A sala tosca desapareceu em meio ao espadanar da água e do ronco do motor.
Pye largou o manete, recostou-se no banco de trás e ficou a nos observar, toda solidariedade — Ela teve uma vida tão difícil! — lamentou Leslie, enxugando os olhos. — Era tão solitária! É justo que recebamos a recompensa da coragem e do esforço dela?
— Lembre-se de que foi ela quem escolheu aquela vida — retrucou Pye. — E escolheu as recompensas, também.
— Que quer dizer? — indagou Leslie.
— Ela não faz parte de você agora?
Claro, pensei. O prazer que a música lhe proporcionava, sua personalidade obstinada, até mesmo seu corpo, trabalhado e modelado por anos de decisões… Por acaso tudo isso não estava ali a nosso lado, naquele exato momento?
— Acho que sim — respondeu Leslie. — Mas fico pensando o que terá acontecido a ela…
— Aconteceu a ela tudo — disse Pye. — Ela ficou com a música e não ficou, viajou para Nova York e não viajou, é uma famosa concertista, matou-se, é professora de matemática, é uma estrela de cinema, é uma ativista política, é embaixadora na Polônia. A cada reviravolta da vida de uma pessoa, a cada vez que ela toma uma decisão, torna-se geradora de todas as suas pessoas alternativas que se seguem.
Você é uma das filhas dela… A única filha dela na sua vida, Leslie, no mundo que você conhece.
Estabilizei o hidravião a algumas centenas de pés acima do nível do mar, e puxei o manete para a velocidade de cruzeiro. Não havia necessidade de uma altitude maior quando o mundo inteiro era uma pista de pouso.
Lá embaixo, os desenhos passavam, velozes, trilhas e cores intermináveis sob a água.
— Complicado, não? — perguntei.
— É como uma tapeçaria — disse Pye. — Fio por fio, é simples.
Mas tente tecê-la a metros… As coisas se emaranham.
— Sente falta das pessoas que já foi? — perguntei à nossa guia.
— Sente falta de nós?
Pye sorriu.
— Não vivo no espaço-tempo. Estou sempre com vocês. Como sentir falta de vocês se nunca estamos afastados?
— Mas, Pye, você tem um corpo — insisti. — Pode não ser exatamente igual ao nosso, mas tem uma determinada dimensão, um certo aspecto…
— Não, não tenho corpo. Vocês percebem minha presença, e acham melhor percebê-la como um corpo. Poderiam ter escolhido inúmeras outras percepções. Todas são úteis, mas nenhuma verdadeira.
Leslie virou-se para olhá-la.
— Por exemplo, que percepção superior poderíamos ter escolhido?
Virei-me também e vi uma estrela branco-azulada de pura luz, um arco voltaico na cabine. O mundo tornou-se incandescente.
Viramos o rosto com um arranco. Fechei os olhos com força, mas aquele clarão persistiu, cauterizante. A seguir, desvaneceu-se. Pye tocou nossos ombros e pudemos vê-la de novo.
— Desculpe — falou. — Como fui descuidada! Vocês não podem ver-me como eu sou, não podem tocar-me como sou. Sequer podemos falar com palavras e dizer a verdade. A linguagem não consegue decrever… Para mim dizer eu e não pretender dizer vocês-nós-todos-espírito-Um é o mesmo que falar mentiras, mas não utilizar palavras equivale a perder essa oportunidade de conversarmos. É melhor mentiras bem-intencionadas do que o silêncio, ou não mencionar coisa alguma…
Meus olhos ainda estavam ofuscados pela luz.
— Meu Deus, Pye, quando vamos aprender a fazer isso?
— Vocês já são isso — riu ela. — O que tiveram de aprender no espaço-tempo foi manter suas luzes apagadas!
Fiquei mais perplexo do que nunca, e um tanto nervoso por depender daquela criatura. Por mais simpática que se mostrasse, ela controlava nossas vidas.
— Pye, quando quisermos voltar dessas pessoas alternativas, essas que visitamos, como poderemos fazer o hidravião se mover para nos levar embora? Como será possível estarmos em dois lugares ao mesmo tempo?
— Vocês não estão em dois lugares ao mesmo tempo, estão em toda parte ao mesmo tempo. Não precisam do hidravião ou dos desenhos. O que ocorre é que vocês lhes dão forma através da imaginação. E seu mundo adquire a forma que sua imaginação lhe dá.
— Imagino levar minha mão ao manete? Como posso levar a mão ao manete se estou inteiramente em outro mundo? Se você não o tivesse empurrado para a frente, estaríamos presos em 1952!
— Não. É você que governa seus mundos, não são eles quem o governam. Gostaria de tentar outra vez?
Leslie pôs a mão em meu joelho e assumiu os controles.
— Experimente, querido. Feche os olhos, diga-me para onde devo voar.
Recostei-me no assento e fechei os olhos.
— Siga em frente — comandei, sentindo-me um pouco bobo.
Poderia perfeitamente ter dito “Suba constantemente”.
O motor embalou-nos durante algum tempo. Então, embora eu nada visse, surgiu um súbito propósito na escuridão.
— Vire à direita — falei. — Bem para a direita.
Senti o avião inclinar-se para o lado. A seguir, vi fios luminosos, um fino feixe de névoa que se estendia verticalmente, atravessado por um outro, horizontal. Estávamos à esquerda do ponto em que se cruzavam, aproximando-nos do centro.
— Certo. Continue assim.
