2

O transponder é uma caixa preta no painel de instrumentos do hidravião, com janelinhas onde aparece um código de quatro algarismos. Ajustando algarismos nessas janelinhas, somos identificados a quilômetros de distância, em salas na penumbra: número da aeronave, rumo, altitude, velocidade, tudo quanto importa aos controladores do tráfego aéreo diante de suas telas esverdeadas.

Naquela tarde, talvez pela milésima vez em minha carreira de piloto, estendi a mão para modificar aqueles algarismos em suas janelinhas. Quatro na primeira, sãs na segunda, quatro na terceira, cinco na última. Enquanto ainda olhava para baixo, atento a essa tarefa, ouvi um zumbido esquisito que começou num dó grave e cresceu até ultrapassar o limite da audição; a seguir veio um baque, como se tivéssemos entrado numa forte corrente ascendente, um estralejante clarão de luz âmbar na cabine.

— RICHARD! — gritou Leslie.

Ergui a cabeça de repente, e dei com Leslie de boca aberta e olhos arregalados.

— Um pouco de turbulência — avisei —, um pouco de… — Então eu mesmo vi, e parei no meio da frase.

Los Angeles havia desaparecido.

Não se via mais a cidade que se estendia por todo o horizonte, as montanhas à sua volta, o véu de névoa de 160 mil quilômetros.

Tudo sumira.

O céu ganhara um azul de flores silvestres, profundo, fresco e frio. Lá embaixo não havia pistas, telhados e shopping-centers, e sim um mar ininterrupto, um espelho do céu. Um mar de um azul de amor-perfeito, não o azul-escuro de alto-mar, mas todo feito de baixios, como se um banco de areia, azul-cobalto, se estendesse a quase dois metros de profundidade, um desenho de prata e ouro.

— Cadê Los Angeles? — perguntei. — Está vendo…? Me diga o que está vendo.

— Água! Estamos sobre o mar! — arquejou Leslie. — Richie, o que aconteceu?

— Não sei — respondi, em total perplexidade. Verifiquei os instrumentos, e cada ponteiro apontava para onde devia apontar. A velocidade do ar era a mesma, o rumo mantinha-se em 135 graus na bússola. Agora, porém, a bússola magnética se mexia de um lado para outro em sua caixa, sem se importar para onde ficava o norte ou o sul.

Leslie experimentou botões, premiu comutadores.

— Os transmissores não funcionam — avisou, já com uma ponta de medo na voz. — Estão ligados, mas não mostram…

Realmente. Os dados de navegação eram linhas brancas e indicações de OFF. O painel de loran mostrava uma coisa que nunca tínhamos visto: PERDA DE SINAL.

Nossas mentes também se esvaziaram. Ficamos calados por um momento.

— Você viu alguma coisa antes… da mudança, Leslie?

— Não. Vi! Eu estava à procura de outros aparelhos. Houve um silvo, você escutou? Aí, um brilho amarelo, uma… uma onda de choque por todos os lados, que logo desapareceu, junto com tudo mais! Onde estamos?

Fiz a melhor exposição possível.

— O avião não apresenta problemas, a não ser o transmissor e o loran. Mas a bússola magnética parou… O único instrumento de um avião que não pode deixar de funcionar pifou! Não sei onde estamos, — O controle de Los Angeles? — sugeriu Leslie de repente.

— Isso! — Premi o botão do microfone. — Alô, controle de Los Angeles, Martin Tríplice Quatro Alfa. — Baixei o olhar, à espera da resposta. Aquele banco de areia submerso estava como que gravado com uma vasta retícula cambiante, como se riachos serpenteantes corressem por ali, correntes incrivelmente entrelaçadas, ribeiros dos quais partiam incontáveis afluentes, cada qual nítido e distinto, todos ligados entre si, refulgindo a pouco mais de um metro sob a superfície.

— Alô, controle de Los Angeles — repeti —, aqui fala o hidravião Martin Quatro Quatro Quatro Alfa, como está a escuta? — Aumentei o volume, e a cabine encheu-se de estática. O rádio funcionava, mas ninguém se comunicava através dele conosco. — Alô qualquer estação que esteja na escuta de Martin Seahawk Tríplice Quatro Alfa, favor chamar nesta freqüência.

