Robert bebendo cerveja de um corno polido e rugindo seu

descontentamento com dois jovens escudeiros que tentavam atar-lhe

a armadura.

- Vossa Graça - dizia um, quase em lágrimas -, é muito pequena, não

vamos conseguir - atrapalhou-se, e o gorjal que tentava prender em

torno do grosso pescoço de Robert caiu ao chão.

- Pelos sete infernos! - Robert praguejou. - Terei de fazer tudo eu

mesmo? Vão os dois para o raio que os parta. Pegue isso. Não fique

aí de boca aberta, Lancei, pegue isso! - o rapaz deu um salto e o rei

reparou na companhia. - Olhe para estes imbecis, Ned. Minha mulher

insistiu que tomasse estes dois como escudeiros, e são menos que

inúteis. Sequer são capazes de pôr a armadura de um homem sobre

seu corpo. Escudeiros, dizem eles. Eu digo que são mais é criadores

de porcos vestidos de seda.

Ned não precisou mais que uma olhadela para compreender a

dificuldade.

- Os rapazes não estão em falta - disse ao rei. - Você está gordo

demais para a sua armadura, Robert.

Robert Baratheon bebeu um longo trago de cerveja, atirou o corno

vazio para cima de suas peles de dormir, limpou a boca nas costas da

mão e disse em tom sombrio:

- Gordo? Gordo, é isso? É assim que você fala com seu rei? - e soltou

sua gargalhada, súbita como uma tempestade. - Ah, maldito seja,

Ned, por que é que você sempre tem razão?

Os escudeiros sorriram nervosamente, até que o rei se virou para

eles.

- Vocês. Sim, vocês dois. Ouviram a Mão. O rei está muito gordo

para a sua armadura. Vão à procura de Sor Aron Santagar. Digam-

lhe que preciso do esticador de peitorais. Já! O que estão esperando?

Os rapazes tropeçaram um no outro com a pressa de sair da tenda.

Robert conseguiu manter uma cara severa até eles saírem. Então caiu

numa cadeira, tremendo de tanto rir.

Sor Barristan Selmy riu com ele. Até Eddard Stark deu um sorriso.

Mas os pensamentos mais graves imiscuíam-se sempre. Não

conseguiu deixar de reparar nos dois escudeiros: rapazes bem-

apessoados, louros e bem constituídos. Um tinha a idade de Sansa,

com longos caracóis dourados; o outro teria talvez uns quinze anos,

cabelos cor de areia, um fio de bigode e os olhos verde-esmeralda da

rainha.

- Ah, gostaria de estar lá para ver a cara de Santagar - disse Robert. -

Espero que tenha a esperteza de enviá-los a outra pessoa qualquer.

Deveríamos mantê-los correndo o dia inteiro!

- Aqueles rapazes - Ned lhe perguntou- são Lannister?

Robert anuiu, limpando as lágrimas dos olhos.

- Primos. Filhos do irmão de Lorde Tywin, Um dos mortos. Ou talvez

o vivo, agora que penso nisso. Não me lembro. Minha esposa vem de

uma família muito grande, Ned.

Uma família muito ambiciosa, Ned pensou. Nada tinha contra os

escudeiros, mas perturbava-o ver Robert rodeado por parentes da

rainha, tanto acordado quanto dormindo. O apetite dos Lannister por

cargos e honrarias parecia não conhecer limites,

- Diz-se que Vossa Graça e a rainha trocaram palavras zangadas

ontem à noite. A vontade de rir coalhou no rosto de Robert.

- A mulher tentou me proibir de participar do corpo a corpo. Agora

está amuada no castelo, maldita seja. Sua irmã nunca teria me

envergonhado assim.

- Não chegou a conhecer Lyanna como eu conheci, Robert. Você viu

sua beleza, mas não o ferro que tinha por baixo. Ela lhe teria dito

que não tem nada a fazer no corpo a corpo.

- Também você? - o rei franziu a sobrancelha. - É um homem

amargo, Stark. Tempo demais no norte, todos os fluidos congelaram

dentro de você. Pois bem, os meus continuam a correr - deu uma

batida no peito para prová-lo.

- É o rei - recordou-lhe Ned.

- Sento-me no maldito trono de ferro quando tem de ser. Isto quer

dizer que não tenho os mesmos apetites dos outros homens? Um

pouco de vinho de vez em quando, uma mulher a gemer na cama, a

sensação de ter um cavalo entre as pernas? Pelos sete infernos, Ned,

quero bater em alguém.

Sor Barristan Selmy interveio.

- Vossa Graça - disse não é conveniente que o rei participe do corpo

a corpo. Não seria uma competição justa. Quem se atreveria a atingi-

lo?

Robert pareceu sinceramente surpreso.

- Ora, todos eles, que raio. Se puderem. E o último homem em pé..

- ... será você - concluiu Ned. Compreendera de imediato que Selmy

atingira o ponto certo. Os perigos do corpo a corpo eram apenas um

atrativo para Robert, mas aquilo lhe tocou o orgulho. - Sor Barristan

tem razão. Não há um homem nos Sete Reinos que se atreva a

arriscar desagradá-lo por tê-lo ferido.

O rei pôs-se em pé, de rosto rubro.

- Está me dizendo que aqueles arrogantes covardes vão me deixar

ganhar?

- Com toda certeza - disse Ned, e Sor Barristan Selmy abaixou a

cabeça num acordo silencioso.

Por um momento, Robert ficou tão zangado que não conseguiu falar.

Atravessou a tenda, rodopiou, voltou a atravessá-la, com o rosto

sombrio e irado. Apanhou do chão o peitoral da armadura e o

arremessou a Barristan Selmy numa fúria sem palavras. Selmy

esquivou-se,

- Saia - disse então o rei, friamente. - Saia antes que o mate.

Sor Barristan saiu com rapidez. Ned preparava-se para segui-lo

quando o rei voltou a falar.

- Você não, Ned.

Ned virou-se. Robert recuperou o corno, encheu-o com cerveja, que

tirou de um barril que se encontrava a um canto da tenda, e o

arremessou a Ned.

- Bebe - disse ele em tom brusco.

- Não tenho sede...

- Bebe. É seu rei quem ordena.

Ned virou o corno e bebeu. A cerveja era negra e espessa, tão forte

que fazia arder os olhos. Robert voltou a se sentar.

- Maldito seja, Ned Stark. Você e Jon Arryn, amei a ambos. E que

fizeram de mim? Você é que devia ter sido rei, você ou Jon.

- A mais forte pretensão era sua, Vossa Graça.

- Disse-lhe para beber, não para discutir. Já que me fez rei, podia ao

menos ter a cortesia de me escutar enquanto falo, maldito seja. Olhe

para mim, Ned. Olhe para o que ser rei fez de mim. Deuses, gordo

demais para a minha armadura, como foi que cheguei a isto?

- Robert...

- Beba e fique quieto, o rei está falando. Juro-lhe, nunca me senti tão

vivo como quando estava ganhando este trono, nem tão morto como

agora que o possuo. E Cersei... devo-a a Jon Arryn. Não tinha

nenhum desejo de casar depois de Lyanna me ter sido roubada, mas

Jon disse que o reino precisava de um herdeiro. Cersei Lannister

seria um bom partido, ele me disse, me ligaria a Lorde Tywin para o

caso de Viserys Targaryen tentar recuperar o trono do pai - o rei

balançou a cabeça. - Adorava aquele velho, juro, mas agora penso

que era um idiota maior que o Rapaz Lua. Ah, Cersei é adorável de

se contemplar, de verdade, mas fria... pelo modo como se defende na

cama, diria que tem todo o ouro de Rochedo Casterly entre as

pernas. Dê-me essa cerveja se não for beber - tomou o corno, virou-

o, arrotou e limpou a boca. - Lamento pela sua filha, Ned. De

verdade. Refiro-me ao lobo. Meu filho estava mentindo, sou capaz de

apostar a alma nisso. Meu filho... você ama seus filhos, não é

verdade?

- De todo o coração - Ned respondeu.

- Deixe-me lhe contar um segredo, Ned. Mais de uma vez sonhei em

renunciar à coroa. Embarcar para as Cidades Livres com meu cavalo

e meu martelo, passar o tempo fazendo guerra e entre vadias. Foi

para isso que nasci. O rei mercenário. Como me adorariam os

cantores! Sabe o que me impediu? A ideia de ver Joffrey no trono,

com Cersei atrás dele a segredar-lhe ao ouvido. Meu filho. Como

pude fazer um filho assim, Ned?

- Ele não passa de um rapaz - disse Ned desajeitadamente. Pouco

gostava de Príncipe Joffrey, mas percebia a dor na voz de Robert. -

Esqueceu de como você era bravo na idade dele?

- Não me perturbaria se ele fosse bravo, Ned. Não o conhece tão bem

como eu - suspirou e balançou a cabeça. - Ah, talvez tenha razão. Jon

perdeu a paciência comigo com bastante frequência e, no entanto,

acabei por me tornar um bom rei - Robert olhou para Ned e franziu

a sobrancelha perante seu silêncio. - Agora pode falar e concordar.

- Vossa Graça... - Ned começou cuidadosamente.

Robert deu-lhe uma palmada nas costas.

- Ah, diz que sou melhor rei que Aerys e terminamos o assunto. Você

nunca conseguiu mentir por amor ou por honra, Ned Stark. Ainda

sou novo, e agora que está aqui comigo as coisas serão diferentes.

Tornaremos este reinado num que seja digno de canções, e que os

Lannister vão para os sete infernos. Sinto cheiro de bacon. Quem lhe

parece que será nosso campeão hoje?

Viu o filho de Mace Tyrell? Chamam-lhe o Cavaleiro das Flores, Ora,

aí está um filho que qualquer homem ficaria orgulhoso de reclamar.

No último torneio, fez o Regicida cair sobre sua dourada garupa,

devia ter visto a cara da Cersei. Ri até me doer o peito. Renly diz que

ele tem uma irmã, uma donzela de catorze anos, adorável como uma

madrugada...

Quebraram o jejum com pão escuro, ovos de ganso cozidos, peixe

frito com cebolas e bacon, numa mesa montada junto à margem do

rio. A melancolia do rei dissipou-se com a névoa da manhã e não

demorou muito até Robert se tornar amistoso, recordando uma

manhã no Ninho da Águia, quando eram rapazes, enquanto comia

uma laranja.

- ... tinha dado a Jon um barril de laranjas, lembra-se? Só que tinham

apodrecido, e por isso atirei a minha por cima da mesa e atingi

Dacks bem no nariz. Lembra-se do escudeiro perebento de Redfort?

Atirou-me uma de volta e, antes que Jon pudesse sequer soltar um

peido, havia laranjas voando pelo Salão Grande em todas as direções

- o rei riu tumultuosamente, e até Ned sorriu ao recordar.

Era este o rapaz com quem tinha crescido, pensou; era este o Robert

Baratheon que conhecera e amara. Se conseguisse provar que os

Lannister estavam por trás do ataque a Bran, provar que tinham

assassinado Jon Arryn, este homem escutaria. Então Cersei cairia, e

com ela o Regicida, e se Lorde Tywin se atrevesse a sublevar o Oeste,

Robert o esmagaria tal como esmagara Rhaegar Targaryen no

Tridente. Via isso com toda clareza.

Há muito tempo que Eddard Stark não comia tão bem, e depois seus

sorrisos chegaram com maior facilidade e frequência, até a hora de

retomar o torneio, Ned acompanhou o rei até o terreno das justas.

Prometera assistir com Sansa aos confrontos finais; Septã Mordane

sentia-se doente, e a filha estava determinada a não perder o fim das

justas. Ao acompanhar Robert ao seu lugar, notou que Cersei

Lannister decidira não comparecer; o lugar ao lado do rei estava

vago. Isto também deu a Ned motivos de esperança.

Abriu caminho até onde a filha estava sentada e a encontrou no

momento em que as trombetas soavam para a primeira justa do dia.

Sansa estava tão absorta que quase pareceu não notar sua chegada.

Sandor Clegane foi o primeiro cavaleiro a aparecer. Trazia um manto

verde-oliva sobre a armadura de um cinza-fuliginoso. O manto e o

elmo em forma de cabeça de cão eram as suas únicas concessões à

ornamentação.

- Cem dragões de ouro pelo Regicida - Mindinho anunciou

sonoramente quando Jaime Lannister entrou na arena, montando um

elegante cavalo de batalha baio puro-sangue, que trazia uma

cobertura de cota de malha dourada, e Jaime cintilava da cabeça aos

pés. Até a lança tinha sido feita com a madeira dourada das Ilhas do

Verão.

- Está apostado - gritou de volta Lorde Renly. - Cão de Caça traz

hoje um ar faminto.

- Mesmo os cães famintos sabem que não é boa ideia morder a mão

que os alimenta - Mindinho gritou secamente.

Sandor Clegane fez cair o visor com um clac audível e tomou

posição. Sor Jaime atirou um beijo a uma mulher qualquer que

estava entre os plebeus, abaixou com cuidado o visor e encaminhou-

se para a ponta da arena. Os dois homens abaixaram as lanças.

Nada seria melhor para Ned Stark do que ver ambos perder, mas

Sansa observava de olhos úmidos e ansiosa. A galeria erguida à

pressa estremeceu quando os cavalos romperam a galope. Cão de

Caça inclinou-se para a frente enquanto avançava, com a lança firme

como uma rocha, mas Jaime mudou habilmente de posição no

instante anterior ao impacto. A ponta da lança de Clegane foi

inofensivamente atirada contra o escudo dourado com o desenho do

leão, enquanto a do Regicida atingia o adversário em cheio. A

madeira estilhaçou-se e Cão de Caça cambaleou, lutando para se

manter sentado. Sansa prendeu a respiração, Uma rude aclamação

ergueu-se entre os plebeus.

- Estou aqui pensando em que poderei gastar seu dinheiro - gritou

Mindinho a Lorde Renly.

Cão de Caça conseguiu manter-se sobre a sela. Fez seu cavalo dar

meia-volta com dureza e regressou à arena para a segunda passagem.

Jaime Lannister atirou ao chão a lança quebrada e apanhou uma

nova, brincando com o escudeiro. Cão de Caça esporeou o cavalo

para um galope duro. Lannister avançou para enfrentá-lo. Desta vez,

quando Jaime Lannister mudou de posição, Sandor Clegane mudou

com ele. Ambas as lanças explodiram, e quando os estilhaços assenta-

ram, um baio puro-sangue sem cavaleiro trotava para longe em

busca de grama, enquanto Sor Jaime Lannister rolava na terra,

dourado e amassado.

Sansa disse:

- Eu sabia que Cão de Caça ia ganhar.

Mindinho a ouviu.

