Jon pôs-se em pé. Donal Noye os olhava furioso.
- O local das lutas é o pátio - disse o armeiro. -
Mantenham suas disputas longe do meu armeiro, ou as
transformarei em minhas disputas. Não gostariam que isso
acontecesse.
Sapo sentou-se no chão, tateando a nuca com cuidado. Os
dedos voltaram cheios de sangue.
- Ele tentou me matar.
- Verdade. Eu vi - interveio um dos violadores.
- Quebrou o meu pulso - disse de novo
Grenn, mostrando-o a Noye. O armeiro deu
ao pulso o mais breve dos olhares.
- Uma contusão. Talvez um entorse. Meistre Aemon lhe
dará um unguento. Vai com ele, Sapo, essa cabeça precisa
ser tratada. Os outros voltem às celas. Você não, Snow.
Você fica.
Jon sentou-se pesadamente no longo banco de madeira
enquanto os outros saíam, indiferente aos olhares dos
outros, às promessas silenciosas de futuras desforras.
Sentia seu braço latejar.
- A Patrulha necessita de todos os homens que consiga
arranjar - disse Donal Noye quando ficaram a sós. -
Mesmo de homens como o Sapo. Não ganhará honrarias se
matá-lo.
A ira de Jon relampejou.
- Ele disse que minha mãe era...
- ... uma rameira. Eu ouvi. E daí?
- Lorde Eddard Stark não era homem de dormir com
rameiras - disse Jon em tom gelado.
- Sua honra...
- ... não o impediu de ser pai de um bastardo. Não é?
Jon estava gelado de raiva.
- Posso ir?
- Vai quando eu disser para ir.
Jon observou carrancudo o fumo erguendo -se do braseiro,
até que Noye lhe tomou o queixo, com dedos grossos que
lhe viraram a cabeça.
- Olha para mim quando falo com você, rapaz.
Jon olhou. O armeiro tinha um peito que era como uma
barrica de cerveja, e um estômago à al tura. O nariz era
largo e achatado, e parecia estar sempre precisando fazer
a barba. A manga esquer da de sua túnica de lã negra
estava presa ao ombro com um alfinete de prata em forma
de espada.
- As palavras não farão da sua mãe uma rameira. Ela era
o que era, e nada que Sapo diga pode mudar isso. Sabe,
temos homens na Muralha cujas mães eram rameiras.
A minha mãe não, pensou Jon, teimosamente. Nada sabia da
mãe; Eddard Stark não fala va dela. Mas por vezes sonhava
com ela, com tanta frequência que quase podia ver seu
rosto. Nos sonhos, era bela, bem-nascida e tinha olhos
bondosos,
- Você pensa que tem azar por ser bastardo de um grande
senhor? - prosseguiu o armeiro. - Aquele rapaz, Jeren, é
descendente de um septão, e Cotter Pyke é filho ilegítimo
de uma mulher de taberna. Hoje, comanda Atalaialeste do
Mar.
- Não me importa - disse Jon, - Não me importo com eles,
e não me importo com você ou Thorne ou Benjen Stark,
ou seja quem for. Detesto isto aqui. E muito... é frio.
- Sim. Frio, duro e miserável, é assim a Muralha e assim
são os homens que a percorrem. Nada como as histórias
que sua ama de leite te contou. Pois bem, cague nas
histórias e cague na sua ama de leite. É assim que as
coisas são, e está aqui para a vida toda, tal como o resto
de nós.
- Vida - repetiu Jon amargamente. O armeiro podia falar
da vida. Tivera uma. Só vestira o negro depois de perder
um braço no cerco de Ponta Tempestade. Antes disso,
fora ferreiro de Stannis Baratheon, o irmão do rei. Vira os
Sete Reinos de uma ponta à outra, gozara de festins e
mulheres, e lutara numa centena de batalhas. Dizia -se que
fora Donal Noye quem forjara o martelo de batalha do Rei
Robert, aquele que esmagara a vida de Rhaegar Targaryen
no Tridente, Fizera tudo aquilo que Jon nunca faria, e
depois, quando envelheceu, bem para lá dos trinta anos,
recebeu um golpe de raspão de um machado, mas a ferida
ulcerou até que todo o braço teve de lhe ser tirado. Só
então, aleijado, é que Donal Noye vi era para a Muralha,
quando tinha a vida praticamente acabada.
- Sim, vida - disse Noye, - Uma vida longa, ou curta, é
contigo, Snow, Pelo caminho que está seguindo, um dos
teus irmãos te abrirá a garganta uma noite.
- Eles não são meus irmãos - Jon retorquiu bruscamente. -
Odeiam-me porque sou melhor que eles.
- Não. Odeiam-no porque age como se fosse melhor que
eles. Olham para você e veem um bastardo educado num
castelo que pensa que é um fidalgo - o armeiro se
aproximou. - Não é fidalgo nenhum. Lembre -se disso. É
um Snow, não um Stark. É um bastardo e um arruaceiro.
- Um arruaceiro? - Jon quase se engasgou com a palavra. A
acusação era tão injusta que lhe tirou a respiração. -
Foram eles que me atacaram. Os quatro.
- Quatro que você humilhou no pátio. Quatro que
provavelmente o temem. Vi você lutar. Contigo não há
treinos. Um bom gume na sua espada, e eles estão mortos;
você sabe, eu sei, eles sabem. Não lhes deixa nada.
Envergonha-os. Isso o deixa orgulhoso?
Jon hesitou. Sentia -se orgulhoso quando ganhava. E por
que não havia de sentir? Mas o ar meiro também estava
lhe tirando isto, tentando convencê -lo de que estava
fazendo algo de errado.
- Eles são todos mais velhos que eu - disse,
defensivamente.
- Mais velhos, maiores e mais fortes, é verdade. Mas
aposto que seu me stre de armas em Winterfell o ensinou
a lutar contra homens maiores. Quem é ele, algum velho
cavaleiro?
- Sor Rodrik Cassei - disse Jon com prudência. Havia ali
uma armadilha. Sentia-a fechar-se em seu redor.
Donal Noye inclinou-se para a frente, encarando J on de
perto,
- Pense agora nisto, rapaz. Nenhum dos outros teve
alguma vez um mestre de armas até Sor Alliser. Os pais
deles eram lavradores, carroceiros e caçadores furtivos,
ferreiros, mineiros e rema dores numa galé mercantil. O
que conhecem da luta apren deram entre os conveses, nas
ruelas de Vilavelha e Lanisporto, em bordéis e tabernas na
estrada do rei. Podem ter dado uns golpes com uns paus
antes de terem chegado aqui, mas garanto -lhe que nem
um em cada vinte foi sufi cientemente rico para possuir
uma espada verdadeira - seu olhar era sombrio. - Então,
que lhe parecem agora as suas vitórias, Lorde Snow?
- Não me chame assim! - disse Jon em tom penetrante,
mas sua ira perdera força. De re pente, sentiu-se
envergonhado e culpado. - Eu nunca... não pensei...
- É melhor que comece a pensar - Noye o preveniu. - É
isto, ou passar a dormir com um punhal na cabeceira.
Agora vá.
Quando Jon saiu do armeiro era quase meio -dia. O sol
rompera as nuvens. Virou -lhe as costas e ergueu os olhos
para a Muralha, que ardia azul e cristalina à luz do sol.
Mesmo depois de todas aquelas semanas, vê -la ainda o
fazia arrepiar-se. Séculos de poeira soprada pelo vento
tinham-na marcado e polido, cobrindo -a como uma
película, e parecia frequentemente ser de um cinza-claro,
da cor do céu nublado..., mas quando o sol caía sobre ela
num dia luminoso, brilhava, viva de luz, um colossal
penhasco azul-esbranquiçado que enchia metade do céu.
A maior estrutura alguma vez construída por mãos
humanas, dissera Benjen Stark a Jon na estrada do rei
quando, pela primeira vez, vislumbraram a Muralha a
distância. "E, sem a menor dúvida, a mais inútil"
acrescentara Tyrion Lannister com um sorriso, mas até o
Duende se remeteu ao silêncio quando se aproximaram.
Podia-se vê-la de milhas de distância, uma li nha azul--
clara ao longo do horizonte norte, estendendo -se para
leste e oeste e desaparecendo na distância longínqua,
imensa e contínua. Isto é o fim do mundo, parecia dizer.
Quando finalmente viram Castelo Negro, suas fortificações
de madeira e torres de pedra não pareciam mais que um
punhado de blocos de brincar espalhados na neve sob a
vasta muralha de gelo. A antiga fortaleza dos irmãos
negros não era nenhum Winterfell, nem sequer era um
castelo. Sem muralhas, não podia ser defendida, não pelo
sul, leste ou oeste; mas era apenas o norte que
preocupava a Patrulha da Noite, e para o norte erguia -se
a Muralha. Erguia-se a cerca de duzentos metros, três
vezes a altura da mais alta torre do forte que defendia. O
tio dissera-lhe que o topo era suficientement e largo para
que uma dúzia de cavaleiros cavalgassem lado a lado
vestidos de armadura. As esguias silhuetas de enormes
catapultas e monstruosas gruas de madeira mon tavam
guarda lá em cima, como esqueletos de grandes aves, e
entre elas caminhavam homens de negro, pequenos como
formigas.
A porta do armeiro, olhando para cima, Jon sentiu -se
quase tão esmagado como naquele dia na estrada do rei
em que vira a Muralha pela primeira vez. A Muralha era
assim. Por vezes quase conseguia se esquecer de que ela
estava ali, do mesmo modo que uma pessoa se esquece do
céu ou da terra que pisa, mas havia outras alturas em que
parecia que nada mais existia no mundo. Era mais velha
que os Sete Reinos, e quando Jon olhava para cima,
sentia-se entontecido. Conseguia sentir o enorme peso de
todo aquele gelo fazendo pressão sobre ele, como se
estivesse prestes a ruir, e de algum modo Jon sabia que se
a Muralha caísse, o mundo cairia com ela.
- Faz-nos pensar no que está do outro lado - disse uma
voz familiar. Jon olhou em volta.
- Lannister. Não vi... quer dizer, pensei que estivesse
sozinho.
Tyrion Lannister estava enrolado em peles tão grossas que
parecia um urso muito pequeno.
- Muito se pode dizer em defesa de apanhar as pessoas
desprevenidas. Nunca se sabe o que se pode aprender.
- Não aprenderá nada comigo - disse-lhe Jon. Pouco vira o
anão desde o fim da viagem. Na qualidade de irmão da
rainha, Tyrion Lannister era convidado de honra da
Patrulha da Noite. O Senhor Comandante destinara -lhe
aposentos na Torre Real - embora, apesar do nome, ne-
nhum rei a tivesse visitado em cem anos -, e Lannister
jantava à mesa de Mormont, passava os dias percorrendo
a Muralha e as noites jogando dados e bebendo com Sor
Alliser, Bowen Marsh e os outros oficiais de alta patente.
- Ah, eu aprendo coisas onde quer que vá - o homenzinho
indicou a Muralha com um ca jado negro e nodoso. - Como
estava dizendo... por que será que quando um homem
constrói uma parede, o homem seguinte precisa
imediatamente saber o que está do outro lado? - inclinou
a cabeça e olhou Jon com seus olhos curiosos e desiguais.
- Você quer saber o que está do outro lado, não quer?
- Não é nada de especial - disse Jon. Desejava partir com
Benjen Stark em suas patrulhas, penetrar profundamente
nos mistérios da Floresta Assombrada, desejava lu tar com
os selvagens de Mance Rayder e defender o reino contra
os Outros, mas era melhor não mencionar as coisas que
desejava. - Os patrulheiros dizem que é só floresta,
montanhas e lagos gelados, com montes de neve e gelo.
- E os gramequins e os snarks - disse Tyrion. - Não nos
esqueçamos deles, Lorde Snow, caso contrário, para que
serve aquela grande coisa?
- Não me chame Lorde Snow.
O anão ergueu uma sobrancelha.
- Preferiria ser tratado por Duende? Se deixá -los
perceber que suas palavras o magoam, nunca se verá livre
da troça. Se lhe quiserem atribuir um nome, aceite -o,
faça-o seu. Assim, não poderão voltar a magoá -lo com ele
- fez um gesto com o cajado. - Vem, anda comigo. A esta
altura devem estar servindo um guisado nojento na sala
de estar, e não recusarei uma tigela de qualquer coisa
quente.
