Minha mulher ajoelhou-se ao lado da criança que ela fora, olhando para ela e falando com mansidão.
— Está tudo bem — disse à moça, consoladora. — Vai dar tudo certo. Você é uma moça de muita sorte. É mesmo!
A moça empertigou-se, olhou para ela sem acreditar no que ouvia, e afastou as lágrimas com as mãos.
— Eu, de sorte? Você chama isso de sorte? — Quase começou a rir, tomada de esperança, apesar dos soluços.
— Sorte, talento, privilégio. Você descobriu aquilo de que gosta!
Pouquíssimas pessoas descobrem isso na sua idade. Algumas, nunca.
Mas você já sabe.
— Música.
Minha mulher concordou.
— Você tem muitos dons: é inteligente e talentosa, ama a música e possui uma força de vontade inabalável. Nada é capaz de detê-la!
— Mas por que preciso ser tão pobre? Se ao menos… Este piano é uma… Escute! — Dedilhou o teclado quatro vezes, oito notas em oitavas velocíssimas. Até eu podia perceber que havia cordas quebradas dentro da caixa do instrumento. — Duas teclas estão mudas, e não temos dinheiro nem para… — A moça bateu com um punho nas teclas amareladas. — Por quê?
— Para que você possa provar que a força de vontade, o amor e o trabalho duro podem tirá-la da pobreza e do desespero. E algum dia, talvez, poderá transmitir isso a alguma outra jovem que viva nas mesmas dificuldades. E quando ela disser, “Ah, para você é fácil dizer isso, porque é uma pianista famosa, é rica, mas eu… Não tenho nem o suficiente para comer, e preciso me exercitar nessa porcaria de…”, você poderá transmitir a sua experiência, ajudar essa jovem a ir em frente.
A moça pensou um pouco.
— Estou choramingando, e nem sei por quê. Detesto choramingações.
— Não há nada demais em dasabafar comigo — disse Leslie.
— Eu vou conseguir ir em frente? Vou ter sucesso? — perguntou.
— As escolhas são suas, mais do que você suspeita. — Leslie lançou-me um olhar de soslaio. — Se nunca abrir mão daquilo que lhe é importante, se isso for tão importante que você se disponha a se esfalfar para consegui-lo, prometo-lhe uma vida cheia de sucessos.
Uma vida difícil, porque fazer alguma coisa melhor do que a maioria não é fácil, mas uma vida ótima.
A moça olhou-a um tanto perplexa.
— Eu poderia ter uma vida fácil e ruim?
— Essa também é uma escolha.
Um brilho de malícia luziu-lhe nos olhos.
— E uma vida fácil e alegre? Ambas riram.
— Talvez — disse Leslie. — Mas não escolheria uma vida fácil, não é?
A moça olhou para ela, concordando.
— Quero fazer exatamente o que você fez.
— Não — respondeu Leslie, sacudindo a cabeça com um sorriso contristado. — Não creio que possa. Você deve seguir seu próprio rumo, traçar seu próprio caminho.
— Você é feliz?
— Sou!
— Então quero fazer o que fez.
Leslie examinou a moça por um momento, resolveu contar o pior: — Nem sempre minha vida foi fácil. Houve vezes em que foi tão difícil que perdi a vontade de viver. Muitas vezes. Algumas vezes tentei acabar com a vida…
Lágrimas repentinas brotaram nos olhos da moça.
— Eu também!
— Eu sei — disse Leslie. — Sei como é difícil para você permanecer viva.
— Mas você conseguiu sair disso. Como?
Leslie levantou-se e virou-se, com vergonha de encará-la.
— Aceitei o emprego com a Conover. Desisti do piano. A moça também se levantou, atônita, incapaz de acreditar.
— Mas, como? E… e aquela história de amor e força de vontade?
Leslie virou-se novamente.
— Sei como você está vivendo em Filadélfia, dormindo na rodoviária, usando o dinheiro da pousada e da comida para comprar músicas. Mamãe teria um troço se soubesse. Você passa o tempo todo à beira do desastre.
A moça concordou.
— Fiz a mesma coisa. Foi então que perdi um dos empregos e caí no abismo… Não consegui achar outro trabalho logo, nem passando fome consegui manter a situação. Por isso, cheguei à conclusão de que mamãe estava certa.