- Se sabe quem vai ganhar o segundo encontro, fale agora, antes que

Lorde Renly me depene — ele gritou para ela. Ned sorriu.

- É uma pena que o Duende não esteja aqui conosco - disse Lorde

Renly. - Teria ganhado o dobro.

Jaime Lannister estava de novo em pé, mas seu ornamentado elmo de

leão tinha sido torcido e amassado na queda, e agora não conseguia

tirá-lo. A plebe gritava e apontava, os senhores e as senhoras

tentavam abafar o riso, sem conseguir, e, sobre toda aquela algazarra,

Ned ouvia o Rei Robert às gargalhadas, mais alto que todos os

demais. Por fim, tiveram de levar o Leão de Lannister a um ferreiro,

cego e aos tropeções.

Por essa altura, Sor Gregor Clegane já estava em posição no topo da

arena. Era enorme, o maior homem que Eddard Stark já vira, Robert

Baratheon e os irmãos eram todos homens grandes, tal como Cão de

Caça, e em Winterfell havia um ajudante de cavalariça simplório

chamado Hodor que era maior que todos eles, mas o cavaleiro a

quem chamavam Montanha Que Cavalga teria olhado de cima para

Hodor. Devia ter por volta de dois metros e trinta, com ombros

maciços e braços tão grossos como troncos de pequenas árvores. Seu

cavalo de batalha parecia um pônei entre suas pernas cobertas de

armadura, e a lança que trazia parecia tão pequena como um cabo

de vassoura.

Ao contrário do irmão, Sor Gregor não vivia na corte. Era um

homem solitário que raramente saía de suas terras, exceto para

travar guerras e participar de torneios. Estivera com Lorde Tywin

quando Porto Real caíra, era então um cavaleiro recém-armado de

dezessete anos, mas já notável pelo tamanho e pela sua implacável

ferocidade, Havia quem dissesse que fora Gregor quem atirara a

cabeça do príncipe criança Árgon Targaryen contra uma parede e

quem murmurasse que depois disso violara a mãe, a princesa Elia, de

Dorne, antes de lhe cravar a espada. Não se diziam essas coisas ao

alcance dos ouvidos de Gregor.

Ned Stark não se lembrava de alguma vez ter falado com o homem,

embora Gregor o tivesse acompanhado durante a rebelião de Balon

Greyjoy, um cavaleiro no meio de milhares. Observou-o inquieto. Não

era seu costume dar grande atenção a mexericos, mas as coisas que

se diziam de Sor Gregor eram mais que sinistras. Preparava-se para

casar pela terceira vez, e ouviam-se sombrios sussurros sobre as

mortes das duas primeiras esposas. Dizia-se que sua fortaleza era um

lugar sombrio onde criados desapareciam para nunca mais serem

vistos, e até os cães tinham medo de entrar no salão. E tinha havido

uma irmã que morrera jovem em estranhas circunstâncias, e o fogo

que desfigurara o irmão, e o acidente de caça que matara o pai.

Gregor herdara a fortaleza, o ouro e as propriedades da família. O

irmão mais novo, Sandor, partira no mesmo dia para servir os

Lannister como cavaleiro juramentado, e dizia-se que nunca mais re-

gressara, nem mesmo para visita.

Quando o Cavaleiro das Flores fez sua entrada, um murmúrio

percorreu a multidão, e Ned ouviu o sussurro fervente de Sansa:

- Ah, ele é tão lindo.

Sor Loras Tyrell era esbelto como um junco, vestido numa fabulosa

armadura de prata polida até cegar, gravada com uma filigrana de

sinuosas trepadeiras negras e minúsculos miosótis azuis. A plebe

percebeu, no mesmo instante que Ned, que o azul das flores

provinha de safiras; um suspiro escapou de um milhar de gargantas.

Dos ombros do rapaz pendia o manto pesado. Era tecido de miosótis,

miosótis verdadeiros, centenas de flores frescas entrelaçadas numa

pesada capa de lã.

Seu corcel era tão esguio como o cavaleiro, uma bela égua cinzenta,

feita para a velocidade. O enorme garanhão de Sor Gregor relinchou

ao captar seu cheiro. O rapaz de Jardim de Cima fez qualquer coisa

com as pernas e o cavalo curveteou de lado, ágil como um dançarino.

Sansa agarrou o braço de Ned.

- Pai, não deixe que Sor Gregor lhe faça mal - ela pediu. Ned viu que

ela trazia a rosa que Sor Loras lhe dera no dia anterior. Jory também

lhe contara aquilo.

- Aquelas são lanças de torneio - disse à filha. - São feitas para que

se estilhacem com o impacto, para que ninguém se fira - mas

lembrou-se do rapaz morto na carroça, com seu manto de

crescentes, e as palavras arranharam-lhe a garganta.

Sor Gregor estava com problemas em controlar o cavalo. O garanhão

berrava e batia com as patas no chão, abanando a cabeça. A

Montanha espetou-lhe ferozmente os calcanhares envolvidos em

armadura. O cavalo empinou-se e quase o derrubou.

O Cavaleiro das Flores saudou o rei, dirigiu-se à extremidade mais

distante da arena e abaixou a lança, pronto. Sor Gregor trouxe seu

animal até a linha, lutando com as rédeas. E de súbito começou. O

garanhão da Montanha rompeu num galope duro, atirando-se

furiosamente à frente, ao passo que o passo da égua era suave como

o deslizar da seda. Sor Gregor pôs o escudo em posição e equilibrou

a lança com dificuldade, enquanto continuava a lutar para manter a

fogosa montaria numa linha reta e, de repente, Loras Tyrell estava

sobre ele, colocando a ponta da lança precisamente lá, e num piscar

de olho a Montanha estava caindo. Era tão imenso que levou o cavalo

consigo, num emaranhado de aço e carne.

Ned ouviu aplausos, aclamações, assobios, suspiros chocados,

murmúrios excitados, e sobretudo as ásperas e roufenhas gargalhadas

de Cão de Caça. O Cavaleiro das Flores puxou as rédeas no fim da

arena. Sua lança nem sequer estava partida. As safiras cintilaram ao

sol quando ergueu o visor, sorrindo. Os plebeus pareciam ter

enlouquecido por ele.

No meio do campo, Sor Gregor Clegane desembaraçou-se e pôs-se de

pé, fervendo de raiva. Arrancou o elmo e esmagou-o contra o chão.

Tinha o rosto escuro de fúria, e os cabelos caíam-lhe nos olhos.

- Minha espada - gritou para o escudeiro, e o rapaz correu para ele.

Nessa altura o garanhão já estava em pé também.

Gregor Clegane matou o cavalo com um único golpe, de tamanha

violência que quase decepou o pescoço do animal. As aclamações

transformaram-se em guinchos num piscar de olhos.

O garanhão caiu de joelhos, berrando enquanto morria. Mas então

Gregor já atravessava a arena a passos largos, dirigindo-se para Sor

Loras Tyrell, de espada ensanguentada em punho.

- Pare-o! - gritou Ned, mas suas palavras perderam-se no burburinho.

Todos estavam também gritando, e Sansa chorava.

Tudo aconteceu num ápice, O Cavaleiro das Flores gritava pela

espada no momento em que Sor Gregor empurrou para o lado seu

escudeiro e tentou agarrar as rédeas do cavalo. A égua cheirou

sangue e empinou-se. Loras Tyrell mal se manteve montado. Sor

Gregor brandiu a espada, um violento golpe a duas mãos que atingiu

o rapaz no peito e o derrubou da sela. O corcel fugiu em pânico,

enquanto Sor Loras jazia atordoado no chão. Mas, quando Gregor

ergueu a espada para o golpe fatal, uma voz áspera advertiu: "Deixe-

o em paz", e uma mão revestida de aço atirou-o para longe do rapaz.

A Montanha rodopiou numa fúria sem palavras, brandindo a espada

num arco mortífero com toda sua maciça força posta no golpe, mas

Cão de Caça aparou o golpe e contra-atacou, e durante aquilo que

pareceu uma eternidade, os dois irmãos trocaram golpes, enquanto

um entontecido Loras Tyrell era ajudado a pôr-se em segurança. Três

vezes Ned viu Sor Gregor lançar violentos golpes no elmo da cabeça

de Cão, mas nem uma vez Sandor deu uma estocada à cara

desprotegida do irmão,

Foi a voz do rei que pôs fim àquilo... a voz do rei e vinte espadas. Jon

Arryn dissera-lhes que um comandante precisa de uma boa voz de

batalha, e Robert provara no Tridente que era verdade. Era esta a

voz que usava agora.

- PAREM COM ESTA LOUCURA - trovejou - EM NOME DO SEU

REI!

Cão de Caça caiu sobre um joelho. O golpe de Sor Gregor cortou o

ar, e por fim caiu em si. Deixou cair a espada, olhou intensamente

para Robert, cercado pela sua Guarda Real e uma dúzia de outros

cavaleiros e guardas. Sem uma palavra, virou-se e afastou-se em

passo rápido, abrindo caminho junto a Barristan Selmy com um

encontrão.

- Deixe-o ir - disse Robert, e nesse mesmo momento tudo terminou.

- O campeão agora é Cão de Caça? - Sansa perguntou a Ned.

- Não - ele respondeu. - Haverá uma justa final, entre Cão de Caça e

o Cavaleiro das Flores. Mas Sansa afinal tinha razão. Alguns

momentos mais tarde, Sor Loras Tyrell regressou ao

campo num simples gibão de linho e disse a Sandor Clegane:

- Devo-lhe a vida. O dia é seu, sor.

- Não sou sor nenhum - respondeu Cão de Caça, mas aceitou a

vitória e a bolsa de campeão e, talvez pela primeira vez na vida, a

adoração dos plebeus. Aclamaram-no quando abandonou a arena

para se dirigir ao seu pavilhão.

Enquanto Ned caminhava com Sansa para o campo de tiro ao alvo,

Mindinho, Lorde Renly e alguns dos outros juntaram-se a eles,

- Tyrell tinha de saber que a égua estava no cio - Mindinho dizia. -

Juro que o rapaz planejou tudo. Gregor sempre preferiu enormes

garanhões de mau temperamento, com mais vigor que bom-senso - a

idéia parecia diverti-lo.

Mas não divertia Sor Barristan Selmy.

- Pouca honra existe em truques - o velho disse rigidamente.

- Pouca honra e vinte mil peças de ouro - Lorde Renly sorriu.

Naquela tarde, um rapaz chamado Anguy, um plebeu, não anunciado,

proveniente da Marca de Dorne, venceu a competição de tiro ao alvo,

suplantando Sor Balon Swann e Jalabhar Xho a cem passos, depois de

todos os outros arqueiros terem sido eliminados a distâncias mais

curtas.

Ned mandou que Alyn o procurasse e lhe oferecesse um lugar na

guarda da Mão, mas o rapaz estava inebriado de vinho, vitória e

riquezas com que nem sonhara, e recusou.

O corpo a corpo durou três horas. Participaram quase quarenta

homens, cavaleiros livres, pequenos cavaleiros e novos escudeiros em

busca de uma reputação. Lutaram com armas embotadas num caos

de lama e sangue, em pequenos grupos que lutavam juntos e depois

se viravam uns contra os outros à medida que as alianças se

formavam e eram quebradas, até que apenas um homem ficou de pé.

O vencedor foi o sacerdote vermelho, Thoros de Mys, um louco que

raspava a cabeça e lutava com uma espada em chamas. Já antes tinha

vencido lutas corpo a corpo; a espada em fogo assustava as

montarias dos outros cavaleiros, mas nada assustava Thoros. O

balanço final foi de três membros partidos, uma clavícula estilhaçada,

uma dúzia de dedos esmagados, dois cavalos que tiveram de ser

abatidos e mais cortes, entorses e hematomas do que alguém se

preocupou em contar. Ned ficou imensamente feliz por Robert não

ter participado.

Naquela noite, no festim, Eddard Stark sentia-se mais esperançoso do

que se sentira havia muito tempo, Robert estava de ótimo humor,

não se viam Lannister em lado nenhum, e até as filhas estavam se

portando bem. Jory trouxera Arya para se juntar a eles e Sansa

dirigiu-se à irmã de maneira agradável.

- O torneio foi magnífico - suspirou. - Devia ter vindo. Como foi seu

treinamento?

- Estou toda dolorida - relatou Arya em tom feliz, exibindo,

orgulhosa, um enorme hematoma púrpura que tinha na perna.

- Deve ser uma principiante horrível - disse Sansa, com ar de dúvida.

Mais tarde, enquanto Sansa ouvia uma trupe de cantores interpretar

a complexa série de baladas interligadas chamada "Dança dos

Dragões", Ned inspecionou o hematoma da filha.

- Espero que Forel não esteja sendo muito duro com você.

Arya equilibrou-se numa perna. Nos últimos tempos, estava ficando

muito melhor naquilo.

- Syrio diz que cada ferida é uma lição, e cada lição nos torna

melhores.

Ned franziu a sobrancelha. Aquele Syrio Forel tinha chegado com

uma reputação excelente, e seu brilhante estilo bravosiano adequava-

se bem à lâmina esguia de Arya, mas, mesmo assim.. Alguns dias

antes, ela andara vagueando com uma tira de seda negra atada sobre

os olhos. Arya dissera-lhe que Syrio a estava ensinando a ver com os

ouvidos, o nariz e a pele. Antes disso, tinha--a posto para fazer

piruetas e saltos mortais.

- Arya, tem certeza de que quer persistir nisto?

Ela confirmou com a cabeça.

- Amanhã vamos apanhar gatos.

- Gatos - Ned suspirou. - Talvez tenha sido um erro contratar esse

bravosi. Se quiser, pedirei a Jory para substituí-lo nas suas aulas. Ou

posso ter uma discreta conversa com Sor Barristan Selmy. Quando

jovem, foi o melhor espadachim dos Sete Reinos.

- Não quero ninguém - disse Arya. - Quero Syrio.

Ned passou os dedos pelos cabelos. Qualquer mestre de armas

decente podia ensinar a Arya os rudimentos sobre estocadas e

paradas sem este disparate de vendas, rodas e saltos de um pé só,

mas conhecia suficientemente bem a filha mais nova para saber que

não havia discussão com aquela obstinada projeção de queixo.

- Como quiser - ele respondeu, Certamente iria se cansar daquilo em

breve. - Tente ter cuidado.

- Terei - ela prometeu solenemente enquanto saltava do pé direito

para o esquerdo num movimento fluido.