Jon também tinha fome, e assim se pôs ao lado do
Lannister e moderou o passo para ajustá -lo aos
desajeitados e bamboleantes do anão. O vento estava
aumentando, e ouviam os velhos edi fícios de madeira
estalarem em toda a volta, e, a distância, uma porta
pesada bater, uma e outra vez, esquecida. A certa altura
ouviu-se um tump abafado, quando uma camada de neve
deslizou de um telhado e caiu perto deles.
- Não vejo seu lobo - disse o Lannister enquanto
caminhavam.
- Amarro-o nos velhos estábulos quando estamos
treinando. Agora alojam todos os cavalos nas cavalariças
orientais e ninguém o incomoda. Durante o resto do
tempo, fica comigo. Minha cela fica na Torre de Hardin.
- Essa é a que tem a ameia partida, não é? Pedra
estilhaçada no pátio abaixo e uma inclinação que parece o
nosso nobre rei Robert depois de uma longa noite de
bebida? Pensei que todos esses edifícios estivessem
abandonados.
Jon encolheu os ombros.
- Ninguém liga para onde dormimos. A maior parte das
velhas torres está vazia, e pode -se escolher qualquer cela
que se deseje - em outros tempos, Castelo Negro alojara
cinco mil guerreiros com todos os seus cavalos, servidores
e armas. Agora era o lar de um décimo desse número, e
partes do castelo estavam caindo em ruína.
A gargalhada de Tyrion Lannister evaporou como uma
nuvem no ar frio.
- Hei de dizer ao seu pai para prender mais alguns
pedreiros, antes que sua torre caia.
Jon podia sentir a troça que havia naquelas palavras, mas
não adiantava negar a verdade. A Patrulha construíra
dezenove grandes fortes ao longo da Muralha, mas apenas
três se mantinham ocupados: Atalaialeste, em sua costa
cinzenta varrida pelo vento ; a Torre Sombria, junto às
montanhas onde a Muralha terminava; e, entre elas,
Castelo Negro, na e xtremidade da estrada do rei. As
outras fortificações, há muito desertas, eram lugares
solitários e assombrados, onde os ventos frios assobiavam
através de janelas negras e os espíritos dos mortos
guarneciam os baluartes.
- É melhor que eu esteja sozinho - disse teimosamente
Jon. - Os outros temem o Fantasma.
- Rapazes sensatos - disse o Lannister. Então, mudou de
assunto. - Dizem que seu tio já está fora há tempo
demais.
Jon recordou o desejo que tivera em sua ira, a visão de
Benjen Stark morto na neve, e desv iou o olhar
rapidamente. O anão tinha maneiras de se aperceber das
coisas, e Jon não queria que ele visse a culpa em seus
olhos.
- Ele disse que voltaria por volta do dia do meu nome -
admitiu. O dia do seu nome chegara e partira, sem ser
notado, havia uma q uinzena. - Iam à procura de Sor
Waymar Royce, cujo pai é vassalo de Lorde Arryn. Tio
Benjen disse que poderiam ir à sua procura até tão longe
como a Torre Sombria. Isso é todo o caminho até as
montanhas.
- Ouvi dizer que têm desaparecido muitos patrulheiros
nos últimos tempos - disse o Lannister enquanto subiam
os degraus que levavam à sala comum. Sorriu e abriu a
porta. - Talvez os gramequins estejam com fome este ano.
Lá dentro, o salão era imenso e cheio de correntes de ar,
mesmo com um fogo a rugir na grande lareira. Corvos
faziam ninhos nas vigas do majestoso teto. Jon ouviu seus
gritos, enquanto acei tava uma tigela de guisado e uma
fatia de pão preto dos cozinheiros do dia. Grenn, Sapo e
alguns dos outros estavam sentados no banco mais
próximo do calor, rindo e lançando pragas uns aos outros
com vozes rudes. Jon os observou por um momento,
pensativo. Depois, escolheu um local na ponta oposta do
salão, bem afastado do resto dos presentes.
Tyrion Lannister sentou-se à sua frente, cheirando,
desconfiado, o guisado.
- Cevada, cebola, cenoura - murmurou. - Alguém deveria
dizer aos cozinheiros que nabo não é carne.
- É guisado de carneiro - Jon descalçou as luvas e aqueceu
as mãos no vapor que subia da tigela. O cheiro lhe dava
água na boca.
- Snow.
Jon reconheceu a voz de Alliser Thorne, mas havia nela
uma curiosa nota que não ouvira antes. Virou -se.
- O Senhor Comandante deseja vê -lo. Já.
Por um momento, Jon ficou muito assustado para se
mover. Por que ia querer o Senhor Comandante vê -lo?
Tinham ouvido algo sobre Be njen, pensou, descontrolado.
Estava morto, a visão tinha se tornado realidade.
- É o meu tio? - proferiu atabalhoadamente. - Regressou
em segurança?
- O Senhor Comandante não está habituado a esperar - foi
a resposta de Sor Alliser. - E eu não estou habituado a
ver minhas ordens questionadas por bastardos.
Tyrion Lannister saltou do banco e pôs -se em pé.
- Pare com isso, Thorne. Está assustando o rapaz.
- Não se intrometa em assuntos que não lhe dizem
respeito, Lannister. Não tem lugar aqui.
- Mas tenho um lugar na corte - disse o anão, sorrindo. -
Uma palavra ao ouvido certo e morrerá como um velho
amargo antes que tenha outro rapaz para treinar. E agora
diga ao Snow porque é que o Velho Urso precisa vê -lo. Há
notícias do tio?
- Não - Sor Alliser respondeu. - É um assunto totalmente
diferente. Uma ave chegou esta manhã de Winterfell com
uma mensagem sobre seu irmão - depois, corrigiu-se: - De
seu meio-irmão.
- Bran - disse Jon sem fôlego, pondo-se em pé de um salto.
- Alguma coisa aconteceu a Bran.
Tyrion Lannister pouso u-lhe a mão no braço.
- Jon. Lamento muito,
Jon quase nem o ouviu. Afastou a mão de Tyrion e
atravessou o salão a passos largos. Ao chegar às portas, já
estava correndo. Precipitou -se na direção da Torre do
Comandante, atraves sando pequenas nuvens de neve v elha
soprada pelo vento. Quando os guardas o deixaram passar,
subiu os degraus da torre dois a dois. Ao avançar pelo
aposento do Senhor Comandante, tinha as botas
empapadas, os olhos agitados, e arquejava.
- Bran - disse. - Que diz a mensagem de Bran?
Jeor Mormont, o Senhor Comandante da Patrulha da
Noite, era um homem áspero e velho com uma imensa
cabeça calva e uma desgrenhada barba cinzenta. Tinha um
corvo pousado no braço e alimentava-o com grãos de
milho.
- Ouvi dizer que sabe ler - sacudiu o corvo, e a ave bateu
as asas e voou até a janela, onde pousou, observando
Mormont tirar do cinto um rolo de papel e entregá -lo a
Jon."Grão", resmungou o corvo em voz roufenha. "Grão,
grão",
O dedo de Jon percorreu o contorno do lobo gigante de
cera branca do selo quebrado. Reconheceu a letra de
Robb, mas as palavras pareciam sair de foco e fugir
quando tentou lê-las. Percebeu que estava chorando.
Então, através das lágrimas encontrou o sentido das
palavras e ergueu a cabeça.
- Ele acordou - disse. - Os deuses o devolveram.
- Aleijado - disse Mormont. - Lamento, rapaz. Leia o
resto da carta.
Olhou as palavras, mas não importavam. Bran ia
sobreviver.
- Meu irmão vai viver - disse a Mormont. O Senhor
Comandante balançou a cabeça, reco lheu um punhado de
milho e assobiou. O corvo voou até seu ombro, gritando
"Viver.' Viver.'".
Jon correu pela escada abaixo, com um sorriso no rosto e
a carta de Robb na mão.
- Meu irmão vai viver - disse aos guardas. Os homens
entreolharam-se. Correu de volta à sala comum, onde
encontrou Tyrion Lannister terminando sua refeição.
Agarrou o homenzinho pelos sovacos, ergueu-o no ar e
rodopiou com ele nos braços. - Bran vai viver! - berrou.
Lannister pareceu alarmado. Jon o colocou no chão e pôs-
lhe o papel nas mãos. - Está aqui, leia - disse.
Outros se juntavam e olhavam para ele com curiosidade.
Jon jreparou em Grenn a poucos centímetros. Trazia uma
atadura grossa de lã enrolada na mão. Parecia ansioso e
desconfortável, nada ameaçador. Jon foi falar com ele.
Grenn recuou e ergueu as mãos.
- Fica longe de mim, bastardo.
Jon sorriu para ele.
- Desculpe pelo pulso. Robb usou comigo o mesmo
movimento uma vez, mas com uma lâ mina de madeira.
Doeu como os sete infernos, mas o seu deve ser pior.
Olha, se quiser, posso lhe mostrar como se defender dele.
Alliser Thorne o ouviu.
- Lorde Snow quer agora ocupar meu lugar - fez um
sorriso de escárnio. - Mais facilmente ensinaria eu um
lobo a fazer malabarismos do que você treinaria este
auroque.
- Aceito a aposta, Sor Alliser - disse Jon. - Adoraria ver o
Fantasma fazer malabarismos. Jon ouviu Grenn prender a
respiração, chocado. E o silêncio se fez.
Então, Tyrion Lannister soltou uma gargalhada. Três dos
irmãos negros juntaram-se a ele numa mesa próxima. O
riso espalhou-se pelos bancos, até que mesmo os
cozinheiros riam. Os pássaros agitaram-se nas traves e,
finalmente, até de Grenn saiu um risinho.
Sor Alliser não tirou os olhos de Jon. Enquanto as
gargalhadas ressoavam à sua volta, seu rosto escureceu e
a mão da espada fechou-se num punho.
- Isso foi um enorme erro, Lorde Snow - disse, por fim,
no tom ácido de um inimigo.
Eddard
Eddard Stark entrou a cavalo pelas grandes portas de
bronze da Fortaleza Vermelha, dolo rido, cansado, faminto
e irritado. Ainda estava montado, sonhando com um longo
banho quente, uma galinha assada e uma cama de penas,
quando o intendente do rei lhe disse que o Grande
Meistre Pycelle tinha convocado uma reunião urgente do
pequeno conselho. A honra da presença da Mão era
requisitada assim que fosse conveniente.
- Será conveniente amanhã - exclamou Ned enquanto
desmontava. O intendente fez uma reverência muito
grande.
- Transmitirei aos conselheiros as vossas desculpas,
senhor.
- Não, raios me partam - disse Ned. Não era boa ideia
ofender o conselho ainda antes de come çar. - Irei vê-los.
Rogo que me concedam alguns momentos para vestir algo
mais apresentável.
- Sim, senhor - disse o intendente. - Se desejar,
oferecemos os antigos aposentos de Lorde Arryn, na Torre
da Mão. Mandarei que vossas coisas sejam levadas para lá,
- Agradeço - disse Ned enquanto arrancava as luvas de
montar e as enfiava no cinto. O resto de sua comitiva
vinha entrando pelo portão atrás dele. Ned viu Vayon
Poole, seu próprio inten dente, e o chamou. - Parece que o
conselho precisa urgentemente de mim. Certifique -se de
que minhas filhas encontram seus quartos e diga a Jory
para mantê-las lá. Arya não deve sair - Poole fez uma
reverência. Ned voltou a virar -se para o intendente real. -
Minhas carroças ainda estão vagando pela cidade.
Necessitarei de vestimentas apropriada s.
- Será um grande prazer - o intendente saiu.
E assim Ned entrara em passos largos na sala do conselho,
cansado até os ossos e vestido com roupas emprestadas, e
encontrara quatro membros do pequeno conselho à sua
espera.
O aposento estava ricamente mobiliado. Tapetes myrianos
cobriam o chão em lugar de estei ras e, num canto, cem
animais fabulosos saltavam em tintas vivas num biombo
entalhado vindo das Ilhas do Verão. As paredes estavam
cobertas por tapeçarias de Norvos, Qohor e Lys, e um par
de esfinges valirianas flanqueava a porta, com olhos de
granada polida ardendo em rostos de mármore negro.
O conselheiro de que Ned menos gostava, o eunuco Varys,
o abordou no momento em que entrou.
