
noturno cortado por um relâmpago de cor púrpura.
- Abram alas para Lorde Berid - gritou o cavaleiro. - Abram alas
para Lorde Beric! - e logo atrás vinha o jovem senhor em
pessoa, uma fogosa figura montada num corcel negro, de
cabelos ruivos alourados, vestindo um manto de cetim
negro pontilhado de estrelas.
- Veio para lutar no torneio da Mão, senhor? - gritou-lhe
um guarda.
- Vim para ganhar o torneio da Mão - gritou Lorde Beric
de volta por entre as aclamações da multidão.
Ned virou as costas à praça onde a Rua do Aço começava
e seguiu seu trajeto sinuoso por uma longa colina acima,
passando por ferreiros que trabalhavam em forjas abertas,
cavaleiros livres que regateavam os preços de cotas de
malha e grisalhos ferrageiros que vendiam lâminas e
navalhas velhas em suas carroças. Quanto mais subiam,
maiores iam ficando os edifícios. O ho mem que
procuravam encontrava-se no ponto mais alto da colina,
numa enorme casa de madeira e estuque, cujos andares
superiores pairavam por cima da rua estreita. As portas
duplas mostravam uma cena de caça esculpida em ébano.
Um par de cavaleiros de pedra montava guarda à entrada,
envergando armaduras extravagantes de aço vermelho
polido que os transformavam num grifo3 e num unicórnio.
3 Animal com cabeça, bico e asas de águia e corpo de leão. Ser fabuloso, como o unicórnio.
(N. T.)
Ned deixou o cavalo com Jacks e abriu caminho à força de
seu ombro até o interior.
A jovem e esbelta criada deu uma rápid a olhadela no
distintivo de Ned e no símbolo em seu gibão, e o mestre
apressou-se a vir ao seu encontro, todo sorrisos e vênias.
- Vinho para a Mão do Rei - disse à jovem, indicando
com gestos um sofá a Ned. - Chamo-me Tobho Mott,
senhor, por favor, por fa vor, fique à vontade - ele vestia
um casaco de veludo negro com martelos bordados nas
mangas em fio de prata. Em torno do pescoço trazia uma
pesada corrente de prata com uma safira tão grande como
um ovo de pombo. - Se necessitar de novas armas para o
torneio da Mão, veio à loja certa - Ned não se incomodou
em corrigi-lo. - Meu trabalho é dispendioso, e não me
desculpo por isso, senhor - o homem disse, enquanto
enchia dois cálices iguais de prata. - Não encontrará
trabalho igual ao meu em nenhum local dos Sete Reinos,
garanto-lhe. Visite cada uma das forjas de Porto Real, se
desejar, e compare com seus próprios olhos. Qualquer
ferreiro de aldeia é capaz de fazer uma cota de malha; o
meu trabalho é arte.
Ned bebericou seu vinho e deixou o homem continuar a
falar. O Cavaleiro das Flores com prava ali todas as suas
armaduras, gabou-se Tobho, assim como muitos grandes
senhores, aque les que conheciam o bom aço, até Lorde
Renly, o irmão do próprio rei. A Mão teria talvez visto a
nova armadura de Lorde Renly, a d e chapa verde com os
cornos dourados? Nenhum outro armeiro da cidade era
capaz de alcançar um verde tão profundo; ele conhecia o
segredo de dar cor ao próprio aço, a tinta e o esmalte
eram as muletas de um artífice contratado. Ou porventura
a Mão desejaria uma lâmina? Tobho aprendera a trabalhar
o aço valiriano nas forjas de Qohor, quando ainda rapaz.
Só um homem que conhecia os feitiços era capaz de pegar
em armas antigas e forjá-las de novo,
- O lobo gigante é o símbolo da Casa Stark, não é assim?
Poderia fabricar um elmo com uma forma de lobo gigante
tão perfeita que as crianças fugiriam do senhor na rua -
jurou.
Ned sorriu.
- Você fez um elmo em forma de falcão para Lorde
Arryn?
Tobho Mott fez uma longa pausa e pôs de lado seu vinho.
- A Mão realmente v eio me procurar, com Lorde Stannis,
o irmão do rei. Mas, lamento dizer, não me honraram com
o seu patrocínio,
Ned o olhou sem expressão, calado, à espera. Ao longo dos
anos, descobrira que o silêncio por vezes recompensava
mais que as perguntas, E foi o qu e aconteceu desta vez.
- Pediram para ver o rapaz - disse o armeiro -, e então os
levei até a forja.
- O rapaz - ecoou Ned. Não fazia ideia alguma de quem
poderia ser o rapaz. - Também gostaria de ver o rapaz.
Tobho Mott dirigiu -lhe um olhar frio e cautelo so.
- Será feita sua vontade, senhor - disse, sem sinal de sua
anterior simpatia. Levou Ned por uma porta dos fundos e
um pátio estreito até o cavernoso edifício de pedra onde
era realizado o trabalho. Quando o armeiro abriu a porta,
o sopro de ar quente q ue veio de dentro do edifício fez
com que Ned sentisse que estava entrando na boca de um
dragão. Lá dentro, uma forja ardia em cada canto, e o ar
fedia a fumaça e enxofre. Armeiros contratados ergueram
o olhar de seus martelos e tenazes apenas o tempo
suficiente para limpar o suor das testas, enquanto
aprendizes em tronco nu manuseavam os foles.
O mestre chamou um rapaz alto, mais ou menos da idade
de Robb, com os braços e peito repletos de músculos.
- Este homem é Lorde Stark, a nova Mão do Rei - ele
disse, quando o rapaz observou Ned através de olhos
carrancudos e atirou para trás, com os dedos, os cabelos
ensopados de suor. Cabelos espessos, espetados e
despenteados, negros como tinta. A sombra de uma barba
recente escurecia-lhe o maxilar.
- Este é Gendry. Forte para a idade, e trabalha duramente.
Mostra à Mão aquele capacete que você fez, rapaz - quase
com timidez, o rapaz os levou até sua bancada e um elmo
de aço em rorma de cabeça de touro, com dois grandes
cornos curvos.
Ned virou o elmo nas mãos. Era de a ço cru, não polido,
mas habilidosamente esculpido,
- Este é um belo trabalho. Ficarei feliz se me deixar
comprá-lo.
O rapaz arrancou o elmo de suas mãos.
- Não está à venda.
Tobho Mott pareceu horrorizado.
- Rapaz, este homem é a Mão do Rei. E se ele deseja est e
elmo, ofereça-o de presente. Ele o está honrando só por
pedi-lo.
- Eu o fiz para mim - disse o rapaz teimosamente.
- Cem perdões, senhor - disse o mestre apressadamente a
Ned. - O rapaz é rude como aço novo e, como o aço novo,
seria benéfico que levasse um p ouco de pancada. Aquele
elmo é, quando muito, trabalho de contratado. Perdoe -o, e
eu prometo que fabricarei para o senhor um elmo
diferente de qualquer um que tenha visto.
- Ele não fez nada que requeira meu perdão. Gendry,
quando Lorde Arryn veio vê -lo, de que ralaram?
- Ele só me fez perguntas, senhor.
- Que tipo de perguntas?
O rapaz encolheu os ombros.
- Como eu estava, se era bem tratado, se gostava do
trabalho, e coisas sobre minha mãe. Quem ela era, qual
era o seu aspecto, e tudo isso.
- E que lhe disse? - perguntou Ned.
O rapaz afastou da testa uma nova cascata de cabelos
negros.
- Ela morreu quando eu era pequeno. Tinha cabelos
amarelos e lembro-me de que às vezes cantava para mim.
Trabalhava numa cervejaria.
- Lorde Stannis também o interrogou?
- O careca? Não, ele não. Não disse uma palavra, só olhou
para mim como se eu fosse algum estuprador que lhe
tivesse deflorado a filha.
- Cuidado com essa língua suja - disse o mestre. - Este
homem é a Mão do Rei - o rapaz abaixou os olhos. - É um
rapaz inteligente, mas teimos o. Esse elmo... quando lhe
dizem que é teimoso como um touro, ele o atira em suas
cabeças.
Ned tocou a cabeça do rapaz, passando os dedos pelos
espessos cabelos negros,
- Olhe para mim, Gendry - o aprendiz ergueu o rosto.
Ned estudou a forma de seu maxilar , seus olhos, que eram
como gelo azul. Sim, pensou, agora vejo, - Volte ao seu
trabalho, rapaz. Peço desculpa por tê -lo incomodado - e
assim Ned regressou à casa com o mestre. - Quem lhe
pagou para contratá-lo como aprendiz? - perguntou em
tom ameno.
Mott pareceu inquieto.
- O senhor viu o rapaz. É tão forte. Aquelas mãos, aquelas
mãos foram feitas para os marte los. Era tão promissor
que o recebi sem pagamento algum.
