Enquanto ele falava, esgueirei-me para o balcão e beijei minha Leslie. Apertamo-nos um contra o outro, tão felizes por estarmos juntos, tão contentes por sermos nós!
— Eles ficarão juntos? — perguntei. — Pode alguém fazer, dessa maneira, muitas mudanças tão radicais?
— Assim espero, querido. Acredito nele porque não se defendeu. Ele procurou se modificar!
— Sempre imaginei que os companheiros ideais têm um amor incondicional, desse que nada pode separar.
— Incondicional? — indagou. — Se eu for cruel e detestável sem razão, e se o ofender você continuará a me amar? Se o enganar, se for para a cama com o primeiro homem que passar pela rua, se arriscar sem hesitar nosso último centavo e chegar em casa embriagada, apesar disso tudo, você me trataria com carinho?
— Quando você propõe esse caminho, talvez meu amor pudesse vacilar. O mais nós somos ameaçados, eu penso, o menos nos amamos. Interessante, para se amar alguém de modo incondicional, não se deve importar-se com o que ele é ou o que tem!
— Também penso assim — concordou Leslie.
— Então me ame condicionalmente, por favor. Me ame quando eu for a melhor pessoa, acalme-se se eu for desatencioso e enfadonho.
— Eu o amarei. Aja da mesma forma, por favor. Olhamos para dentro do quarto mais uma vez e vimos o outro Richard ainda ao telefone. Sorrimos, cupidos triunfantes.
— Por que não tenta a decolagem desta vez? — sussurrou Leslie. — Faz muito tempo que você não tenta, e devia ter certeza de ser capaz disso, antes de voltarmos para casa.
Olhei para ela, estendi a mão, naquele instante de lucidez, na direção de nosso manete invisível, visualizei-o debaixo de minha mão e o empurrei para a frente.
Nada. Não houve nenhum ondular de montanhas ou árvores, o mundo à nossa volta não estremeceu.
— Ah, Richie, é fácil — disse Leslie, ainda sorrindo. — Basta focalizar no sentido vertical.
Antes que eu lhe pudesse pedir que explicitasse o procedimento, passo a passo, antes que eu tentasse de novo, veio aquele conhecido zumbido trêmulo, com o universo se tornando indistinto ao passar de uma para outra dimensão. Leslie já empurrara o manete para a frente.
— Deixe-me tentar outra vez — falei.
— Certo, amor. Vou puxá-lo para trás. Vamos parar, para você tentar outra vez. É só focalizar…
Naquele exato instante, ganhamos o ar, com o mar sob nós. No momento em que ela fez retroceder o manete, o motor engasgou, tossiu e logo foi tarde demais.
O Martin subiu um pouco, e a seguir embicou para a água.
Eu sabia que seria uma violenta amerissagem. O que não esperava era o estrondo, a explosão de uma bomba de 45 quilogramas dentro da carlinga.
Uma força monstruosa arrebentou meu cinto de segurança como se fosse um barbante, atirando-me para fora, através do vidro, e fui cair de cara na água, dura como pedra. Quando emergi, arquejante, lá estava o Martin de cabeça para baixo, a 15 metros de distância, com a cauda para o ar, soltando uma nuvem de vapor do motor quente e submerso.
Não! pensei. Não! Não! Mergulhei na direção do avião, nosso belo e reluzente Growly branco, meio indistinto debaixo da água, mergulhei na direção da cabine despedaçada e que afundava.
Suportando a pressão nos ouvidos, agarrando-me à fuselagem despedaçada, arranquei fora o que restava da capota, soltei o cinto de Leslie. Seu corpo estava inerte e mole. O vestido branco flutuava etereamente em volta dela, os cabelos dourados boiavam languidamente. Tirei-a da carlinga e comecei a subir para a superfície opaca, tão distante de nós agora. Ela está morta. Não, não, não.
Tomara que eu morra, que meus pulmões arrebentem, quero me afogar!
Uma mentira me impelia a continuar: Você não tem certeza de que está morta, você precisa tentar.
Está morta.
Você precisa tentar!
Uma chance em mil. Ao chegar à superfície, eu estava esgotado.
— Está tudo bem, amor — arquejei. — Vamos conseguir… Um barco de pesca, com dois enormes motores de popa, quase passou por cima de nós. Um imenso costado a toda velocidade, sufocando-nos em espuma. Um homem saltou ao mar, através da cortina de água, puxando uma corda de segurança. Dentro da água há não mais de dez segundos, ele gritou: — Peguem os dois! Puxem!
Eu não era um fantasma, nem estava num sonho. Aquilo era uma pedra de verdade, dura como gelo contra meu rosto. Eu não estava assistindo impessoalmente a uma cena, eu era a cena, e não havia ninguém mais para assistir.
Eu estava deitado sobre a sepultura dela, na encosta que ela havia plantado com flores, e soluçava. Debaixo de mim, grama fria. Na lápide em que eu encostava o rosto, uma única palavra: Leslie.