- Senhor Stark, fiquei imensamente triste ao saber de seus
problemas na estrada do rei. Te mos todos visitado o septo
a fim de acender velas pelo Príncipe Joffrey. Rezo pela sua
recuperação - sua mão esquerda deixou manchas de pó na
manga de Ned, e exalava um odor tão repugnante e doce
como flores numa sepultura.
- Seus deuses ouviram suas preces - respondeu Ned, frio,
mas delicado. - O príncipe fica mais forte a cada dia que
passa - libertou-se do eunuco e atravessou a sala até onde
Lorde Renly estava, junto ao biombo, conversando
calmamente com um homem baixo que só podia ser Min-
dinho. Quando Robert conquistara o trono, Renly não era
mais que um rapaz de oito anos, mas transformara-se
num homem tão parecido com o irmão que N ed o achava
desconcertante. Sempre que o via, era como se os anos
tivessem desaparecido e estivesse pera nte Robert, logo
depois de obter a vitória no Tridente.
- Vejo que chegou em segurança, Lorde Stark - disse
Renly.
- E você também - respondeu Ned. - Peço-lhe perdão,
mas por vezes parece a mim a viva imagem de seu irmão
Robert.
- Uma má cópia - disse Renly com um encolher de
ombros.
- Se bem que muito mais bem -vestida - brincou
Mindinho. - Lorde Renly gasta mais em vestuário que
metade das senhoras da corte.
E era verdade. Renly vestia veludo verde -escuro, com uma
dúzia de veados dourados bor dados no gibão. Uma meia
capa de fio de ouro estava atirada casualmente por sobre
um ombro, presa com um broche de esmeralda.
- Há crimes piores - disse Renly com uma gargalhada. - O
modo como se traja, por exemplo. Mindinho ignorou a
piada. Observou Ned com um sorriso nos lábios que
beirava à insolência,
- Há alguns anos que tenho alimentado a esperança de
conhecê-lo, Lorde Stark. Certamente a Senhora Stark falou
de mim.
- Falou - respondeu Ned com gelo na voz. A astuta
arrogância do comentário o inflamou. - Pelo que sei,
também conheceu meu irmão Brandon.
Renly Baratheon soltou uma gargalhada. Varys arrastou os
pés para mais perto a fim de escutar.
- Bem demais - disse Mindinho. - Ainda carrego comigo
um sinal de sua estima. Brandon também lhe falou de
mim?
- Com frequência, e com algum calor - disse Ned,
esperando que a frase pusesse fim à conversa. Não tinha
paciência para aquele jogo, para aquele duelo de palavras.
-Julgava que o calor não se coadunava com os Stark -
disse Mindinho. - Aqui no Sul, dizem que são todos feitos
de gelo, e que derretem quando viajam para baixo do
Gargalo.
- Não pretendo derreter em breve, Senhor Baelish. Pode
contar com isso - Ned dirigiu-se até a mesa do conselho e
disse: - Meistre Pycelle, confio que esteja bem de saúde.
O Grande Meistre sorriu gentilmente no seu cadeirão
numa extremidade da mesa.
- Suficientemente bem para um homem da minha idade,
senhor - respondeu -, mas receio que me canse facilmente
- finos fios de cabelo branco rodeavam a larga cúpula
calva da testa que se erguia sobre um ro sto amável. Seu
colar de meistre não era uma simples gargantilha de metal
como o que Luwin usava, mas sim duas dúzias de pesadas
correntes entretecidas num ponderoso colar de metal que
o cobria da garganta ao peito. Os elos tinham sido
forjados de todos os metais conhecidos do homem: ferro
negro e ouro vermelho, cobre brilhante e chumbo baço,
aço e estanho, prata, latão, bronze e platina. Granadas,
ametistas e pérolas negras adornavam o metal, e aqui e ali
se via uma esmeralda ou um rubi.
- Talvez possamos começar em breve - disse o Grande
Meistre, com as mãos entrelaçadas sobre a larga barriga. -
Temo que adormeça se esperarmos muito mais tempo.
- Como desejar - a cadeira do rei estava vazia à cabeceira
da mesa, com o veado coroado dos Baratheon bordado a
fio de ouro nas almofadas. Ned ocupou a cadeira ao lado,
na qualidade de mão direita do rei. - Meus senhores -
disse com formalidade -, lamento tê-los feito esperar.
- Sois a Mão do Rei - disse Varys. - Nós servimos à vossa
vontade, Lorde Stark.
Enquanto os outros ocupavam seus lugares habituais,
Eddard Stark foi atingido violenta mente pelo pensamento
de o seu lugar não ser aquele, naquela sala, com aqueles
homens. Recordou o que Robert dissera na cripta por
baixo de Winterfell. Estou rodeado de aduladores e idiotas, ele
insistira. Ned olhou a mesa do conselho e perguntou a si
próprio quais seriam os aduladores e quais os idiotas.
Pensou já sabê-lo.
- Não somos mais que cinco - Ned observou.
- Lorde Stannis viajou para Pedra do Dragão não muito
tempo depois de o rei ter partido para o Norte - disse
Varys -, e o nosso galante Sor Barristan acompanha o rei
na travessia da cidade, como é próprio do Senhor
Comandante da Guarda Real.
- Talvez devêssemos esperar que Sor Barristan e o rei se
juntassem a nós - sugeriu Ned.
Renly Baratheon riu em voz alta.
- Se esperarmos que meu irmão nos agracie com sua real
presença, poderá ser uma longa espera.
- Nosso bom Rei Robert tem muitas preocupações - disse
Varys. - Ele nos confia alguns assuntos de menor
importância para lhe alivia r o fardo.
- O que Lorde Varys quer dizer é que todas estas
conversas sobre moeda, colheitas e justiça aborrecem meu
real irmão de morte - disse Lorde Renly. - Por isso cai
sobre nós o governo do reino. Ele nos envia uma ordem
de vez em quando - retirou da manga um papel muito
bem enrolado e o pôs na mesa. - Esta manhã ordenou-me
que avançasse à coluna a toda pressa e pedisse ao Grande
Meistre Pycelle para convocar imediatamente este
conselho. Tem para nós uma tarefa urgente.
Mindinho sorriu e entregou o pap el a Ned. Trazia o selo
real. Ned quebrou a cera com o polegar e alisou a carta
para analisar a ordem urgente do rei, lendo as palavras
com descrença crescente. Não haveria fim para a loucura
de Robert? E fazer aquilo em seu nome era pôr sal sobre a
ferida.
- Que os deuses sejam bondosos - praguejou.
- O que o Senhor Eddard quer dizer - anunciou Lorde
Renly - é que Sua Graça nos dá ins truções para
organizarmos um grande torneio em honra de sua
nomeação como Mão do Rei.
- Quanto? - perguntou brandamente Min dinho.
Ned leu a resposta da carta.
- Quarenta mil dragões de ouro para o campeão. Vinte mil
para o homem que ficar em se gundo lugar, outros vinte
para o vencedor da luta corpo a corpo e dez mil para o
vencedor da competição de arqueiros.
- Noventa mil peças de ouro - Mindinho suspirou. - E não
devemos negligenciar os outros custos. Robert certamente
vai querer um banquete prodigioso. Isto significa
cozinheiros, carpin teiros, criadas, cantores, malabaristas,
bobos...
- Bobos temos com fartura - disse Lorde Renly.
O Grande Meistre Pycelle olhou para Mindinho e
perguntou:
- O tesouro suporta a despesa?
- Que tesouro? - respondeu Mindinho com um trejeito de
boca. - Poupe-me as tolices, Meistre. Sabe tão bem como
eu que o tesouro está vazio há anos. Terei de pedi r
dinheiro emprestado. Não há dúvida de que os Lannister o
adiantarão. Devemos atualmente ao Senhor Tywin cerca
de três milhões de dragões, que importam mais cem mil?
Ned ficou estupefato.
- Está dizendo que a Coroa tem uma dívida de três milhões
de peças de ouro?
- A Coroa tem uma dívida de mais de seis milhões de
peças de ouro, Lorde Stark. Os Lannis-ter são os maiores
credores, mas também pedimos emprestado a Lorde
Tyrell, ao Banco de Ferro de Bravos e a vários cartéis
mercantis de Tyrosh. Nos últimos tempos, tive de me
virar para a Fé. O Alto Septão é pior no regateio do que
um pescador de Dorne.
Ned estava horrorizado.
- Aerys Targaryen deixou um tesouro repleto de ouro.
Como pôde deixar que isto acontecesse? Mindinho
encolheu os ombros.
- O mestre da moeda arranja o dinheiro. O rei e a Mão o
gastam.
- Não posso acreditar que Jon Arryn tenha permitido que
Robert reduzisse o reino à miséria - exclamou Ned em
tom acalorado.
O Grande Meistre Pycelle abanou a grande cabeça calva,
fazendo tilintar as correntes suavemente.
- Lorde Arryn era um homem prudente, mas temo que Sua
Graça nem sempre escute con selhos sábios.
- Meu real irmão adora torneios e festins - disse Renly
Baratheon -, e abomina aquilo a que chama "contar
cobres".
- Falarei com Sua Graça - disse Ned. - Este torneio é uma
extravagância que o reino não pode pagar.
- Fale com ele como quiser - disse Lorde Renly -, mas
ainda assim temos de fazer nossos planos.
- Outro dia - disse Ned. Talvez de forma muito incisiva, a
julgar pelos olhares que lhe lança ram. Teria de se
recordar de que já não estava em Winterfell, onde apenas
o rei tinha uma posi ção superior; ali, não era mais que o
primeiro entre iguais. - Perdoem-me, senhores - disse,
num tom mais suave. - Estou fatigado. Paremos por hoje e
recomecemos quando estivermos mais descansados - não
pediu o consentimento dos outros; em vez disso, levantou -
se abruptamente, fez a todos um aceno e dirigiu -se à
porta.
Lá fora, cavaleiros e carroças ainda jorravam através dos
portões do castelo, e o pátio era um caos de la ma, cavalos
e homens gritando. O rei ainda não chegara, disseram -lhe.
Desde os feios acontecimentos no Tridente, os Stark e sua
comitiva tinham viajado bem à frente da coluna prin cipal,
a fim de se distanciarem dos Lannister e da crescente
tensão. Robert quase não fora visto; dizia -se que viajava
na enorme casa rolante, mais frequentemente bêbado que
sóbrio. Se assim era, poderia estar várias horas atrasado,
mas mesmo assim chegaria cedo demais para a vontade de
Ned. Bastava-lhe olhar o rosto de Sansa para sentir a
raiva retorcer-se de novo dentro de si. A última quinzena
da viagem fora miserável. Sansa culpava Arya e dizia-lhe
que devia ter sido Nymeria a morrer. E Arya estava
desnorteada depois de saber o que havia acontecido ao
seu amigo, filho do carnic eiro. Sansa chorava até
adormecer, Arya cismava em silêncio o dia inteiro, e
Eddard Stark sonhava com um inferno gelado reservado
para os Stark de Winterfell.
Atravessou o pátio exterior e passou sob uma porta
levadiça, entrando no recinto do castelo, e, q uando se
encaminhava para aquilo que pensava ser a Torre da Mão,
Mindinho apareceu à sua frente.
- Está indo na direção errada, Stark. Venha comigo.
Hesitante, Ned o seguiu. Mindinho o levou até uma torre,
desceram uma escada, atravessa ram um pequeno pátio
rebaixado e caminharam por um corredor deserto onde
armaduras vazias montavam guarda ao longo das paredes.
Eram relíquias dos Targaryen, de aço negro com escamas
de dragão coroando os elmos, agora poeirentos e
esquecidos.
- Este não é o caminho para os me us aposentos - disse
Ned.
- E eu disse que era? Estou levando você para as
masmorras, a fim de abrir sua garganta e selar seu
cadáver atrás de uma parede - respondeu Mindinho, com
a voz sarcástica. - Não temos tempo para isto, Stark. Sua
esposa o espera.
- Que jogo está jogando, Mindinho? Catelyn está em
Winterfell, a centenas de léguas daqui.
- Ah! - os olhos cinza-esverdeados de Mindinho cintilaram
de divertimento. - Então parece que alguém conseguiu
realizar uma espantosa imitação. Pela última vez, venha.
Ou, então, não, e eu a guardo para mim - e apressou-se a
descer a escada.
