Imediatamente minha mão preparou-se para empurrar o manche para a frente, imobilizar a intrusa contra o encosto do assento.
— Não se assustem! — disse ela. — Sou amiga! — Ela riu.
— Não fiquem com medo, logo de mim!
Minha mão relaxou, mas não muito.
— Quem…? — começou Leslie, olhando para a mulher.
Nossa passageira, que vestia jeans e uma blusa xadrez, tinha a pele morena, cabelos cor de tinta nanquim que lhe caíam até os ombros, olhos pretos como a meia-noite.
— Meu nome é Pye, e sou para vocês o que vocês são para aqueles que deixaram em Carmel. — Encolheu os ombros, corrigindo-se. — Vezes vários milhares.
Desacelerei o motor, e o barulho diminuiu.
— Como foi que… — falei. — O que está fazendo aqui?
— Achei que poderiam ficar preocupados — comentou.
— Vim para ajudar.
— O que significa vezes vários milhares? — perguntou Leslie.
— Você sou eu no futuro?
Ela assentiu com a cabeça, chegando-se mais para a frente.
— Sou ambos vocês. Não venho do futuro, mas de… — Neste ponto ela cantarolou uma curiosa nota dupla. — …de um presente alternativo.
Eu estava ansioso por saber como ela podia ser nós dois, o que era um presente alternativo, mas acima de tudo desejava saber o que nos havia acontecido.
— Sabe o que foi que nos matou? Onde estamos? — perguntei.
— Morte? — retrucou. — Vocês não estão mortos. Por que imaginam isso?
— Não sei — respondi. — Estávamos nos preparando para aterrissar quando, de repente, houve um zumbido forte e a cidade desapareceu, só isso. O que era civilização vaporizou-se em meio segundo e ficamos sozinhos sobre um oceano que não existe no planeta Terra. E quando pousamos estávamos transformados em fantasmas à procura de nosso próprio passado, das pessoas que éramos quando nos conhecemos, e só elas podem nos ver, as pessoas nos atropelam com carrinhos com roupa suja, nossos braços atravessam as paredes… — Dei de ombros, desanimado. — A não ser por isso, não imaginamos por que pensaríamos que estamos mortos.
A mulher riu.
— Bem, vocês não estão mortos.
Olhei para minha mulher e senti uma onda de alívio.
— Nesse caso, o que foi que aconteceu conosco? — perguntou Leslie.
— É uma coisa relacionada com a eletrônica — explicou —, uma antiga profissão minha. — Olhou para nosso painel de instrumentos e franziu a testa. — Vocês têm aqui transmissores de altíssima freqüência. Receptor de loran, os transmissores, o transponder, pulsos de radar. Poderia ter sido uma interação. Raios cósmicos… — Examinou os instrumentos e fez uma pausa. — Houve um forte clarão dourado?
— Isso!
— Interessante — comentou ela, com um sorriso. — A possibilidade de isso acontecer é de uma em trilhões! — Ela era toda simpatia. — Não devem contar com fazerem essa viagem muitas vezes.
— E a possibilidade de voltarmos? É de uma em trilhões? — perguntei. — Temos um encontro em Los Angeles amanhã. Vamos chegar a tempo?
— Tempo? — Ela se virou para Leslie. — Você está com fome?
— Não. Virou-se para mim.
— Está com sede?
— Não.
— Por que acham que não sentem fome nem sede?
— Nervosismo — respondi. — Tensão.
— Medo! — disse Leslie.
— Você está com medo? — perguntou Pye. Leslie pensou um momento, depois sorriu.
— Agora, não.
Eu não podia dizer o mesmo. Não sou grande apreciador de mudanças.
Pye virou-se para mim.
— Quanto combustível está consumindo? O ponteiro permanecia imóvel.
— Nenhum! — respondi, compreendendo de repente o que se passava. — O Growly não está usando combustível algum, não estamos consumindo nada porque combustível, fome e sede são coisas relacionadas com o tempo, e aqui o tempo não existe!
Pye anuiu.
— O movimento é uma coisa relacionada ao tempo — objetou Leslie —, e nós estamos em movimento.
— Estamos mesmo? — Pye ergueu as sobrancelhas, interrogativamente, virando-se para mim.
— Não me olhe — respondi. — Estamos nos movendo apenas de faz-de-conta? Estamos nos movendo somente…
Pye me dirigiu um sinal de incentivo, como se dissesse que eu estava “esquentando”.
— …na consciência?
Ela levou o dedo à ponta do nariz e abriu-se num sorriso.
— Exatamente! Tempo é o nome que vocês dão ao movimento da consciência. Todo possível acontecimento capaz de ocorrer no espaço e no tempo acontece agora, ao mesmo tempo, simultaneamente.