- Agora quero a verdade - insistiu Ned. - As ruas estão
cheias de rapazes fortes. O dia em que você receber um
aprendiz sem pagamento será o dia em que a Muralha
cairá. Quem pagou por ele?
- Um senhor - disse o mestre, com relutância. - Não
deixou nome, e não usava nenhum símbolo no casaco.
Pagou em ouro, duas vezes o montante habitual, e disse
que estava pagando uma vez pelo rapaz e uma vez pelo
meu silêncio.
- Descreva-o.
- Era corpulento, redondo de ombros, não tão alto como o
senhor. Com uma barba castanha, mas eu podia jurar que
havia nela um pouco de ruivo. Trajava um manto rico,
recordo bem, um pesado veludo púrpuro trabalhado com
fios de prata, mas o capuz escondia -lhe o rosto e não
cheguei a vê-lo claramente - hesitou um momento. -
Senhor, não desejo problemas.
- Nenhum de nós deseja problemas, mas temo que
estejamos vivendo tempos problemáticos, Me stre Mott -
Ned respondeu. - Você sabe quem o rapaz é.
- Eu sou apenas um armeiro, senhor. Sei aquilo que me é
dito.
- Você sabe quem o rapaz é - repetiu pacientemente Ned.
- Isto não é uma pergunta.
- O rapaz é meu aprendiz - disse o mestre. Olhou Ned nos
olhos, obstinado como ferro velho. - Quem ele era antes
de vir trabalhar comigo não é da minha conta.
Ned fez um aceno. Decidiu que gostava de Tobho Mott, o
mestre armeiro.
- Se chegar o dia em que Gendry prefira empunhar uma
espada em vez de forjá-la, envie-o até mim. Ele tem o
olhar de
um guerreiro. Até lá, tem os meus
agradecimentos, Mestre Mott, e a minha promessa. Se
alguma vez desejar um elmo para assustar crianças, este
será o primeiro lugar que visitarei.
Seus guardas esperavam lá fora com os cavalos.
- Encontrou alguma coisa, senhor? - perguntou Jacks
enquanto Ned montava.
- Encontrei - disse-lhe Ned, sentindo-se curioso. O que
teria Jon Arryn querido de um bas tardo real e por que
isto teria valido sua vida?
Catelyn
- Minha senhora, deveria cobrir a cab eça - disse-lhe Sor
Rodrik enquanto os cavalos os levavam para o norte. -
Acabará apanhando um resfriado.
- É só água, Sor Rodrik - respondeu Catelyn, Seus cabelos
pendiam molhados e pesados, uma madeixa solta prendia-
se à testa, e era capaz de imaginar co mo devia parecer
andrajosa e bravia, mas, naquele momento, não se
importava. A chuva do sul era suave e morna. Catelyn
gostava da sensação da chuva no rosto, gentil como os
beijos de uma mãe. Levava-a de volta à infância, aos
longos dias cinzentos em Corre rrio. Recordava o bosque
sagrado, com os ramos fendentes, pesados de umidade, e
o som do riso do irmão enq uanto a perseguia sobre pilhas
de folhas encharcadas. Lembrava -se de fazer bolos de
lama com Lysa, do peso deles, da lama escorregadia e
marrom nos se us dedos. Certa vez elas os serviram a
Mindinho, aos risinhos, e ele comera tanta lama que ficou
doente durante uma semana. Eram todos tão jovens.
Catelyn quase esquecera. No Norte, a chuva caía fria e
dura, e por vezes, à noite, transformava -se em gelo. Era
tão capaz de matar uma colheita como de alimentá -la, e
punha homens feitos cor rendo em busca do abrigo mais
próximo. Não era chuva em que meninas pequenas
brincassem.
- Estou completamente encharcado - queixou-se Sor
Rodrik. - Até os ossos estão molha dos - as árvores os
rodeavam, cerradas, e o contínuo bater da chuva nas
folhas era acompanhado pelos pequenos sons de sucção
que os cavalos faziam ao libertar os cascos da lama. - Esta
noite precisaremos de fogo, senhora, e uma refeição
quente será boa para ambos.
- Há uma estalagem no cruzamento mais à frente - disse
Catelyn. Dormira ali muitas noites na juventude, quando
viajava com o pai. Na flor da idade, Lorde Hoster Tully
fora um homem inquieto, sempre a caminho de algum
lugar. Ainda se recordava da estalajadeira, uma mulher
gorda chamada Masha Heddle, que mascava folhamarga
noite e dia e parecia possuir um forne cimento infinito de
sorrisos e bolos doces para as crianças. Os bolos eram
embebidos em mel e pousavam ricos e pesados na língua.
Mas como Catelyn temera aqueles sorrisos! A folhamarga
manchara os dentes de Masha de um tom escuro de
vermelho e transformara-lhe o sorriso num horror
sangrento.
- Uma estalagem - repetiu Sor Rodrik em tom melancólico.
- Se pudéssemos..., mas não me atrevo a arriscar. Se
desejarmos permanecer desconhecidos, penso que é
melhor procurarmos algum lugar pequeno... - calou-se
quando ouviram sons na estrada à frente; água
chapinhando, o tinir de uma cota de malha, um relincho. -
Cavaleiros - ele a preveniu, deixando cair a mão s obre o
punho da espada. Mesmo na estrada real não fazia mal
nenhum ser cuidadoso.
Seguiram os sons por uma lenta curva na estrada e os
viram; uma coluna de homens ar mados que atravessava
ruidosamente um caudaloso curso de água. Catelyn puxou
as rédeas do cavalo para deixá-los passar. O estandarte
transportado pelo cavaleiro que seguia à frente pendia
ensopado e inerte, mas os guardas usavam mantos de cor
índigo e nos ombros tremulava a águia prateada de
Guardamar.
- Mallister - segredou-lhe Sor Rodrik, como se ela não
soubesse. - Minha senhora, é melhor pôr o capuz.
Catelyn não se mexeu. O próprio Lorde Jason Mallister
seguia na coluna, rodeado pelos seus c avaleiros, com o
filho Patrick à seu lado e os escudeiros logo atrás. Ela
sabia que se dirigiam a Por to Real para o torneio da Mão.
Ao longo da última semana, os viajantes na estrada real
tinham transitado tão densamente como nuvens de
moscas; cavaleiros da guarda e cavaleiros livres, cantores
com suas harpas e tambores, pesadas carroças carregadas
de pilhas de milho ou pipas de mel, negociantes, artesãos
e prostitutas; todos a caminho do sul.
Estudou Lorde Jason com ousadia. Da última vez que o
vira, ele brincava com o tio no seu banquete de
casamento; os Mallister eram vassalos dos Tully, e seus
presentes tinham sido pró digos. Agora, tinha os cabelos
castanhos salpicados de branco e o tempo descarnara -lhe
o rosto, mas os anos não lhe tinham tocado no orgulho.
Montava como um homem que nada temia. Catelyn
invejava-o por isso; tinha passado a temer tantas coisas.
Ao passar por eles, Lorde Jason fez uma brusca saudação
com a cabeça, mas não foi mais que a cortesia de um
grande senhor por estranhos encontrados por acaso na
estrada. Não houve nenhum reconhecimento naqueles
olhos intensos, e o filho nem sequer desperdiçou um
olhar.
- Ele não a reconheceu - disse depois Sor Rodrik,
surpreso.
- Viu um par de viajantes sujos de lama, molhados e
cansados à beira da estrada. Nunca lhe ocorreria suspeitar
que um de nós seria a filha de seu suserano. Julgo que
estaremos suficientemente seguros na estalagem, Sor
Rodrik.
Era já quase noite quando lá chegaram, no cruzamento de
estradas que ficava a norte da gran de confluência do
Tridente, Masha Heddle estava mais gorda e mais grisalha
do
que
Catelyn
recordava,
ainda
masc ando
sua
folhamarga, mas lançou-lhes apenas o mais precipitado
dos olhares, sem sequer uma sugestão de seu sinistro
sorriso vermelho.
- Dois quartos no topo das escadas, é tudo o que há -
disse, enquanto mastigava. - Ficam abaixo da torre sineira,
portanto, não perderão refeições, mas há quem os ache
demasiado barulhentos. Não posso fazer nada. Estamos
cheios, ou tão perto disso que não faz diferença. São esses
quartos ou a estrada.
Foram aqueles quartos, poeirentas águas -furtadas de teto
baixo no topo de uma escada estreita e escura.
- Deixem as botas aqui embaixo - disse-lhes Masha depois
de recolher o dinheiro. - O rapaz as limpará. Não quero
as escadas cheias de lama. Atenção ao sino. Os que
chegam tarde às refeições não comem - não havia
sorrisos, e nenhuma menção a bolos doces.
