Meu marido deixou o outro Richard sentado na cama, falando ao telefone com a sua Leslie, e veio ficar comigo na sacada.
Beijou-me e apertamo-nos um contra o outro, tão felizes por estarmos juntos, tão contentes por sermos nós!
— Por que não tenta a decolagem desta vez? — perguntei. — Faz muito tempo que você não tenta, e devia ter certeza de ser capaz disso, antes de voltarmos para casa.
Ele levou a mão ao manete de Growly, porém nada aconteceu.
Por que aquilo era tão difícil para ele? pensei. Havia caminhos demais naquela cabeça, ao mesmo tempo.
— Richie, é fácil. Basta focalizar no sentido vertical. Levei a mão ao manete, empurrei-o para que ele visse, e no mesmo instante começamos a nos mover. A sensação é a mesma de quando se termina uma cena num filme e começam a desmontar o cenário: as paredes transformam-se em lonas ondulantes, rochas são esponjas levíssimas, carros pesados entram dentro do palco para carregar tudo dali.
— Deixe-me tentar outra vez — falou Richie.
— Certo, amor. Vou puxá-lo para trás. Vamos parar, para você tentar outra vez. É só focalizar.
Surpreendeu-me que estivéssemos quase voando. Assim que puxei o manete para trás, o Growly deu um salto no ar. De repente, lá estava a água debaixo de nós. O motor engasgou algumas vezes, como acontece quando faz frio demais para ele pegar. Subimos, mas então o nariz voltou a apontar para baixo. Richard segurou os controles, mas era tarde demais.
Tudo parecia estar acontecendo em câmara lenta. Caímos na água bem devagar; aos poucos, sobreveio uma tempestade de ruído branco, como se eu arrastasse o dedo sobre uma agulha de estéreo com o volume ao máximo; lentamente, havia água por toda parte.
Lentamente, a cortina desceu e tudo escureceu.
Quando o mundo ressurgiu, estava verde pastoso, sem ruído algum. Richard segurava-se ao avião, debaixo da água, arrancando pedaços dele, tentando freneticamente soltar alguma coisa, enquanto tudo afundava.
— Richie, não. Estamos com um sério problema, precisamos conversar sobre ele! Não há nada no avião que seja importante, está chegando um barco para nos salvar…
No entanto, de vez em quando ele mete uma idéia na cabeça, e a ordem mais conveniente não lhe importa, tudo que quer é retirar do avião a jaqueta velha ou qualquer outra coisa. Parecia terrivelmente perturbado.
— Está certo, amor. Faça como quiser. Vou esperar você.
Vi-o se agitar durante algum tempo, encontrar o que estava procurando e sair nadando para cima. Que sensação esquisita! O que ele arrastava do avião não era a jaqueta, era eu, inerte, com os cabelos se arrastando, como um rato afogado.
Flutuando a uns dois metros acima do mar, vi-o empurrar minha cabeça para fora da água.
— Está tudo bem, amor — arquejou. — Vamos conseguir…
O barco de pesca estava quase em cima dele, aproximando-se de lado. completando os últimos metros, assim que um sujeito se atirou pela borda, com uma corda amarrada à cintura. Havia tamanho pânico no rosto de Richard, uma pessoa tão querida, que não tive coragem de olhar.
Quando virei o rosto, havia uma luz maravilhosa, o amor que se estendia diante de mim. Não era o túnel de que ele tanto me falara, mas parecia ser, pois, em comparação com aquela luz, tudo mais parecia preto como piche, e não havia outra direção senão a que conduzia àquele amor estonteante.
A luz dizia não se preocupe, com uma certeza tão prodigiosa, suave e perfeita que confiei nela com todo meu ser.
Dois vultos se encaminhavam em minha direção. Um deles, um adolescente, tão familiar… Parou a certa distância e ficou imóvel, observando O outro aproximou-se mais. Era um homem mais velho, com a minha altura. Eu conhecia aquele jeito de andar.
— Alô, Leslie — saudou ele, por fim. Era uma voz profunda e áspera, maltratada por anos de fumo.