Não há passado, nem futuro, apenas o agora, ainda que sejamos obrigados a utilizar uma linguagem temporal para conversar. É como…
— Ela olhou para o teto, à procura de uma comparação. — É como a aritmética. Assim que você passa a conhecer o sistema, sabe que todos os problemas numéricos já estão respondidos. O princípio da aritmética já conhece a raiz cúbica de seis, mas podemos levar um pouco do que chamamos de tempo, alguns segundos, para descobrir o que sempre foi.
A raiz cúbica de oito é dois, pensei, a raiz cúbica de um é um.
Raiz cúbica de seis. Está entre um e dois, para mais… Um vírgula oito?
E realmente, enquanto eu fazia o cálculo, sabia que a resposta já estava à espera desde que eu fizera a pergunta.
— Todos os acontecimentos? — perguntou Leslie. — Todo fato possível capaz de acontecer já aconteceu! Não há futuro?
— Nem passado — disse Pye —, nem tempo. Leslie estava aturdida.
— Então, por que passamos por todas essas experiências nesse…
nesse tempo de faz-de-conta, se tudo já está feito?
— O importante não é que tudo já esteja feito, mas sim o fato de dispormos de opções infinitas — respondeu Pye. — Nossas escolhas nos levam a experimentar as coisas que fazemos, e com a experiência compreendemos quem somos.
— Onde é que acontece isso tudo? — perguntei. — Haverá no céu algum armazém enorme, com prateleiras para todos esses possíveis acontecimentos? E podemos escolher um ou outro?
— Não um armazém, um lugar, ainda que você tenha a impressão de ser um lugar — explicou. — Onde imagina que ele possa localizar-se?
Balancei a cabeça e virei-me para Leslie. Ela também fez um gesto negativo.
Pye repetiu a pergunta, teatral.
— Onde? — Olhando dentro de nossos olhos, ela levantou a mão e apontou para baixo.
Olhamos. Lá embaixo, debaixo da água, revoluteavam aqueles caminhos intermináveis no leito do mar.
— O desenho? — perguntou Leslie. — Debaixo da água? Ah!
Nossas escolhas! O desenho é o caminho que seguimos, as voltas que demos! E todas as outras possíveis voltas que poderíamos ter dado, que demos durante…
— …existências paralelas? — perguntei, vendo as peças do quebra-cabeça se juntarem. — Existências alternativas!
O desenho espraiava-se majestosamente lá embaixo.
Arregalamos os olhos, assombrados.
— Sobrevoamos, subimos mais alto — falei, sentindo a voz trêmula com a carga de respostas —, e temos uma perspectiva! Vemos todas as escolhas, todas as bifurcações, as encruzilhadas. Mas quanto mais baixo voamos, mais perdemos perspectiva. E quando pousamos, desaparece nossa perspectiva de todas as demais opções! Focalizamos em detalhes: detalhes diários, horários, de minutos, e nos esquecemos das vidas alternativas!
— Que bela metáfora vocês construíram para explorar quem são — disse Pye. — Um desenho de riscos debaixo de águas sem fim.
Vocês precisam voar de um lado para outro em seu hidravião, a fim de visitar seus egos alternativos, mas é um instrumento criativo, e funciona.
— Nesse caso, aquele mar lá embaixo não é um mar de verdade, não é? — perguntei. — Aquele desenho não existe de modo concreto.
— Nada no espaço-tempo existe de modo concreto — respondeu ela. — O desenho é um auxílio visual que vocês elaboraram, é sua maneira de compreender existências simultâneas. A metáfora é ligada ao vôo porque vocês entendem de vôo. Quando pousam, o hidravião flutua sobre o desenho, apartado dele, distante, e vocês se tornam observadores, são como fantasmas em seus mundos alternativos. Podem aprender com os outros aspectos de vocês sem participarem, considerando reais os ambientes em que eles vivem.
Quando descobrem o que precisam descobrir, lembram-se do hidravião, empurram o manete para a frente e são lançados ao ar, retornam à perspectiva ampla — Fomos nós que imaginamos… esse desenho? — perguntou Leslie.
— Há tantas metáforas para vidas no espaço-tempo quanto assuntos que a fascinam — explicou Pye. — Se vocês gostas sem de fotografia, sua metáfora poderia ter lançado mão de planos de foco. O foco torna um ponto definido e todos os demais indistintos.
Focalizamos numa determinada existência e pensamos que só existe ela e nada mais. Mas todos aqueles outros aspectos, os distintos, que consideramos sonhos, fantasias e desejos frustrados, são realíssimos também. Somos nós que escolhemos o foco.
— Não é de admirar que sejamos fascinados pela física — comentei —, com a mecânica quântica, a anulação do tempo. Nada disso é possível, tudo isso é verdadeiro! Não há vidas passadas, nem vidas futuras, concentramo-nos num ponto, acreditamos que esteja se movendo e inventamos o tempo? Nos envolvemos numa vida e passamos a acreditar que só ela existe? Isso é verdade, Pye?