Quando o sino tocou para o jantar, o som foi
ensurdecedor. Catelyn vestira roupas secas. Estava sentada
junto à janela, vendo a chuva a cair. O vidro era leitoso e
cheio de bolhas, e lá fora caía um crepúsculo úmido.
Catelyn
apenas
conseguia
entrever
o
lamacento
cruzamento
onde
as
duas
grandes
estradas
se
encontravam.
O cruzamento a fez hesitar. Se virassem ali para oeste,
era um caminho fácil até Correrrio. O pai sempre lhe dera
conselhos sábios quando mais precisava, e ansia va por
falar com ele, por preveni -lo da tempestade que se
preparava. Se Winterfell precisava se preparar para a
guerra, o que dizer de Correrrio, tão mais próximo de
Porto Real, com o poder do Rochedo Casterly erguendo-se
a oeste como uma sombra. Se seu pa i fosse mais forte,
talvez tivesse arriscado, mas Hoster Tully passara os
últimos dois anos na cama, e Catelyn não estava disposta
a sobrecarregá-lo agora.
A estrada que seguia para leste era mais selvagem e
perigosa, subindo ao longo de sopés rochosos e espessas
florestas até as Montanhas da Lua, atravess ando passagens
elevadas e profu ndos desfiladeiros até o Vale de Arryn e
os pedregosos Dedos, que se projetavam para além d o
Vale. Por cima deste erguia -se o Ninho da Águia, altaneiro
e inexpugnável, com torres que se erguiam ao céu. Ali,
encontraria a irmã... e, talvez, algumas das respostas que
Ned procurava. Certamente Lysa sabia mais do que se
atrevera a colocar na carta. Podia até possuir as provas de
que Ned necessitava para levar a ruína aos Lannister; e, se
chegassem à guerra, necessitariam dos Arryn e dos
senhores orientais que lhes prestavam vassalagem.
Mas a estrada da montanha era perigosa. Gatos -das-
sombras patrulhavam essas passagens, avalanches de
rochas eram comuns, e os clãs das montanhas era m
salteadores sem lei, descendo das alturas para roubar e
matar, e derretendo como neve sempre que os cavaleiros
partiam do Vale á sua procura. Mesmo Jon Arryn, um
senhor tão grande como os melhores que o Ninho da
Águia conhecera, viajara sempre escoltado quando
atravessava as montanhas. A única escolta de Catelyn era
um cavaleiro idoso, armado de lealdade.
Não, pensou, Correrrio e Ninho da Águia teriam de
esperar. Seu caminho corria para o norte até Winterfell,
onde os filhos e o dever a esperavam. Assim q ue tivessem
passado o Gargalo em segurança, poderia anunciar -se a
um dos vassalos de Ned e enviar homens a cavalo na
frente com ordens para montar uma vigia na estrada do
rei.
A chuva obscurecia os campos para lá do cruzamento, mas
Catelyn via o terreno co m suficiente clareza na memória.
O mercado era justamente do outro lado da estrada, e a
aldeia, a uma milha mais para a frente, meia centena de
casas brancas rodeando um pequeno septo de pedra.
Agora deveria haver mais; o verão fora longo e pacífico.
Para norte dali, a estrada real acompa nhava o Ramo Verde
do Tridente através de vales férteis e bosques verdes,
passando por aldeias meias de vida, sólidas fortificações e
os castelos dos senhores do rio.
Catelyn conhecia-os todos: os Blackwood e os Bracken,
eternos inimigos, cujas disputas o pai era obrigado a
mediar; a Senhora Whent, a última de sua linhagem, que
vivia com seus fantasmas nas abóbadas cavernosas de
Harrenhal; o irascível Lorde Frey, que sobrevivera a sete
esposas e enchera seus castelos gême os de filhos, netos e
bisnetos, e também de bastardos, filhos e netos. Todos
eles
eram
vassalos
dos
Tully,
com
as
espadas
juramentadas a serviço de Correrrio. Catelyn perguntou a
si mesma se seria suficiente, caso se chegasse à guerra. O
pai era o homem mais firme que já vivera, e não tinha
dúvida de que chamaria os vassalos... , mas será que estes
viriam? Também os Darry, os Ryger e os Mooton tinham
prestado juramento a Correrrio, e no entanto tinham
lutado com Rhaegar Targaryen no Tridente, enquanto
Lorde Frey chegara com seus recrutas muito depois de a
batalha ter chegado ao fim, deixando algumas dúvidas
quanto ao exército a que planejara juntar -se (o deles,
assegurara solenemente aos vencedores depois de tudo
terminar, mas daí em diante o pai chamara -o sempre o
Atrasado Lorde Frey). Não se devia chegar à guerra,
pensou fervorosamente Catelyn. Não deveriam deixar que
se chegasse.
Sor Rodrik veio falar com ela no momento em que o sino
terminava o seu chamado.
- E melhor que nos apressemos se quisermos comer esta
noite, minha senhora.
- Talvez seja mais seguro se não nos apresentarmos como
cavaleiro e senhora até passarmos o Gargalo - ela disse. -
Viajantes comuns atraem menos atenção. Um pai e uma
filha que tomaram a estrada por causa de algum assunto
de família, por exemplo.
- Como desejar, minha senhora - concordou Sor Rodrik. Só
quando ela riu é que compreen deu o que acabara de
dizer. - A velha cortesia custa a morrer, minha... minha
filha - tentou puxar pelas barbas desaparecidas e
suspirou, exasperado.
Catelyn tomou-lhe o braço.
- Venha, pai - ela disse. - Descobrirá que Masha Heddle serve bem
sua mesa, penso eu, mas procure não elogiá-la. Garanto que não vai
querer vê-la sorrir.
A sala de estar era longa e cheia de correntes de ar, com uma fila de
enormes barris de madeira numa ponta e uma lareira na outra. Um
criado corria de um lado para o outro com espetos de carne,
enquanto Masha tirava cerveja dos barris, sem jamais parar de
mascar sua folhamarga.
Os bancos estavam cheios de gente, com pessoas da aldeia e
agricultores misturando-se livremente com todos os tipos de
viajantes. Os cruzamentos geravam estranhos companheiros;
tintureiros de mãos negras e purpúreas partilhavam o banco com
homens do rio que fediam a peixe; um ferreiro musculoso apertava-
se ao lado de um mirrado velho septão; experimentados mercenários
e moles e rechonchudos mercadores trocavam notícias como alegres
companheiros.
A companhia incluía mais homens de armas do que Catelyn teria
preferido. Três junto ao fogo usavam o símbolo do garanhão
vermelho dos Bracken, e havia um grande grupo em cota de malha
de aço azul e capas de um cinza-prateado. Em seus ombros
ostentavam outro selo familiar, as torres gêmeas da Casa Frey.
Estudou-lhes os rostos, mas eram todos novos demais para a terem
conhecido. O mais velho entre eles não teria mais idade que Bran na
época em que ela partiu para o norte.
Sor Rodrik encontrou um lugar vago para eles no banco que ficava
perto da cozinha. Do outro lado da mesa, um jovem bem-apessoado
dedilhava uma harpa.
- Sete bênçãos aos bons senhores - disse, quando se sentaram. Uma
taça vazia de vinho estava na mesa à sua frente.
- E para você também, cantor - retorquiu Catelyn. Sor Rodrik gritou
por pão, carne e cerveja num tom que queria dizer já. O cantor, um
jovem de cerca de dezoito anos, olhou para eles com ousadia e
perguntou-lhes de onde vinham, para onde iam e que novas traziam,
atirando as perguntas, rápidas como setas, sem deixar uma pausa
para as respostas. - Deixamos Porto Real há uma quinzena -
respondeu Catelyn à pergunta que mais lhe dava segurança.
- É para onde eu vou - disse o jovem. Tal como Catelyn suspeitara,
ele estava mais interessado em contar sua própria história do que
ouvir a deles. Nada havia que os cantores mais amassem que o som
de suas vozes. - O torneio da Mão significa senhores ricos com
bolsas gordas. Da última vez, regressei com mais prata do que
conseguia transportar... ou teria regressado, se não tivesse perdido
tudo ao apostar na vitória do Regicida.
- Os deuses franzem as sobrancelhas aos jogadores - Sor Rodrik disse
severamente. Era um homem do Norte e comungava das ideias dos
Stark acerca dos torneios.
- E com certeza a franziram para mim - disse o cantor. - Seus deuses
cruéis e o Cavaleiro das Flores deram cabo de mim completamente.
- Decerto isto lhe serviu de lição - disse Sor Rodrik.
- Serviu. Desta vez, minhas moedas apoiarão Sor Loras.