Estática. Nem uma só palavra.

— Não sei mais o que fazer — avisei a Leslie.

Por instinto, fiz com que o avião subisse, à procura de uma visão mais ampla, à espera que a altitude nos proporcionasse algum sinal do paradeiro do que tínhamos perdido.

Alguns minutos depois, havíamos descoberto com certeza algumas coisas estranhas: por mais que subíssemos, o altímetro não indicava mudança — o ar naquele lugar não ficava mais rarefeito com a altitude. Embora eu subisse a cerca de dez mil pés, o instrumento continuava a indicar o nível do mar.

Por toda parte, o horizonte era um só, sem sinal de montanhas, nuvens ou ilhas, um barco, qualquer coisa viva.

Leslie bateu com o dedo no marcador de combustível.

— Parece que não estamos gastando combustível — comentou.

— Será possível?

— É mais provável que a bóia esteja presa. — O motor aumentava ou diminuía de rotação à medida que eu mexia nos comandos, mas nosso marcador de combustível se fixara logo abaixo de meio tanque.

— É isso mesmo — falei, balançando a cabeça, — O marcador de combustível também deu defeito. Talvez tenhamos ainda duas horas de vôo, mas prefiro economizar o que ainda temos.

— Onde vamos pousar? — perguntou Leslie, perscrutando o horizonte.

— Isso faz diferença?

O mar reluzia em suas cores esplêndidas, seus desenhos caprichosos.

Puxei o manete para trás e o hidravião começou a descer, lentamente. Enquanto descíamos, observávamos o estranho panorama.

Devia haver um milhão de vezes um milhão de trilhas refulgentes no fundo do mar, caminhos brilhantes e foscos, largos e estreitos, retos e quebrados, cada qual ligado, mediante percursos complicados, a todos os outros.

Existe uma razão, pensei. Alguma coisa traçou essas linhas.

Seriam elas caminhos? Estradas submersas?

Leslie pegou-me a mão.

— Richie, talvez estejamos mortos. Quem sabe batemos em alguma coisa no ar, ou então algo bateu em nós, tão depressa que nem percebemos?

O perito em morte da família sou eu, e nem pensara na… Seria possível que ela tivesse razão? E o que Growly está fazendo aqui?

Nada do que li a respeito de morte diz que ela sequer muda a pressão do óleo.

— Isso não pode ser a morte! — exclamei. — De acordo com os livros, quando morremos há um túnel de luz, uma sensação incrível de amor, e um grupo de pessoas que vêm se encontrar conosco… Se nos demos ao trabalho de morrer juntos, os dois ao mesmo tempo, você não acha que eles dariam um jeito de se encontrar conosco em tempo?

— Talvez os livros estejam errados — disse Leslie. Passamos a voar mais baixo, em silêncio. Como era possível que a alegria e as perspectivas de nossas vidas tivessem chegado ao fim assim tão subitamente? Não era impossível, pensei, mas era difícil de acreditar.

— Você se sente morto? — perguntou Leslie.

— Não.

— Nem eu.

Sobrevoamos baixo os canais paralelos, à procura de afloramentos de coral ou troncos flutuantes antes de amerissarmos.

Mesmo morto, ninguém quer arrebentar o avião numa pedra.

E que maneira estúpida de acabar com uma vida! Sequer sabemos o que aconteceu, nem mesmo como foi que morremos!

— A luz dourada, Leslie, a onda de choque! Não pode ter sido uma bomba atômica? Será que fomos as primeiras baixas da Terceira Guerra Mundial?

Leslie pensou no assunto.

— Não acredito nisso. A coisa não vinha em nossa direção, estava se afastando. E teríamos sentido alguma coisa.

Continuamos em silêncio. Tristes. Muito tristes.

— Não é justo! — exclamou Leslie. — A vida tinha ficado tão bonita! A gente trabalhava tanto, superava tantos problemas…

estávamos apenas no início da vida boa.

— Bem, se estamos mortos, morremos juntos — suspirei. — Ao menos essa parte de nossos sonhos aconteceu.