— Bem perto — respondeu.
— Então podemos seguir voando — disse Leslie —, podemos ir além do ponto em que deixamos Richard e Leslie jovens em Carmel, pousar na frente deles e descobrir se ficaram juntos. Podemos ver se pouparam aqueles anos que desperdiçamos!
— Você já sabe — comentou Pye.
— Não sabemos! — exclamei. — Fomos puxados… Pye sorriu.
— Eles têm escolhas, também. Um lado deles se assusta e foge de um futuro carregado demais de comprometimento. Num outro lado, tornam-se amigos mas nunca amantes, em outro se tornam amantes mas nunca amigos, em outro casam-se e se divorciam, em outro resolvem ser almas irmãs um do outro, casam-se e amam-se para sempre.
— Somos como turistas — disse eu. — Não construímos a paisagem, apenas escolhemos a parte dela que desejamos ver.
— Muito bem — falei —, suponhamos que voem para um ponto do desenho onde pousamos e impedimos nossa mãe de conhecer nosso pai. Se não se encontram, como seria possível nascermos?
— Não, Richard — respondeu Leslie —, isso não nos impediria de nascer. Nós nascemos naquela parte do desenho em que eles realmente se encontraram, e isso nada pode mudar.
— Nada, então, é predeterminado? — perguntei. — Não há destino?
— É claro que o destino existe — respondeu Pye —, mas ele não o empurra para onde você não quer ir. São vocês que escolhem.
Compete a vocês traçar o destino.
— Então, Pye, gostaríamos de ir para casa — falei. — O que fazemos para voltar?
Ela sorriu.
Voltar para casa é fácil, é como saltar de um tronco flutuante.
Seu desenho é psíquico, mas o caminho de volta é espiritual. Guiem-se pelo amor… — Pye calou-se de repente. — Desculpem a aula.
Gostariam de ir agora?
— Por favor.
— Não! — disse Leslie. Falava a Pye, mas segurava minha mão, seu jeito de pedir que eu ouvisse o comentário que ia fazer. — Se eu compreendi bem o que você disse, as pessoas que éramos, a caminho de Los Angeles, estão paradas no tempo. Podemos retornar a elas a qualquer momento que quisermos.
— Claro que podemos — retruquei —, mas no momento seguinte vem nossa explosão de raios cósmicos e pronto, retornamos aqui!
— Não — discordou Pye. — No instante em que vocês voltam ao hidravião, um milhão de variáveis se alteram, e qualquer uma dessas variáveis impedirá que o fato se repita. Já querem ir?
— Não — insistiu Leslie. — Quero aprender aqui, Richie, quero compreender! Se só temos uma oportunidade em um trilhão, e se a oportunidade é esta, devemos ficar!
— Pye, se ficarmos, podemos nos machucar, descambar para alguma outra época, podemos nos ferir, embora sejamos fantasmas? — perguntei.
— Podem escolher isso, se assim desejarem — respondeu.
— Escolher isso? — A resposta me pareceu perigosa. Tenho uma atitude de racionalidade em relação às minhas aventuras. Voar para dentro do inteiramente desconhecido não é aventura, é loucura.
Virei-me para minha mulher, um pouco nervoso. — Meu amor, acho que seria melhor voltarmos.
— Ah, Richie, quer mesmo abrir mão dessa oportunidade? Não foi sobre isso que você sempre leu, não foi o fascínio de toda a sua vida, vidas simultâneas, futuros alternativos? Pense no que aprenderíamos! Não vale a pena correr um certo perigo?
Suspirei. O passado de Leslie é, todo ele, feito de escolhas corajosas em busca da verdade e de princípios. Ela acenava para o explorador que havia em mim.
— Vamos, minha querida — concordei. — Está certo. A atmosfera estava carregada de riscos subestimados. Sentia-me como um aluno de aeroclube antes de uma aula de acrobacias lentas sem cinto de segurança.
— Pye, afinal de contas, quantos aspectos de cada um de nós existem? — perguntei.
Ela riu, olhou pela janela do hidravião para o desenho lá embaixo.
— Quantos você imagina existirem? Não há como contar.
— Todo aquele desenho nos representa? — espantou-se Leslie, atônita. — Até onde vemos, até onde podemos chegar, o desenho representa nossas escolhas!
Pye anuiu com a cabeça.
Ainda nem começamos, pensei, e já é difícil acreditar.
— E as outras pessoas, Pye? Quantas vidas podem existir no universo?
Ela me olhou, perplexa, como se não compreendesse minha pergunta.
— Quantas vidas no universo, Richard? — perguntou. — Uma.