Sor Rodrik tentou puxar as barbas que não estavam lá, mas, antes de
poder compor uma reprimenda, o criado chegou numa correria. Pôs
na frente deles fatias de pão e as encheu com bocados de carne
tirada de um espeto pingando molho quente. Outro espeto continha
minúsculas cebolas, pimentões de fogo e gordos cogumelos. Sor
Rodrik preparou-se para se refestelar, enquanto o rapaz corria de
volta para lhes trazer cerveja.
- Meu nome é Marillion - disse o cantor, fazendo soar uma corda de
sua harpa. - Com certeza já me ouviram tocar em algum lugar...
Seus modos fizeram Catelyn sorrir. Poucos cantores errantes se
aventuravam tão para norte como Winterfell, mas conhecera esse
tipo de homem durante a infância passada em Correrrio.
- Receio que não - ela respondeu.
Ele arrancou um lamentoso acorde da harpa.
- A perda é sua - ele retrucou. - Quem foi o melhor cantor que já
ouviu?
- Alia de Bravos - respondeu Sor Rodrik de imediato.
- Ah, eu sou muito melhor que esse pau velho - disse Marillion. - Se
tiver prata para uma canção, de bom grado a mostrarei.
- Talvez eu tenha um cobre ou dois, mas mais depressa os atiraria a
um poço do que pagaria pelos seus uivos - resmungou Sor Rodrik.
Sua opinião sobre cantores era bem conhecida; a música era uma
coisa adorável para mulheres, mas não era capaz de compreender
por que motivo um rapaz saudável ocuparia as mãos com uma harpa
quando poderia empunhar uma espada.
- Seu avô tem uma natureza amarga - disse Marillion para Catelyn. -
Pretendia honrados. Uma homenagem à sua beleza. A bem da
verdade, fui feito para cantar para reis e grandes senhores.
- Ah, consigo ver isso - disse Catelyn. - Ouvi dizer que Lorde Tully é
amigo das canções. Sem dúvida que já esteve em Correrrio.
- Cem vezes - disse o jovem com desenvoltura. - Mantêm um
aposento à minha espera, e o jovem senhor é como um irmão.
Catelyn sorriu, perguntando a si mesma o que Edmure pensaria
daquilo. Outro cantor dormira uma vez com uma moça que seu
irmão gostava; desde então passara a odiar a raça.
- E Winterfell? - perguntou-lhe. - Já viajou para o norte?
- E por que haveria de ir para o norte? - perguntou Marillion. - Lá
em cima são só neves e peles de urso, e a única música que os Stark
conhecem é o uivar dos lobos - de um modo longínquo, ela percebeu
a porta que se abria na ponta mais distante da sala.
- Estalajadeiro - disse uma voz de criado atrás dela -, temos cavalos
que precisam de estábulo, e meu senhor de Lannister deseja um
quarto e um banho quente.
- Ah, deuses - disse Sor Rodrik antes que Catelyn o conseguisse
silenciar, seus dedos apertando-se com força em torno de seu braço.
Masha Heddle desfazia-se em reverências e sorria seu hediondo
sorriso vermelho.
- Lamento, senhor, deveras, estamos cheios, todos os quartos.
Eram quatro, Catelyn viu. Um velho trajando o negro da Patrulha da
Noite, dois criados... e ele, ali em pé, pequeno e descarado como a
vida.
- Meus homens dormirão no seu estábulo, e quanto a mim, bem, não
preciso propriamente de um quarto grande, como pode ver bem -
mostrou um sorriso zombeteiro. - Desde que o fogo aqueça e a palha
esteja razoavelmente livre de pulgas, sou um homem feliz.
Masha Heddle estava fora de si.
- Senhor, não há nada, é o torneio, não há nada a fazer, ah...
Tyrion Lannister tirou uma moeda da bolsa, atirou-a por cima da
cabeça, apanhou-a, e a atirou de novo. Mesmo na outra ponta da
sala, onde Catelyn se encontrava, o cintilar do ouro era
inconfundível.
Um cavaleiro livre com um desbotado manto azul pôs-se em pé:
- É bem-vindo ao meu quarto, senhor.
- Ora, aqui está um homem inteligente - disse Lannister, e atirou a
moeda a rodopiar pela sala fora. O cavaleiro livre a apanhou no ar. -
E, além disso, ligeiro de movimentos - o anão virou--se para Masha
Heddle: - Confio que seja capaz de arranjar comida?
- Tudo o que desejar, senhor, tudo e mais alguma coisa - prometeu a
estalajadeira. E que ele sufoque com a comida, pensou Catelyn, mas
foi Bran quem ela viu sufocar, afogando-se no próprio sangue.
Lannister lançou um olhar de relance pelas mesas mais próximas.
- Meus homens comerão seja o que for que esteja servindo a essa
gente. Porções duplas, porque tivemos um longo dia de viagem.
Quero uma ave assada... galinha, pato, pombo, não importa. E
mande-me um jarro do seu melhor vinho. Yoren, janta comigo?
- Sim, senhor, janto - respondeu o irmão negro.
O anão nem sequer olhara de relance para a extremidade mais
distante da sala, e Catelyn pensava em como se sentia grata pelos
bancos apinhados que havia entre eles, quando subitamente Marillion
deu um salto e pôs-se em pé.
- Meu senhor de Lannister! - ele gritou. - Ficarei feliz em entretê-lo
enquanto se alimenta, Deixe-me cantar o lai4 sobre a grande vitória
de vosso pai em Porto Real.
- Nada me arruinaria mais o jantar - o anão disse secamente. Seus
olhos desiguais avaliaram brevemente o cantor, começaram a se
afastar... e deram com Catelyn. Olhou-a por um momento, confuso.
Ela virou o rosto, mas era tarde demais. O anão sorria. - Senhora
Stark, mas que prazer inesperado - ele disse. - Lamentei não tê-la
encontrado em Winterfell.
Marillion a olhou de boca aberta, com a confusão cedendo lugar ao
desgosto enquanto Catelyn se punha em pé, Ouviu Sor Rodrik
praguejar. Se ao menos o homem se tivesse demorado na Muralha,
pensou ela, se ao menos...
4 Poema narrativo lírico tocado em harpa ou viola. (N. T.)
- Senhora. . Stark? - disse Masha Heddle, sem compreender.
- Ainda era Catelyn Tully da última vez que pernoitei aqui - ela disse
à estalajadeira. Ouvia os murmúrios, sentia os olhos postos em si.
Lançou um olhar pela sala, olhando para o rosto dos cavaleiros e as
espadas juramentadas, e inspirou profundamente para abrandar o
frenético bater do coração. Atrever-se-ia a correr o risco? Não havia
tempo para pensar bem, apenas o momento e o som de sua voz a
ressoar em seus ouvidos.
- O senhor aí, no canto - disse para um homem mais velho em que
não reparara até agora. - É o morcego negro de Harrenhal que vejo
bordado em seu manto, senhor?
O homem ergueu-se.
- É sim, senhora.
- E é a Senhora Whent uma verdadeira e honesta amiga de meu pai,
Lorde Hoster Tully de Correrrio?
- É, sim - o homem respondeu resolutamente.
Sor Rodrik ergueu-se em silêncio e desapertou a espada em sua
bainha. O anão piscava, sem expressão, com os olhos desiguais
repletos de perplexidade.
- O garanhão vermelho foi sempre uma visão bem-vinda em
Correrrio - disse Catelyn ao trio perto do fogo. - Meu pai conta
Jonos Bracken entre os seus mais antigos e leais vassalos.
Os três homens de armas trocaram olhares incertos,
- Nosso senhor sente-se honrado pela sua confiança - disse um deles,
hesitantemente.
- Invejo ao seu pai todos esses bons amigos - observou Lannister -,
mas não compreendo bem o objetivo disto, Senhora Stark.
Ela o ignorou, virando-se para o grande grupo vestido de azul e
cinza. Residia neles o fulcro da questão; eram mais de vinte.
- Também conheço seu símbolo: as torres gêmeas de Frey. Como
passa vosso bom senhor, senhores?
O capitão pôs-se em pé.
- Lorde Walder está bem, senhora. Planeja tomar uma nova esposa
no nonagésimo dia do seu nome, e pediu ao senhor seu pai para
honrar o casamento com sua presença.
Tyrion Lannister soltou um risinho abafado. Foi nesse momento que
Catelyn soube que o tinha na mão.
- Este homem chegou como convidado a minha casa e ali conspirou
para matar meu filho, um rapaz de sete anos - proclamou para toda
a sala, apontando. Sor Rodrik deslocou-se para o seu lado, de espada
na mão. - Em nome do Rei Robert e dos bons senhores que servem,
solicito-lhes que o capturem e me ajudem a devolvê-lo a Winterfell,
onde esperará a justiça do rei.