Ned o seguiu, desconfiado, perguntando a si mesmo se
aquele dia chegaria ao fim. Não tinha nenhum gosto por
aquelas intrigas, mas começava a compreender que para
um homem como Mindinho elas eram naturais como o ar
que respirava.
Onde os degraus terminavam havia uma pesada porta de
carvalho e ferro. Petyr Baelish ergueu a tranca e, com um
gesto, indicou a Ned que a atravessasse. Saíram para o
avermelhado brilho do crepúsculo, numa falésia rochosa
bem acima do rio.
- Estamos fora do castelo - Ned observou.
- Você é um homem difícil de enganar, Stark - disse
Mindinho com um sorriso afetado.
- Foi o sol que o denunciou, ou terá sido o céu? Siga -me.
Há vãos abertos na rocha. Tente não cair para a morte,
Catelyn nunca compreenderia - e, ao acabar de falar,
estava para lá do limite da falésia, descendo depressa
como um macaco.
Ned estudou por um momento a face da escarpa, e depois
o seguiu mais devagar. Os nichos estavam lá, tal como
Mindinho prometera, ranhuras pouco profundas, invisíveis
na parte de baixo, a menos que se soubesse onde procurá -
las. O rio espraiava-se a uma longa e entontecedora
distância lá embaixo. Ned manteve o rosto pressionado
contra a rocha e tentou não olhar para baixo com mai s
frequência do que era obrigado.
Quando chegou finalmente ao fim da descida e a uma
estreita trilha enlameada que seguia pela margem do rio,
Mindinho espreguiçava-se encostado a uma rocha,
comendo uma maçã, já no caroço.
- Está ficando velho e lento, Star k - disse, atirando a
maçã, com indiferença, para a corrente,
- Não importa, o resto do caminho é a cavalo - tinha dois
cavalos à espera. Ned montou e trotou atrás dele, ao
longo da trilha, para a cidade.
Por fim, Baelish puxou as rédeas na frente de um ed ifício
que ameaçava ruir, de três andares de madeira, com
janelas que brilhavam com a luz das lâmpadas no lusco -
fusco que se aprofun dava. Os sons de música e risos
rudes abriam caminho até o exterior e flutuavam por
sobre a água. Ao lado da porta, uma orn amentada candeia
de azeite oscilava na ponta de uma corrente pesada, com
um globo de cristal de chumbo vermelho.
Ned Stark desmontou furioso.
- Um bordel - disse, e agarrou Mindinho pelo ombro,
obrigando-o a se virar. - Você me trouxe por todo este
caminho para chegarmos a um bordel.
- Sua esposa está lá dentro - disse Mindinho.
Aquilo foi o insulto final.
- Brandon foi demasiado gentil com você - disse Ned, e
atirou o homenzinho contra uma parede e encostou o
punhal em sua garganta, sob a pequena barbicha
pontiaguda.
- Senhor, não - gritou uma voz. - Ele fala a verdade -
ouviram-se passos vindo naquela direção.
Ned rodopiou, de faca na mão, enquanto um velho homem
de cabelos brancos corria para eles. Estava vestido com
tecido grosseiro marrom e a pele mole sob o queixo
oscilava enquanto corria.
- Isto não é assunto seu - começou Ned a dizer, mas
então, de repente, ele reconheceu o ho mem. Abaixou o
punhal, espantado. - Sor Rodrik?
Rodrik Cassei confirmou com a cabeça..
- Sua senhora o espera lá em cima.
Ned sentia-se perdido.
- Catelyn está mesmo aqui? Isto não é uma estranha
brincadeira de Mindinho? - embainhou a faca.
- Bem gostaria que fosse, Stark - Mindinho respondeu. -
Siga-me, e tente parecer um pouco mais devasso e um
pouco menos como a Mão do Rei. Não será bom que seja
reconhecido. Talvez possa acariciar um peito ou outro, só
de passagem.
Entraram por uma sala de estar cheia, onde uma mulher
gorda cantava canções obscenas en quanto bonitas
mulheres vestidas com camisas de linho e panos de seda
colorida se encostavam nos amantes e eram embaladas em
seus colos. Ninguém prestou a menor atenção em Ned. Sor
Rodrik esperou embaixo enquanto Mindinho o levou até o
terceiro andar por um corredor e através de uma porta.
Lá dentro, Catelyn esperava. Gritou quando o viu , correu
para ele e o abraçou ferozmente.
- Minha senhora - sussurrou Ned, assombrado.
- Ah, muito bem - disse Mindinho, fechando a porta. -
Conseguiu reconhecê-la.
- Temi que nunca mais chegasse, senhor - sussurrou ela,
apertada contra seu peito. - Petyr tem me trazido
notícias. Contou-me os problemas com Arya e o jovem
príncipe. Como estão minhas meninas?
- Ambas de luto, e cheias de raiva - Ned respondeu. - Cat,
não compreendo. O que faz em Porto Real? O que
aconteceu? - perguntou Ned à mulher. - E Bran? Ele está...
- morto foi a palavra que veio aos seus lábios, mas não
podia dizê-la.
- É Bran, mas não como pensa - disse Catelyn. Ned não
compreendia.
- Então como? Por que está aqui, meu amor? Que lugar é
este?
- Precisamente o que parece - disse Mindinho, deixando-se
cair numa cadeira perto da janela. - Um bordel. Consegue
imaginar um lugar onde seria menos provável encontrar
uma Catelyn Tully? - ele sorriu. - Por acaso, sou dono
deste estabelecimento específico, portanto, foi fácil fazer
as combinações necessárias. De sejo muito impedir que os
Lannister saibam da pre sença de Cat aqui em Porto Real.
- Por quê? - perguntou Ned. Então viu as mãos da esposa,
o modo estranho como se dobra vam, as cicatrizes de um
vermelho cru, a rigidez dos últimos dois dedos da mão
esquerda. - Você foi ferida - tomou as mãos nas suas e as
virou. - Deuses, estes golpes são profundos... uma fe rida
de uma espada ou... como aconteceu isto, minha senhora?
Catelyn tirou o punhal de dentro do manto e o colocou na
mão dele,
- Esta lâmina estava destin ada a abrir a garganta de Bran
e derramar seu sangue. A cabeça de Ned ergueu -se
abruptamente.
- Mas... quem... por que faria...
Ela pousou um dedo em seus lábios.
- Deixe-me contar tudo, meu amor. Será mais rápido
assim. Escute.
E ele escutou-a contar-lhe tudo, do incêndio na torre da
biblioteca a Varys, aos guardas e ao Mindinho. E quando
terminou, Eddard Stark sentou-se atordoado junto da
mesa, com o punhal na mão. O lobo de Bran salvara a
vida do rapaz, pensou sombriamente. Que tinha Jon dito
quando encontraram os cachorros na neve? Seus filhos estão
destinados a ficar com esta ninhada, senhor. E ele matara a loba
de Sansa, por quê? Seria culpa o que sentia? Ou medo? Se
os deuses tinham enviado aqueles lobos, que loucura ele
tinha feito?
Dolorosamente, Ned forçou os pensamentos a regressar ao
punhal e àquilo que significava.
- O punhal do Duende - repetiu. Não fazia sentido. Sua
mão dobrou-se em torno do suave cabo de osso de dragão,
e ele bateu com a lâmina na mesa, sentindo -a morder a
madeira. Estava ali zom bando dele. - Por que ia querer
Tyrion Lannister ver Bran morto? O rapaz nunca lhe fez
nenhum mal.
- Será que os Stark não têm mais que neve entre as
orelhas? - perguntou Mindinho. - O Duende nunca teria
agido sozinho.
Ned ergueu-se e pôs-se a percorrer o quarto de ponta a
ponta.
- Se a rainha teve um papel nisto ou, que os deuses não o
permitam, o próprio rei... não, não acreditarei nisso -
mas, mesmo enquanto dizia as palavras, recordou -se
daquela manhã gelada nas terras acidentadas, e da
conversa de Robert a respeito de enviar assassinos
contratados no en calço da princesa Targaryen. Lembrou-se
do filho pequeno de Rhaegar, da ruína vermelha de seu
crânio e do modo como o rei lhe virara as costas, tal
como fizera na sala de audiências de Darry não há muito
tempo. Ainda ouvia Sansa suplicando, como Lyanna
suplicara tempos atrás.
- O mais certo é que o rei não soubesse - disse Mindinho.
- Não seria a primeira vez. Nosso bom Robert tem como
prática fechar os olhos a coisas que prefere não ver.
Ned não tinha resposta para aquilo. O rosto do filho do
carniceiro passou na frente dos olhos, quase rachado em
dois, e depois o rei não dissera uma palavra. Sua cabeça
latejava. Mindinho caminhou vagarosamente até a mesa e
arrancou a faca da madeira.
- Seja como for, a acusação constitui traição. Acuse o rei
e dançará com Ilyn Payne antes de as palavras acabarem
de sair de sua boca. A rainha... se forem apresentadas
provas e se for possível fazer com que Robert escute, então,
talvez...
- Temos provas - disse Ned, - Temos o punhal.
- Isto? -Mindinho atirou o punhal ao ar como se nada
fosse. - Um belo bocado de aço, mas corta para dois
lados, senhor. O Duende sem dúvida jurará que a lâmina
foi perdida ou roubada enquanto permaneceram em
Winterfell e, com o seu assassino morto, não haverá
ninguém para desmenti-lo - atirou a faca com ligeireza a
Ned. - Meu conselho é deixar isto cair no rio e esque cer
que chegou a ser forjada.
Ned o olhou com frieza.
- Senhor Baelish, sou um Stark de Winterfell. Meu filho
jaz aleijado, talvez à morte. Estaria morto, e Catelyn
também, não fosse uma cria de lobo que encontramos na
neve. Se realmente acredita que posso esquecê -lo, é um
tolo tão grande hoje como quando empunhou uma espada
contra meu irmão.
- Talvez seja um tolo, Stark... e, no entanto, ainda aqui
estou, ao passo que seu irmão se desfaz em pó na sua
sepultura gelada já há catorze anos. Se está assim tão
ansioso para apodrecer ao seu lado, longe de mim
dissuadi-lo, mas preferiria não ser incluído na festa,
muito obrigado.
- Você seria o último homem que eu incluiria
voluntariamente em qualquer festa, Lorde Baelish.
- Fere-me profundamente - Mindinho pousou a mão no
coração. - Por minha parte, sempre os considerei, aos
Stark, gente cansativa, mas Cat parece ter se afeiçoado a
você, por motivos que nã o sou capaz de entender.
Tentarei mantê-lo vivo para o bem dela. Uma tarefa de
tolo, admito, mas nunca fui capaz de recusar o que quer
que fosse à sua esposa.
- Contei a Petyr nossas suspeitas sobre a da morte de Jon
Arryn - disse Catelyn. - Ele prometeu ajudá-lo a descobrir
a verdade.
Não era uma notícia que agradasse a Eddard Stark, mas
era bem verdade que necessitavam de ajuda, e há muito
tempo Mindinho fora quase como um irmão para Cat. Não
seria a primeira vez que Ned era forçado a fazer causa
comum com um homem que desprezava.
- Muito bem - disse, enfiando o punhal no cinto. - Você
falou de Varys. O eunuco sabe de tudo isto?
- Não dos meus lábios - disse Catelyn, - Você não se casou
com uma tonta, Eddard Stark, Mas Varys tem maneiras de
descobrir coisas que nenhum outro homem poderia
conhecer. Ele possui alguma arte negra, Ned, sou capaz de
jurar.
- Ele tem espiões, isto é bem conhecido - disse Ned,
desvalorizando o assunto,
- É mais que isso - insistiu Catelyn. - Sor Rodrik falou
com Sor Aron Santagar em comple to segredo, e de algum
modo a Aranha ficou sabendo da conversa. Aquele homem
me dá medo.
Mindinho sorriu.
- Deixe Lorde Varys comigo, querida senhora. Se me
permitir uma pequena obscenidade. E que lugar melhor
para uma que este? Tenho os bagos do homem na palma
da mão - mostrou os dedos em taça, sorrindo. - Ou os
teria, caso ele fosse um homem e tivesse bagos.
Compreenda que, se destaparmos a gaiola, os pássaros
começarão a cantar, e ele não gostaria de tal coisa. Em
seu lugar, me preocuparia mais com os Lannister e menos
com o eunuco.
Ned não precisava que Mindinho lhe dissesse aquilo.