— Hy! Hy Feldman, é você? — Transpus correndo os últimos degraus, jogamo-nos nos braços um do outro e nos abraçamos, rodando em círculos, misturando nossas lágrimas felizes.
Eu não tinha em todo o mundo um amigo mais querido ao que esse homem, que se pusera a meu lado no passado, no tempo em que muitos outros me haviam virado as costas. Nunca começava um dia sem uma visita a Hy.
Afastamo-nos, olhando um para o outro, com sorrisos tão largos que quase não cabiam em nossos rostos.
— Meu querido Hy! Ah, meu Deus, que coisa maravilhosa! Não posso acreditar! É tão bom ver você de novo!
Quando ele morrera, três anos antes… Que choque e que dor aquela perda me causara! E eu tinha ficado tão zangada… No mesmo instante, recuei, fitando-o.
— Hy, estou furiosa com você!
Ele sorriu, os olhos brilhando como antes. Eu o adotara como meu sábio irmão mais velho; ele me escolhera para ser sua irmã obstinada.
— Ainda está com raiva?
— Claro que ainda estou com raiva! Que atitude feia, enganar-me daquele jeito! Eu o amava! Confiava em você! Você prometeu que não ia fumar outro cigarro em toda sua vida, mas logo se esqueceu e destruiu dois corações com seus cigarros, Hy Feldman, porque destruiu o meu também! Já parou para pensar nisso? Quanta dor você causou a todos nós, que o amávamos, fazendo uma coisa que o tiraria de nós tão cedo. E por um motivo tão estúpido!
Ele baixou os olhos, humilde, olhando-me de soslaio, através daquelas sobrancelhas hirsutas.
— Pedir desculpa faz alguma diferença?
— Não. Hy, você poderia ter morrido por uma boa razão, por uma boa causa, e eu teria compreendido, sabe disso. Poderia ter morrido lutando pelos direitos humanos ou para salvar as baleias, os oceanos ou as florestas. Poderia ter morrido salvando a vida de um estranho. Mas morreu por fumar cigarros, depois de ter prometido que iria parar!
— Nunca mais. — Hy riu para mim. — Prometo…
— Grande promessa! — retruquei. Mas não pude deixar de rir.
— Parece que passou muito tempo, Leslie?
— É como se fosse ontem.
Hy pegou-me a mão, apertou-a e nos viramos para a luz.
— Vamos. Há uma pessoa aqui de quem você sente saudades há mais tempo do que de mim…
Parei. De repente, não pude pensar em ninguém senão Richard.
— Hy, não posso, preciso voltar. Richard e eu estamos no meio de uma aventura das mais extraordinárias, estamos vendo coisas, aprendendo… Não vejo a hora de lhe contar! Mas aconteceu uma coisa horrível. Quando o deixei, ele estava tão perturbado! — Agora, também eu era tomada de um frenesi. — Preciso voltar!
— Leslie — falou, apertando-me a mão. — Leslie, pare. Tenho uma coisa a lhe dizer.
— Não! Ah, Hy, por favor, não diga! Você vai me dizer que estou morta. Não é mesmo?
Hy assentiu com a cabeça, com aquele sorriso triste dele.
— Mas, Hy, não posso largar Richard, desaparecer sem mais nem menos e nunca mais voltar! Não sabemos viver um sem o outro!
Hy olhou para mim, compreensivo, mas o sorriso desaparecera.
— Nós conversamos sobre a morte, sobre como ela deve ser, provavelmente — contei a ele. — Nunca tivemos medo da morte, o que temíamos era ficar separados. Planejamos que daríamos um jeito de morrer juntos, e isso teria acontecido se não fosse… Pode imaginar?
Não sei nem mesmo o que aconteceu!
— Houve uma razão para aquilo, Leslie.
— Bem, não sei qual foi essa razão, e se soubesse, não ligaria para ela. Não posso largá-lo!
— Já pensou que talvez ele precise aprender alguma coisa que jamais aprenderia se você estivesse com ele? Uma coisa importante?
Sacudi a cabeça.
— Nada é tão importante. Se fosse, teríamos nos separado antes.
— Vocês estão separados agora.