Não saberia dizer o que lhe deu maior satisfação: se o som de uma
dúzia de espadas a serem empunhadas como uma só, ou se a
expressão no rosto de Tyrion Lannister.
Sansa
Sansa chegou ao torneio da Mão, com a Septã Mordane e Jeyne
Poole, numa liteira com cortinas de uma seda amarela tão fina que se
conseguia ver através delas. Transformavam o mundo inteiro em
ouro. Para lá das muralhas da cidade, tinha sido erguida uma centena
de pavilhões junto ao rio, e a plebe chegou aos milhares para assistir
aos jogos. O esplendor de tudo aquilo tirou o fôlego de Sansa; as
armaduras brilhantes, os grandes cavalos ornados com prata e ouro,
os gritos da multidão, os estandartes esvoaçando ao vento... e os
próprios cavaleiros, acima de tudo os cavaleiros.
- É melhor do que nas canções - ela sussurrou quando encontraram
os lugares que o pai lhe prometera, entre os grandes senhores e
senhoras.
Sansa estava belamente vestida naquele dia, num vestido verde que
lhe realçava o arruivado dos cabelos, e estava consciente de que a
admiravam e sorriam.
Viram os heróis de cem canções avançar, cada um mais fabuloso que
o anterior. Os sete cavaleiros da Guarda Real desceram ao campo,
todos, menos Sor Jaime Lannister, com armaduras de escamas da cor
do leite e mantos tão alvos como neve acabada de cair. Sor Jaime
vestia também o manto branco, mas por baixo brilhava em ouro da
cabeça aos pés, com um elmo em forma de cabeça de leão e uma
espada dourada. Sor Gregor Clegane, a Montanha Que Cavalga,
trovejou como uma avalanche ao passar por eles. Sansa reconheceu
Lorde Yohn Royce, que visitara Winterfell dois anos antes.
- Sua armadura é de bronze, com milhares e milhares de anos, com
runas mágicas gravadas que o protegem do perigo - sussurrou para
Jeyne. Septã Mordane indicou-lhes Lorde Jason Mallister, vestido de
índigo com relevos de prata e com as asas de uma águia no elmo.
Abatera três dos vassalos de Rhaegar no Tridente. As moças
rebentaram em risinhos ao ver o sacerdote guerreiro Thoros de Myr,
com sua larga toga vermelha e a cabeça raspada, até que a septã lhes
contou que tinha uma vez escalado as muralhas de Pyke com uma
espada em chamas na mão.
Havia outros competidores que Sansa não conhecia; pequenos
cavaleiros dos Dedos, de Jardim de Cima ou das montanhas de
Dorne, cavaleiros livres jamais celebrados e homens acabados de
serem feitos escudeiros, os filhos mais novos de grandes senhores e
os herdeiros de Casas menores. Homens mais jovens, muitos ainda
não tinham realizado grandes feitos, mas Sansa e Jeyne concordaram
que um dia os Sete Reinos ressoariam ao som de seus nomes. Sor
Balon Swann, Lorde Bryce Caron, das Marcas. O herdeiro do bronze
de Yohn, Sor Andar Royce, e o irmão mais novo, Sor Robar, cujas
placas de aço prateado traziam a mesma filigrana em bronze de
antigas runas que protegia o pai. Os gêmeos, Sor Horas e Sor
Hobber, cujos escudos exibiam o símbolo do cacho de uvas dos
Redwyne, bordo sobre azul. Patrek Mallister, filho de Lorde Jason. Os
seis Frey da Travessia: Sor Jared, Sor Hosteen, Sor Danwell, Sor
Emmon, Sor Theo, Sor Perwyn, filhos e netos do velho Lorde Walder
Frey e também o filho bastardo, Martyn Rivers.
Jeyne Poole confessou-se assustada pelo aspecto de Jalabhar Xho, um
príncipe exilado das Ilhas do Verão que usava uma capa de penas em
verde e escarlate por cima de uma pele escura como a noite, mas
quando viu o jovem Lorde Beric Dondarrion, com os cabelos como
ouro vermelho e o escudo negro atravessado por um relâmpago,
anunciou-se pronta para se casar com ele naquele momento.
O Cão de Caça também entrava na lista de participantes, e
igualmente dela constava o irmão do rei, o bem-apessoado Lorde
Renly de Ponta Tempestade. Jory, Alyn e Harwin competiam por
Winterfell e pelo Norte.
- Jory parece um pedinte ao lado dos outros - fungou Septã Mordane
quando ele surgiu, Sansa só podia concordar. A armadura de Jory era
feita de metal azul-acinzentado sem distintivos ou ornamentos, e um
fino manto cinza pendia-lhe dos ombros como um trapo sujo. Mas
saiu-se bem, derrubando Horas Redwyne na primeira justa e um dos
Frey na segunda. No terceiro encontro, fez três passagens por um
cavaleiro livre chamado Lothor Brune, cuja armadura era tão sem
graça como a sua. Nenhum dos homens caiu do cavalo, mas a lança
de Brune era mais firme e seus golpes, mais bem colocados, e o rei
concedeu-lhe a vitória. Alyn e Harwin não estiveram tão bem; Harwin
foi desmontado ao primeiro golpe por Sor Meryn, da Guarda Real, ao
passo que Alyn caiu perante Sor Balon Swann.
Ajusta prolongou-se por todo o dia e entrou pelo crepúsculo, com os
cascos dos grandes cavalos de batalha batendo o terreno até
transformá-lo num descampado irregular de terra revolta. Uma dúzia
de vezes Jeyne e Sansa gritaram em uníssono quando cavaleiros
chocaram as lanças com estrondo, explodindo-as em lascas, enquanto
os plebeus gritavam pelos seus favoritos. Jeyne cobria os olhos
sempre que um homem caía, como uma menininha assustada, mas
Sansa era feita de material mais firme. Uma grande senhora sabia
como se comportar em torneios. Até Septã Mordane reparou na sua
compostura e fez um aceno de aprovação.
O Regicida competiu brilhantemente. Derrotou Sor Andar Royce e
Lorde Bryce Caron, das Marcas, tão facilmente como se estivesse
investindo sobre aros, e depois teve um encontro duro com o
experiente Barristan Selmy, que vencera os dois primeiros embates
contra homens trinta e quarenta anos mais novos.
Sandor Clegane e o imenso irmão, Sor Gregor, a Montanha, também
pareciam imbatíveis, derrotando adversário atrás de adversário num
estilo feroz. O mais aterrador momento do dia chegou durante a
segunda justa de Sor Gregor, quando sua lança se ergueu e atingiu,
sob o gorjal, um jovem cavaleiro vindo do Vale, com tanta força que
lhe trespassou a garganta, matando-o instantaneamente. O jovem
caiu a menos de três metros de onde Sansa se encontrava. A ponta
da lança de Sor Gregor quebrara-se em seu pescoço e o sangue de
sua vida fluiu em lentas golfadas, cada uma mais fraca que a
anterior. Sua armadura brilhava de tão nova; uma brilhante faixa de
fogo corria pelo braço estendido onde o aço capturava a luz. Então, o
sol se escondeu atrás de uma nuvem, que desapareceu. O manto era
azul, da cor do céu num dia límpido de verão, ornamentado com
uma borda de luas crescentes, mas quando o sangue o encharcou, o
tecido escureceu e as luas foram se tornando vermelhas, uma a uma.
Jeyne Poole chorou tão histericamente que Septã Mordane acabou
por levá-la até que recuperasse a compostura, mas Sansa ficou
sentada, com as mãos fechadas sobre o colo, observando com um
estranho fascínio. Nunca antes tinha visto um homem morrer.
Também devia chorar, pensou, mas as lágrimas não vinham. Talvez
tivesse gasto todas elas com Lady e Bran. Disse a si mesma que seria
diferente se tivesse sido Jory, Sor Rodrik ou seu pai. O jovem
cavaleiro do manto azul não lhe era nada, um estranho qualquer
vindo do Vale de Arryn, cujo nome esquecera assim que o ouvira. E
agora o mundo também esqueceria seu nome, concluiu; não haveria
canções em sua honra. Era triste.
Depois de levarem o corpo, um rapaz com uma pá correu para o
campo e atirou terra sobre o local onde o jovem caíra para cobrir o
sangue. E então recomeçaram as justas.
Sor Balon Swann também caiu perante Gregor, e Lorde Renly,
perante Cão de Caça. Renly foi desmontado tão violentamente que
pareceu voar para trás, para longe do adversário, com as pernas para
o ar. A cabeça bateu no chão com um crac audível que fez a
multidão prender a respiração, mas era apenas o chifre de ouro do
elmo. Um dos galhos tinha se partido sob seu peso. Quando Lorde
Renly se pôs em pé, o público aplaudiu ruidosamente, pois o bonito
irmão mais novo do rei Robert era muito popular. Entregou o galho
partido ao seu vencedor com uma vénia cortês. Cão de Caça
resfolegou e atirou a haste partida à multidão, onde a arraia-miúda
desatou aos socos e aos empurrões na disputa pelo pequeno bocado
de ouro, até que Lorde Renly surgiu entre eles para restaurar a paz.