Muito mais tarde, depois de atravessar a cidade com as filhas e

colocá-las em segurança na cama, Sansa com seus sonhos e Arya com

seus hematomas, Ned subiu até os próprios aposentos, no topo da

Torre da Mão. O dia estivera quente, e o quarto fechado estava

abafado. Ned dirigiu-se a janela e abriu as pesadas venezianas a fim

de deixar entrar o ar fresco da noite. Do outro lado do Pátio Grande

reparou no tremeluzente brilho da luz de velas nas janelas de

Mindinho. Já passava bastante da meia-noite. Junto ao rio, as festas

estavam apenas começando a murchar e morrer.

Pegou o punhal e o estudou. A arma de Mindinho, que Tyrion

Lannister ganhara dele numa aposta de torneio, enviada para matar

Bran em seu sono. Por quê? Por que queria o anão ver Bran morto?

Por que alguém ia querer ver Bran morto?

O punhal, a queda de Bran, tudo aquilo estava de algum modo ligado

ao assassinato de Jon Arryn, podia senti-lo nas entranhas, mas a

verdade sobre a morte de Jon permanecia para ele tão envolta em

brumas como quando começara a investigar. Lorde Stannis não

voltara a Porto Real para o torneio. Lysa Arryn mantinha-se em

silêncio, por trás das muralhas do Ninho da Águia. O escudeiro

estava morto e Jory continuava a investigar os prostíbulos. Que tinha

ele além do bastardo de Robert?

Que o carrancudo aprendiz do armeiro era filho do rei Ned não

tinha dúvida. Os traços dos Baratheon estavam estampados em seu

rosto, no queixo, nos olhos, nos cabelos negros. Renly era novo

demais para ser pai de um rapaz daquela idade. Stannis, demasiado

frio e orgulhoso na sua honra. Gendry tinha de ser de Robert.

Mas, ao saber tudo isso, o que aprendera? O rei tinha outros filhos

ilegítimos espalhados pelos Sete Reinos. Tinha reconhecido

abertamente um de seus bastardos, um rapaz da idade de Bran, cuja

mãe era bem-nascida. O rapaz estava sendo criado pelo castelão de

Lorde Renly em Ponta Tempestade.

Ned também recordava a primeira criança gerada por Robert, uma

filha nascida no Vale quando ainda era pouco mais que um rapaz.

Uma doce garotinha; o jovem senhor de Ponta Tempestade a amara

perdidamente. Costumava fazer visitas diárias para brincar com o

bebê, muito depois de ter perdido interesse pela mãe. Era frequente

arrastar Ned para lhe fazer companhia, independente de sua vontade.

Compreendeu de súbito que a menina devia ter agora dezessete ou

dezoito anos; mais velha que Robert era quando nascera. Estranho

pensamento.

Cersei podia não estar contente com as escapadelas do senhor seu

esposo, mas no fim das contas pouco importava se o rei tinha um

bastardo ou uma centena. A lei e o costume poucos direitos davam

aos filhos ilegítimos. Gendry, a moça no Vale, o rapaz em Ponta

Tempestade, nenhum deles podia ameaçar os filhos legítimos de

Robert...

Suas reflexões foram interrompidas por um suave toque na porta.

- Um homem para vê-lo, senhor - chamou Harwin. - Não quer dizer

o nome.

- Mande-o entrar - Ned respondeu, curioso.

O visitante era um homem corpulento com botas molhadas e

completamente enlameadas, um pesado manto marrom da ráfia mais

grosseira, as feições escondidas por um capuz, as mãos enfiadas em

volumosas mangas.

- Quem é você? - Ned perguntou.

- Um amigo - disse o homem encapuzado numa estranha voz. -

Temos de conversar a sós, Lorde Stark.

A curiosidade era mais forte que a cautela.

- Harwin, deixe-nos - ordenou. Só depois de estarem a sós, por trás

das portas fechadas, é que o visitante puxou o capuz para trás.

- Lorde Varys? - Ned exclamou, estupefato.

- Lorde Stark - disse Varys polidamente enquanto se sentava. - Posso

lhe pedir uma bebida? Ned encheu duas taças de vinho do verão e

entregou uma delas a Varys.

- Poderia ter passado por você que nunca o reconheceria - ele disse,

incrédulo. Nunca vira o eunuco vestido de outra coisa que não fosse

seda, veludo e os mais ricos damascos; e este homem cheirava a suor,

não a lilases.

- Era esta a minha maior esperança - Varys respondeu. - Não seria

bom se certas pessoas soubessem que conversamos em particular. A

rainha o vigia de perto. Este vinho é de primeira escolha. Obrigado.

- Como passou pelos meus guardas? - Ned perguntou. Porther e

Cayn tinham sido colocados fora da torre, e Alyn, nas escadas.

- A Fortaleza Vermelha tem caminhos que só são conhecidos por

fantasmas e aranhas - Varys sorriu como quem pede perdão. - Não

lhe tomarei muito tempo, senhor. Há coisas que precisa saber. E a

Mão do Rei, e o rei é um tolo - a voz do eunuco tinha perdido o

timbre rico; agora era fina e aguçada como um chicote. - É seu

amigo, eu sei, mas apesar disso, um tolo... e está perdido, a menos

que o salve. Hoje foi por pouco. Alimentavam a esperança de matá-lo

durante a luta corpo a corpo.

Por um momento Ned ficou sem fala, de tão chocado.

- Quem?

Varys bebericou o vinho.

- Se realmente preciso lhe dizer isso, então é um tolo ainda maior

que Robert, e eu estou do lado errado.

- Os Lannister - Ned falou. - A rainha. . não, não acredito nisso, nem

mesmo de Cersei. Ela lhe pediu para não lutar!

- Ela o proibiu de lutar, na presença do irmão, dos cavaleiros e de

metade da corte. Diga-me francamente: conhece alguma maneira

mais segura de forçar o Rei Robert a participar do corpo a corpo? É

o que lhe pergunto.

Ned tinha uma sensação doentia nas entranhas. O eunuco descobrira

uma verdade; dizer a Robert Baratheon que não conseguia, não devia

ou não podia fazer uma coisa era o mesmo que lhe ordenar que

fizesse.

- Mesmo que ele tivesse lutado, quem se atreveria a atingir o rei?

Varys encolheu os ombros.

- Havia quarenta participantes no corpo a corpo. Os Lannister têm

muitos amigos. No meio de todo aquele caos, com cavalos a

relinchar, ossos a se partirem e Thoros de Myr a brandir aquela sua

absurda espada flamejante, quem poderia falar em assassinato se

algum golpe casual caísse sobre Sua Graça? - o eunuco dirigiu-se ao

jarro e voltou a encher a taça. - Depois de a coisa feita, o assassino

estaria fora de si de desgosto. Quase consigo ouvi-lo chorar. Tão

triste. Mas não haveria dúvida de que a amável e compassiva viúva se

apiedaria, poria o pobre infeliz em pé e o abençoaria com um gentil

beijo de perdão. O bom Rei Joffrey não teria escolha que não fosse

perdoá-lo - Varys passou a mão no rosto. - Ou talvez Cersei deixasse

Sor Ilyn cortar-lhe a cabeça, haveria assim menos riscos para os

Lannister, embora fosse uma surpresa bem desagradável para seu

pequeno amigo.

Ned sentiu sua ira aumentar.

- Conhecia esta conjura e, no entanto, não fez nada.

- Eu governo murmuradores, não guerreiros.

- Podia ter vindo falar comigo mais cedo.

- Ah, sim, confesso. E o senhor teria ido correndo falar com o rei,

não é verdade? E quando Robert ouvisse dizer que estava em perigo,

o que teria feito? Gostaria de saber.

Ned pensou naquilo.

- Teria mandado todos para os sete infernos e lutado de qualquer

maneira, para mostrar que não os temia.

Varys abriu as mãos.

- Vou fazer outra confissão, Lorde Eddard. Tinha curiosidade em ver

o que o senhor faria. Por que não veio falar comigo?, me perguntou,

e devo responder: Ora, porque não confiava no senhor.

- Não confiava em mim? - Ned estava francamente estupefato.

- A Fortaleza Vermelha abriga dois tipos de pessoas, Lorde Eddard -

Varys continuou. - Aqueles que são leais ao reino e os que são leais

apenas a si mesmos. Até hoje de manhã não sabia dizer a que grupo

o senhor pertencia. . e portanto esperei para ver... e agora sei com

toda certeza - fez um rechonchudo sorrisinho apertado e, por um

momento, seu rosto privado e sua máscara pública foram iguais. -

Começo a compreender por que a rainha o teme tanto. Ah, sim,

como começo.

- Quem ela deve temer é você - disse Ned.

- Não. Eu sou aquilo que sou. O rei utiliza-me, mas isso o

envergonha. Nosso Robert é guerreiro muito poderoso, e um homem

tão viril pouca amizade sente por denunciantes, espiões e eunucos.

Se chegar o dia em que Cersei sussurre "Mate aquele homem", Ilyn

Payne me cortará a cabeça num piscar de olhos. E quem faria então

luto pelo pobre Varys? Seja no Norte, seja no Sul, não se cantam

canções sobre aranhas - estendeu uma mão suave e tocou em Ned. -

Mas o senhor, Lorde Stark... penso... não, sei... ele não o mataria, nem

mesmo pela sua rainha, e pode residir aí a nossa salvação.

Aquilo tudo era demais. Por um momento, Eddard Stark nada mais

desejou que voltar a Winterfell, à simplicidade limpa do Norte, onde

os inimigos eram o inverno e os selvagens do lado de lá da Muralha.

- Certamente que Robert tem outros amigos leais - protestou. - Os

irmãos, a...

- ... mulher? - terminou Varys, com um sorriso cortante. - Os irmãos

odeiam os Lannister, é certo, mas odiar a rainha e amar o rei não são

bem a mesma coisa, não é? Sor Barristan ama a sua honra, o Grande

Meistre Pycelle ama o seu cargo, e Mindinho ama Mindinho.

- A Guarda Real..

- Um escudo de papel - disse o eunuco. - Procure não parecer tão

chocado, Lorde Stark. O próprio Jaime Lannister é um Irmão

Juramentado das Espadas Brancas, e todos sabemos o que os votos

dele valem. Os dias em que homens como Ryam Redwyne e Príncipe

Aemon, o Cavaleiro do Dragão, usavam o manto branco estão

perdidos na poeira e nas canções. Daqueles sete, só Sor Barristan

Selmy é feito do aço verdadeiro, e Selmy é velho. Sor Borós e Sor

Meryn são criaturas da rainha até os ossos, e tenho profundas

suspeitas sobre os outros. Não, senhor, quando as espadas forem

desembainhadas a sério, será o único amigo verdadeiro que Robert

Baratheon terá.

- Roberí tem de ser informado - disse Ned. - Se o que diz for

verdade, e ainda que apenas parte do que diz for verdade, então o

próprio rei terá de ouvir.

- E que provas lhe apresentaremos? As minhas palavras contra as

deles? Os meus passarinhos contra a rainha e o Regicida, contra os

irmãos e o conselho do rei, contra os Guardiães do Leste e do Oeste,

contra todo o poderio de Rochedo Casterly? Rogo-lhe, mande buscar

diretamente Sor Ilyn, pois nos poupará tempo. Sei onde termina essa

estrada.

- Mas se o que diz for verdade, eles se limitarão a esperar seu tempo

e farão outra tentativa.

- Certamente farão - Varys confirmou. - E temo que o façam mais

cedo que tarde. O senhor os está deixando muito ansiosos, Lorde

Eddard. Mas meus passarinhos estarão à escuta, e em conjunto, o

senhor e eu, talvez sejamos capazes de nos adiantarmos a eles - pôs-

se em pé e puxou o capuz até voltar a esconder o rosto. - Agradeço-

lhe o vinho. Voltaremos a conversar. Quando voltar a me ver no

conselho, assegure-se de me tratar com o desprezo habitual. Não

deverá achar difícil.

O eunuco já se encontrava junto à porta quando Ned o chamou:

- Varys — o homem encapuzado virou-se. - Como morreu Jon

Arryn?

- Perguntava a mim próprio quando chegaria a esse ponto.

- Diga-me.

- Chamam-lhe lágrimas de Lys, Coisa rara e dispendiosa, límpida e

doce como a água, e não deixa rastro algum. Supliquei a Lorde Arryn

que usasse um provador, foi nesta mesma sala que lhe supliquei, mas

ele não queria ouvir falar do assunto. Só alguém que fosse menos

que um homem podia sequer pensar em tal coisa, ele me disse.

Ned tinha de saber o resto.

- Quem lhe deu o veneno?

- Algum amigo querido, sem dúvida, alguém que partilhasse com

frequência comida e bebida com ele. Ah, mas qual? Havia muitos

assim. Lorde Arryn era um homem bondoso e confiante -o eunuco

suspirou. - Mas havia um rapaz. Tudo o que era devia a Jon Arryn,

mas quando a viúva fugiu para o Ninho da Águia com os seus, ficou

em Porto Real e prosperou. Alegra-me sempre o coração ver os

jovens subir neste mundo - o chicote estava de novo em sua voz;

cada palavra era uma chicotada. - Deve ter feito uma figura galante

no torneio, em sua brilhante armadura nova, com aqueles crescentes

no manto, Uma pena que tenha morrido tão intempestivamente,

antes que o senhor tivesse possibilidade de falar com ele...

Ned sentiu-se quase como se ele próprio tivesse sido envenenado.

- O escudeiro - ele exclamou. - Sor Hugh - rodas dentro de rodas

dentro de rodas. A cabeça de Ned latejava. - Por quê? Por quê agora?

Jon Arryn foi Mão durante catorze anos. Que andava fazendo ele

para que tivessem de matá-lo?

- Andava fazendo perguntas - respondeu Varys, esgueirando-se porta

afora.


Tyrion


Em pé, no frio de antes da alvorada, observando Chiggen, que

matava seu cavalo, Tyrion Lannister tomou nota de mais uma dívida

para os Stark. Viu-se um vapor subir de dentro da carcaça quando o

mercenário acocorado abriu a barriga com sua faca de esfolar. Movia

as mãos com habilidade, sem desperdiçar um único golpe; o trabalho

tinha de ser feito rapidamente, antes que o fedor do sangue

trouxesse gatos-das-sombras das colinas.

- Nenhum de nós passará fome esta noite - disse Bronn. Ele próprio

era quase uma sombra; magro e duro como um osso, com olhos

negros, cabelos negros e barba por fazer.

- Alguns de nós talvez passem - disse-lhe Tyrion. - Não me agrada

comer cavalo. Especialmente o meu cavalo.

- Carne é carne - disse Bronn, encolhendo os ombros. - Os dothrakis

gostam mais de cavalo que de vaca ou porco.

- Toma-me por um dothraki? - perguntou Tyrion em tom irritado.

Os dothrakis comiam cavalo, era verdade; também deixavam crianças

deformadas para os cães selvagens que corriam atrás dos seus

khalasares. Pouco apreço sentia pelos costumes dothrakis.