O vento de outono, eu não o sentia. Em minha terra, e em meu próprio tempo, nada me importava. Completamente sozinho e abandonado, três meses após o acidente, ainda me encontrava estupefato. Era como se uma cortina de palco, de trinta metros, houvesse caído sobre mim, cheia de pesos, sufocando-me, prendendo-me, asfixiando-me numa sensação de perda e aflição.
Nunca havia tomado consciência da coragem necessária a uma pessoa para não se matar quando morre a esposa, o marido! Mais coragem do que eu tinha. Ela exigia o cumprimento de todas as promessas que eu havia feito a Leslie.
Quantas vezes havíamos feito planos. Morrer juntos.
Independente do que acontecer, vamos morrer juntos.
— Mas no caso de isso não suceder — advertira-me ela —, se eu morrer primeiro, você deve ir em frente. Prometa!
— Prometo, se você prometer…
— Não! Se você morrer, não terá sentido eu continuar viva.
Quero ficar com você.
— Leslie, como pode esperar que eu lhe prometa continuar a viver, se você não fizer a mesma promessa? Isso não é justo. Vou prometer, já que há uma possibilidade de isso acontecer, por uma razão.
Mas não vou prometer se você não o fizer também.
— Uma razão? Que razão pode ser?
— É uma questão teórica, mas talvez nós dois possamos descobrir um meio de solucioná-la. Talvez venhamos a aprender um modo de estarmos juntos, não importa que nos tenham ensinado… que a morte é o nosso fim. Talvez seja apenas uma perspectiva diferente, uma hipnose, e poderíamos nos desipnotizar. Se pudermos aprender a superar isso, que bom seria escrever! Não sou eu só que compro livros a respeito da morte, não se trata de curiosidade mórbida, trata-se de estudar um problema, um desafio criativo. E você não concorda que o amor seja a motivação capaz de nos ensinar a solução? Ela rira.
— Meu querido! Adoro o jeito como sua cabeça lida com coisas assim! Mas você está entendendo o que quero dizer, não é? Não só é você quem lê livros sobre a morte, como também é um escritor. Por isso, se houver uma possibilidade dessa desipnotização, haverá um motivo para ficar vivo se eu morrer. Poderia aprender e escrever a respeito. Não há sentido algum em eu continuar por aqui se você se for.
Não seria capaz de escrever sem você. Por isso, prometa! Richard Bach, se eu morrer primeiro e você se matar… eu lhe aviso: eu o assassino!
Minha mulher, ou seu lado cético, encarava nossas conversas com muitas reservas.
— Escute isso. — Eu lia para ela, repetindo um trecho de um livro sobre a morte. — “…e enquanto eu estava sozinha em nossa sala, sofrendo desesperadamente a morte do meu querido Robert, um livro caiu da estante, por si só. Dei um salto, de tão assustada que fiquei, e quando o ergui do chão, as páginas se abriram, e meu dedo tocou numa frase, ’Estou com você!’, sublinhada pela própria caneta dele…”
— Muito interessante — comentara ela.
— Você duvida? Você é uma pessoa incrédula?
— Richard, já lhe falei, se você morrer…
— O que pensariam as pessoas? — Eu a censurara. — Viajamos por aí dizendo e escrevendo… pelo amor de Deus… que o desafio da vida no espaço-tempo consiste em utilizar a força do amor para transformar o desastre em algo de glorioso, e um minuto depois de minha morte você pega sua Winchester e se mata?
— Não creio que eu me importasse com a opinião alheia numa hora como…
— Você não crê que se importasse! Leslie!
E assim conversávamos, repetidamente. Nenhum dos dois suportava a idéia de viver sem o outro, mas por fim, cada um prometera, exausto, que não haveria suicídio algum.
Agora me arrependia de cada palavra. Secretamente, acreditara que, se não morrêssemos juntos, eu morreria primeiro. E sabia que seria capaz de saltar a cerca do outro mundo para este, como um animal a transpor uma cerca de arame farpado, a fim de estar com ela.
Mas deste mundo para o outro…
Continuei deitado na grama, encostado na acetinada lápide congelada. O que sei a respeito da morte exigiria toda uma biblioteca; e o que Leslie sabia a respeito caberia em sua bolsa de noite, sobrando espaço para a carteira e o caderno de telefones. Como eu fora tolo em fazer aquela promessa!
Certo, nada de suicídio. No entanto, sua morte me deixara menos cuidadoso do que eu fora. Tarde da noite, trafegando pelas estreitas ruas da ilha, eu dirigia o velho sedan Torrance dela em velocidade mais adequada a carros esporte, sem prender o cinto de segurança, a me recordar.
Gastava dinheiro prodigamente. Cem mil dólares por um Honda Starflash — setecentos cavalos de força numa estrutura de 550 quilos, cem mil dólares para voar como um louco nos espetáculos aéreos de fim de semana, shows aéreos para gente do interior.