A essa altura Septã Mordane já regressara, sozinha. Jeyne sentira-se
doente, explicou; ajudara-a a voltar ao castelo. Sansa quase se
esquecera de Jeyne.
Mais tarde, um pequeno cavaleiro com um manto xadrez caiu em
desgraça ao matar o cavalo de Beric Dondarrion e foi desclassificado.
Lorde Beric mudou a sela para uma nova montaria, apenas para ser
derrubado logo a seguir por Thoros de Myr. Sor Aron Santugar e
Lothor Brune investiram três vezes sem resultado; Sor Aron caiu
depois perante Lorde Jason Mallister, e Brune, perante o filho mais
novo de Yohn Royce, Robar.
No fim, restaram quatro: o Cão de Caça; seu monstruoso irmão
Gregor; Jaime Lannister, o Regicida; e Sor Loras Tyrell, o jovem a
quem chamavam Cavaleiro das Flores.
Sor Loras era o filho mais novo de Mace Tyrell, senhor de Jardim de
Cima e Protetor do Sul. Com dezesseis anos, era o mais novo
cavaleiro em campo, mas naquela manhã, em suas primeiras três
justas, tinha derrubado três cavaleiros da Guarda Real. Sansa nunca
vira ninguém tão belo. Sua placa de peito estava primorosamente
moldada e adornada como um buquê de mil flores diferentes, e seu
garanhão branco como a neve estava envolvido em uma manta de
rosas vermelhas e brancas. Depois de cada vitória, Sor Loras tirava o
elmo, cavalgava devagar em torno do alam-brado, e por fim tirava
uma única rosa branca da manta e a atirava a alguma bela donzela
que visse na multidão. Seu último encontro do dia foi com o Royce
mais novo. As runas ancestrais de Sor Robar pouca proteção
providenciaram, pois Sor Loras quebrou-lhe o escudo e o arrancou
da sela, fazendo-o cair com um horrível estrondo. Robar ficou
gemendo enquanto o vencedor fazia seu circuito do campo. Por fim,
chamaram uma liteira e levaram o vencido para sua tenda, aturdido e
imóvel. Sansa nem o viu. Só tinha olhos para Sor Loras. Quando o
cavalo branco parou na sua frente, pensou que seu coração
arrebentaria.
Às outras donzelas dera rosas brancas, mas a que escolheu para ela
era vermelha.
- Querida senhora - disse -, nenhuma vitória possui sequer metade
da sua beleza - Sansa recebeu a rosa timidamente, estupidificada pelo
galanteio. Os cabelos do jovem eram uma massa de grandes caracóis
castanhos, seus olhos eram como ouro líquido. Inalou a doce
fragrância da rosa e ficou agarrada a ela até muito depois de Sor
Loras ter se afastado.
Quando Sansa acabou por finalmente olhar para cima, um homem
estava em pé à sua frente, sem desviar o olhar. Era baixo, com uma
barba pontiaguda e um fio de prata nos cabelos, quase tão velho
como seu pai.
- A senhora deve ser uma de suas filhas - o homem lhe disse. Tinha
olhos cinza-esverdeados que não sorriam quando a boca o fazia. -
Tem o jeito dos Tully.
- Sou Sansa Stark - ela disse, pouco à vontade. O homem usava um
manto pesado, com colarinho de peles, atado com um tejo de prata,
e possuía as maneiras fáceis de um grande senhor, mas ela não o
conhecia. - Não tive a honra, senhor.
Septã Mordane foi rápida em vir em seu auxílio.
- Querida menina, este é o Senhor Petyr Baelish, do pequeno
conselho do rei.
- Sua mãe foi em tempos passados a minha rainha da beleza - disse o
homem calmamente. Seu hálito cheirava a menta. - Tem os cabelos
dela - Sansa sentiu os dedos dele no rosto quando lhe afagou uma
madeixa arruivada. De forma bastante abrupta, virou-se e afastou-se.
A essa altura, a lua já ia bastante alta e a multidão estava cansada, e
o rei acabava de decretar que os últimos três encontros seriam
disputados na manhã seguinte, antes do corpo a corpo. Enquanto os
plebeus se dirigiam para suas casas, conversando sobre as justas do
dia e os embates da manhã seguinte, a corte deslocou-se até a beira-
rio a fim de dar início ao festim. Seis monumentais auroques
estavam assando havia horas, girando lentamente em espetos de
madeira, enquanto os ajudantes de cozinha os untavam com
manteiga e ervas até a carne começar a crepitar. Mesas e bancos
tinham sido montados fora dos pavilhões, e neles tinham sido
colocadas grandes pilhas de ervamel, morangos e pão fresco.
Sansa e Septã Mordane receberam lugares de grande honra, à
esquerda do estrado elevado onde o próprio rei se sentava com sua
rainha. Quando Príncipe Joffrey se sentou à sua direita, Sansa sentiu
sua garganta apertar. Ele não lhe dirigira uma palavra desde que
acontecera aquela terrível coisa, e ela não se atrevia a falar com ele.
A princípio pensou que o odiava pelo que fizera a Lady, mas depois
de chorar até ficar sem lágrimas dissera a si mesma que não tinha
sido obra de Joffrey, não verdadeiramente. Fora a rainha quem fizera
aquilo; era ela que devia odiar, ela e Arya. Nada de mal teria
acontecido se não fosse Arya.
Naquela noite não podia odiar Joffrey. Era demasiado bonito para ser
odiado. Vestia um gibão de um profundo tom de azul ornamentado
com uma fileira dupla de cabeças de leão, e trazia em volta da testa
uma estreita coroa feita de ouro e safiras. Os cabelos eram tão
brilhantes como metal. Sansa olhou para ele e estremeceu, com medo
de que a ignorasse ou, pior ainda, voltasse a ficar detestável e a
fizesse fugir da mesa chorando.
Mas, em vez disso, Joffrey sorriu e beijou-lhe a mão, belo e galante
como qualquer príncipe das canções, e disse:
- Sor Loras tem bom olho para a beleza, querida senhora,
- Ele foi muito gentil - ela objetou, tentando permanecer modesta e
calma, embora seu coração cantasse. - Sor Loras é um verdadeiro
cavaleiro. Julga que ele ganha amanhã, senhor?
- Não - disse Joffrey. - Meu cão dará conta dele, ou talvez meu tio
Jaime. E dentro de alguns anos, quando tiver idade para entrar no
torneio, darei conta de todos eles - ergueu a mão para chamar um
criado que trazia um jarro de vinho de verão gelado e serviu-se de
uma taça. Ela olhou ansiosa para Septã Mordane, até que Joffrey se
inclinou e encheu também a taça da septã, que lhe fez um aceno de
cabeça, agradeceu-lhe amavelmente, mas não disse uma palavra.
Os criados mantiveram as taças cheias toda a noite, mas, mais tarde,
Sansa não conseguiu se lembrar sequer de ter provado o vinho. Não
precisava de vinho. Estava ébria da magia da noite, entontecida pelos
seus encantos, arrebatada por belezas com que sonhara toda a vida e
nunca se atrevera a ter esperança de conhecer. Cantores sentavam-se
perante o pavilhão do rei, enchendo o crepúsculo de música. Um
malabarista manteve uma cascata de clavas em chamas rodopiando
no ar. O bobo privado do rei, o simplório de rosto em forma de
torta, chamado Rapaz Lua, dançou por ali equilibrado em pernas de
pau, vestido de cores variadas, fazendo troça de toda a gente com tão
hábil crueldade que Sansa perguntou a si mesma se o homem seria
mesmo lento. Até Septã Mordane foi impotente contra ele; quando
cantou sua cançoneta acerca do Grande Septão, ela riu tanto que
derramou vinho no vestido.
E Joffrey era a alma da cortesia. Falou toda a noite com Sansa,
derramando elogios, fazendo-a rir, partilhando com ela bocadinhos
dos mexericos da corte, explicando as brincadeiras do Rapaz Lua.
Sansa ficou tão cativada que esqueceu toda a educação e ignorou
Septã Mordane, sentada à sua esquerda.
E durante todo o tempo os pratos iam e vinham. Uma espessa sopa
de cevada e veado. Saladas de ervamel, espinafre e ameixas,
salpicadas de nozes esmagadas. Caracóis em alho e mel. Sansa nunca
antes tinha comido caracóis; Joffrey mostrou-lhe como tirar o animal
da casca e levou à boca a primeira daquelas delicadas porções.