Chiggen cortou uma fina fatia de carne sangrenta da carcaça e

ergueu-a para inspeção.

- Quer provar, anão?

- Meu irmão Jaime me deu essa égua pelo vigésimo terceiro dia do

meu nome - Tyrion respondeu numa voz despida de emoção.

- Então, agradeça-lhe em nosso nome. Se voltar a vê-lo - Chiggen deu

um sorriso, mostrando dentes amarelos, e engoliu a carne crua em

duas dentadas, - Tem sabor de égua de boa criação.

- É melhor fritá-la com cebolas - interveio Bronn.

Sem uma palavra, Tyrion afastou-se coxeando. O frio instalara-se

profundamente em seus ossos, e tinha as pernas tão doídas que

quase não conseguia andar. Talvez a égua morta fosse quem tinha

mais sorte. Ele tinha perante si mais horas a cavalo, seguidas por um

pouco de comida e um curto sono frio sobre solo duro, e depois

outra noite igual, e outra, e outra, e só os deuses sabiam quando

aquilo terminaria.

- Maldita seja - resmungou enquanto lutava para avançar pela

estrada a fim de se juntar aos seus captores, remoendo recordações -,

maldita seja ela e todos os Stark.

A memória ainda lhe era amarga. Num momento encomendava o

jantar, e um piscar de olhos mais tarde defrontava uma sala cheia de

homens armados, com Jyck levando a mão à espada e a estalajadeira

gorda guinchando:

- Espadas, não, aqui, não, por favor, senhores.

Tyrion torcera o braço de Jyck, apressado, antes que o outro fizesse

com que fossem ambos transformados em carne picada.

- Onde estão as suas maneiras, Jyck? Nossa boa anfitriã disse que

espadas, não. Faça o que ela pede - forçara um sorriso que devia ter

parecido tão nauseado como o sentia. - Está cometendo um triste

erro, Senhora Stark. Não desempenhei nenhum papel em nenhum

ataque ao seu filho. Pela minha honra...

- Honra Lannister - foi tudo o que ela disse. Ergueu as mãos para

que toda a sala as visse. - Seu punhal deixou estas cicatrizes. A

lâmina que ele enviou para abrir a garganta do meu filho.

Tyrion sentira a fúria em volta de si, espessa e fumacenta, alimentada

pelos profundos golpes nas mãos da mulher Stark. "Matem-no",

sibilara do fundo da sala uma desmazelada bêbada qualquer, e outras

vozes começaram a repetir a palavra mais depressa que ele julgaria

possível. Todos eles estranhos, amigáveis até um momento antes, e

agora gritavam pelo seu sangue como cães de caça perseguindo uma

presa.

Tyrion falara em voz alta, tentando mantê-la firme.

- Se a Senhora Stark acredita que tenho de responder por algum

crime, então a acompanharei e responderei por ele.

Era a única atitude possível. Tentar sair daquilo na base da espada

era um convite seguro para uma sepultura antecipada. Uma boa

dúzia de espadas tinha respondido ao apelo da Stark por ajuda: os

homens de Harrenhal, os três Bracken, um par de fétidos

mercenários que pareciam poder matá-lo com a mesma facilidade

com que cuspiriam no chão, e alguns estúpidos camponeses que sem

dúvida não tinham a mínima ideia do que estavam fazendo. Contra

aquilo, que tinha Tyrion? Um punhal no cinto e dois homens. Jyck

brandia uma espada suficientemente bem, mas Morrec pouco

contava, era em parte cavalariço, em parte cozinheiro, em parte

criado de quarto e em nenhuma parte soldado. Quanto a Yoren,

fossem quais fossem seus sentimentos, os irmãos negros tinham

jurado não participar nas querelas do reino. Yoren nada faria.

E, de fato, o irmão negro afastara-se em silêncio quando o idoso

cavaleiro ao lado de Catelyn Stark dissera:

- Tornem-lhes as armas - e o mercenário Bronn avançara para

arrancar a espada dos dedos de Jyck e aliviar todos dos seus punhais.

- Muito bem - dissera o velho, enquanto a tensão na sala comum

refluía de modo palpável -, excelente. - Tyrion reconhecera então

aquela voz rude; o mestre de armas de Winterfell, de barbas

raspadas.

Gotas de saliva tingidas de escarlate voaram da boca da estalajadeira

gorda quando ela suplicou a Catelyn Stark:

- Não o mate aqui!

- Não o mate em lugar algum - exortara Tyrion.

- Leve-o para qualquer outro lugar, sangue aqui, não, senhora, não

quero confusões de fidalgos aqui.

- Vamos levá-lo de volta a Winterfell - Cat dissera, e Tyrion pensou:

Bem, talvez.. Àquela altura, já tivera um momento para passar os

olhos pela sala e obter uma ideia melhor da situação. E não tinha

ficado totalmente descontente com o que vira. Ah, a Stark tinha sido

inteligente, sem sombra de dúvida. Forçá-los a fazer uma afirmação

pública dos votos jurados ao pai pelos senhores que serviam e então

lhes pedir socorro e, sendo ela uma mulher, sim, essa parte era um

docinho. Mas o sucesso não tinha sido tão completo como poderia

desejar. Havia perto de cinquenta homens na sala comum, segundo

sua contagem aproximada. O apelo de Catelyn Stark tinha reunido

uma simples dúzia; os outros pareciam confusos, ou assustados, ou

carrancudos. Só dois dos Frey tinham se agitado, notara Tyrion, e

sentado assim que viram que o capitão não se movia. Poderia ter

sorrido, se se atrevesse a tanto.

- Seja então Winterfell - ele disse então, em vez de sorrir. Era uma

longa viagem, como poria atestar perfeitamente, tendo acabado de

percorrer o caminho inverso. Muitas coisas podiam acontecer ao

longo do caminho. - Meu pai vai querer saber o que me aconteceu -

acrescentou, olhando nos olhos o homem de armas que se oferecera

para lhe ceder o quarto, - Pagará uma boa recompensa a qualquer

homem que lhe leve notícias do que aconteceu hoje aqui - Lorde

Tywin não faria nada disso, claro, mas Tyrion o compensaria se

ganhasse a liberdade.

Sor Rodrik olhara de relance para sua senhora, um olhar preocupado,

como devia ser.

- Seus homens vêm com ele - anunciou o velho cavaleiro. - E

agradeceremos a todos aqui se ficarem em silêncio quanto ao que

viram aqui.

Tyrion fez tudo o que pôde para não rir. Silêncio? Velho tonto. A

menos que capturasse a estalagem inteira, a notícia começaria a se

espalhar no instante em que dali saíssem. O cavaleiro livre com a

moeda de ouro no bolso voaria como uma seta para Rochedo

Casterly. Se não fosse ele, então qualquer outro o faria. Yoren levaria

a história para o Sul. Aquele estúpido cantor poderia fazer daquilo

um lai. Os Frey fariam um relatório ao seu senhor, e só os deuses

sabiam o que este faria. Lorde Walder Frey podia ser vassalo de

Correrrio, mas era um homem cauteloso que vivera muito tempo por

assegurar-se de estar sempre ao lado dos vencedores. No mínimo,

enviaria suas aves para o sul até Porto Real, e poderia bem atrever-se

a mais.

Catelyn Stark não perdera tempo.

- Devemos partir de imediato. Vamos querer montarias descansadas e

provisões para a estrada. Quanto aos senhores, saibam que têm a

gratidão eterna da Casa Stark. Se algum dos senhores quiser nos

ajudar a guardar os cativos e levá-los em segurança até Winterfell,

prometo que serão bem recompensados - e foi o suficiente, os tontos

atiraram-se à frente. Tyrion estudou-lhes as caras; seriam de fato

bem recompensados, jurara a si mesmo, mas talvez não

propriamente do modo que imaginavam.

Mas, mesmo enquanto o empurravam para fora, selando os cavalos

na chuva e atando-lhe as mãos com uma corda grossa, Tyrion

Lannister não estava realmente com medo. Poderia ter apostado que

não conseguiriam levá-lo até Winterfell. Haveria cavaleiros no seu

encalço em menos de um dia, aves levantariam vôo, e certamente um

dos senhores do rio teria suficiente vontade de ganhar os favores de

seu pai para dar uma ajuda. Tyrion congratulava-se pela sua sutileza

quando alguém lhe puxara um capuz sobre os olhos e o subira para

uma sela,

Tinham partido em meio à chuva num duro galope, e não demorou

muito até que as coxas de Tyrion ficassem rígidas e doídas e seu

traseiro latejasse de dor. Mesmo depois de estarem suficientemente

afastados da estalagem para se sentirem em segurança, e de Catelyn

ter abrandado a marcha até um trote, foi uma miserável viagem por

terreno irregular, piorada pela sua cegueira. Cada curva e volta o

punha a ponto de cair do cavalo. O capuz abafava os sons, e não

conseguia distinguir o que era dito à sua volta, e a chuva encharcava

o tecido, que lhe grudava no rosto, até que mesmo respirar se

tornara uma luta, A corda deixara seus pulsos em carne viva, e

parecia ficar mais apertada à medida que a noite avançava.

Preparava-me para me instalar em frente de um fogo quente e uma

ave assada, mas aquele maldito cantor tinha de abrir a boca, pensava

tristemente. O maldito cantor viera com eles.

- Há uma grande canção por fazer a partir disto, e eu sou aquele que

a fará - dissera a Catelyn Stark quando anunciara sua intenção de

viajar para o norte com eles para ver como se desenrolaria a

"esplêndida aventura".

Tyrion gostaria de saber se o rapaz acharia a aventura assim tão

esplêndida quando os cavaleiros dos Lannister os apanhassem.

A chuva já tinha enfim parado e a luz da alvorada já se infiltrava

através do pano molhado que tinha sobre os olhos quando Catelyn

Stark deu ordem para desmontar. Mãos rudes o tiraram do cavalo,

desataram-lhe os pulsos e arrancaram-lhe o capuz da cabeça. Quando

Tyrion viu a estreita estrada pedregosa, os sopés das colinas que se

erguiam altas e selvagens por toda volta, e os picos escarpados e

cobertos de neve no horizonte longínquo, toda sua esperança se

evaporara num instante.

- Esta é a estrada de altitude - arquejara, olhando para a Senhora

Stark com olhos acusadores. - A estrada do leste, A senhora disse

que nos dirigíamos a Winterfell!

Catelyn Stark concedeu-lhe o mais tênue dos sorrisos.

- Em alto e bom som - ela concordou. - Não há dúvida de que seus

amigos seguirão esse caminho quando vierem em nosso encalço.

Desejo-lhes boa viagem.

Mesmo agora, muitos dias mais tarde, a recordação o enchia de

amarga raiva. Por toda a vida Tyrion se orgulhara de sua astúcia, o

único presente que os deuses se tinham dignado a conceder-lhe e, no

entanto, aquela sete vezes maldita loba Catelyn Stark o sobrepujara

durante todo o tempo. Saber aquilo era mais humilhante que o

simples fato de ter sido raptado.

Pararam apenas o tempo suficiente para alimentar e dar de beber

aos cavalos, e puseram-se imediatamente a caminho. Daquela vez,

Tyrion foi poupado do capuz. Após a segunda noite, deixaram de

atar-lhe as mãos, e uma vez chegados às alturas, já pouco se

preocupavam em guardá-lo. Pareciam não temer que fugisse. E por

que haveriam de temer? Ali a terra era dura e selvagem, e a estrada

de altitude pouco passava de um trilho pedregoso. Se fugisse, até

onde chegaria, só e sem provisões? Os gatos-das-sombras o veriam

como uma guloseima, e os clãs que habitavam os baluartes da

montanha eram salteadores e assassinos que não se dobravam a

nenhuma lei além da da espada.

Mas, apesar disso, a Stark os fez avançar de forma implacável. Sabia

para onde se dirigiam. Soubera desde o momento em que lhe tinham

arrancado o capuz. Aquelas montanhas eram o domínio da Casa

Arryn, e a viúva da falecida Mão era uma Tully, irmã de Catelyn

Stark... e nada amiga dos Lannister. Tyrion conhecera vagamente a

Senhora Lysa durante os anos que ela passara em Porto Real, e não

se sentia ansioso por reatar o convívio.

Seus captores aglomeravam-se em torno de um riacho um pouco

mais à frente. Os cavalos tinham se enchido da água fria como gelo e

pastavam feixes de mato castanho que crescia em fendas na rocha.

Jyck e Morrec estavam muito juntos, carrancudos e infelizes. Mohor

erguia-se sobre eles, apoiado na lança e usando um capacete de ferro

arredondado que fazia com que parecesse ter uma tigela na cabeça.

Perto deles, Marillion, o cantor, estava sentado oleando sua harpa,

queixando-se do que a umidade estava fazendo às cordas do

instrumento.

- Temos de descansar um pouco, senhora - o pequeno cavaleiro Sor

Willis Wode dizia a Catelyn Stark quando Tyrion se aproximou.

Era o homem da Senhora Whent, obstinado e imperturbável, e o

primeiro a saltar em socorro de Catelyn Stark na pousada.

- Sor Willis diz a verdade, minha senhora - disse Sor Rodrik. - Este

foi o terceiro cavalo que perdemos...

- Perderemos mais que cavalos se formos alcançados pelos Lannister

- ela os lembrou. Tinha o rosto queimado pelo vento e descarnado,

mas não perdera nada da sua determinação.

- Há poucas chances de isso acontecer aqui - Tyrion interveio.

- A senhora não lhe pediu opinião, anão - exclamou Kurleket, um

grande idiota gordo, de cabelos curtos e cara de porco. Era um dos

Bracken, um homem de armas a serviço de Lorde forios. Tyrion tinha

feito um esforço especial para aprender o nome de todos, a fim de

lhes agradecer mais tarde pelo modo terno como o tratavam. Um

Lannister pagava sempre suas dívidas. Kurleket saberia disso um dia,

tal como os amigos Lharys e Mohor, o bom Sor Willis e os mer-

cenários Bronn e Chiggen. Planejava uma lição especialmente severa

para Marillion, o da harpa e da bela voz de tenor, que lutava tão

virilmente por arranjar rimas com duende, coxo e manco a fim de

poder criar uma canção sobre o seu ultraje.

- Deixe-o falar - a Senhora Stark ordenou.

Tyrion Lannister sentou-se numa rocha.