Recordava o dia em que Arya fora en contrada, o olhar no
rosto da rainha quando dissera: Nós temos um lobo, tão
suave e calma. Pen sava no rapaz Mycah, na morte súbita
de Jon Arryn, na queda de Bran, no velho e louco Aerys
Targaryen a morrer no chão de sua sala do trono,
enquanto o sangue de sua vida secava numa lâmina
dourada.
- Minha senhora - disse, virando-se para Catelyn -, nada
mais pode fazer aqui. Desejo que regresse a Winterfell
imediatamente. Se houve um assassino, poderá haver
outros. Quem quer que tenha ordenado a morte de Bran
saberá em breve que o rapaz ainda vive.
- Eu tinha esperança de ver as meninas... - disse Catelyn.
- Isso seria muito insensato - interveio Mindinho. - A
Fortaleza Vermelha está cheia de olhos curiosos, e as
crianças falam.
- Ele fala a verdade, meu amor - disse-lhe Ned, abraçando-
a. - Leve Sor Rodrik e corra para Winterfell. Eu vigiarei as
meninas. Vá para casa, para junto de nossos filhos, e
mantenha-os a salvo.
- Como quiser, senhor - Catelyn ergueu o rosto, e Ned a
beijou. Os dedos estropiados dela apertaram as costas
dele com uma força desesperada, como que para mantê -lo
para sempre a salvo no abrigo de seus braços.
- O senhor e a senhora vão querer um quarto? -
perguntou Mindinho. - Devo preveni-lo, Stark, de que por
aqui geralmente cobramos por esse tipo de coisa.
- Um momento a sós, é tudo o que peço - Catelyn pediu.
- Muito bem - Mindinho seguiu na direção da porta. -
Sejam breves. Já passa da hora em que a Mão e eu
deveríamos estar de volta ao castelo para que nossa
ausência não seja notada.
Catelyn foi até junto dele e tomou -lhe as mãos nas suas.
- Não me esquecerei da sua ajuda, Petyr. Quando seus
homens vieram me chamar, não sabia se me levavam até
um amigo ou um inimigo. Encontrei em você mais que um
amigo. Encontrei o irmão que julgava perdido.
Petyr Baelish sorriu.
- Sou desesperadamente sentimental, querida senhora. E
melhor não contar a ninguém. Pas sei anos convencendo a
corte de que sou malvado e cruel, e detestaria ver todo
esse árduo trabalho dar em nada.
Ned não acreditou numa palavra daquilo, mas manteve a
voz delicada para dizer:
- Tem também os meus agradecimentos, Lorde Baelish.
- Ora, aí está um tesouro - disse Mindinho, saindo do
quarto.
Depois de a porta se fechar, Ned virou -se para a mulher.
- Quando chegar em casa, mande uma mensagem a
Heiman Tallhart e Galbart Glover com o meu selo. Eles
devem recrutar cem arqueiros cada um e fortificar o
Fosso Cailin. Duzentos arqueiros determinados podem
defender a Garganta contra um exército. Diga a Lorde
Manderly que deve fortalecer e reparar todas as suas
defesas no Porto Branco e assegurar -se de que elas estão
bem guarnecidas de homens. E a partir deste momento
quero que uma vigilância cuidado sa seja mantida sobre
Theon Greyjoy. Se houver guerra, teremos grande
necessidade da frota de seu pai.
- Guerra? - o medo era claro no rosto de Catelyn.
- Não chegará a tal ponto - prometeu-lhe Ned, rezando
para que fosse verdade, e voltou a tomá -la nos braços. -
Os Lannister não têm misericórdia perante a fraqueza,
como Aerys Targaryen aprendeu para sua desgraça, mas
não se atreverão a atacar o Norte sem estarem susten -
tados por todo o poder do reino, e não o terão. Devo
representar este embuste como se nada h ouvesse de
errado. Recorde o que me trouxe aqui, meu amor. Se
encontrar provas de que os Lannister assassinaram Jon
Arryn...
Sentiu Catelyn tremer em seus braços. Suas mãos
marcadas o agarraram.
- Se isso acontecer - disse -, que acontecerá, meu amor?
Ned sabia que essa era a parte mais perigosa.
- Toda a justiça parte do rei - disse-lhe. - Quando eu
souber a verdade, terei de ir ter com Robert - e rezar para
que seja o homem que penso que é, concluiu em silêncio, e não
o homem em que temo que se tenha transformado.
Tyrion
- Está certo de que é preciso ir tão cedo? - perguntou-lhe
o Senhor Comandante.
- Mais que certo, Lorde Mormont - respondeu Tyrion. -
Meu irmão Jaime deve querer saber o que me aconteceu.
Pode pensar que me convenceu a vestir negro.
- Bem gostaria de fazê-lo. - Mormont pegou uma pinça de
caranguejo e a rachou com a mão. Apesar de velho, o
Senhor Comandante ainda possuía a força de um urso. - E
um homem astuto, Tyrion. Homens assim fazem falta na
Muralha.
Tyrion sorriu.
- Então percorrerei os Sete Reinos em busca de anões e
os enviarei para cá, Lorde Mormont - enquanto os outros
riam, ele sugou a carne de uma perna de caranguejo e
apanhou outra. Os caranguejos tinham chegado de
Atalaialeste naquela manhã, acondicionados num barril de
neve, e eram suculentos.
Sor Alliser Thorne foi o único homem da mesa que sequer
esboçou um sorriso.
- O Lannister zomba de nós.
- Só do senhor, Sor Alliser - disse Tyrion. Daquela vez, o
riso que percorreu a mesa tinha um tom nervoso e
incerto.
Os olhos negros de Thorne fixaram-se em Tyrion com
repugnância.
- Tem uma língua ousada para alguém que é menos da
metade de um homem. Talvez devês semos visitar o pátio
juntos, o senhor e eu.
- Por quê? - perguntou Tyrion. - Os caranguejos estão
aqui.
O comentário arrancou mais gargalhadas. Sor Alliser
levantou-se, com a boca transformada numa linha
apertada.
- Venha fazer seus gracejos com o aço na mão.
Tyrion olhou com intenção para a mão direita.
- Ora, mas eu tenho aço na mão, Sor Alliser, embora
pareça ser um garfo para caranguejos. Fazemos um duelo?
- saltou para cima da cadeira e pôs -se a espetar o peito
de Thorne com o minúsculo garfo. Um rugido de
gargalhadas encheu a sala. Bocados de caranguejo voaram
da boca do Senhor Comandante quando começou a arfar e
engasgar-se, Até seu corvo se juntou, grasnando
sonoramente de seu poleiro por cima da janela. "Duelo!
Duelo! Duelo!"
Sor Alliser Thorne saiu da sala tão rigidamente que
parecia ter um punhal espetado no traseiro.
Mormont ainda arquejava, tentando recuperar o fô lego.
Tyrion deu-lhe uma palmada nas costas.
- Os despojos vão para o vencedor - gritou. - Reivindico
a porção de caranguejos de Thorne.
Por fim, o Senhor Comandante venceu o engasgo.
- É um homem maldoso para provocar Sor Alliser assim -
censurou.
Tyrion sentou-se e bebeu um trago de vinho.
- Se um homem pinta um alvo no peito, deve esperar que
mais cedo ou mais tarde alguém lhe envie uma seta. Já vi
mortos com mais humor que Sor Alliser.
- Não é verdade - objetou o Senhor Intendente, Bowen
Marsh, um homem redondo e vermelho como uma romã. -
Devia ouvir os nomes engraçados que dá aos rapazes que
treina.
Tyrion ouvira alguns desses nomes engraçados.
- Aposto que os rapazes também têm alguns nomes para
ele - respondeu. - Arranquem o gelo dos olhos, meus bons
senhores. Sor Alliser devia estar limpando o esterco das
cavalariças, não treinando seus jovens guerreiros,
- A Patrulha não tem falta de moços de estrebaria -
resmungou Lorde Mormont. - Parece ser tudo o que nos
mandam nos dias que correm. Moços de estrebaria,
gatunos e violadores. Sor Alliser é um cavaleiro ungido,
um dos poucos a vestir o negro desde que sou
Comandante. Lutou bravamente em Porto Real.
- Do lado errado - comentou secamente Sor Jeremy
Rykker. - Eu sei, pois estava lá nas ameias ao seu lado.
Tywin Lannister nos deu uma excelente escolha. Vestir o
negro ou ver nossas cabeças espetadas em espigões antes
do fim do dia. Não pretendo ofender, Tyrion.
- Não me ofende, Sor Jeremy. Meu pai gosta muito de
cabeças espetadas em espigões, especialmente as de
pessoas que o aborreceram de algum modo. E um rosto
tão nobre como o seu, bem, sem dúvida que vos imaginou
a decorar a muralha da cidade por cima do Portão do Rei.
Penso que teria ficado impressionante lá em cima.
- Obrigado - respondeu Sor Jeremy com um sorriso
sardônico.
Senhor Comandante Mormont limpou a garganta.
- Por vezes temo que Sor Alliser tenha visto a verdade
em você, Tyrion. Realmente zomba de nós e do nosso nobre
objetivo aqui.
Tyrion encolheu os ombros.
- Todos precisamos ser alvo de zombaria d e vez em
quando, Senhor Mormont, para evitar que comecemos a
nos levar muito a sério. Mais vinho, por favor - estendeu
a taça.
Enquanto Rykker a enchia, Bowen Marsh disse:
- Tem uma grande sede para um homem pequeno.
- Ah, eu penso que o Senhor Tyrion é um homem
bastante grande - disse Meistre Aemon da ponta mais
distante da mesa. Falou em voz baixa, mas todos os
grandes oficiais da Patrulha da Noite se calaram para
ouvir melhor o que o ancião tinha a dizer. - Penso que é
um gigante que surgiu entre nós, aq ui no fim do mundo.
Tyrion respondeu com delicadeza.
- Já me chamaram de muitas coisas, senhor, mas gigante
raramente foi uma delas.
- Apesar disso - disse Meistre Aemon enquanto seus
olhos enevoados, brancos como o leite, se deslocavam para
o rosto de Tyrion -, penso que é verdade.
Por uma vez na vida Tyrion Lannister deu por si sem
palavras. Só conseguiu inclinar a cabeça polidamente e
dizer:
- É bastante amável, Meistre Aemon.
O cego sorriu. Era um homenzinho minúsculo, enrugado e
sem cabelo, encolhido sob o peso de cem anos, de tal
modo que seu colar de meistre, com elos de muitos
metais, pendia solto em torno da garganta.
-Já me chamaram de muitas coisas, senhor - disse -, mas
amável raramente foi uma delas - daquela vez foi o próprio
Tyrion a liderar as gargalhadas.
Muito mais tarde, depois de acabar o assunto sério que
era comer e de os outros se terem reti rado, Mormont
ofereceu a Tyrion uma cadeira junto à lareira e uma taça
de uma bebida aquecida tão forte que lhe trouxe lágrimas
aos olhos.
- A estrada do rei pode ser perigosa aqui tão a norte -
disse-lhe o Senhor Comandante en quanto bebiam.
- Tenho Jyck e Morrec - respondeu Tyrion -, e Yoren volta
para o sul.
- Yoren é apenas um homem. A Patrulha os escoltará até
Winterfell - anunciou Mormont num tom que não admitia
discussão. - Três homens deverão ser suficientes.
- Se insiste, senhor - disse Tyrion. - Pode enviar o jovem
Snow. Ele ficará feliz por ter a chance de rever os irmãos.
Mormont fez um olhar severo por cima da espessa barba
cinzenta.
- Snow? Ah, o bastardo Stark. Penso que não. Os jovens
precisam esquecer da vida que deixaram para trás, os
irmãos, as mães e isso tudo. Uma visita à casa só irá
agitar sentimentos que é melhor deixar em paz. Eu sei
destas coisas. Meus próprios parentes de sangue... min ha
irmã Marge governa agora a Ilha dos Ursos, desde a
desonra de meu filho. Tenho sobrinhos que nunca vi -
bebeu um trago. - Além disso, Jon Snow não passa de um
rapaz. O senhor terá três espadas fortes para mantê -lo a
salvo.
- Sua preocupação toca-me, Senhor Mormont - a forte
bebida estava deixando Tyrion ale gre, mas não tão bêbado
que não compreendesse que o Velho Urso queria qualquer
coisa dele.
- Espero que possa pagar sua bondade.