— Não! Não aceito isso!
Naquele momento, vi o rapazinho encaminhando-se em nossa direção, as mãos nos bolsos, e de cabeça baixa. Era alto e magro, de um acanhamento que eu percebia até em seu andar.
Eu não conseguia desviar os olhos, mas vê-lo me dilacerava de tal forma o coração que era quase insuportável.
Nesse momento ele levantou a cabeça, e aqueles travessos olhos negros brilharam de novo, depois de tantos anos.
Ronnie!
Meu irmão e eu tínhamos sido inseparáveis na infância, e agora nos agarrávamos um ao outro, aos prantos, desesperados de alegria por estarmos juntos outra vez.
Eu tinha vinte anos e ele dezessete, quando morreu num acidente, e eu pranteara aquela perda até os quarenta. Ronnie fora um jovem tão intensamente cheio de vida que era impossível imaginá-lo morto. Eu nunca tinha conseguido acreditar que ele tivesse partido, durante todos aqueles anos. Com sua morte, eu deixara de ser confiante e resoluta para me tornar uma criatura perdida, pensando eu mesma na morte. Que laços vigorosos existiam entre nós!
Agora estávamos juntos outra vez, e nossa felicidade era tão avassaladora quanto fora a dor que eu sentira.
— Você não mudou nada — disse-lhe, por fim, olhando-o com admiração, entendendo por que nunca era capaz de assistir a um filme de James Dean sem chorar: o rosto do ator se assemelhava demais ao de meu irmão. — Como pode ter a mesma aparência depois de todo esse tempo?
— Ah, foi para que você me reconhecesse — riu Ronnie, o pensamento voltado para outras idéias que tivera para nosso reencontro. — Pensei em vir sob a forma de um cachorro velho ou algo parecido, mas… Bem, até eu percebi que não era hora de brincadeiras.
Brincadeiras. Eu é que tinha sido a pessoa séria, esforçada, determinada, inabalável. Ele havia concluído que nossa pobreza era tamanha, que de nada adiantaria lutar, e preferira o caminho do humor, rindo e pregando peças, enquanto eu me mostrava seriíssima, até ter, às vezes, vontade de esganá-lo. No entanto, Ronnie era simpático, engraçado, bonito, saía-se bem de qualquer situação. Todos o amavam, principalmente eu.
— Como vai mamãe? — perguntou.
Percebi que ele sabia, mas desejava ouvir de mim.
— Ela está bem, só que ainda sente saudades suas. Finalmente, aceitei o fato de você ter partido… há cerca de dez anos, acredita? Mas ela nunca conseguiu. Nunca.
Ronnie suspirou.
Tendo recusado a crer que ele estivesse morto, agora eu não conseguia acreditá-lo a meu lado. Que coisa extraordinária, estar com ele outra vez!
— Ah, tenho tantas coisas para lhe contar, tanto para perguntar…
— Não lhe falei que havia uma coisa extraordinária à sua espera? — intrometeu-se Hy, feliz por nós dois. Passou o braço em meu ombro, e o mesmo fez Ronnie. Abracei-os pela cintura, e nós três avançamos mais na direção da luz, enlaçados.
— Ronnie! Hy! Este é um dos dias mais felizes de minha vida!
— exclamei, novamente atordoada de alegria.
Vislumbrei então o que nos esperava adiante.
— Ah…!
Surgiu à nossa frente um vale maravilhoso. Um rio estreito reluzia entre campos e florestas, recobertos dos ouros e escarlates outonais. A distância, branquejavam cascatas de trezentos metros de altura, silenciosas. Era de tirar o fôlego, tal como da primeira vez que eu vira…
— O parque Yosemite? — perguntei.
— Sabemos que você adorou — concordou Hy —, de modo que imaginamos que gostaria de sentar aqui e conversar.
Achamos um arvoredo ensolarado e nos sentamos num tapete de folhas. Ficamos a olhar um para o outro, invadidos de pura alegria.
Por onde começar, pensei, por onde?
Uma outra parte de mim sabia e fez a pergunta que me perseguia havia anos.