- Por esta altura nossos perseguidores estão provavelmente

avançando pelo Gargalo, perseguindo sua mentira ao longo da

estrada do rei... assumindo que existe uma perseguição, o que não é

de todo certo. Ah, não há dúvida de que a notícia chegou ao meu

pai... mas meu pai não me estima tanto assim, e não estou nada

convencido de que tenha se incomodado em agir - era apenas meia

mentira; Lorde Tywin Lannister não se importava nem um pouco

com o filho deformado, mas não tolerava desrespeitos à honra de sua

Casa. - Estamos numa terra cruel, Senhora Stark. Não encontrará

socorro até chegar ao Vale, e cada montaria perdida sobrecarrega

ainda mais as restantes. Pior, arrisca-se perder a mim. Sou pequeno,

não sou forte e, se morrer, qual é o objetivo de tudo isto? - aquilo

não era mentira nenhuma; Tyrion não sabia quanto tempo mais

conseguiria suportar aquele ritmo.

- Pode-se argumentar que a sua morte é o objetivo, Lannister -

respondeu Catelyn Stark.

- Penso que não. Se me quisesse morto, bastaria dizer uma palavra, e

um desses seus leais amigos de bom grado me daria um sorriso

vermelho - olhou para Kurleket, mas o homem era obtuso demais

para saborear a ironia.

- Os Stark não assassinam ninguém em suas camas.

- Nem eu - Tyrion retrucou. - Repito-lhe: não participei na tentativa

de matar o seu filho.

- O assassino estava armado com o seu punhal.

Tyrion sentiu o calor subir no seu interior.

- O punhal não era meu - insistiu. - Quantas vezes tenho de jurar?

Senhora Stark, seja o que for que acredite a meu respeito, saiba que

não sou um homem estúpido. Só um idiota armaria um simples peão

com a própria arma.

Apenas por um momento pensou ver uma cintilação de dúvida nos

olhos dela, mas Catelyn disse:

- Por que haveria Petyr de mentir para mim?

- Por que é que um urso caga na floresta? - ele quis saber. - Porque

é esta a sua natureza. Para um homem como Mindinho, mentir é tão

natural como respirar. Se há alguém neste mundo que devia saber

isso, é a senhora,

Ela deu um passo em sua direção, com o rosto fechado.

- E o que isto quer dizer, Lannister?

Tyrion inclinou a cabeça para o lado.

- Ora, todos os homens na corte ouviram-no contar como tirou sua

virgindade, minha senhora,

- Isto é uma mentira! - Catelyn Stark retrucou.

- Ah, que duendezinho malvado - disse Marillion, chocado.

Kurleker desembainhou seu punhal, uma perigosa peça de ferro

negro.

- A uma palavra, senhora, atirarei a seus pés aquela língua mentirosa

- seus olhos de porco estavam úmidos de excitação perante a ideia.

Catelyn Stark observou fixamente Tyrion, com um olhar frio como

ele nunca vira.

- Petyr Baelish amou-me em tempos passados. Era apenas um rapaz.

Sua paixão foi uma tragédia para todos nós, mas foi real, e pura, e

nada de que se deva zombar. Desejava minha mão. É esta a verdade.

É realmente um homem vil, Lannister.

- A senhora é realmente uma tola, Senhora Stark. Mindinho nunca

amou ninguém a não ser Mindinho, e garanto que não é da sua mão

que ele se gaba, é sim desses vossos maduros seios, da vossa doce

boca e do calor que tem entre as pernas.

Kurleket agarrou-lhe numa madeixa de cabelo e puxou com força sua

cabeça para trás, expondo-lhe a garganta. Tyrion sentiu o frio beijo

do aço sob o queixo.

- Devo sangrá-lo, senhora?

- Mate-me, e a verdade morre comigo - Tyrion arquejou.

- Deixe-o falar - Catelyn Stark ordenou.

Kurleket largou com relutância o cabelo de Tyrion.

Tyrion inspirou profundamente.

- Como foi que Mindinho lhe disse que obtive esse seu punhal?

Responda-me a isto.

- Que você o ganhou numa aposta, durante o torneio no dia do

nome de Príncipe Joffrey.

- Quando meu irmão Jaime foi derrubado pelo Cavaleiro das Flores.

Foi essa a sua história, não?

- Foi - ela admitiu. E uma ruga surgiu em sua testa.

- Cavaleiros!

O grito veio da cumeada esculpida pelo vento que se erguia acima

deles. Sor Rodrik mandara Lharys escalar a face da rocha para vigiar

a estrada enquanto descansavam.

Durante um longo segundo, ninguém se moveu. Catelyn Stark foi a

primeira a reagir.

- Sor Rodrik, Sor Willis, a cavalo - gritou, - Ponham as outras

montarias atrás de nós. Mohor, guarde os prisioneiros...

- Armem-nos! - Tyrion pôs-se em pé de um salto e a agarrou pelo

braço. - Irá precisar de todas as espadas.

Ela sabia que ele tinha razão, Tyrion conseguia ver isto em sua

expressão. Os clãs da montanha não tinham o menor interesse pelas

inimizades das grandes Casas; matariam Stark e Lannister com igual

fervor, idêntico ao que tinham para matar uns aos outros. Poderiam

poupar a própria Catelyn, era ainda suficientemente jovem para

gerar filhos. Mas, mesmo assim, ela hesitou.

- Estou ouvindo-os! - gritou Sor Rodrik. Tyrion virou a cabeça para

escutar e lá estavam, sons de cascos, uma dúzia de cavalos ou mais,

aproximando-se. De repente, todos se mexiam, pegando as armas,

correndo para os cavalos.

Pedrinhas caíram neles quando Lharys desceu o declive, aos saltos e

às escorregadelas. Parou sem fôlego na frente de Catelyn Stark, um

homem de ar desajeitado com desordenados tufos de cabelo cor de

ferrugem por baixo de um capacete cónico de aço.

- Vinte homens, talvez vinte e cinco - ele disse, sem fôlego. -

Serpentes de Leite ou Irmãos da Lua, parece-me. Devem ter olhos

nas montanhas, senhora... vigias ocultos.. sabem que estamos aqui.

Sor Rodrik Cassei já estava montado, de espada na mão. Mohor

agachou-se por trás de um pedregulho, agarrado com ambas as mãos

à sua lança de ponta de ferro, um punhal entre os dentes.

- Você, cantor - chamou Sor Willis Wode. - Ajude-me com este

peitoral - Marillion estava sentado, imóvel, agarrado com força à sua

harpa, com o rosto pálido como leite, mas o homem de Tyrion,

Morrec, pôs-se em pé de um pulo e foi ajudar o cavaleiro a vestir a

armadura.

Tyrion manteve a mão agarrada a Catelyn Stark.

- Não tem escolha - disse-lhe. - Somos três, e mais um homem

desperdiçado para nos vigar... quatro homens podem fazer a

diferença entre a vida e a morte aqui em cima.

- Dê-me sua palavra de que voltará a baixar as armas quando a luta

acabar.

- A minha palavra? - podia-se agora ouvir as batidas dos cascos mais

alto. Tyrion deu um sorriso torto. - Ah, tem minha palavra, minha

senhora... sobre a minha honra como Lannister.

Por um momento ele pensou que ela cuspiria na sua cara, mas em

vez disso ela exclamou:

- Dêem-lhes armas - e no mesmo momento afastou-se. Sor Rodrik

atirou a Jyck sua espada embainhada e rodopiou para enfrentar o

inimigo. Morrec tratou de se armar com um arco e uma aljava, e

caiu sobre um joelho junto à estrada. Era melhor arqueiro que

espadachim. E Bronn veio a cavalo oferecer a Tyrion um machado de

lâmina dupla.

- Nunca lutei com um machado - a arma em suas mãos parecia

desajeitada e pouco familiar, Tinha um cabo curto, uma cabeça

pesada e no topo uma haste pontiaguda de aspecto perigoso.

- Faça de conta que está partindo lenha - disse Bronn, puxando a

espada da bainha que trazia amarrada às costas. Cuspiu e trotou

para juntar-se à formação esboçada por Chiggen e Sor Rodrik. Sor

Willis montou e também foi juntar-se a eles, enquanto se atrapalhava

com o capacete, um vaso de metal com uma estreita fenda para os

olhos e uma longa pluma negra de seda.

- A lenha não sangra - disse Tyrion para ninguém em especial.

Sentia-se nu sem uma armadura. Olhou em volta à procura de uma

rocha e correu para onde Marillion se escondia. - Dê-me lugar.

- Sai daqui! - respondeu-lhe o rapaz aos gritos. - Sou um cantor, não

quero participar desta luta!

- O quê? Perdeu o gosto pela aventura? - Tyrion começou a dar

pontapés no jovem até que ele cedeu um lugar, e não sem tempo.

Um instante depois os cavaleiros caíam sobre eles.

Não houve arautos, nem estandartes, nem cornos ou tambores,

apenas o ressoar das cordas dos arcos quando Morrec e Lharys

dispararam, e repentinamente os homens dos clãs vieram trovejando

pela madrugada, esguios e escuros, vestidos de couro fervido e

armaduras feitas com partes de outras armaduras, os rostos

escondidos por trás de meios-elmos fechados. Mãos enluvadas

empunhavam uma grande variedade de armas: espadas longas, lanças

e foices afiadas, clavas, punhais e pesados malhos de ferro. A frente

vinha um homem grande com um manto listrado de pele de gato-

das-sombras, armado com uma grande espada de duas mãos.

Sor Rodrik gritou "WinterfelU", e avançou ao seu encontro com

Bronn e Chiggen a seu lado, soltando um grito qualquer de batalha

sem palavras. Sor Willis Wode os seguiu, brandindo uma clava por

cima da cabeça, "Harrenhal! Harrenhal!", cantava. Tyrion sentiu um

súbito impulso de saltar, brandir o machado e trovejar "Rochedo

Casterly!", mas aquela insanidade passou rapidamente, e ele se

agachou mais.

Ouviu os relinchos de cavalos assustados e o estrondo de metal

batendo em metal. A espada de Chiggen varreu o rosto descoberto

de um cavaleiro em cota de malha, e Bronn mergulhou através dos

homens dos clãs como um pé de vento, ferindo inimigos à esquerda

e à direita. Sor Rodrik atacava o homem grande de manto de pele de

gato-das-sombras, e seus cavalos dançavam em círculos enquanto os

homens respondiam um ao outro, golpe a golpe. Jyck saltou para um

cavalo e galopou em pelo para o meio da batalha. Tyrion viu uma

seta projetar-se do pescoço do homem do manto de pele de gato-

das-sombras, Quando abriu a boca para gritar, só viu sangue saindo

dela. No instante em que caiu ao chão, Sor Rodrik já lutava com

outro homem.

Subitamente, Marillion guinchou, cobrindo a cabeça com a harpa,

enquanto um cavalo saltava por cima da rocha que os protegia.

Tyrion pôs-se em pé com dificuldade no momento em que o

cavaleiro dava meia-volta para atacá-los, erguendo um malho com

várias hastes pontiagudas. Tyrion volteou o machado com ambas as

mãos. A lâmina, dirigida para cima, apanhou o cavalo na garganta

com um tunc úmido, e Tyrion quase largou a arma quando o cavalo

berrou e caiu, mas conseguiu libertar o machado e cambaleou

desajeitadamente para fora de seu caminho. Marillion teve menos

sorte. Cavalo e cavaleiro despencaram no chão, num emaranhado de

membros por cima do cantor. Tyrion avançou enquanto a perna do

salteador ainda se encontrava presa sob o cavalo caído e enterrou o

machado no pescoço do homem, logo acima das omoplatas.

Enquanto lutava para libertar o machado, ouviu Marillion gemer sob

os corpos.

- Alguém me ajude - o cantor arquejou. - Que os deuses tenham

piedade de mim, estou sangrando.

- Creio que é sangue de cavalo - disse Tyrion. A mão do cantor

arrastou-se por sob o animal morto, arranhando a terra como uma

aranha de cinco pernas. Tyrion calcou os dedos com o salto da bota

e sentiu um estalido satisfatório. - Feche os olhos e finja que está

morto - aconselhou ao cantor antes de erguer o machado e se

afastar.

Depois daquilo, aconteceu tudo ao mesmo tempo. A madrugada

encheu-se de gritos e berros, o ar ficou pesado com o cheiro de

sangue e o mundo transformou-se em caos. Setas voaram silvando

junto à sua orelha e ricochetearam nas rochas. Viu Bronn derrubado

do cavalo, lutando com uma espada em cada mão. Tyrion manteve-se

ao largo da luta, deslizando de rochedo em rochedo e saltando das

sombras para atingir as pernas dos cavalos que passavam. Encontrou

um homem dos clãs ferido e o deixou morto, apropriando-se do seu

meio-elmo. Estava muito apertado, mas Tyrion sentia-se grato por

qualquer proteção que encontrasse. Jyck foi atingido por trás no mo-

mento em que abatia um homem à sua frente, e mais tarde Tyrion

tropeçou no corpo de Kurleket. A cara de porco tinha sido esmagada

com uma maça, mas Tyrion reconheceu o punhal ao arrancado dos

dedos mortos do homem. Estava enfiando-o no cinto quando ouviu

um grito de mulher.

Catelyn Stark estava encurralada contra a superfície de pedra da

montanha, rodeada por três homens, um ainda montado. Segurava

desajeitadamente um punhal com as mãos mutiladas, mas tinha

agora as costas apoiadas contra a rocha e estava cercada pelos três

lados restantes. Que fiquem com a cadela, pensou Tyrion, e que

façam bom proveito, mas, apesar disso, avançou. Apanhou o primeiro

homem pela parte de trás do joelho antes que eles percebessem que

se encontrava ali, e a pesada cabeça do machado rompeu carne e

osso como madeira podre. Lenha que sangra, pensou Tyrion

estupidamente enquanto o segundo homem se aproximava. Tyrion

esquivou-se sob sua espada, brandiu o machado, o homem

cambaleou para trás... e Catelyn Stark surgiu pelas suas costas e

abriu-lhe a garganta. O cavaleiro lembrou-se de um compromisso

urgente em outro lugar, e afastou-se rapidamente a galope.

Tyrion olhou em volta. Os inimigos estavam vencidos, ou

desaparecidos. De algum modo, a luta terminara sem que ele

percebesse. Cavalos moribundos e homens feridos jaziam por toda

parte, gritando ou gemendo. Para seu grande espanto, não era um

deles. Abriu os dedos e deixou cair o machado ao chão com um tunc.

Tinha as mãos pegajosas de sangue. Podia jurar que a luta tinha

durado metade de um dia, mas o Sol parecia quase não se ter

movido.

- Sua primeira batalha? - mais tarde Bronn perguntou, enquanto se

inclinava sobre o corpo de Jyck, descalçando-lhe as botas. Eram boas

botas, como era próprio de um dos homens de Lorde Tywin; couro

pesado, untado e flexível, muito melhores que as de Bronn.