Nada de suicídio, eu prometera. Mas nunca havia dito à minha mulher que não voaria para vencer.
Coloquei-me de pé com esforço, caminhei pesadamente de volta à nossa casa. Antes, o crepúsculo detonava fogos de artifício no céu, Leslie era uma flutuante nuvem de alegria na qual o fim do dia fazia com as flores que ela plantara, me apontando isso, mostrando aquilo. Agora, por toda parte era tudo cinza.
Pye avisara-nos que seríamos capazes de encontrar o caminho de volta para nosso próprio tempo. Por que não contara que o caminho para casa era um acidente no mar, e que um de nós teria de morrer?
De dia, eu estudava meus livros sobre a morte, e comprava outros mais. Tantas pessoas se haviam acidentado de encontro àquela parede! No entanto, ela só havia sido cruzada num sentido, daqui para lá. Se Leslie estava comigo, olhando ou ouvindo, não dava o menor sinal. Nenhum livro despencava de nossas estantes, nenhum quadro balançava na parede.
De noite, eu levava o travesseiro e o saco de dormir para o tablado. Não suportava a idéia de dormir em nossa cama sem ela.
O sono, antes minha escola, minha sala de conferências, minha campânula de aventuras extraterrenas, era agora feito de sombras perdidas, excertos de filmes mudos. Eu percebia um vislumbre de Leslie, chegava para perto dela… e acordava sozinho, desolado. Droga!
Ela devia ter estudado!
Eu revivia aqueles vôos loucos sobre o desenho, vezes sem conta, repetia-os mentalmente apesar da dor que provocavam, como um detetive examinando o cadáver em busca de pistas. Devia haver uma resposta, em algum lugar. Se não houvesse, eu morreria, com ou sem promessa.
Aquela noite estava mais brilhante que todas as demais. Estrelas rodopiavam por horas a fio, refulgentes como aquela noite na França antiga…
Sabei que eternamente, diante de vós, segue a luz do amor, e que a cada momento está em vossas mãos o poder de transformar o mundo através do que aprendestes.
Não temais, nem vos turbe a aparência das trevas, do manto vazio que é a morte.
Vosso mundo é uma miragem, tanto quanto qualquer outro mundo. Vossa unicidade no amor i uma realidade, e miragens não podem modificar a realidade.
Não vos esqueçais. Não importa a aparência…
Aonde quer que fordes, estão aqui juntos, em segurança com quem amais, no ponto de toda perspectiva.
Focalize no sentido vertical! É só focalizar… Amor e coragem podem tirar uma pessoa de qualquer desespero.
Apreciai os desastres… são as provas que trazem os maiores galardões.
Ignorai as aparências. Tu necessitas da força dela. Ela, de tuas asas. Juntos, voais!
Esmurrei as tábuas do tablado furioso. O espírito violento de Átila se liberava para me ajudar.
Não me importa que tenhamos nos acidentado, pensei, sequer acredito que tenhamos nos acidentado, não nos acidentamos, droga!
Não me importa o que tenha visto ou ouvido ou tocado ou provado, não me importa coisa alguma senão a vida! Ninguém está morto ninguém está enterrado ninguém está sozinho eu sempre estive com ela estou com ela agora estarei sempre ao seu lado e ela comigo e nada nada nada tem o poder de se interpor entre nós!
Escutei a voz de Leslie, um fiapo de seu grito: — Richie! É verdade!
Não houve acidente algum, a não ser em minha mente, e me recuso a aceitar essa mentira como verdade. Não aceito esse tal de lugar, não aceito esse tal de tempo, não há essa porcaria de Honda Starflash, a Honda nem mesmo fabrica aviões, nunca fabricou e jamais fabricará, recuso-me a aceitar que não tenho os mesmos poderes psíquicos que ela, conheço mil livros, e ela nenhum, droga, vou segurar aquele manete e hei de fazer o maldito avião atravessar o teto se for preciso, ninguém se acidentou, ninguém foi atirado fora, isso é apenas mais um pouso no meio daquela droga de desenho e já estou cheio dessas histórias de morte e sofrimento, cheio de chorar em seu túmulo, e eu VOU mostrar a ela que posso fazer isso, não é impossível…
Solucei, tomado de uma furiosa alegria, de uma força imensa que brotava de mim, Sansão empurrando as colunas que impediam o mundo de desabar. Senti-o mexer-se, como ferros que se dobrassem, terremotos que estilhaçassem os alicerces da casa. As estrelas tremeram, borraram-se. Nesse instante, empurrei a mão direita para a frente.
A casa desapareceu. A água do mar estrondejou e subiu numa cortina de borrifos sob nossas asas, enquanto o Growly se libertava das ondas, livrava-se das águas e subia para seu elemento.
— Leslie! Ah, Leslie! Você voltou! Estamos juntos! O rosto dela estava banhado de lágrimas e de riso.
— Richie. Meu amor querido! — exclamou. — Você conseguiu, eu o amo, VOCÊ CONSEGUIU!