- E pode - disse Mormont sem cerimônia. - Sua irmã
senta-se ao lado do rei. Seu irmão é um grande cavaleiro
e seu pai, o senhor mais poderoso dos Sete Reinos. Fale -
lhes em nosso nome. Diga -lhes das nossas necessidades. O
senhor as viu com seus próprios olhos. A Patrulha da
Noite está morrendo, Nossa força é agora de menos de mil
homens. Seiscentos aqui, duzentos na Torre Sombria,
ainda menos em Atalaialeste, e só um escasso terço desses
homens está pronto para o combate. A Muralha tem um
comprimento de cem léguas. Pense nisso. Se um ataque
vier, tenho três homens para defender cad a légua de
muralha.
- Três e um terço - disse Tyrion com um bocejo.
Mormont pareceu quase não ouvi -lo. O velho aquecia as
mãos no fogo.
- Enviei Benjen Stark em busca do filho de Yohn Royce,
perdido em sua primeira patrulha. O rapaz Royce estava
verde como a relva de verão, mas insistiu na honra de seu
próprio coman do, dizendo que lhe era devido enquanto
cavaleiro. Não desejei ofender o senhor seu pai e cedi.
Enviei-o com dois homens que considerava dos melhores
que temos na Patrulha. Mas fui tolo.
"Tolo", concordou o corvo. Tyrion ergueu o olhar. O
pássaro o olhou com aqueles olhos ne gros, pequenos e
brilhantes, agitando as asas. "Tolo", gritou de novo. Sem
dúvida, o velho Mor mont levaria a mal se ele esganasse a
criatura. Uma pena.
O Senhor Comandante não pareceu reparar na irritante
ave.
- Gared era quase tão velho como eu, e tinha mais anos
de Muralha - prosseguiu -, mas parece que abjurou e
fugiu. Nunca teria acreditado, com ele, não, mas Lorde
Eddard me enviou sua cabeça de Winterfell. De Royce não
há notícias. Um desertor e dois homens perdidos, e agora
também Ben Stark está desaparecido - soltou um
profundo suspiro. - Quem hei de enviar em busca dele?
Dentro de dois anos farei setenta. Estou demasiado velho
e cansado para o fardo que carrego, mas, se o entregar,
quem o assumirá? Alliser Thorne? Bowen Marsh? Teria de
ser tão cego como Meistre Aemon para não ver o que eles
são. A Patrulha da Noite transformou -se num exército de
rapazes rabugentos e velhos cansados. Além dos homens
que partilharam nossa mesa esta noite, tenho talvez vinte
que sabem ler, e ainda menos capazes de pensar, planejar
ou liderar. Antes a Patrulha passava os verões
construindo, e cada Senhor Comandante erguia a muralha
mais alta do que a encontrara. Agora, tudo o que
podemos fazer é ficar vivos.
Tyrion percebeu que o outro estava sendo mortalmente
sincero. Sentiu-se vagamente embaraçado pelo velho.
Lorde Mormont passara boa parte da vida na Muralha e
precisava acreditar que aqueles anos teriam algum
significado.
- Prometo que o rei ouvirá falar de suas necessidades -
disse Tyrion gravemente -, e também falarei ao meu pai e
ao meu irmão Jaime - e falaria. Tyrion Lannister era um
homem de palavra. Deixou o resto por dizer; que o Rei
Robert o ignoraria, que Lorde Tywin perguntaria se ele
tinha perdido o juízo, e que Jaime se limitaria a rir.
- É jovem, Tyrion - disse Mormont. - Quantos invernos já
viu?
Encolheu os ombros.
- Oito, nove. Não me lembro.
- E todos eles curtos.
- É como disse, senhor - Tyrion nascera no auge do
inverno, um inverno terrível e cruel que os meistres
diziam que durara três anos, mas suas mais antigas
memórias eram de primavera,
- Quando eu era rapaz, dizia-se que um longo verão
significava sempre que um longo inver no se seguiria. Este
verão durou nove anos, Tyrion, e um décimo chegará em
breve. Pense nisso.
- Quando eu era rapaz - respondeu Tyrion -, minha ama de
leite me disse que um dia, se os homens fossem bons, os
deuses dariam ao mundo um verão sem fim. Talvez
tenhamos sido melhores do que pensávamos, e talvez
tenha chegado, enfim, o Grande Verão - sorriu.
O Senhor Comandante não pareceu divertido.
- Não é tolo o bastante para acreditar nisso, senhor. Os
dias já estão ficando mais curtos. Não pode haver dúvida,
Aemon recebeu cartas da Cidadela, com descobertas que
estão de acordo com as dele próprio. O fim do verão olha -
nos nos olhos - Mormont estendeu um braço e agarrou
com força a mão de Tyrion. - Tem de fazê-los compreender.
Digo-lhe, senhor, a escuri dão está chegando. Há coisas
selvagens nos bosques, lobos gigant es, mamutes e ursos-
da-neve do tamanho de auroques, e vi formas mais
escuras nos meus sonhos.
- Nos seus sonhos - repetiu Tyrion, pensando na urgência
que tinha de outra bebida forte. Mormont estava
completamente surdo à voz do anão.
- Os pescadores da região de Atalaialeste vislumbraram
caminhantes brancos na costa. Daquela vez, Tyrion não
conseguiu segurar a língua.
- Os pescadores de Lanisporto vislumbram sereias com
frequência.
- Denys Mallister escreve que o povo da montanha está se
deslocando para o sul, pass ando pela Torre Sombria em
maior número que em qualquer época. Estão fugindo,
senhor..., mas fugindo de quê? - Lorde Mormont dirigiu-se
à janela e olhou perdido para a noite. - Estes meus ossos
são velhos, Lannister, mas nunca sentiram um arrepio
como este. Conte ao rei o que eu digo, rogo -lhe. O
inverno está para chegar, e quando a Longa Noite cair, só
a Patrulha da Noite se erguerá entre o reino e a escuridão
que vem do norte. Que os deuses nos protejam a todos se
não estivermos preparados.
- Que os deuses protejam a mim se não dormir um pouco
esta noite. Yoren está decidido a partir ao raiar do dia -
Tyrion pôs-se em pé, sonolento do vinho e farto de
destinos lúgubres. - Agradeço-lhe por todas as cortesias
que me concedeu, Senhor Mormont.
- Diga-lhes, Tyrion. Diga-lhes e os faça acreditar. Este é
todo o agradecimento de que preciso - assobiou e o corvo
foi empoleirar-se em seu ombro. Mormont sorriu e deu à
ave algum milho que tirou do bolso, e foi assim que
Tyrion o deixou.
Estava um frio de rachar lá fora. Bem enrolado nas
espessas peles, Tyrion Lannister calçou as luvas e acenou
com a cabeça para os pobres desgraçados que montavam
guarda à porta da Torre do Comandante. Atravessou o
pátio na direção de seus aposentos na Torre do Rei,
caminhando o mais vivame nte que suas pernas permitiam.
Aglomerados de neve rangiam debaixo dos seus pés
quando as botas quebravam a crosta noturna, e a
respiração condensava-se à sua frente como um
estandarte. Enfiou as mãos embaixo dos braços e
caminhou mais depressa, rezando pa ra que Morrec se
tivesse lembrado de aquecer sua cama com tijolos quentes
retirados da lareira.
Por trás da Torre do Rei, a Muralha cintilava à luz da lua,
imensa e misteriosa. Tyrion parou por um momento para
olhá-la. As pernas doíam-lhe do frio e da pres sa.
De repente, foi assaltado por uma estranha loucura, um
desejo de olhar mais uma vez para lá do fim do mundo.
Seria sua última oportunidade, pensou; no dia seguinte
iria se dirigir para o sul, e não era capaz de imaginar um
motivo para alguma vez querer regressar àquela gelada
desolação. A Torre do Rei estava à sua frente, com sua
promessa de calor e de uma cama suave, mas Tyrion deu
por si caminhando para lá dela, na direção da vasta
paliçada de cor clara da Muralha.
Uma escada de madeira subia a face sul, ancorada em
enormes vigas rudemente talhadas, que penetravam
profundamente no gelo. Ziguezagueava para um lado e
para o outro, escalando a muralha tão torta como um
relâmpago. Os irmãos negros tinham -lhe assegurado que
era muito mais forte do que pare cia, mas as pernas de
Tyrion estavam com cãibras demais para que sequer
pensasse em subi-la. Em vez disso, dirigiu -se à gaiola de
ferro junto ao poço, pulou para dentro dela e puxou com
força a corda do sino, três sacudidelas rápidas.
Teve de esperar o que pareceu ser uma eternidade ali,
atrás das grades e com a Muralha nas costas. Tempo
suficiente para começar a interrogar -se sobre o motivo
que o levava a fazer aquilo. Estava quase decidido a
esquecer aquele súbito capricho e ir para a cama quando
a gaiola deu um solavanco e começou a subir.
Subiu lentamente, a princípio com paradas e arranques,
mas depois mais suavemente. O chão desapareceu por
baixo de seus pés, a gaiola oscilou e Tyrion enrolou as
mãos nas grades de ferro. Conseguia sentir o frio do
metal mesmo através das luvas. Percebeu, com aprovação,
que Morrec tinha um fogo a arder no seu quarto, mas a
torre do Senhor Comandante estava às escuras. Pare cia
que o Velho Urso tinha mais juízo do que ele.
E, então, viu-se acima das torres, ainda subindo
lentamente. Castelo Negro jazia abaixo de si, delineado ao
luar. Dali, via-se bem como era um lugar rígido e vazio,
com suas torres sem janelas, muros em ruínas, pátios
entupidos de pedra partida. Mais longe, conseguia ver as
luzes da Vila da Toupeira, um pequeno povoado a meia
légua para sul ao longo da estrada do rei, e aqui e ali a
cintilação brilhante do luar na água onde córregos gelados
desciam dos cumes das montanhas e cortavam as
planícies. O resto do mundo era um vazio desolado de
colinas varridas pelo vento e campos pedregosos
manchados de neve.
- Sete infernos, é o anão - disse por fim uma voz grossa
atrás dele, e a jaula parou com um salto súbito e ali ficou,
oscilando lentamente de um lado para o outro, com as
cordas rangendo.
- Tragam-no, raios - ouviu-se um grunhido e um sonoro
gemido de madeira quando a gaio la deslizou de lado e a
muralha apareceu por baixo de seus pés. Tyrion esperou
que a oscilação parasse antes de abrir a porta da gaiola e
saltar para o gelo. Uma pesada figura vestida de negro
apoiava-se no guincho, enquanto uma segunda segurava a
gaiola com uma mão enluvada. Seus rostos estavam
cobertos por lenços de lã que deixavam ver apenas os
olhos, e estavam inchados com as camadas de lã e couro
que traziam, negro sobre negro.
- E o que o senhor há de querer a esta hora da noite? -
perguntou o homem do guincho.
- Um último olhar.
Os homens trocaram olhares carrancudos.
- Olhe o que quiser - disse o outro. - Tenha apenas
cuidado para não cair, homenzinho. O Velho Urso exigiria
a nossa pele - uma pequena cabana de madeira erguia-se
sob a grande grua. Tyrion viu o pálido brilho de um
braseiro e sentiu uma breve lufada de calor quando os
homens do guincho abriram a porta e voltaram para
dentro. E então ficou só.
Estava um frio medonho ali em cima, e o vento o puxava
pela roupa como uma amante insis tente. O topo da
Muralha era mais largo que a maior parte da estrada do
rei, e Tyrion não tinha medo de cair, embora seus pés
escorregassem mais do que gostaria.
Os irmãos
espalhavam pedra esmagada pelas passagens, mas o peso
de incontáveis passos derretia a Muralha nesses locais e o
gelo parecia crescer em torno do cascalho, engolindo -o,
até que o caminho ficava de novo liso e era tempo de
esmagar mais pedra.
Mesmo assim, não era nada com que Tyrion não
conseguisse lidar. Olhou para leste e oeste, para a
Muralha que se estendia à sua frente, uma vasta estrada
branca sem princípio nem fim e um abismo escuro de
ambos os lados. Oeste, decidiu, por nenhum motivo em
especial, e começou a andar nessa direção, s eguindo o
caminho mais próximo da beira norte, onde o cascalho
parecia mais recente.