Tyrion confirmou com a cabeça,

- Meu pai ficará orgulhosíssimo - ele disse. Tinha tantas cãibras nas

pernas que mal conseguia se manter em pé. Estranho, durante a

batalha não reparara na dor uma única vez.

- Agora você precisa de uma mulher - disse Bronn com uma

cintilação nos olhos negros, enfiando as botas no alforje. - Não há

nada como uma mulher depois de matar um homem, icredite no que

lhe digo.

Chiggen parou de saquear os cadáveres dos salteadores apenas o

tempo suficiente para resfolegar e lamber os lábios.

Tyrion olhou de relance para onde a Senhora Stark se encontrava

cobrindo as feridas de Sor Rodrik.

- Estou disposto, se ela estiver - Tyrion disse. Os cavaleiros livres

arrebentaram em gargalhadas; ele sorriu e pensou: E um começo.

Mais tarde, ajoelhou-se junto ao córrego e lavou o sangue do rosto

em água fria como gelo. Enquanto coxeava de volta para junto dos

outros, olhou novamente para os mortos. Os homens dos clãs eram

magros e esfarrapados, seus cavalos, descarnados e pequenos demais,

com todas as costelas à mostra. As armas que Bronn e Chiggen lhes

tinham deixado não eram nada impressionantes. Malhos, clavas, uma

foice... Lembrou-se do homem grande com o manto de pele de gato-

das-sombras que combatera Sor Rodrik com uma grande espada de

duas mãos, mas, quando encontrou seu cadáver esparramado no

chão pedregoso, o homem afinal não era assim tão grande, seu

manto tinha desaparecido, e Tyrion reparou que a lâmina estava

cheia de entalhes e o aço barato, pintalgado de ferrugem. Pouco

admirava que os homens dos clãs tivessem deixado nove corpos sem

vida no chão.

Eles tinham apenas três mortos: dois dos homens de armas de Lorde

Bracken, Kurleket e Mohor, e seu homem, Jyck, que tão ousado se

mostrara com sua cavalgada em pelo. Um tolo até o fim, pensou

Tyrion.

- Senhora Stark, insisto para que prossigamos a toda pressa - disse

Sor Willis Wode, com os olhos perscrutando cautelosamente os

cumes das colinas através da fenda do elmo. - Nós os afastamos por

ora, mas não devem estar muito longe.

- Temos de enterrar nossos mortos, Sor Willis - ela disse. - Estes

eram homens corajosos. Não os deixarei para os corvos e os gatos-

das-sombras.

- Este solo é pedregoso demais para cavar - Sor Willis respondeu,

- Então juntaremos pedras para cobri-los.

- Juntem todas as pedras que quiserem - disse-lhe Bronn -, mas o

farão sem mim e Chiggen. Tenho coisa melhor a fazer que empilhar

pedras em cima de mortos... Respirar, por exemplo - olhou para os

demais sobreviventes. - Aqueles que quiserem estar vivos ao cair da

noite, venham conosco.

- Minha senhora, temo que ele esteja certo - Sor Rodrik disse com

cautela. O velho cavaleiro fora ferido na luta, um golpe profundo no

braço esquerdo e outro de lança que lhe resvalara o pescoço, e sua

voz mostrava o peso da idade. - Se ficarmos aqui, cairão de novo

sobre nós com toda certeza, e podemos não sobreviver a um

segundo ataque.

Tyrion via a ira no rosto de Catelyn, mas a mulher não tinha escolha.

- Então, que os deuses nos perdoem. Partiremos de imediato.

Agora não havia falta de cavalos. Tyrion mudou a sela para o

castrado malhado de Jyck, que parecia suficientemente forte para

durar mais três ou quatro dias pelo menos. Preparava-se para

montar quando Lharys avançou e lhe disse:

- Agora eu fico com este punhal, anão.

- Deixe-o ficar com ele - Catelyn Stark os olhava de cima do cavalo. -

E devolva-lhe também o machado. Podemos vir a precisar dele se

voltarmos a ser atacados.

- Tem os meus agradecimentos, senhora - disse Tyrion, montando.

- Guarde-os - ela disse em tom rude. - Não confio mais em você do

que antes - e afastou-se antes de ele ter tempo para formular uma

resposta.

Tyrion ajustou o elmo roubado e recebeu o machado das mãos de

Bronn. Recordou o modo como iniciara a viagem, com os pulsos

atados e um capuz sobre a cabeça, e concluiu que aquilo era

decididamente uma melhoria. A Senhora Stark podia conservar sua

confiança; desde que ele pudesse conservar o machado, consideraria

que mantinha algum avanço naquele jogo.

Sor Willis Wode tomou a dianteira. Bronn instalou-se à retaguarda,

com a Senhora Stark em segurança no meio e Sor Rodrik ao lado

dela como uma sombra. Marillion, de vez em quando, lançava olhares

mal-humorados a Tyrion enquanto avançavam. O cantor partira

várias costelas, sua harpa e os quatro dedos da mão com que tocava,

mas, apesar disso, o dia não lhe fora uma perda completa; de algum

lugar tinha adquirido um magnífico manto de pele de gato-das-

sombras, espesso pelo negro rasgado por listras brancas.

Aconchegava-se em silêncio sob suas dobras, pela primeira vez sem

ter nada a dizer.

Ouviram os profundos rugidos dos gatos-das-sombras atrás deles

antes de terem andado meia milha, e mais tarde os rosnados ferozes

dos animais que lutavam pelos cadáveres que lá haviam deixado.

Marillion ficou visivelmente pálido.

- Poltrão - disse Tyrion - rima bem com canção - esporeou o cavalo e

ultrapassou o cantor, juntando-se a Sor Rodrik e a Catelyn Stark.

Ela o olhou com os lábios bem apertados.

- Como ia dizendo antes de sermos tão rudemente interrompidos -

começou Tyrion -, há uma séria falha na fábula de Mindinho.

Independente do que pensa sobre mim, Senhora Stark, uma coisa lhe

garanto: eu nunca aposto contra a minha família.


Arya


O gato preto de uma só orelha arqueou o dorso e silvou para ela.

Arya avançou pela ruela, equilibrada com leveza nas pontas dos pés

nus, escutando as batidas irregulares do coração, respirando lenta e

profundamente. Silenciosa como uma sombra, disse a si mesma, leve

como uma pena. O gato observou seu avanço, com olhos cautelosos.

Apanhar gatos era difícil. Tinha as mãos cobertas de arranhões meio

curados e ambos os joelhos estavam cheios de crostas onde os

esfolara nos tombos que levara. A princípio, até o enorme e gordo

gato do cozinheiro fora capaz de lhe escapar, mas Syrio a manteve

caçando noite e dia. Quando correra até ele com as mãos sangrando,

dissera-lhe:

- Tão lenta! Mais depressa, garota. Seus inimigos lhe farão mais que

arranhões.

Então, Syrio passou fogo de Myr em suas feridas, e ardeu tanto que

Arya teve de morder o lábio para não gritar. Depois, ele mandou que

apanhasse mais gatos.

A Fortaleza Vermelha estava cheia deles: velhos gatos preguiçosos

dormitando ao sol, caçadores de ratos de olhos frios retorcendo as

caudas, gatinhos rápidos cujas garras eram como agulhas, gatos de

senhora, todos escovados e confiantes, sombras esfarrapadas que

caçavam nas pilhas de dejetos. Um a um, Arya os perseguiu, agarrou

e trouxe todos, orgulhosamente, para Syrio Forel... todos, menos

aquele, aquele endemoniado gato negro de uma orelha só.

- Este é o verdadeiro rei do castelo que aí está - dissera-lhe um dos

homens de manto dourado. - Mais velho que o pecado e duas vezes

mais maldoso. Certa vez, o rei organizou um banquete em honra do

pai da rainha, e este bastardo preto saltou para a mesa e roubou

uma codorna assada justamente dos dedos de Lorde Tywin. Robert

riu tanto que quase explodiu. Afaste-se desse bicho, miúda.

Ela correu atrás dele por metade do castelo; duas vezes em volta da

Torre da Mão, através da muralha interior, pelos estábulos, pelos

degraus sinuosos abaixo, até para lá da cozinha pequena, da pocilga e

dos aquartelamentos dos homens de manto dourado, ao longo da

base da muralha do rio e por mais degraus acima, e de um lado para

o outro pelo Caminho dos Traidores, e depois desceu novamente,

atravessando um portão e rodeando um poço, entrando e saindo de

estranhos edifícios, até que não soube mais onde se encontrava.

Agora, por fim, tinha-o encurralado. Muros altos apertavam os dois

de ambos os lados, e na frente não havia mais que uma massa de

pedra lisa e sem janelas. Silenciosa como uma sombra, repetiu

enquanto deslizava em frente, leve como uma pena.

Quando estava a não mais de três passos, o gato se pôs em

movimento. Saltou para a esquerda e depois para a direita; e Arya

saltou para a direita e depois para a esquerda, interrompendo sua

fuga. O animal voltou a silvar e tentou passar como um raio entre

suas pernas. Rápida como uma cobra, pensou. Suas mãos fecharam-

se em volta dele. Apertou-o contra o peito, rodopiando e rindo em

voz alta enquanto as garras do gato raspavam na parte da frente de

seu colete de couro. Rapidamente beijou o gato bem entre os olhos,

atirando a cabeça para trás um instante antes de as garras do animal

encontrarem seu rosto. O gato miou e bufou.

- O que ele está fazendo com aquele gato?

Sobressaltada, Arya deixou cair o gato e rodopiou na direção da voz.

O gato desapareceu num piscar de olhos. No fim da ruela

encontrava-se uma jovem com uma massa de caracóis dourados,

trajando um vestido de boneca de cetim azul. Tinha ao lado um

rapazinho louro e roliço, com um veado empinado bordado a pérolas

no peito do gibão e uma miniatura de espada ao cinto. Princesa

Myrcella e Príncipe Tommen, pensou Arya. Uma septã grande como

um cavalo de tração pairava sobre ambos, e atrás dela viam-se dois

homens grandes com mantos carmim, guardas da Casa Lannister.

- O que você estava fazendo com aquele gato, rapaz? - perguntou de

novo Myrcella com severidade. Dirigindo-se ao irmão, disse: - É um

rapaz esfarrapado, não é? Olha para ele - e soltou um risinho.

- Um rapaz esfarrapado, sujo e malcheiroso - concordou Tommen.

Eles não me reconhecem, Arya se deu conta. Nem sequer percebem

que sou uma menina. Mas não era de se estranhar, ela estava

descalça e suja, com os cabelos emaranhados da longa correria pelo

castelo, vestida com um colete rasgado por garras de gato e com

calças marrons de ráfia cortadas grosseiramente acima dos joelhos

cobertos de crostas. Não se usam saias e sedas quando se está

apanhando gatos. Num movimento rápido, abaixou a cabeça e caiu

sobre um joelho. Talvez acabassem por não reconhecê-la mesmo.

Caso contrário, estaria metida numa grande enrascada. Septã

Mordane se sentiria humilhada, e Sansa nunca mais voltaria a falar

com ela, de tanta vergonha.

A velha septã gorda avançou.

- Rapaz, como chegou aqui? Não deve vir a esta parte do castelo.

- Não é possível manter este tipo de moleque lá fora - disse um dos

homens de manto vermelho. - É como tentar evitar a entrada de

ratazanas.

- A quem você pertence, rapaz? - exigiu saber a septã. - Responda-

me. O que se passa com você, é mudo?

A voz de Arya ficou presa na garganta. Se respondesse, Tommen e

Myrcella certamente a reconheceriam.

- Godwyn, traga-o aqui - ordenou a septã. O mais alto dos guardas

avançou pela ruela.

O pânico apertou sua garganta como uma mão gigante. Não

consegui falar nem que sua vida dependesse disso. Calma como

águas paradas, pensou, movendo a boca em silêncio.

No momento em que Godwyn estendeu a mão para agarrá-la, Arya

pôs-se em movimento. Rápida como. uma cobra. Inclinou-se para a

esquerda, e os dedos do homem roçaram seu braço, e então girou

em volta dele. Suave como seda de verão. Quando o homem

conseguiu se virar, ela já seguia numa correria pela ruela afora.

Ligeira como uma corça. A septã gritou. Arya deslizou por entre

pernas tão grossas e brancas como colunas de mármore, pôs-se em

pé de um salto, atirou-se em direção ao Príncipe Tommen e saltou

por cima dele, fazendo-o cair de traseiro no chão, com força,

soltando um "Uf. Arya rodopiou, ficando fora do alcance do segundo

guarda, e então já tinha passado por todos eles e corria a toda

velocidade.

Ouviu gritos, depois passos que corriam e se aproximavam. Deixou-

se cair e rolou. O homem do manto vermelho passou por ela de lado,

tropeçando. Arya pôs-se em pé como uma mola. Viu uma janela

acima de sua cabeça, alta e estreita, pouco mais que uma fresta.

Saltou, pendurou-se no peitoril e subiu. Segurou a respiração

enquanto se retorcia para passar. Escorregadia como uma enguia.

Caindo no chão em frente de uma surpresa criada, endireitou-se de

um salto, sacudiu as sujeiras das roupas e desatou de novo a correr,

atravessando a porta e um longo salão, descendo escadas,

atravessando um pátio escondido, rodeando uma esquina,

percorrendo um muro, e atravessando uma janela baixa e estreita

para dentro de um porão escuro como breu. Os sons foram ficando

cada vez mais distantes atrás de Arya.

Ela estava sem fôlego e completamente perdida. Estaria metida em

uma grande enrascada se a tivessem reconhecido, mas não lhe

parecia haver motivo para preocupações. Movera-se muito rápido.

Ligeira como uma corça.

Agachou-se no escuro de encontro a uma parede úmida de pedra e

pôs-se a escutar, mas os únicos sons que ouviu foram o bater do seu

coração e um pingo distante de água. Silenciosa como uma sombra,

disse a si mesma. Gostaria de saber onde estava. Na época de sua

chegada a Porto Real, costumava ter pesadelos em que se perdia no

castelo. Seu pai dizia que a Fortaleza Vermelha era menor que

Winterfell, mas nos seus sonhos ela era imensa, um infinito labirinto

de pedra com paredes que pareciam se mover e mudar atrás dela.

Dava por si vagando ao longo de salões sombrios, passando por

tapeçarias desbotadas, descendo escadas circulares sem fim, correndo

por pátios ou sobre pontes, e seus gritos ecoavam sem resposta. Em

algumas das salas, as paredes de pedra vermelha pareciam pingar

sangue, e ela não encontrava janelas em parte alguma. Por vezes,

ouvia a voz de seu pai, mas era sempre de muito longe e, por mais

depressa que corresse, a voz ficava cada vez mais fraca, até

desaparecer no nada e Arya ficar sozinha no escuro.