— Ronnie, por quê? Sei que foi um acidente, sei que você não morreu deliberadamente. Mas estive aprendendo a respeito do quanto controlamos nossa vida, e não posso evitar pensar que, em algum nível, você preferiu partir quando aquilo aconteceu.
Ele respondeu como se já houvesse pensado no assunto tanto quanto eu.
— Foi uma escolha malfeita — disse, tranqüilo. — Eu achava que tinha começado tão mal naquela vida que jamais conseguiria torná-la melhor. Apesar de todas minhas brincadeiras, eu era uma alma carente, sabia disso? — Em seu rosto apontou o conhecido sorriso brincalhão, que usava para encobrir a tristeza.
— Acho que, no fundo, no fundo, eu sabia — respondi, sentindo o coração dilacerar-se outra vez —, e foi isso que nunca pude aceitar. Como podia se sentir infeliz, se todos o amávamos tanto?
— Eu não gostava de mim tanto quanto você, não achava que eu merecesse amor ou, aliás, qualquer outra coisa, Leslie. Ao olhar para o passado agora, sei que poderia ter levado uma vida feliz, mas na época eu não via isso. — Ronnie desviou o olhar. — Não que eu tenha saído de casa para me matar, você sabe, mas por outro lado, também não tentei viver com muito empenho. Não encarava a vida com o mesmo ardor que você. — Balançou a cabeça. — Escolha malfeita.
Estava mais sério do que eu jamais o vira. Como era estranho e maravilhoso ouvi-lo conversar daquela maneira. Em poucas palavras, dissipava-se a perplexidade e a dor de décadas inteiras.
Ele sorriu para mim, timidamente.
— Fiquei de olho em você. Durante algum tempo, julguei que viesse se juntar a mim logo, logo. Depois, vi você superar o sofrimento, percebi que eu também poderia ter feito aquilo, e desejei… bem, era uma vida dura. Eu devia ter enfrentado tudo de outro modo. Mas aprendi bastante. Desde então, tenho usado o que aprendi.
— Ficou de olho em mim? Você sabe o que vem acontecendo em minha vida? Sabe de Richard? — Emocionou-me imaginar que ele conhecesse meu marido, aquela pessoa tão sensacional.
Ronnie anuiu com a cabeça.
— Está tudo ótimo. Sinto-me feliz por você! Richard!
De repente, voltou o pânico. Como eu podia ficar sentada ali, daquele jeito? O que havia comigo?
— Ele está preocupado comigo, você sabe. Pensa que me perdeu, que perdemos um ao outro. Não posso ficar, por mais que eu ame vocês dois, não posso! Compreendem, não é mesmo? Preciso voltar para ele, mas agora sabemos que haveremos de nos rever…
— Leslie, Richard não poderá ver você — disse Hy.
— Por quê?
O que sabia ele, que coisa terrível eu não havia levado em conta? Que eu era agora o fantasma de um fantasma? Seria eu…
— Você está dizendo… está querendo dizer que estou realmente morta? Que isso não é uma agonia, que não posso decidir voltar, que estou morta! Nada posso fazer?
Hy assentiu. Parei, atordoada.
— Mas Ronnie esteve comigo, disse que ficou de olho em mim, que esteve lá o tempo todo…
— Mas você não podia vê-lo, podia? Você não sabia que ele estava lá.
— Às vezes, em sonhos…
— Em sonhos, é claro, mas…
Senti um súbito alívio — Ótimo!
— É esse tipo de casamento que você quer, Leslie? Richard a encontrará quando dormir e se esquecerá de você a cada manhã? Em vez de preparar-se para encontrá-lo quando ele vier para cá, para impressioná-lo com o que aprendeu, você prefere flutuar à volta dele sem ser vista?
— Hy, por tudo que conversamos sobre a morte e sobre superar a morte, a respeito de nossa missão juntos em outras existências… até onde ele sabe, eu morri num desastre de avião e isso foi o fim de tudo! Ele há de pensar que tudo aquilo em que crê está errado!
Meu velho amigo olhou-me com incredulidade. Por que ele não compreendia?