As bochechas nuas estavam coradas de frio, e as pernas
queixavam-se mais alto a cada passo, mas Tyrion as
ignorou. O vento rodopiava em seu redor, a brita rangia
sob as botas, enquanto à frente a fita branca seguia os
contornos das colinas, erguendo -se cada vez mais alta, até
se perder para lá do horizonte ocidental. Passou por uma
maciça catapulta, alta como uma muralha de cidade, com
a base profundamente afundada na Mural ha. O braço
lançador tinha sido removido para passar por reparos, e
depois fora esquecido; jazia ali como um brinquedo
partido, meio em butido no gelo.
Do lado de lá da catapulta, uma voz abafada soltou um
grito.
- Quem vem lá? Alto!
Tyrion parou.
- Se fizer alto por muito tempo, congelo, Jon - disse,
enquanto uma hirsuta silhueta clara deslizava em silêncio
na sua direção e farejava suas peles. - Olá, Fantasma.
Jon Snow se aproximou. Parecia maior e mais pesado
dentro de suas camadas de peles e cou ro e com o capuz
do manto sobre o rosto.
- Lannister - disse, soltando o lenço para descobrir a boca.
- Este é o último lugar em que esperaria vê -lo - carregava
uma pesada lança com ponta de ferro, maior que ele, e da
cintura pendia uma espada numa bainha de cour o.
Atravessado no peito trazia um cintilante corno de guerra
negro com faixas de prata.
- Este é o último lugar onde esperaria ser visto - admitiu
Tyrion. - Fui tomado por um ca pricho. Se tocar no
Fantasma, ele arranca minha mão?
- Comigo aqui, não - Jon assegurou.
Tyrion coçou o lobo branco atrás das orelhas. Os olhos
vermelhos observaram-no, impassíveis. O animal já lhe
chegava ao peito. Mais um ano e Tyrion tinha a sensação
sombria de que teria de olhar para cima se quisesse ver
sua cabeça.
- Que faz aqui esta noite? - perguntou. - Além de
congelar seus órgãos viris?
- Calhou-me a guarda noturna - Jon respondeu. - Outra
vez. Sor Alliser tratou gentilmente de arranjar as coisas
de modo que o comandante da guarda ganhasse um
especial interesse por mim. Pare ce pensar que, se me
mantiverem acordado metade da noite, acabarei dormindo
durante o exercício da manhã. Até agora o tenho
desapontado.
Tyrion mostrou os dentes.
- E o Fantasma já aprendeu a fazer malabarismos?
- Não - disse Jon, sorrindo -, mas hoje de manhã Grenn
conseguiu aguentar Halder, e Pyp já não deixa cair a
espada tantas vezes como deixava.
-Pyp?
- Seu verdadeiro nome é Pypar. O rapaz pequeno com
grandes orelhas. Ele me viu traba lhando com Grenn e me
pediu ajuda. Thorne nunca sequer lhe tinha mostrad o a
maneira certa de segurar uma espada - virou-se para
olhar o norte. - Tenho uma milha de Muralha para
guardar. Caminha comigo?
- Se caminhar devagar - disse Tyrion.
- O comandante da guarda diz que devo caminhar para
impedir o sangue de congelar, mas nunca me disse nada
sobre a velocidade.
Puseram-se a caminho, com Fantasma caminhando ao lado
de Jon como uma sombra branca.
- Parto de manhã - disse Tyrion.
- Eu sei - Jon soava estranhamente triste.
- Pretendo parar em Winterfell a caminho do sul. Se
houver alguma mensagem que deseje que eu entregue...
- Diga a Robb que vou comandar a Patrulha da Noite e
mantê-lo a salvo, e, portanto ele bem pode aprender a
tricotar com as moças e dar a espada a Mikken para que a
derreta para ferraduras.
- Seu irmão é maior que eu - disse Tyrion com uma
gargalhada. - Declino a entrega de qualquer mensagem
que possa me matar.
- Rickon perguntará quando volto para casa. Tente lhe
explicar onde estou, se for possível, Diga -lhe que pode
ficar com todas as minhas coisas enquanto eu estiver fora;
ele gostará disso,
Tyrion pensou que as pessoas pareciam estar lhe pedindo
muitas coisas naquele dia.
- Sabe que pode pôr tudo isso numa carta, não sabe?
- Rickon ainda não sabe ler. Bran... - parou subitamente. -
Não sei que mensagem enviar a Bran. Ajude -o, Tyrion.
- Que ajuda eu poderia lhe dar? Não sou nenhum meistre
para lhe atenuar as dores. Não possuo feitiços para lhe
devolver as pernas.
- Ajudou-me quando precisei - disse Jon Snow.
- Não te dei nada - Tyrion respondeu. - Palavras.
- Nesse caso, dê também a Bran as suas palavras.
- Você está pedindo a um coxo que ensine um aleijado a
dançar - Tyrion retrucou. - Por mais sincera que seja a
lição, é provável que o resultado seja grotesco. Mas sei o
que é amar um irmão, Lorde Snow. Darei a Bran qualquer
pequena ajuda que esteja ao meu alcance.
- Obrigado, meu senhor de Lannister - Jon tirou a luva e
ofereceu a mão nua. - Amigo. Tyrion deu por si
estranhamente comovido.
- A maior parte de meus parentes são bastardos - disse
com um sorriso cansado -, mas você é o primei ro que tive
como amigo - descalçou uma luva com os dentes e
agarrou a mão de Snow, carne contra carne. A mão do
rapaz era firme e forte.
Depois de voltar a calçar a luva, Jon Snow virou -se
abruptamente e caminhou até o baixo e gelado parapeito
norte. Para lá dele a Muralha caía bruscamente, havia
apenas escuridão e regiões selvagens. Tyrion o seguiu, e
lado a lado ergueram-se no limite do mundo.
A Patrulha da Noite não permitia que a floresta se
aproximasse mais de uma milha da face norte da muralha.
Os matagais de pau-ferro, árvores sentinelas e carvalhos
que em outros tem pos cresceram ali, havia séculos tinham
sido abatidos para criar uma vasta extensão de terreno
aberto através do qual nenhum inimigo poderia esperar
passar sem ser visto. Tyrion ouvira di zer que em outros
locais da Muralha, entre as três fortalezas, a floresta viera
se aproximando ao lon go das décadas, que havia locais
onde
sentinelas
cinza-esverdeadas
e
represeiros
esbranquiçados tinham criado raízes à sombra da própria
Muralha, mas Cast elo Negro tinha um prodigioso apetite
por lenha, e ali a floresta ainda era mantida afastada
pelos machados dos irmãos negros.
Mas nunca estava longe. Dali, Tyrion podia vê -la, as
árvores escuras que se erguiam para lá da extensão de
terreno aberto, como uma segunda muralha construída em
paralelo com a primeira, uma muralha de noite. Poucos
machados tinham alguma vez sido brandidos naquela
floresta negra, onde até o luar não conseguia penetrar o
antigo emaranhado de raízes, espinhos e ramos. Lá onde
as árvores cresciam enormes, e os patrulheiros diziam que
pareciam meditar e que não conheciam os homens. Pouco
surpreendia que a Patrulha da Noite lhe chamasse a Flo -
resta Assombrada.
Ali, em pé, olhando para toda aquela escuridão sem um
fogo a arder onde quer q ue fosse, com o vento soprando e
o frio que era como uma lança nas entranhas, Tyrion
Lannister sentiu que quase podia acreditar na conversa
sobre os Outros, os inimigos da noite. Suas brincadeiras
sobre gramequins e snarksji. não lhe pareciam assim tão
engraçadas.
- Meu tio está ali - disse Jon Snow em voz baixa,
inclinando a lança enquanto mantinha os olhos fixos na
escuridão. - Na primeira noite em que me mandaram aqui
para cima, pensei que Tio Benjen voltaria, eu seria o
primeiro a vê-lo e sopraria o corno. Mas ele não veio.
Nem nessa noite nem em nenhuma das outras.
- Dê-lhe tempo - disse Tyrion.
Longe, para norte, um lobo começou a uivar. Outra voz
juntou-se ao chamado, e depois uma terceira. Fantasma
inclinou a cabeça e escutou.
- Se ele não regressar - prometeu Jon Snow -, Fantasma e
eu vamos à sua procura - pousou a mão na cabeça do
lobo gigante.
- Acredito - disse Tyrion, mas o que pensou foi: E quem
irá à sua procura? Estremeceu.
Arya
Seu pai tinha estado outra vez lutando com o conselho.
Arya podia ver isto em seu rosto quando chegou à mesa,
de novo atrasado, como acontecia tantas vezes. O
primeiro prato, uma espessa sopa suave feita com
abóbora, já fora levado quando Ned Stark entrou a passos
largos no Pequeno Salão. Chamavam -no assim para
distingui-lo do Grande Salão, onde o rei podia dar um
banquete para mil pessoas, mas era uma sala comprida
com um teto alto e abobadado, e lugar para duzentos
convivas às mesas.
- Senhor - disse Jory quando Stark entrou. Pôs-se de pé, e
o resto da guarda ergueu -se com ele. Todos os homens
usavam mantos novos, de pesada lã cinzenta com uma
borda de cetim branco. Uma mão feita de prata batida se
agarrava às dobras de lã dos mantos e marcava quem os
usava como membro da guarda pessoal da Mão. Eram só
cinquenta, e a maior parte dos bancos encontrava -se
vazia.
- Sentem-se - disse Eddard Stark. - Vejo que começaram
sem mim. Agrada-me ver que ainda há alguns homens de
bom-senso nesta cidade - fez sinal para a refeição
prosseguir. Os criados começaram a trazer bandejas de
costeletas assadas em crosta de alho e ervas.
- Dizem no pátio que vamos ter um torneio, senhor - disse
Jory quando voltou a se sentar.
- Dizem que virão cavaleiros de todo o reino para ajusta e
para um banquete em honra da vossa nomeação como
Mão do Rei.
Arya percebeu que seu pai não estava muito feliz com
aquilo.
- Também dizem que isto é a última coisa no mundo que
eu desejaria? - o pai falou, e os olhos de Sansa se
esbugalharam.
- Um torneio - suspirou. Estava sentada entre Septã
Mordane e Jeyne Poole, o mais longe de Arya que podia
sem receber uma reprimenda do pai. - Vão nos deixar ir,
pai?
- Conhece os meus sentimentos, Sansa. Parece que devo
organizar os jogos de Robert e fingir estar honrado com
eles. Isso não quer dizer que deva submeter minhas filhas
a esta loucura.
- Ah, por favor - Sansa pediu. - Eu quero ver.
Septã Mordane interveio.
- A Princesa Myrcella estará lá, senhor, e é mais nova que
a Senhora Sansa. Num grande evento como este, espera -se
a presença de todas as senhoras da corte, e como o
torneio é em vossa honra, parecerá estranho se vossa
família não comparecer.
O pai fez uma expressão sentida.
- Suponho que sim. Muito bem, arranjarei um lugar para
você, Sansa - ele olhou para Arya.
- Para as duas.
- Não me interessa o estúpido torneio deles - disse Arya.
Sabia que Príncipe Joffrey estaria lá, e ela o odiava.
Sansa ergueu a cabeça.
- Será um evento magnífico. Não a quererão lá.
Um relâmpago de ira surgiu no rosto do pai.
- Basta, Sansa. Diga mais uma coisa dessas e mudo de
idéia. Estou cansado de morte desta guerra sem fim que
vocês duas travam. São irmãs. Espero que se comportem
como tal, entendido?
Sansa mordeu o lábio e anuiu. Arya baixou o rosto para o
prato e fitou-o, carrancuda. Sentia lágrimas a arder-lhe
nos olhos. Esfregou-as, zangada, determinada a não
chorar. O único som que se ouvia era o ruído das facas e
dos garfos.
- Por favor, desculpem-me - anunciou o pai à mesa. -
Descobri que esta noite tenho pouco apetite - e saiu do
salão.
Depois de ele partir, Sansa trocou segredos comjey ne
Poole. Ao fundo da mesa, Jory riu de uma piada e Hullen
começou a falar de cavalos.
- Seu cavalo de guerra, preste atenção, pode não ser o
melhor para a justa. Não é a mesma coisa, ah, não, não é
de todo a mesma coisa - os homens tinham ouvido tudo
aquilo antes; Desmond, Jacks e o filho de Hullen, Harwin,
gritaram-lhe em uníssono que se calasse, e Porther pediu
mais vinho.