Percebeu que agora estava muito escuro. Abraçou com força os

joelhos nus contra o peito e estremeceu. Resolveu que esperaria em

silêncio e contaria até dez mil. Então seria seguro rastejar para fora

dali e encontrar o caminho para casa.

Quando chegou a oitenta e sete, a sala começou a clarear, porque

seus olhos tinham se adaptado à escuridão. Lentamente, os vultos

que a rodeavam tomaram forma. Enormes olhos vazios fixavam-se

nela, famintos, através das sombras, e viu vagamente as sombras

pontiagudas de longos dentes. Tinha perdido a conta. Fechou os

olhos, mordeu o lábio e mandou o medo embora, Quando voltasse a

olhar, os monstros teriam partido, Nunca teriam existido. Fez de

conta que Syrio estava ao seu lado no escuro, sussurrando-lhe ao

ouvido. Calma como as águas paradas, disse a si mesma. Forte como

um urso. Feroz como um glutão. Voltou a abrir os olhos.

Os monstros ainda lá estavam, mas o medo tinha desaparecido.

Arya pôs-se em pé, movendo-se com cuidado. As cabeças estavam

todas em volta dela. Tocou em uma, curiosa, perguntando-se se seria

verdadeira. As pontas dos seus dedos roçaram num maxilar maciço,

sentindo-o bastante real. O osso era suave sob sua mão, frio e duro

ao toque. Percorreu um dente com os dedos, negro e aguçado, um

punhal feito de escuridão. Aquilo a fez estremecer.

- Está morto - disse em voz alta, - É só um crânio, não pode me

fazer mal - mas, de algum modo, o monstro parecia saber que ela

estava ali. Podia sentir seus olhos vazios observando-a por entre as

sombras, e havia qualquer coisa naquela sala escura e cavernosa que

não gostava dela. Afastou-se do crânio com cuidado e bateu as costas

num segundo, maior que o primeiro. Por um instante sentiu os

dentes se enterrarem em seu ombro, como se aquilo desejasse

mordê-la. Arya rodopiou, sentiu o couro prender-se e se rasgar

quando uma enorme presa mordeu seu colete, e então desatou a

correr. Outro crânio ergueu-se na sua frente, o maior de todos os

monstros, mas Arya nem sequer titubeou. Saltou sobre uma fileira de

dentes negros altos como espadas, precipitou-se por entre maxilas

famintas e atirou-se contra a porta.

Suas mãos alcançaram um pesado anel de ferro incrustado na

madeira, e ela o puxou. A porta resistiu por um momento, antes de

começar lentamente a se abrir para dentro, com um rangido tão alto

que Arya teve certeza de que poderia ser ouvido em toda a cidade.

Abriu a porta apenas o suficiente para se esgueirar e sair para o

átrio à sua frente.

Se a sala com os monstros era escura, o átrio era a mais negra fossa

dos sete infernos. Calma como águas paradas, disse Arya a si mesma,

e segundos depois de seus olhos se adaptarem, percebeu que nada

havia para ver além do vago contorno cinzento da porta que acabara

de atravessar. Agitou os dedos na frente do rosto, sentiu o ar, mas

nada viu. Estava cega. Uma dançarina de água vê com todos os

sentidos, lembrou-se. Fechou os olhos e sossegou a respiração... um,

dois, três; sentiu o silêncio e estendeu as mãos.

Seus dedos roçaram pedras ásperas, sem acabamento, à sua

esquerda. Seguiu a parede tocando levemente a superfície, avançando

com pequenos passos deslizantes pela escuridão. Todos os átrios

levam a algum lado, Onde há uma entrada, há uma saída. O medo

golpeia mais profundamente que as espadas. Arya decidiu que não

teria medo. Parecia já ter percorrido um longo caminho quando a

parede terminou abruptamente e uma aragem de ar frio soprou seu

rosto. Cabelos soltos agitaram-se levemente contra sua pele.

Vindos de algum lugar, muito abaixo, ouviu ruídos. O raspar de

botas, o som distante de vozes. Uma luz vacilante passou pela

parede, ligeira, e ela viu que se encontrava no topo de um grande

poço negro, um precipício com seis metros de lado a lado, que

mergulhava profundamente na terra. Enormes pedras tinham sido

enfiadas nas paredes curvas para formar degraus, espiralando para

baixo, e mais para baixo, escuras como os degraus do inferno sobre

os quais a Velha Ama costumava lhe falar. E algo subia, vindo da

escuridão, das entranhas da terra...

Arya espreitou por sobre a borda e sentiu a fria aragem negra no

rosto. Muito abaixo viu a luz de um único archote, pequeno como a

chama de uma vela. Distinguiu dois homens. Suas sombras se

contorciam contra os lados do poço, altas como gigantes. Conseguia

ouvir suas vozes ecoando pela chaminé acima.

- ... encontrou um bastardo - disse um deles. - O resto virá em breve.

Um dia, dois, uma quinzena...

- E quando souber a verdade, o que vai fazer? - perguntou uma

segunda voz no sotaque fluido das Cidades Livres.

- Só os deuses sabem - disse a primeira voz. Arya conseguiu ver um

filamento de fumaça cinzenta que saía do archote, contorcendo-se

como uma serpente enquanto subia. - Os idiotas tentaram matar seu

filho e, o que é pior, fizeram da tentativa uma farsa. Ele não é

homem que ponha algo assim de lado. Pode ter a certeza de que o

lobo e o leão se atirarão em breve às gargantas um do outro, quer

queiramos ou não.

- É cedo demais, cedo demais - queixou-se a voz com o sotaque. - De

que serviria uma guerra agora? Não estamos preparados. Faça com

que se demore a vir.

- Isto é o mesmo que me pedir para parar o tempo. Acha que sou

um feiticeiro?

O outro soltou um risinho.

- Sim, não mais que isso. - Labaredas lamberam o ar frio. As sombras

altas estavam quase em cima de Arya. Logo depois, o homem que

segurava o archote surgiu no seu campo de visão, com o

companheiro ao seu lado. Arya arrastou-se para trás, afastando-se do

poço, e encostou-se à parede. Prendeu a respiração no momento em

que os homens chegavam ao topo das escadas.

- Que quer que eu faça? - perguntou o homem, robusto, com uma

capa curta de couro, que levava o archote. Mesmo calçando botas

pesadas, seus pés pareciam deslizar pelo chão sem um som sequer.

Sua cara era redonda, desfigurada por cicatrizes, e um tufo de barba

negra espreitava por baixo do capacete de aço. Ele usava cota de

malha sobre couro fervido, com um punhal e uma espada curta

enfiados no cinto. Arya sentiu qualquer coisa estranhamente familiar

nele.

- Se uma Mão pode morrer, por que não uma segunda? - respondeu

o homem com sotaque e a barba amarela bifurcada. - Você já dançou

essa dança, meu amigo - não era alguém que Arya tivesse visto antes,

disto tinha certeza. Era enormemente gordo, mas parecia caminhar

com ligeireza, transportando o peso nas bolas que eram seus pés,

como o faria um dançarino de água. Seus anéis cintilavam à luz do

archote, ouro vermelho e prata branca, incrustados de rubis, safiras,

olhos de tigre amarelos e listrados. Todos os dedos traziam um anel;

alguns tinham dois.

- Antes não é agora, e esta Mão não é a outra - respondeu o homem

desfigurado quando entraram no átrio. Imóvel como uma pedra,

disse Arya a si mesma, silenciosa como uma sombra. Cegos pela luz

do archote, os homens não a viram encostada à pedra, a poucos

centímetros de distância.

- Talvez seja assim - respondeu o homem da barba bifurcada,

fazendo uma pausa para recuperar o fôlego depois da longa subida. -

Seja como for, precisamos de tempo, A princesa espera uma criança.

O khal não se mexerá até que seu filho nasça. Você sabe como são

aqueles selvagens.

O homem do archote empurrou qualquer coisa. Arya ouviu um

profundo estrondo. Uma enorme laje de pedra, vermelha à luz do

archote, deslizou do teto com um barulho tão estridente que quase a

levou a gritar. Onde estava a entrada do poço só havia agora pedra,

sólida e sem nenhuma fenda.

- Se ele não se mexer em breve, poderá ser tarde demais - disse o

homem robusto com o capacete de aço. - Isto já não é um jogo com

dois jogadores, se é que alguma vez tenha sido. Stannis Baratheon e

Lysa Arryn fugiram para fora do meu alcance, e os murmúrios dizem

que reúnem espadas à sua volta. O Cavaleiro das Flores escreve para

Jardim de Cima, insistindo com o senhor seu pai para que envie a

irmã para a corte, A moça é uma donzela de catorze anos, doce, bela

e maleável, e Lorde Renly e Sor Loras pretendem que Robert a leve

para a cama, case-se com ela e faça dela uma nova rainha.

Mindinho.. só os deuses sabem que jogo Mindinho está jogando. Mas

é Lorde Stark que me dificulta o sono. Ele tem o bastardo, tem o

livro e, em breve, terá a verdade. E agora a mulher dele raptou

Tyrion Lannister, graças à interferência de Mindinho. Lorde Tywin

tomará isto como um ultraje, e Jaime tem uma estranha afeição pelo

Duende. Se os Lannister agirem contra o Norte, os Tully se

envolverão também. Você me pede que eu faça demorar para

acontecer. Apresse-se então, respondo eu. Nem mesmo o melhor dos

malabaristas consegue manter para sempre cem bolas no ar.

- Você é mais que um malabarista, velho amigo. É um verdadeiro

feiticeiro. Tudo o que peço é que aplique sua magia durante um

pouco mais de tempo - começaram a atravessar o átrio na direção de

onde Arya viera, passando pela sala com os monstros.

- Farei o que puder - o homem do archote disse suavemente.

- Preciso de ouro e de mais cinquenta aves.

Arya esperou que eles se afastassem bastante e depois rastejou atrás

deles.

Silenciosa como uma sombra.

- Tantas? - as vozes tornavam-se mais fracas à medida que a luz

diminuía à sua frente. -Aquelas de que necessita são difíceis de

encontrar.. tão novas. Para entender as suas cartas... talvez mais

velhas... não morrem tão facilmente...

- Não. As mais novas são mais seguras... trate-as com cuidado.

- ... se se mantivessem de boca fechada...

- ... o risco...

Muito depois de as vozes desaparecerem, Arya ainda via a luz do

archote, uma estrela fumegante pedindo-lhe que a seguisse, Duas

vezes parecia ter desaparecido, mas ela prosseguiu em frente, e nas

duas vezes encontrou-se no topo de escadas íngremes e estreitas,

com o archote cintilando muito abaixo. Apressou-se em segui-lo para

baixo, e mais para baixo. Uma vez tropeçou numa pedra e caiu

contra a parede, e sua mão encontrou terra nua suportada por

troncos, já não mais o túnel revestido de pedra.

Sentia rastejar atrás deles por milhas. Por fim, eles desapareceram,

mas não havia lugar para onde ir a não ser em frente. Encontrou de

novo a parede e a seguiu, cega e perdida, fazendo de conta que

Nymeria caminhava ao seu lado na escuridão. Por fim, mergulhou até

o joelho em uma água malcheirosa, desejando poder dançar sobre ela

como Syrio talvez pudesse, e perguntando-se se alguma vez voltaria a

ver a luz. Já estava completamente escuro quando Arya finalmente

emergiu para o ar noturno.

Descobriu que se encontrava na desembocadura de um esgoto, no

local onde se despejava no rio. Cheirava tão mal que ela se despiu ali

mesmo, atirando a roupa suja para a margem do rio antes de

mergulhar nas profundas águas negras. Nadou até sentir-se limpa, e

saiu da água tremendo. Alguns cavaleiros passaram pela estrada do

rio enquanto Arya lavava a roupa, mas, se a viram, magricela e nua,

esfregando os farrapos ao luar, não lhe deram importância.

Estava a milhas do castelo, mas, onde quer que se estivesse em Porto

Real, bastava olhar para cima para ver a Fortaleza Vermelha no topo

do Monte Aegon, e assim não havia perigo de não encontrar o

caminho de volta. A roupa já estava quase seca quando chegou aos

portões da casa. A porta levadiça encontrava-se descida e os portões,

trancados, mas dirigiu-se para a porta lateral de entrada. Os homens

de manto dourado que estavam de vigia zombaram dela quando lhes

pediu que a deixassem entrar.

- Desapareça - disse um deles. - Já não há restos da cozinha, e não

queremos pedintes depois do cair da noite,

- Não sou pedinte - ela disse. - Eu vivo aqui.

- Eu mandei que desapareça. Precisa de um cascudo nas orelhas para

que me escute?

- Quero ver meu pai.

Os guardas trocaram um olhar.

- E eu queria dormir com a rainha, mas isso não me atrasa nem

adianta - disse o mais novo, O outro a encarou.

- E quem é esse teu pai, rapaz? O caçador de ratos da cidade?

- A Mão do Rei - Arya respondeu.

Os dois homens riram, mas então o mais velho deu um soco no

outro, casualmente, como quem dá uma pancada num cão. Arya viu

o golpe antes que se formasse, e pulou para trás, para fora do seu

alcance, intocada.

- Não sou um rapaz - ela cuspiu as palavras. - Sou Arya Stark de

Winterfell, e se me puserem as mãos o senhor meu pai ordenará ver

suas cabeças na ponta de lanças. Se não acreditam em mim, vão

buscar Jory Cassei ou Vayon Poole na Torre da Mão - pôs as mãos

na cintura. - E agora, abrem o portão, ou vão precisar de um

cascudo nas orelhas para ajudá-los a ouvir?

Seu pai estava sozinho na sala privada quando Harwin e Gordo Tom

marcharam com Arya até lá, com uma candeia de azeite brilhando

suavemente junto ao seu cotovelo. Estava inclinado e o maior livro

que Arya vira na vida, um volume grosso com páginas amarelas e

duras escritas numa letra complicada, encadernadas em couro

desbotado. Eddard Stark fechou o livro para ouvir o relatório de

Harwin. Tinha o rosto severo quando mandou os homens embora

com agradecimentos.

- Você sabe que coloquei metade da minha guarda à sua procura? -

disse Eddard Stark miando ficaram sozinhos. - Septá Mordane está

fora de si de tanto medo. Está no septo orando pelo seu regresso sã

e salva. Arya, você sabe que não deve nunca sair dos portões do

castelo sem minha licença.

- Eu não saí dos portões - ela disse. - Bem, não tive intenção de sair.