“Resolvi que podia tirar um ano, trabalhar dia e noite, poupar tudo quanto pudesse, resolvi que poderia ganhar dinheiro suficiente para obter meu mestrado… — A frase acabou em lembranças melancólicas.
— Mas você não fez nada?
— Não… fiz muito. O sucesso me atingiu como uma tempestade: propostas para ser modelo, depois televisão. Em um ano eu estava em Hollywood assinando contrato com a Twentieth Century-Fox, para fazer filmes. Mas eu fazia o que não gostava, e por isso não parecia sucesso. Por outro lado, eu podia agora ajudar minha família, de modo que nunca conseguia justificar o egoísmo de abandonar tudo e voltar à minha música. Mas nunca resolvi ficar, eu só ia ficando… uma decisão passiva. Mais tarde, entendi que estivera tentando, sempre, abandonar aquele mundo de espetáculos. Sabotei a carreira tantas vezes que nem merecia tê-la.
Seguiu-se um longo silêncio. As duas pensavam nas implicações daquelas palavras.
— O sucesso foi uma vida ruim, acredite ou não — continuou Leslie. — Eu sempre achava que não tinha nada a ver com aquilo, que eu era uma impostora. A maioria das pessoas que têm sucesso rápido sente-se assim, mas eu não sabia disso na época, sentia-me só. Não podia dizer a ninguém. Como poderia me queixar das coisas boas que me estavam acontecendo? — Leslie suspirou. — É isso. Quando abandonei a música, tive aventura, desafio, emoção, aprendi muito…
A moça interrompeu-a admirada.
— Mas o que há de errado com isso? Não me parece uma coisa ruim!
— Eu sei — anuiu Leslie. — Por isso era tão difícil compreender, era tão difícil sair. No entanto, anos depois, entendi que ao renunciar à música renunciei à oportunidade de uma vida tranqüila e feliz, fazendo aquilo de que realmente gostava. Renunciei àquela vida durante muito tempo, pelo menos.
Fiquei surpreso ante essas palavras. Leslie nunca me contara. Só agora eu percebia o que ela poderia ter sido, o que ela havia posto de lado ao saltar da música para o gelo de sua carreira em Hollywood.
A moça parecia inteiramente confusa.
— Bem, isso aconteceu com você, mas aconteceria comigo? O que devo fazer?
— Só há uma pessoa no mundo capaz de responder essa pergunta: você mesma. Descubra o que realmente deseja e faça isso.
Não passe vinte anos de sua existência vivendo passivamente, quando pode decidir agora mesmo seguir o rumo que deseja. O que você realmente quer?
A moça não titubeou.
— Quero aprender. Quero ser a melhor no que faço. Quero dar ao mundo alguma coisa bela!
— Você há de fazer isso. Que mais deseja?
— Quero ser feliz. Não desejo ser pobre.
— Sei. O que mais? A moça animou-se.
— Quero acreditar que há uma razão para viver, uma coisa que faça sentido, um princípio que me ajude a suportar os momentos difíceis e também os bons. Não se trata de religião, porque já tentei, tentei mesmo, e em vez de respostas, tudo que escuto é “Tenha fé, minha filha.”
Leslie franziu o cenho, recordando-se.
— E, além disso — continuou a moça, subitamente acanhada —, quero acreditar que há no mundo uma outra pessoa tão solitária quanto eu. Quero acreditar que vamos nos encontrar, e que… vamos amar um ao outro, e que nunca mais estaremos sozinhos!
— Escute — falou minha mulher, olhando-a nos olhos com muita intensidade. — Tudo o que você disse, tudo aquilo em que quer acreditar, já é verdade. Você poderá não encontrar alguma coisa durante algum tempo, e até poderá demorar mais para achar outras coisas, mas isso não impede que sejam verdadeiras neste exato instante!
— Até uma pessoa para amar? Haverá mesmo alguém para mim? Ele também é verdade?
— Ele se chama Richard. Quer conhecê-lo?
— Conhecê-lo agora? — espantou-se.
Leslie estendeu a mão da moça para mim. Saí de trás dela, satisfeito com o fato de aquele aspecto de uma pessoa tão querida desejar me conhecer.
Ela me olhou, aturdida.
— Olá — saudei-a, um pouco perturbado também. Como era estranho ver aquele rosto, tão diferente do da mulher que eu amava, e ao mesmo tempo tão igual!