— E dizem que a vida passa, todinha, como um filme em nossa frente. Você viu sua vida toda num segundo?

— Ainda não — respondi. — E você?

— Nada. Outra coisa que dizem é que tudo fica preto. Isso também está errado!

— Como é possível que tantos livros… que nós estivéssemos enganados? — indaguei. — Lembra-se de nossas experiências de deixar o corpo, à noite? A morte deveria ser assim, sempre assim, só que seria uma sensação sem fim, não estaríamos de volta pela manhã.

Eu sempre acreditara que morrer faria sentido, que seria uma oportunidade racional e criativa de chegar a um novo conhecimento, uma prazerosa libertação dos limites da matéria, uma aventura para além das muralhas das crenças grosseiras. Nada nos advertira de que a morte significa sobrevoar um oceano infinito, destituído de vida.

Podíamos pousar. Não havia rochas, nem sargaços, nem cardumes. O mar estava calmo e claro, o vento mal agitava a superfície.

Impulsionei o manete para a frente e o fiel Growly subiu, preparando-se para uma suave descida.

Leslie apontou os dois caminhos coruscantes.

— Aqueles dois parecem ser amigos. Sempre Juntos.

— Talvez sejam pistas de pouso, Leslie. Parece mais conveniente alinhar na direção deles. Vamos pousar no ponto exato onde eles se juntam, certo? Está pronta?

— Acho que sim.

Olhei pelas janelas laterais, verificando o trem de pouso.

— Estamos com as rodas retraídas para uma amerissagem, os flaps baixados…

Começamos a última curva lenta, deslizando na direção daquele lugar esquisito, e o mar inclinou-se graciosamente, bem devagar, em nossa direção. Flutuamos durante um longo momento, a poucos centímetros da superfície, e reflexos pastéis coloriram a fuselagem branca.

A quilha roçou nas ondas e o hidravião transformou-se numa lancha de corrida, voando numa nuvem de borrifos. O murmúrio do motor foi abafado pelo ímpeto da água à medida que eu puxava o manete para trás e diminuíamos de velocidade.

Nesse instante, a água desapareceu, o avião sumiu. À nossa volta, borrados, passavam telhados, manchas de tijolos vermelhos e palmeiras, e bem à frente surgiu a parede de um imenso edifício cheio de janelas.

CUIDADO!

Uma fração de segundo depois estávamos parados dentro do edifício, atordoados mas incólumes, de pé num comprido corredor.

Estendi as mãos para minha mulher na mesma hora, segurando-a.

— Você está bem? — perguntamos ao mesmo tempo, sem fôlego.

— Estou! — dissemos. — Sem um arranhão! E você? Estou!

Não havia vidros partidos na janela no fim do corredor, nenhum buraco na parede pela qual tínhamos entrado como um foguete. Não se avistava vivalma, nem se ouvia ruído algum no prédio.

Fui tomado de frustração.

— Que droga está acontecendo?

— Richie, eu conheço esse lugar — disse Leslie, com assombro no olhar. — Já estivemos aqui antes!

Olhei em volta. Um saguão com muitas portas, um tapete vermelho-alaranjado, portas de elevadores bem à nossa frente, palmeiras em vasos. A janela do saguão dava para ensolarados telhados vermelhos, monos dourados mais adiante, uma enevoada tarde azul.

— É um… está parecendo um hotel. Não me lembro de hotel nenhum…

Ouvi um tilintar suave, e uma seta verde acendeu-se sobre as portas do elevador.

Observamos enquanto as portas se abriam com um zumbido.

Dentro do elevador havia um homem anguloso e todo músculos, ao lado de uma bela mulher que vestia uma blusa desbotada debaixo de uma jaqueta da Marinha, calças jeans e um gorro. O homem nada tinha de especial, mas o rosto da mulher era espantoso.

Senti minha mulher arquejar a meu lado, percebi que seu corpo se retesava. Do interior do elevador, mal nos dirigindo um olhar, saíram o homem e a mulher que tínhamos sido 16 anos antes, as duas pessoas que éramos no dia em que nos conhecemos.

Загрузка...