Estava lá embaixo nas masmorras, só que elas se transformaram,

assim, num túnel. Estava tudo às escuras e eu não tinha um archote

ou uma vela para iluminar, e por isso tive de continuar. Não podia

voltar por onde tinha vindo por causa dos monstros. Pai, eles

estavam falando de matá-lo! Os monstros, não, os dois homens. Eles

não me viram, porque estava imóvel como uma pedra e silenciosa

como uma sombra, mas eu os ouvi. Disseram que o senhor tem um

livro e um bastardo, e que se uma Mão podia morrer, por que não

uma segunda? O livro é esse? Aposto que o bastardo é Jon.

- Jon? Arya, do que está falando? Quem foi que disse isso?

- Eles disseram. Era um gordo com anéis e uma barba amarela

bifurcada, e outro com cota de malha e um capacete de aço. E o

gordo disse que tinham de fazer que demorasse mais, mas o outro

respondeu que não podiam continuar fazendo malabarismos, e o

lobo e o leão iam atacar-se um ao outro, e que era uma farsa -

tentou se lembrar do resto. Não tinha compreendido bem tudo o que

ouvira, e agora tudo se misturava em sua cabeça. - O gordo disse

que a princesa estava esperando bebê. O do capacete de aço, que

tinha o archote, disse que tinham de se apressar. Acho que ele era

um feiticeiro.

- Um feiticeiro - disse Ned, sem sorrir. - Tinha uma longa barba

branca e um chapéu alto e pontiagudo salpicado de estrelas?

- Não! Não foi como nas histórias da Velha Ama. Ele não parecia um

feiticeiro, mas o gordo disse que ele era.

- Vou preveni-la, Arya, que se está tecendo este fio de ar...

- Não, eu já lhe disse, foi nas masmorras, perto do lugar com a

parede secreta. Eu estava caçando gatos e, bem.. - torceu o nariz. Se

admitisse ter derrubado Príncipe Tommen, seu pai ficaria realmente

zangado com ela. - . . bem, entrei assim por uma janela. Foi onde

encontrei os monstros.

- Monstros e feiticeiros - o pai disse. - Parece que você teve uma bela

aventura. Esses homens que disse ter ouvido, falaram de

malabarismos e pantomimas?

- Sim - Arya admitiu - só que...

- Arya, eles eram pantomimeiros - seu pai a repreendeu. - Deve

haver por esses dias uma dúzia de trupes em Porto Real, vindas para

ganhar algumas moedas com o público do torneio. Não tenho certeza

do que esses dois faziam no castelo, mas talvez o rei tenha pedido

um espetáculo.

- Não - ela balançou a cabeça obstinadamente. - Eles não eram...

- Seja como for, não devia andar seguindo pessoas e espiá-las. E

tampouco me agrada a idéia de minha filha andar se enfiando por

janelas desconhecidas atrás de gatos vadios. Olhe para você, querida.

Seus braços estão cobertos de arranhões. Isto já se prolongou o

suficiente. Diga a Syrio Forel que quero conversar com ele..

Seu pai foi interrompido por uma batida súbita e curta na porta.

- Senhor Eddard, meus perdões - chamou Desmond, abrindo uma

fresta da porta -, mas está aqui um irmão negro suplicando uma

audiência. Diz que o assunto é urgente. Pensei que talvez quisesse

saber.

- Minha porta está sempre aberta para a Patrulha da Noite - ele

respondeu.

Desmond introduziu o homem na sala. Era corcunda e feio, com uma

barba malcuidada e roupas sujas, mas Eddard Stark o recebeu de

forma agradável e perguntou seu nome.

- Yoren, a serviço de vossa senhoria. Minhas desculpas pela hora - fez

uma reverência para Arya. - E este deve ser o seu filho. Ele se parece

com o senhor.

- Sou uma menina - Arya disse, exasperada. Se aquele velho vinha da

Muralha, devia ter passado por Winterfell. - Conhece meus irmãos? -

perguntou em tom excitado. - Robb e Bran estão em Winterfell, e Jon

está na Muralha. Jon Snow. Ele também pertence à Patrulha da

Noite, deve conhecê-lo, tem um lobo gigante, branco, de olhos

vermelhos. Jon já é um patrulheiro? Eu sou Arya Stark - o velho, com

suas malcheirosas roupas negras, a olhava de um modo estranho,

mas Arya parecia não conseguir parar de falar. - Quando o senhor

voltar à Muralha, pode levar uma carta minha para Jon? - desejava

que Jon estivesse ali naquele momento. Ele acreditaria no que ela

dizia sobre as masmorras e o homem gordo com a barba bifurcada e

o feiticeiro do capacete de aço.

- Minha filha esquece-se com frequência da educação - disse Eddard

Stark com um ligeiro sorriso que suavizava suas palavras. - Peço-lhe

perdão, Yoren. Foi meu irmão Benjen que o enviou?

- Ninguém me enviou, senhor, além do velho Mormont. Estou aqui

para encontrar homens para a Muralha, e da próxima vez que Robert

fizer um torneio, dobrarei o joelho e gritarei aquilo que nos faz falta,

para ver se o rei e sua Mão têm alguma escória nas masmorras de

que queiram se ver livres. Mas pode-se dizer que Benjen Stark é o

motivo de estarmos nos falando. O sangue dele corre negro, o que

fez com que fosse tanto meu irmão como seu. Foi por ele que vim. E

cavalguei duramente, e como, quase matei a égua de tanto fazê-la

correr, mas deixei os outros muito para trás.

- Os outros?

Yoren cuspiu:

- Mercenários, cavaleiros livres e lixo dessa espécie. Aquela estalagem

estava cheia deles, e os vi farejando o cheiro. O cheiro de sangue ou

de ouro, no fim das contas sempre dá no mesmo. E nem todos

vieram para Porto Real. Alguns foram a galope para o Rochedo

Casterly, e lá é mais perto. A essa altura, Lorde Tywin já deve ter

recebido a notícia, pode contar com isso.

Eddard franziu a testa.

- E que notícia é essa?

Yoren lançou um olhar a Arya.

- É melhor que eu a dê em particular, senhor, se me desculpa.

- Como quiser. Desmond, leve minha filha aos seus aposentos - Ned

deu um beijo na testa da filha. - Acabaremos nossa conversa amanhã.

Arya ficou no mesmo lugar, como se tivesse criado raízes.

- Não aconteceu nada ao Jon, não é? - perguntou a Yoren. - Ou ao

Tio Benjen?

- Bem, quanto ao Stark não sei dizer. O rapaz Snow estava

razoavelmente bem quando deixei a Muralha. Não são eles a minha

preocupação.

Desmond pegou-lhe na mão.

- Venha, senhora. Ouviu o senhor seu pai.

Arya não tinha alternativa que não fosse ir com ele, desejando que

tivesse sido Tom Gordo a buscá-la. Com Tom podia ter conseguido,

com alguma desculpa, ficar junto à porta e ouvir o Yoren tinha a

dizer, mas Desmond era inflexível demais para ser enganado.

- Quantos guardas meu pai tem? - ela perguntou a Desmond

enquanto desciam para o seu quarto.

- Aqui em Porto Real? Cinquenta.

- Não deixariam que alguém o matasse, não é? - ela quis saber.

Desmond riu.

- Disso não precisa ter medo, senhorinha. Lorde Eddard está

guardado noite e dia. Não lhe acontecerá nenhum mal.

- Os Lannister têm mais de cinquenta homens.

- Têm, mas cada nortenho vale tanto como dez desses soldados do

Sul, por isso pode dormir tranquila.

- E se um feiticeiro fosse enviado para matá-lo?

- Bem, quanto a isso - Desmond respondeu, puxando da espada -, os

feiticeiros morrem como os outros homens depois de lhes cortarmos

a cabeça.


Eddard


- Robert, eu lhe peço - suplicou Ned -, atente ao que está dizendo.

Está falando de assassinar uma criança.

- A puta está prenha! - o punho do rei bateu contra a mesa do

conselho, fazendo um estrondo de trovão. - Eu o preveni de que isto

ia acontecer, Ned. Lá nas terras acidentadas, eu disse, mas você não

me ouviu. Pois bem, agora terá de me escutar. Quero-os mortos, a

mãe ou a criança, e aquele palerma do Viserys também. Está claro o

suficiente para você? Quero-os mortos.

Os outros conselheiros estavam fazendo o seu melhor para fingir que

estavam em outro lugar qualquer. Sem dúvida eram mais sábios que

Eddard Stark, que raramente se sentira tão só então.

- Será desonrado para sempre se fizer isto.

- Então que isso paire sobre minha cabeça, desde que eles morram.

Não sou tão cego que não consiga ver a sombra do machado quando

o tenho sobre o pescoço.

- Não há machado nenhum - disse Ned a seu rei. - Há apenas a

sombra de uma sombra, velha, de vinte anos... se é que existe de

todo.

- Se? - perguntou Varys com suavidade, apertando as mãos

empoadas. - Senhor, está me ofendendo. Traria eu mentiras ao rei e

ao conselho?

Ned olhou friamente para o eunuco.

- Traria os murmúrios de um traidor que está a meio mundo de

distância, senhor. Talvez Mormont esteja enganado. Talvez mentindo.

- Sor Jorah não se atreveria a me enganar - disse Varys com um

sorriso manhoso. - Pode confiar nisso, senhor. A princesa espera um

bebê.

- Você já disse. Se estiver enganado, nada temos a temer. Se a jovem

abortar, nada temos a temer. Se der à luz uma filha, e não um filho,

nada temos a temer. Se o bebê morrer na infância, nada temos a

temer.

- Mas e se for um rapaz? - insistiu Robert. - E se ele sobreviver?

- O mar estreito ainda estará entre nós. Temerei os dothrakis no dia

em que ensinarem os seus cavalos a correr sobre a água.

O rei bebeu um trago de vinho e olhou carrancudo para Ned.

- Então me aconselha a não fazer nada até que o filho do dragão

desembarque seu exército nas minhas costas, é isso?

- Este "filho do dragão" está na barriga da mãe - Ned retrucou. -

Nem mesmo Aegon conquistou alguma coisa até ter sido

desmamado.

- Deuses! Você é teimoso como um auroque, Stark - o rei olhou em

volta da mesa do conselho. - Terá o resto dos senhores perdido as

línguas? Ninguém incutirá bom-senso neste tolo de cara congelada?

Varys dirigiu ao rei um sorriso bajulador e pousou a mão suave na

manga de Ned.

- Compreendo

suas

apreensões,

Lorde

Eddard,

realmente

compreendo. Não senti nenhuma alegria por trazer ao conselho estas

graves notícias. O que estamos discutindo é uma coisa terrível, uma

coisa vil. Mas aqueles que ousam governar têm de fazer coisas vis

para bem do reino, por mais que isso lhes custe.

Lorde Renly encolheu os ombros.

- Para mim o assunto parece suficientemente simples. Devíamos ter

mandado matar Viserys e a irmã há anos, mas Sua Graça, meu

irmão, cometeu o erro de ouvir o que dizia Jon Arryn.

- A misericórdia nunca é um erro, Lorde Renly - Ned respondeu. -

No Tridente, Sor Barristan abateu uma dúzia de bons homens,

amigos de Robert e meus. Quando o trouxeram até nós, gravemente

ferido e próximo da morte, Roose Bolton insistiu que lhe cortássemos

a garganta, mas seu irmão disse: "Não matarei um homem por ser

leal nem por lutar bem", e enviou seu próprio meistre para tratar das

feridas de Sor Barristan - dirigiu ao rei um longo olhar frio. - Gos-

taria que esse homem estivesse aqui hoje.

Robert ainda tinha vergonha suficiente para corar.

- Não é a mesma coisa - queixou-se. - Sor Barristan era um cavaleiro

da Guarda Real.

- Ao passo que Daenerys é uma garota de catorze anos - Ned sabia

que estava insistindo muito, para além do que era sensato, mas não

conseguia ficar calado. - Robert, pergunto-lhe, para que nos

erguemos contra Aerys Targaryen, se não foi para pôr um fim ao

assassinato de crianças?

- Para pôr um fim aos Targaryenl - o rei rosnou.

- Vossa Graça, nunca o vi temer Rhaegar - Ned lutou por manter o

desdém afastado da voz, mas falhou. - Será que os anos o

emascularam tanto que agora treme com a sombra de uma criança

por nascer?

Robert ficou roxo.

- Já chega, Ned - o rei o preveniu, apontando seu dedo em riste. -

Nem mais uma palavra. Esqueceu quem é o rei aqui?

- Não, Vossa Graça - respondeu Ned. - E Vossa Graça, se esqueceu?

- Basta! - o rei berrou. - Estou farto de conversa. Que eu seja maldito

se não acabar com isto. Que dizem todos?

- Ela tem de ser morta - Lorde Renly declarou.

- Não temos escolha - Varys murmurou. - É triste, é triste..

Sor Barristan Selmy ergueu seus olhos azuis-claros e disse:

- Vossa Graça, existe honra em enfrentar um inimigo no campo de

batalha, mas não há nenhuma em matá-lo no ventre da mãe. Perdoe-

me, mas devo colocar-me ao lado de Lorde Eddard.

O Grande Meistre Pycelle limpou a garganta, um processo que

pareceu demorar vários minutos.

- Minha ordem serve o reino, não o governante. Há tempos,

aconselhei o Rei Aerys tão lealmente como aconselho agora o Rei

Robert, e por isso não nutro por esta moça nenhuma má vontade.

Mas pergunto-lhes o seguinte: se a guerra voltar, quantos soldados

morrerão? Quantas vilas serão queimadas? Quantas crianças serão

arrancadas das mães para morrer na ponta de uma lança? - afagou a

luxuriante barba branca, infinitamente triste, infinitamente cansado. -

Não será mais sensato, até mais bondoso, que Daenerys Targaryen

morra agora para que dezenas de milhares possam viver?

- Mais bondoso - disse Varys. - Ah, que bem-dito, e que verdadeiro,

Grande Meistre. Esta é uma verdade muito grande. Se os deuses

tiverem o capricho de conceder um filho a Daenerys Targaryen, o

reino sangrará.

Mindinho foi o último. Quando Ned olhou para ele, Lorde Petyr

abafou um bocejo.

- Quando um homem se dá na cama com uma mulher feia, a melhor

coisa a fazer é fechar os olhos e despachar o assunto - declarou. -

Esperar não tornará a donzela mais bonita. Beije-a e faça o que tem

de ser feito.

- Beije-a? - repetiu Sor Barristan, horrorizado.

- Um beijo de aço - Mindinho esclareceu.

Robert encarou a sua Mão.

- Ora, eis aqui, Ned. Você e Sor Selmy estão sós nisto. A única

questão que permanece é quem poderemos encontrar para matá-la?

- Mormont suspira por um perdão real - lembrou-lhes Lorde Renly.

- Desesperadamente - Varys confirmou -, mas ainda suspira mais pela

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