Depois vieram trutas recém-pescadas do rio, cozidas em barro; seu
príncipe a ajudou a partir a dura capa escamosa para expor a carne
branca que se encontrava no interior. E, quando foi trazido o prato
de carne, foi ele que a serviu, cortando uma porção digna de uma
rainha e sorrindo ao depositá-la em seu prato. Ela podia ver, pelo
modo como se movia, que o braço direito ainda o incomodava, mas
ele não soltou uma palavra de queixume.
Mais tarde chegaram timo de vitela, tortas de pombo, maçãs cozidas
aromatizadas com canela e bolos de limão cobertos de açúcar, mas
Sansa já estava tão cheia que não conseguiu comer mais que dois
pequenos bolos de limão, por mais que os adorasse. Perguntava a si
mesma se poderia arriscar um terceiro quando o rei começou a
gritar.
O Rei Robert tornava-se mais ruidoso a cada prato. De vez em
quando, Sansa o ouvia rir ou rugir uma ordem por cima da música e
do tinir dos pratos e talheres, mas estava longe demais para entender
as palavras. Agora todos o ouviam,
- Não - trovejou, numa voz que abafava todas as outras conversas.
Sansa ficou chocada ao ver o rei em pé, de rosto vermelho,
cambaleando, Tinha uma taça de vinho na mão e estava bêbado
como um gambá.
- A senhora não me diz o que fazer, mulher - gritou à Rainha Cersei.
- Sou eu aqui o rei, entende? Eu é que governo aqui, e se digo que
amanhã luto, luto mesmol
Toda a gente o olhava. Sansa viu Sor Barristan, o irmão do rei, Renly,
e o homem baixo que falara tão estranhamente com ela e lhe tocara
o cabelo, mas ninguém fez um movimento para interferir. O rosto da
rainha era uma máscara, tão vazia de sangue que poderia ter sido
esculpida em neve. Ergueu-se da mesa, recolheu as saias e saiu em
silêncio, seguida por um bando de criados.
Jaime Lannister pousou a mão no ombro do rei, mas este o
empurrou com violência. O Regicida tropeçou e caiu. O rei soltou
uma gargalhada grosseira.
- O grande cavaleiro. Ainda posso atirá-lo ao chão. Lembre-se disso,
Regicida - bateu no peito com o cálice cravejado de jóias, enchendo
de vinho a túnica de cetim. - Dêem-me meu martelo, e não há um
homem no reino que me vença,
Jaime Lannister ergueu-se e sacudiu sua roupa.
- É como diz, Vossa Graça - sua voz estava rígida.
Lorde Renly adiantou-se, sorrindo.
- Derramou vosso vinho, Robert. Permita-me que lhe traga um novo
cálice.
Sansa sobressaltou-se quando Joffrey pousou a mão em seu braço.
- Está ficando tarde - disse o príncipe, Tinha uma expressão estranha
no rosto, como se não a visse de todo. - Precisa de escolta na volta
ao castelo?
- Não - começou Sansa. Procurou pela Septã Mordane e ficou
surpresa ao vê-la com a cabeça pousada na mesa, soltando roncos
suaves e dignos. - Quero dizer... sim, muito obrigada, seria muito
gentil de sua parte. Eu estou cansada e o caminho é tão escuro.
Ficaria grata por alguma proteção.
Joffrey gritou:
- Cão!
Sandor Clegane pareceu materializar-se dentro da noite, tão rápido
foi seu surgimento. Tinha trocado a armadura por uma túnica de lã
vermelha com uma cabeça de cão em couro cosida na frente. A luz
dos archotes fazia com que seu rosto queimado brilhasse num tom
vermelho sem vida.
- Sim, Vossa Graça?
- Leve minha prometida de volta para o castelo e assegure-se de que
nenhum mal caia sobre ela - o príncipe disse-lhe bruscamente. E sem
mesmo uma palavra de despedida Joffrey afastou-se, deixando-a ali.
Sansa podia sentir que o Cão de Caça a observava.
- A senhora esperava que Joff a levaria em pessoa? - ele riu. Tinha
um riso que era como o rosnar de cães de luta. - Há pouca chance
de isso acontecer - colocou-a em pé, sem admitir resistência. - Anda,
não é a única que precisa dormir. Bebi demais e posso ter de matar
meu irmão amanhã - e riu novamente.
De súbito aterrorizada, Sansa puxou o ombro de Septã Mordane,
esperando acordá-la, mas a mulher limitou-se a ressonar mais alto.
Rei Robert tinha se afastado aos tropeções e metade dos bancos
estava subitamente vazia, O festim tinha terminado, e o belo sonho
terminara com ele.
O Cão de Caça apanhou um archote para iluminar o caminho. Sansa
o seguiu de perto. O chão era rochoso e irregular, e a luz
tremeluzente fazia com que parecesse mudar e mover-se sob seus
pés. Manteve os olhos baixos, verificando onde punha os pés.
Caminharam por entre os pavilhões, cada um com seu estandarte e
sua armadura pendurada à porta, com o silêncio ficando mais pesado
a cada passo. Sansa não suportava olhá-lo, assustava-a demais, mas
tinha sido educada com todas as regras da cortesia. Disse a si mesma
que uma verdadeira senhora não repararia em seu rosto.
- Hoje o senhor montou galantemente, Sor Sandor - obrigou-se a
dizer.
Sandor Clegane rosnou-lhe.
- Poupe-me de seus elogiozinhos vazios, menina... e aos seus
senhores. Não sou nenhum cavaleiro. Escarro neles e nos seus
juramentos. Meu irmão é um cavaleiro. Você o viu montar hoje?
- Sim - sussurrou Sansa, tremendo. - Ele foi...
- Galante? - terminou Cão de Caça.
Sansa compreendeu que o homem zombava dela.
- Ninguém conseguiu resistir a ele - conseguiu dizer, por fim,
orgulhosa de si própria. Não era mentira.
Sandor Clegane parou de súbito no meio de um descampado escuro
e vazio. Ela não teve escolha a não ser parar ao seu lado.
- Uma septã qualquer a treinou bem. É como um daqueles pássaros
das Ilhas do Verão, não é? Um passarinho bonito e falante que repete
todas as palavrinhas bonitas que lhe ensinaram a recitar.
- Isso não é amável - Sansa sentia o coração palpitando no peito. -
Está me assustando. Quero ir, agora.
- Ninguém conseguiu resistir a ele - repetiu o Cão de Caça em voz
áspera. - É uma verdade razoável. Ninguém nunca conseguiu resistir
a Gregor. Aquele rapaz hoje, a segunda justa, ah, aquilo foi uma bela
coisinha. Você viu, não viu? O pateta do rapaz não tinha nada que
montar nesta companhia. Sem dinheiro, sem escudeiro, sem ninguém
que o ajudasse com aquela armadura. Aquele gorjal não estava preso
como deve ser. Você acha que Gregor não reparou? Acredita que a
lança de Sor Gregor subiu por acaso, não é verdade? Linda garotinha
falante, se acredita nisso, tem realmente a cabeça tão oca como um
pássaro. A lança de Gregor vai onde Gregor quer que ela vá. Olhe
para mim. Olhe para mim! - Sandor Clegane pôs a mão enorme sob
seu queixo e a forçou a erguer o rosto. Acocorou-se à sua frente e
aproximou o archote. - Aqui tem a beleza. Olhe bem, e olhe por
muito tempo. Bem sabe que é o que deseja. Vi você virando a cara
durante todo o caminho ao longo da estrada do rei. Morrendo de
medo. Veja o que quiser.
Os dedos dele seguravam-lhe o queixo com tanta força como se
fossem uma armadilha de ferro. Os olhos observavam os dela. Olhos
ébrios, carregados de ira. Ela tinha de olhar.
O lado direito de seu rosto era magro, com ossos aguçados e um
olho cinzento sob uma pesada sobrancelha. O nariz era grande e
adunco, o cabelo, fino e escuro. Usava-o longo e escovava-o para o
lado, porque nenhum cabelo crescia do outro lado daquele rosto.
O lado esquerdo de seu rosto era uma ruína. A orelha tinha
desaparecido, queimada; nada restava a não ser um buraco. O olho
ainda estava em bom estado, mas em volta dele havia uma retorcida
massa de cicatrizes, pele lisa e negra, dura como couro, semeada de
crateras e rasgada por profundas fendas que cintilavam em tons de
vermelho quando ele se movia. Na região do maxilar podia-se ver um
pouco de osso onde a carne fora arrancada.
Sansa começou a chorar. Ele então a largou e apagou o archote no
chão.