— Hy, nós fomos pobres, nós fomos solitários, suportamos momentos dificílimos, fomos tão maltratados que chegamos a imaginar por que insistíamos em viver. Por quê? Para ficarmos juntos. E ainda não tínhamos acabado! É como escrever um livro e abandoná-lo no meio de uma palavra, no meio do capítulo 17 de um livro de 24 capítulos. Não se larga tudo simplesmente e se faz de conta que o livro acabou! Vamos permitir que ele seja publicado, uma coisa inútil, sem fim? Recuso-me a aceitar isso.
“E aí chega um leitor que deseja descobrir o que foi que aprendemos, deseja ver com que criatividade, com que coragem, utilizamos o que sabíamos para vencer os desafios que nos foram impostos, e no meio do livro o texto acaba e vem uma nota do editor: Nesse ponto o hidravião acidentou-se, e ela morreu, de modo que o livro ficou por terminar.
— A vida da maioria das pessoas não chega a terminar. A minha, por exemplo — disse Hy.
— Tem toda razão! — retruquei. — Nesse caso, você sabe qual é a sensação. Não vamos abandonar nossa história no meio!
Hy sorriu, calidamente.
— Você quer que sua história diga que depois do acidente Leslie voltou dos mortos e que viveram felizes para sempre?
— Não seria o pior trecho de toda a literatura. — Todos rimos.
— É claro que eu gostaria que o livro contasse como foi que fizemos isso, explicasse os princípios que empregamos, para que alguma outra pessoa pudesse fazer o mesmo.
Essas palavras tinham sido pronunciadas como brincadeira, mas de repente ocorreu-me que aquilo poderia ser mais um teste, mais um dos desafios do desenho!
— Escute, Hy — falei —, Richard tem tido razão a respeito de muitas coisas que, à primeira vista, parecem loucura. Você conhece a “lei cósmica” dele, a respeito de enfocar as coisas no pensamento e fazer com que se concretizem. Por acaso a lei cósmica mudou de repente, porque nos acidentamos? De um momento para o outro, será possível que eu focalize alguma coisa no pensamento, uma coisa tão importante, e que essa coisa não aconteça? — Percebi que ele começava a ceder.
Hy sorriu.
— As leis cósmicas não mudam. Apertei-lhe a mão.
— Por um momento, tive a impressão de que você ia tentar me deter.
— Ninguém na terra teve força para deter Leslie Parrish. O que a faz pensar que alguém consiga fazê-lo aqui?
Levantamo-nos, e Hy deu-me um abraço de despedida.
— Estou curioso. Se fosse Richard que tivesse morrido, e não você, Leslie, você teria permitido que ele se fosse, teria confiado em que ele estaria bem durante todo o tempo que fosse necessário para você terminar sua própria vida?
— Não. Eu meteria uma bala na cabeça. — Cabeça-dura… — comentou ele.
— Sei que não faz sentido. Nada faz sentido, mas preciso voltar para ele. Não posso deixá-lo, Hy. Eu o amo!
— Eu sei. E lá vai você…
Virei-me para Ronnie. Meu precioso irmão e eu nos apertamos com força e em silêncio. Como era difícil afastar-me dele!
— Eu o amo — falei, mordendo o lábio para não chorar, e recuando. — Amo vocês dois. Sempre amarei vocês. E vamos nos reencontrar, não é mesmo?
— Você sabe que sim — disse Ronnie. — Vai morrer e sair à procura de seu irmão de novo, e quando vir um cachorro velho…
Tive de rir, apesar das lágrimas.
— Nós também a amamos — falou.
Eu jamais imaginara que aquele dia pudesse acontecer. Apesar de meu ceticismo, sempre acreditara que Richard tivesse razão, que houvesse no universo mais de uma vida. Agora eu sabia. Agora, com o que eu havia aprendido no desenho e com a morte, afastava-me dali sabendo com certeza. Sabia também que um dia nós entraríamos juntos naquele fulgor maravilhoso. Mas não agora.
Voltar à vida não foi impossível, sequer chegou a ser difícil.