Ninguém falou com Arya. Ela não se importou. Gostava
das coisas assim. Teria feito suas refeições sozinha no
quarto se lhe fosse perm itido. E por vezes permitiam,
quando o pai tinha de jantar com o rei, com algum senhor
ou com os enviados deste ou daquele lugar. No resto do
tempo, comiam no seu solar, só ele, ela e Sansa. Era então
que Arya mais sentia saudades dos irmãos. Queria
provocar Bran, brincar com o bebê Rickon e fazer com
que Robb lhe sorrisse. Queria que Jon despenteasse seu
cabelo, chamasse-a de "irmãzinha" e acabasse as frases
junto com ela. Mas estavam todos longe. Não tinha
ninguém, a não ser Sansa, e Sansa nem sequer lhe falava,
a não ser que o pai a obrigasse.
Em Winterfell, quase metade das refeições era feita no
Salão Grande. O pai costumava dizer que um senhor devia
comer com seus homens se esperava conservá -los. Arya
um dia o ouviu dizer a Robb: "Conheça os homens qu e o
seguem e deixe que eles o conheçam. Não peça aos seus
homens para morrer por um estranho". Em Winterfell
tivera sempre um lugar extra à sua mesa, e todos os dias
um homem diferente era convidado a juntar-se a eles.
Uma noite seria Vayon Poole e a cohve rsa versaria sobre
cobres, reservas de pão e criados. Na próxima seria
Mikken, e o pai o ouviria discorrer sobre armaduras e
espadas, quão quente devia estar uma forja e qual a
melhor maneira de temperar o aço. Outro dia seria Hullen
com sua infinita conve rsa de cavalos, ou Septão Chayle da
biblioteca, ou Jory, ou Sor Rodrik, ou até a Velha Ama
com suas histórias.
Não havia nada que Arya mais gostasse do que se sentar à
mesa do pai e ouvi -los falar. Tam bém gostava de ouvir os
homens que se sentavam nos ban cos: cavaleiros livres,
duros como couro; cavaleiros cortesãos; jovens e ousados
escudeiros; velhos e grisalhos homens de armas.
Costumava atirar-lhes bolas de neve e ajudá-los a roubar
tortas da cozinha. As mulheres desses homens ofereciam-
lhe bolinhos de aveia e trigo e ela inventava nomes para
os seus bebês e brincava com seus filhos de monstros e
donzelas, ou busca do tesouro, ou vem ao meu castelo.
Gordo Tom costumava chama -lá de "Arya Debaixo dos
Pés", porque dizia que era aí que ela estava sempre. Go s-
tava muito mais desse nome do que de "Arya Cara de
Cavalo".
Mas isso era Winterfell, a um mundo de distância, e agora
tudo mudara. Aquela era a pri meira vez que tinham
comido uma refeição com os homens desde a chegada a
Porto Real. E Arya detestou. Agor a detestava o som de
suas vozes, o modo como riam, as histórias que contavam.
Tinham sido seus amigos, tinha se sentido segura junto
deles, mas agora sabia que isso era uma mentira. Tinham
deixado
a
rainha
matar
Lady,
e
isso
já
fora
suficientemente horríve l, mas depois o Cão de Caça
encontrara Mycah. Jeyne Poole dissera a Arya que o tinha
cortado em tantos pedaços que o devolveram ao carniceiro
dentro de um saco, e a princípio o pobre homem pensara
tratar-se de um porco morto. E ninguém levantara uma
voz ou puxara uma espada ou qualquer coisa, nem Harwin,
que falava sempre tão ousadamente, nem Alyn, que ia ser
um cavaleiro, ou Jory, que era capitão da guarda. Nem
mesmo seu pai.
- Ele era meu amigo - sussurrou Arya para o prato, tão
baixo que ninguém a ouviu . Suas costeletas estavam ali,
intocadas, esfriando, uma fina película de gordura
solidificando por baixo delas no prato. Arya as olhou e se
sentiu mal. Afastou a cadeira da mesa.
- Perdão, onde pensa que vai, jovem senhora? -
perguntou Septã Mordane.
- Não tenho fome - Arya sentia dificuldade em lembrar-se
da boa educação. - Com a sua licença - recitou
rigidamente.
- Não a tem - disse a septã. - Quase não tocou na
comida. Sente-se e limpe o prato.
- Limpe-o você! - antes que alguém pudesse detê-la, Arya
saltou para a porta enquanto os homens riam e Septã
Mordane a chamava sonoramente, com a voz cada vez
mais aguda.
Gordo Tom estava em seu posto, guardando a porta da
Torre da Mão. Pestanejou ao ver Arya correr em sua
direção por entre os gritos da septã.
- Ora bem, pequena, espera - começou a dizer,
estendendo a mão, mas Arya deslizou entre suas pernas e
precipitou-se pelos degraus em espiral da torre acima,
com os pés martelando a pedra enquanto Gordo Tom
bufava de irritação atrás dela.
Seu quarto era o único lugar de que Arya gostava em todo
o Porto Real, e aquilo de que gos tava mais nele era a
porta, uma maciça prancha de carvalho escuro com
reforços negros de ferro. Quando batia aquela porta e
deixava cair a pesada tranca, ninguém podia entrar
naquele quarto, nem Septã Mordane, nem Gordo Tom,
nem Sansa, nem Jory, nem o Cão de Caça, ninguém! E a
batia.
Depois de a tranca cair, Arya sentiu-se por fim
suficientemente em segurança para chorar. Foi até o
assento junto à janela e sentou-se ali, fungando, odiando
todos e a si mesma acima de tudo. Era tudo culpa sua,
tudo o que acontecera. Era o que Sansa dizia, e Jeyne
também.
Gordo Tom estava a batendo à porta.
- Menina Arya, o que se passa? - gritou. - Está aí?
- Não! - gritou Arya. As batidas pararam. Um moment o
mais tarde, ouviu-o partir. Gordo Tom era sempre fácil de
enganar.
Arya dirigiu-se à arca que tinha aos pés da cama.
Ajoelhou-se, abriu o tampo e começou a tirar a roupa lá
de dentro com ambas as mãos, agarrando a mãos -cheias
seda, cetim, veludo e lã e a tirando-as ao chão. Ali estava,
no fundo da arca, onde a escondera. Arya ergueu-a quase
com ternura e tirou a estreita lâmina de sua bainha.
Agulha.
Pensou de novo em Mycah e os olhos se encheram de
lágrimas. Culpa sua, culpa sua, culpa sua. Se nunca lhe
tivesse pedido para brincar de espadas com ela... Ouviu-se
uma batida na porta, mais alta que antes.
- Arya
Stark,
abra
esta
porta
imediatamente,
está
ouvindo?
Arya
rodopiou, com Agulha na mão.
- É melhor não entrar aqui! - preveniu, e golpeou o ar
ferozmente.
- A Mão ouvirá falar disto! - encolerizou-se Septã Mordane.
- Não me importa - gritou Arya. - Vá embora.
- Vai se arrepender deste comportamento insolente, senhorita, é
uma promessa que lhe faço - Arya escutou à porta até ouvir o
som dos passos da septã se afa stando.
Regressou para junto da janela, com Agulha na mão, e
olhou o pátio lá embaixo. Se ao me nos fosse capaz de
escalar como Bran, pensou; sairia pela janela e desceria a
torre, fugiria da quele lugar horrível, de Sansa, da Septã
Mordane e do Príncipe Joffrey, de todos eles. Roubaria
alguma comida da cozinha e levaria Agulha, botas boas e
um manto quente. Poderia encontrar Nymeria nos bosques
selvagens abaixo do Tridente e regressariam juntas a
Winterfell, ou correriam até Jon, na Muralha. Deu por si a
desejar que Jon estivesse ali consigo. Então talvez não se
sentisse tão só.
Um suave toque na porta atrás dela fê -la virar as costas à
janela e aos seus sonhos de fuga.
- Arya - soou a voz do pai. - Abre a porta. Temos de
conversar.
Arya atravessou o quart o e ergueu a tranca. O pai estava
só. Parecia mais triste que zangado, fazendo Arya sentir -
se ainda pior.
- Posso entrar? - Arya fez que sim com a cabeça e depois
abaixou os olhos, envergonhada. O pai fechou a porta. -
De quem é essa espada?
- Minha - Arya quase esquecera que tinha Agulha na mão.
- Dê-me.
Relutantemente, Arya entregou a espada, perguntando a si
mesma se voltaria algum dia a pegar nela. O pai a fez
rodar sob a luz, examinando ambos os lados da lâmina.
Testou a ponta com o polegar.
- Uma lâmina de espadachim - disse, - No entanto,
parece-me que conheço esta marca de fabricante. Isto é
trabalho de Mikken.
Arya não podia mentir para o pai. Abaixou os olhos.
Lorde Eddard Stark suspirou.
- Minha filha de nove anos é armada pela minha própria
forja, e eu nada sei sobre o assunto. Espera -se que a Mão
do Rei governe os Sete Reinos, mas parece que nem
sequer é capaz de governar sua casa. Como foi que se
tornou dona de uma espada, Arya? Onde arranjou isto?
Arya trincou o lábio e nada disse. Não queria trair Jon,
nem mesmo ao pai. Depois de algum tempo, o pai disse:
- Não me parece que realmente importe - olhou
gravemente para a espada que tinha nas mãos. - Isto não
é brinquedo para uma criança, e muito menos para uma
menina. Que diria Septã Mordane se soubesse que está
brincando com espadas?
- Não estava brincando - insistiu Arya. - Odeio Septã
Mordane.
- Basta - a voz do pai soou seca e dura. - A septã não faz
mais que o seu dever, embora os deuses bem saibam que
você o transformou numa luta para a pobre mulher. Su a
mãe e eu a encarregamos da tarefa impossível de
transformar você numa dama.
- Eu não quero ser uma dama! - inflamou-se Arya.
- Devia partir este brinquedo no joelho aqui e agora, e
pôr fim a este disparate.
- Agulha não se partiria - disse Arya em desafio, mas a
voz traiu-lhe as palavras.
- Ah, até tem nome? - o pai suspirou. - Ah, Arya. Tem um
ardor dentro de si, criança. Meu pai costumava chamá -lo
"o sangue do lobo". Lyanna tinha um pouco, e meu irmão
Brandon, mais que um pouco. Este levou ambos a uma
sepultura precoce - Arya ouviu tristeza na voz dele; não
era frequente falar do pai ou do irmão e da irmã que
tinham morrido antes de ela nascer. - Lyanna poderia ter
usado uma espada, se o senhor meu pai o tivesse
permitido. Você por vezes me faz lembrar dela. At é se
parece com ela.
- Lyanna era linda - disse Arya, surpresa. Todos diziam
aquilo. E não era algo que alguma vez se dissesse de Arya.
- Pois era - concordou Eddard Stark -, linda e
voluntariosa, e morta antes do tempo - ergueu a espada,
segurou-a entre os dois. - Arya, o que pensa fazer com
esta... Agulha? Quem planeja espetar nela? Sua irmã?
Septã Mordane? Sabe alguma coisa sobre esgrima?
Apenas conseguiu lembrar-se da lição que Jon lhe dera.
- Espeta-se com a ponta aguçada - proferiu.
O pai respondeu com um a gargalhada.
- Esta é a essência da coisa, suponho.
Arya queria desesperadamente explicar, para que ele
compreendesse.
- Eu estava tentando aprender, mas... - seus olhos se
encheram de lágrimas. - Pedi a Mycah para praticar
comigo - o desgosto assaltou-a por inteiro. Virou-se,
tremendo: - Eu lhe pedi - chorou. - Foi culpa minha, fui
eu...
De súbito, os braços do pai estavam à sua volta. Abraçou-
a gentilmente quando ela se virou e desatou a soluçar
contra seu peito.
- Não, querida - murmurou. - Chore pelo seu amigo, mas
nunca se culpe. Você não matou o filho do carniceiro.
Esse assassinato cabe ao Cão de Caça, a ele e à mulher
cruel que serve.
- Odeio-os - confidenciou Arya, com o rosto vermelho,
fungando. - Ao Cão, à rainha, ao rei e ao Príncipe Joffrey.
Odeio-os todos. Joffrey mentiu, as coisas não se passaram
como ele disse. E também odeio Sansa. Ela se lembrava, só
mentiu para que Joffrey gostasse dela.
- Todos mentimos - seu pai disse. - Ou será que pensa
mesmo que acreditei que Nymeria tinha fugido?