- Não há palavras bonitas para isto, menina? Nenhum elogiozinho
que a septã lhe tenha ensinado? - sem obter resposta, prosseguiu. - A
maior parte deles julga que foi uma batalha. Um cerco, uma torre
ardendo, um inimigo com um archote. Um palerma me perguntou se
tinha sido fogo de um dragão - daquela vez a gargalhada foi mais
suave, mas não menos amargurada. - Eu lhe conto o que foi, menina
- disse, uma voz vinda da noite, uma sombra que agora se inclinava
para tão perto que conseguia sentir o fedor amargo do vinho no seu
hálito. - Era mais novo do que você, com seis anos, talvez sete. Um
escultor em madeira montou uma loja na aldeia que ficava por baixo
da fortaleza de meu pai e, para comprar favores, enviou-nos
presentes. O velho fazia brinquedos maravilhosos, Não me lembro do
que recebi, mas era o presente de Gregor que eu desejava. Um
cavaleiro de madeira, todo pintado, com cada articulação presa em
separado e fixada com cordas para que se pudesse pô-lo a lutar.
Gregor é mais velho que eu cinco anos, o brinquedo não significava
nada para ele, já era um escudeiro com quase um metro e oitenta e
musculoso como um touro. Portanto, tirei dele o cavaleiro, mas
posso lhe dizer que não houve nenhuma alegria nisso. Tive medo o
tempo todo, e realmente ele me encontrou. Havia um braseiro na
sala. Gregor não disse uma única palavra, limitou-se a me colocar
debaixo do braço e a enfiar o lado da minha cara nos carvões em
brasa, deixando-me lá enquanto eu gritava sem parar. Vê como ele é
forte. Mesmo naquele tempo, foram precisos três homens fortes para
afastá-lo de mim. Os septões pregam acerca dos sete infernos. Que
sabem eles? Só um homem que já tenha sido queimado sabe
realmente como é o inferno. "Meu pai disse a todos que meus
cobertores tinham pegado fogo, e o nosso meistre me deu
unguentos. Unguentos! Gregor também recebeu seus unguentos.
Quatro anos mais tarde, ungiram-no com os sete óleos, recitou seus
votos de cavaleiro e Rhaegar Targaryen bateu em seu ombro e disse:
'Erguei-vos, Sor Gregor'."
A voz áspera extinguiu-se. Ficou acocorado em silêncio na frente
dela, uma pesada silhueta negra envolta na noite, escondido de seus
olhos. Sansa ouvia a respiração irregular do homem. Compreendeu
que se sentia triste por ele. De algum modo, o medo tinha
desaparecido.
O silêncio prolongou-se durante muito tempo, tanto que começou de
novo a sentir medo, mas agora seu medo era por ele, não por si
própria. Encontrou o massivo ombro dele com a mão.
- Ele não era um verdadeiro cavaleiro - sussurrou-lhe.
Cão de Caça atirou a cabeça para trás e rugiu. Sansa tropeçou para
trás, afastando-se dele, mas ele pegou seu braço,
- Não - rosnou -, não, passarinho, ele não era um verdadeiro
cavaleiro.
Ao longo do resto do caminho até a cidade Sandor Clegane não disse
uma palavra. Levou-a até onde as carroças esperavam, disse a um
condutor para levá-los à Fortaleza Vermelha e subiu na carroça atrás
dela. Atravessaram em silêncio o Portão do Rei e as ruas iluminadas
por archotes da cidade. Abriu a porta de acesso e a levou para
dentro do castelo, com o rosto queimado a contrair-se em espasmos
e os olhos alertas, sempre um passo atrás enquanto subiram as
escadas da torre. Levou-a em segurança ao longo de todo o caminho
até o corredor que dava aos seus aposentos.
- Obrigada, senhor - Sansa disse humildemente.
Cão de Caça agarrou-lhe o braço e inclinou-se para a frente.
- As coisas que te disse esta noite - disse, com a voz ainda mais
áspera que de hábito. - Se algum dia contá-las a Joffrey... a sua irmã,
ao seu pai... a algum deles...
- Não conto - sussurrou Sansa. - Prometo.
Não era o suficiente.
- Se algum dia contar a alguém - terminou ele -, eu a mato.
Eddard
- Eu mesmo o velei - disse Sor Barristan Selmy, olhando o corpo que
jazia na parte de trás da carroça. - Ele não tinha mais ninguém.
Falaram-me que talvez uma mãe, no Vale. A fraca luz da madrugada,
o jovem cavaleiro parecia estar dormindo. Não fora bonito em vida,
mas a morte suavizara-lhe as feições rudemente talhadas, e as irmãs
silenciosas o tinham vestido a sua melhor túnica de veludo, com um
colarinho elevado para cobrir a ruína em que a lança tinha
transformado sua garganta. Eddard Stark olhou seu rosto e
perguntou a si mesmo se teria sido ele o causador da morte do
rapaz. Morto por um vassalo dos Lannister antes que Ned pudesse
falar com ele; seria possível que não passasse de mero acaso? Supôs
que nunca chegaria a saber.
- Hugh foi escudeiro de Jon Arryn durante quatro anos - prosseguiu
Selmy. - O rei o armou cavaleiro antes de partir para o norte, em
memória de Jon. O rapaz desejava aquilo desesperadamente, mas
temo que não estivesse pronto.
Ned dormira mal na noite anterior e sentia um cansaço maior do que
seria de esperar da idade.
- Nenhum de nós jamais está pronto.
- Para ser armado cavaleiro?
- Para a morte - com gentileza, Ned cobriu o rapaz com seu manto,
azul manchado de sangue, debruado por luas crescentes. Refletiu
amargamente que, quando a mãe perguntasse por que razão o filho
estava morto, lhe diriam que tinha lutado em honra da Mão do Rei,
Eddard Stark. - Isto foi desnecessário. A guerra não devia ser um
jogo - Ned virou-se para a mulher que estava ao lado da carroça,
envolta em cinza, com o rosto escondido, apenas os olhos à mostra.
As irmãs silenciosas preparavam os homens para a sepultura, e era
má sorte olhar a morte no rosto.
- Envie sua armadura para casa, para o Vale. A mãe deve querê-la.
- Vale uma boa quantia em prata - disse Sor Barristan. - O rapaz
mandou-a forjar especialmente para o torneio. Um trabalho simples,
mas bom. Não sei se acabou de pagar ao ferreiro.
- Pagou ontem, senhor, e pagou caro - respondeu Ned. E à irmã
silenciosa disse: - Envie a armadura à sua mãe. Tratarei com esse
ferreiro - a mulher fez-lhe uma reverência.
Mais tarde, Sor Barristan acompanhou Ned até o pavilhão do rei. O
acampamento começava a se agitar. Salsichas gordas chiavam e
pingavam sobre fogueiras, temperando o ar com os odores do alho e
da pimenta. Jovens escudeiros caminhavam apressados por ali,
conversando, enquanto seus senhores acordavam, bocejando e
espreguiçando-se, saudando o dia. Um criado com um ganso debaixo
do braço dobrou o joelho ao vê-los. "Senhores", murmurou, enquanto
o ganso grasnava e lhe bicava os dedos. Os escudos exibidos à porta
de todas as tendas anunciavam seus ocupantes: a águia de prata de
Guardamar, o campo de rouxinóis de Bryce Caron, um cacho de uvas
para os Redwyne, o javali malhado, o touro vermelho, a árvore
flamejante, o carneiro branco, a espiral tripla, o unicórnio roxo, as
donzelas dançantes, a víbora negra, as torres gêmeas, a coruja
chifruda e, por fim, os brasões de um branco puro da Guarda Real,
brilhando como a madrugada.
- O rei pretende participar hoje do corpo a corpo - disse Sor
Barristan enquanto passavam pelo escudo de Sor Meryn, com a tinta
maculada por um profundo golpe onde a lança de Loras Tyrell
marcara a madeira ao derrubá-lo da sela.
- Sim - disse Ned em tom sombrio. Jory acordara-o na noite anterior
para lhe dar a notícia. Não admirava que tivesse dormido tão mal.
O olhar de Sor Barristan estava perturbado.
- Diz-se que as belezas da noite esmorecem de madrugada, e que os
filhos do vinho são frequentemente renegados à luz da manhã.
- É o que dizem - concordou Ned -, mas não de Robert - outros
homens poderiam reconsiderar as palavras ditas em bravatas ébrias,
mas Robert Baratheon as recordaria e, recordando-as, nunca recuaria.
O pavilhão do rei erguia-se perto da água, e as neblinas matinais que
o rio gerava tinham-no rodeado de colunas cinza. Era todo de seda
dourada, a maior e mais imponente estrutura no acampamento. A
porta, o martelo de batalha de Robert encontrava-se em exibição,
junto a um imenso escudo de ferro decorado com o veado coroado
da Casa Baratheon.
Ned tivera esperança de encontrar o rei ainda na cama, num sono
ensopado em vinho, mas a sorte não estava com ele. Encontraram