Uma vez ultrapassada a muralha que pressupõe que jamais nos atrevemos ao impossível, avistei o desenho na tapeçaria, tal como Pye havia dito. Fio por fio, passo a passo! Eu não estava retornando à vida, estava regressando a um foco da forma, e a forma é um foco que modificamos a cada dia.
Encontrei meu querido Richard num mundo alternativo que, por uma razão ou por outra, ele tomara como real. Estava atirado no chão, sobre minha sepultura. Sua dor era concreta como se fosse uma cúpula de cristal que o envolvesse; não estava mais propenso a me escutar do que estaria para um jantar de cerimônia ou para conversa fiada.
Fiz força contra a cúpula.
— Richard.
Nada.
— Richard, estou aqui!
Ele soluçava, encostado na lápide. Não havíamos combinado que nada de lápides?
— Querido, estou com você neste mesmo momento em que você está chorando no chão, estarei com você quando adormecer e quando acordar. Tudo que nos separa é a sua convicção de que estamos separados!
Flores silvestres sobre o túmulo diziam-lhe que a vida recobre o próprio local no qual a morte é só aparência, mas ele não lhes escutava a mensagem, nem a minha.
Por fim, ele se arrastou, mortificado, na direção da casa, carregando consigo sua cúpula de aflição, um cárcere móvel. Não se deu conta do ocaso, que lhe bradava que o que se assemelha à noite é o mundo aprestando-se para um alvorecer já existente, e jogou o saco de dormir no tablado.
Quantos gritos pode um homem recusar-se a ouvir? Sena aquele homem meu marido, meu querido Richard, convicto de que nada acontece por acaso, da queda de uma folha até o nascimento de uma galáxia? Clamando de angústia em seu saco de dormir, sob as estrelas?
— Richard; — chamei. — Você tem razão. Teve razão todo o tempo! O acidente não ocorreu por acaso, morrer não é uma tragédia!
Perspectiva! Você já sabe tudo de que necessita para que nos reunamos outra vez. Lembra-se? Focalize. Não estamos terminados, nossa história não se acabou. Nós temos… tanto… por que… viver. Você pode! Mudei A moral Meu querido Richard. AGORA!
A cúpula de cristal sobre ele estremeceu, rachou nos cantos.
Fechei os olhos, focalizei com todo meu ser. Nenhuma dor, nenhum sofrimento, nenhuma separação. Pensei em nós dois na carlinga intacta do Growly, flutuando sobre o desenho, senti que voávamos juntos.
Ele sentiu a mesma coisa! Fez força para empurrar o manete!
Tinha os olhos fechados, e cada uma das fibras de seu corpo fremiu de encontro àquela simples alavanca. Eu ansiava por poder colocar minha mão sobre a dele, facilitar aquela tarefa para ele tão difícil.
Como se tivesse estado hipnotizado e saísse do transe, agora, por pura força de vontade, ele se crispou, jogou toda sua energia contra as próprias convicções, que se curvaram meio centímetro. Um centímetro.
Meu coração quase se rompia com o dele. Acrescentei minhas forças às suas.
— Meu querido! Não estou morta, jamais estive! Estou com você neste momento! Estamos juntos!
O cristal despedaçou-se em volta dele, fragmentando-se. O motor do Growly girou, pegou. Os ponteiros dos instrumentos mexeram-se ligeiramente.
Richard prendia a respiração, as veias pulsando em seu pescoço, em seu rosto. Tinha a expressão fechada, lutando por modificar o que havia tomado como a verdade. Ele recusava o acidente. Apesar de todos os indícios ao contrário, ele rejeitava minha morte.
— Richie! — gritei para ele. — É verdade! Por favor, é, sim! Nós podemos voar! Ainda!
E então o manete cedeu, o giro do motor transformou-se num trovão, uma cortina de água levantou-se sob nós.
Que maravilha vê-lo! Seus olhos se abriram no momento em que o Growly deixou a água.
Ouvi, finalmente, sua voz num mundo que partilhávamos outra vez.
— Leslie! Ah, Leslie! Você voltou! Estamos juntos!
— Richie. Meu amor querido! — exclamei. — Você conseguiu, eu o amo, VOCÊ CONSEGUIU!