— Você parece muito… assim… muito adulto para mim. — Ela achara, por fim, uma maneira delicada de dizer velho.
— Na época em que me conhecer, vai gostar de homens mais velhos — respondi.
— Não amo homens mais velhos! — disse minha mulher, passando o braço em volta de minha cintura. — Eu amo este homem mais velho…
A moça olhou-nos, assim abraçados.
— Não sei se está direito perguntar, mas vocês são realmente felizes juntos? — Por seu tom, percebia-se que ela achava difícil acreditar nisso.
— Mais felizes do que você consegue imaginar — respondi — Quando vou conhecê-lo? Onde? No conservatório? Deveria eu dizer-lhe a verdade? Que isso levaria mais vinte anos, um casamento desfeito, outros homens? Que antes de nos conhecermos, aquela jovem, ao lado de seu velho piano, teria de viver tudo quanto já vivera e mais a metade? Olhei para minha mulher.
— Ainda vai levar bastante tempo — disse ela, amável. — Ah.
Menina valente, pensei. Ainda vai levar bastante tempo, devia ter feito com que ela se sentisse mais solitária que nunca. A moça voltou-se para mim.
— E o que você resolveu ser? — perguntou. — Também é pianista?
— Não. Sou aviador…
A moça olhou para Leslie, pesarosa.
— …mas estou aprendendo a tocar flauta.
Era visível que flautistas amadores não a impressionavam. Ela deixou a questão de lado, resolvida a procurar meu lado mais emocionante, e aproximou-se de mim.
— O que pode me ensinar? O que é que você sabe?
— Sei que todos nós estamos na escola. Alguns dos cursos obrigatórios são: idade, aparência, relações com outras pessoas, alimentação e moradia — respondi com segundas intenções. Ela sorriu, como que culpada, percebendo que eu tomara conhecimento de sua vida tão pobre. — Sabe o que sei mais?
— O quê?
— Nem discussões, nem argumentos, nem fatos modificam seu modo de pensar. Para nós é fácil resolver seus problemas, todo problema é simples depois de o ter solucionado. Mas nem mesmo seu futuro ser, que se materializa diante de você e lhe diz, palavra por palavra, o que você há de fazer nos próximos trinta anos, há de alterar sua maneira de pensar. A única coisa capaz de alterá-la é seu próprio entendimento das coisas, individual, pessoal e exclusivo!
Os olhos da moça brilharam.
— Quer que eu aprenda isso com você? — Riu. — Escutei isso a vida inteira. Toda minha família me acha obstinada e esquisita.
Achariam péssimo ouvir alguém me incentivar.
— Por que acha que viemos vê-la? — perguntou Leslie.
— Por que estão com medo que eu me mate? — perguntou a moça. — Porque gostariam que algum eu futuro de vocês os tivesse visitado nessa idade para dizer “Não se preocupem, vocês vão sobreviver”. Não é isso? Leslie concordou.
— Exatamente.
— Mas, em vez disso, sou eu quem lhes diz: Não se preocupem — continuou a moça. — Prometo sobreviver. Mais que isso, prometo que ficarão felizes por eu ter vivido, prometo que sentirão orgulho de mim!
— Tenho orgulho de você! — disse Leslie. — Nós dois temos.
Minha vida esteve em suas mãos, e você não me deixou morrer, não desistiu quando tudo ao redor era desespero. Talvez não tenhamos vindo para lhe ensinar coisa alguma, talvez tenhamos vindo só para lhe agradecer por ter aberto o caminho. Por possibilitar a Richard e a mim encontrarmos um ao outro e sermos felizes.Talvez tenhamos vindo para lhe dizer que a amamos.
O mundo começou a tremer à nossa volta. O cenário cinzento ficou borrado, estávamos sendo arrastados.
Ela pressentiu que íamos embora, afastou as lágrimas dos olhos.
— Vou revê-los?
— Esperamos que sim — respondeu Leslie, e agora era ela quem soluçava.
— Obrigada por virem! — gritou a moça. — Obrigada!
Devemos ter desaparecido para ela, pois em meio à névoa nós a vimos encostar-se ao velho piano, de cabeça baixa. Depois sentou-se na cadeira e os dedos começaram a mover-se sobre as teclas.