A cruz começou a descer, pôs-se a entrar em foco.
— Desça um pouco. Mais à esquerda…
Agora a imagem em minha mente era clara como os ponteiros em uma aproximação por instrumentos, e tão precisos quanto eles.
Como nossa imaginação parece real!
— Desça um pouco. Estamos em trajetória de aproximação, bem rumo ao alvo. Um pouco para a esquerda. Devemos estar quase pousando, não é?
— Faltam alguns pés — respondeu Leslie.
— Certo. Agora. Desligue o motor. — Ouvi as ondas roçarem a quilha de nosso barco voador. Ao abrir os olhos, vi o mundo desaparecer, envolto em borrifos. Nesse instante tudo se transformou num negrume móvel, baças formas prateadas que estremeciam na escuridão, e por fim paramos. Ar livre, noite.
Achávamo-nos num vasto campo de concreto… uma base aérea!
Luzes azuis de rolagem nas extremidades, pistas a distância, caças a jato parados na área de estacionamento, formas prateadas ao luar.
— Onde estamos? — sussurrou Leslie.
Os caças, fileiras após fileiras, eram Sabrejets norte-americanos F-86F. Imediatamente percebi onde estávamos.
— Esta é a base aérea Williams, no Arizona. Escola de com bate aéreo. Estamos em 1957. Eu costumava vir para aqui de noite, só para ficar perto dos aviões.
— Por que estamos sussurrando? — perguntou ela. Naquele instante, um jipe da polícia da Aeronáutica fez uma curva ao final de uma fileira de aparelhos, patrulhando, e veio em nossa direção.
Diminuiu a marcha, contornou um caça estacionado à nossa direita e parou.
Não podíamos ver o policial, mas escutávamos sua voz.
— Com licença, senhor. Quer fazer o favor de mostrar sua identificação?
Alguém respondeu em voz baixa, umas poucas sílabas que não conseguimos entender.
— É comigo que ele está falando — falei a Leslie. — Eu me lembro disso…
— Ótimo, senhor. Estamos apenas verificando. Está tudo certo.
Logo depois o jipe deu marcha à ré para se afastar do avião, engatou uma primeira, roncou e deu a volta do outro lado do caça. Se o motorista nos viu, não deu sinal disso. Antes que pudéssemos nos afastar, os faróis haviam-se transformado em sóis fulgentes a investir em nossa direção.
— CUIDADO! — gritei, mas era tarde demais. Leslie gritou.
O jipe atingiu-nos de frente, atropelou-nos sem um instante de hesitação e desapareceu ao longe, ainda acelerando.
— Ah — falei. — Esqueci-me. Desculpe!
— A gente demora a se acostumar! — respondeu Leslie, sem fôlego.
Apareceu um vulto no nariz do avião.
— Quem está aí? Você está bem?
O homem usava um traje de vôo de náilon escuro. Ele próprio parecia um fantasma ao luar. Asas de piloto bordadas no dólmã, distintivo de segundo-tenente.
— Vá você lá — murmurou Leslie. — Vou ficar por aqui.
Balancei a cabeça e abracei-a.
— Estou bem — respondi. — Posso me aproximar, senhor? — Sorri, achando graça por falar como um cadete depois de tantos anos.
— Quem é?
Para que ele precisava fazer aquele tipo de pergunta?
— Tenente, sou o segundo-tenente Bach, Richard D., A-0 Três-Zero-Oito-Zero-Sete-Sete-Quatro!
— É você, Mize? — Ele riu. — O que está fazendo aqui, que nem um bobalhão?
Phil Mizenhalter, pensei. Grande sujeito! Daqui a dez anos estará morto, abatido com seu F-105 no Vietnã.
— Não sou Mize — respondi. — Sou Richard Bach, sou você vindo do futuro, trinta anos a contar desta noite.
Ele perscrutou a escuridão.
— Você é quem?
Se vamos fazer isso mais vezes, pensei, é melhor nos acostumarmos a essa pergunta.
— Sou você, tenente. Sou você com um pouco mais de experiência. Sou aquele que cometeu todos os erros que você cometeu, e que não se sabe como, sobreviveu.
Ele se aproximou um pouco, inspecionando-me na escuridão, ainda achando que se tratava de uma brincadeira.
— Eu vou cometer erros? — exclamou. — Difícil de acreditar!
— Chame-os de experiências inesperadas de aprendizado.
— Não vou cometer erros se você me avisar — retrucou.
— Você já cometeu um erro enorme. Ingressou na carreira militar. O melhor a fazer seria dar o fora agora mesmo. O melhor, não.
O sensato.
— Ah! — exclamou ele. — Acabei de me formar na escola de vôo! Ainda não consigo acreditar que sou um piloto da Força Aérea, e você vem com essa história de dar o fora. Muito boa, essa! O que mais sabe?
— Muito bem. No passado de que me lembro, achei que estava usando a Força Aérea para aprender a voar. Na verdade, era a Força Aérea que estava me usando, e eu não sabia.
— Mas eu sei! — replicou ele. — Acontece que gosto de meu país, e se for preciso lutar para mantê-lo livre, quero participar da briga!
— Lembra-se do tenente Wyeth? Fale-me sobre o tenente Wyeth. — Ele me olhou de soslaio, contrafeito.
— O nome dele era Wyatt — corrigiu. — Instrutor de treinamento preliminar de vôo. Alguma coisa aconteceu a ele na Coréia, e ficou meio doido. Diante de toda nossa turma, escreveu em letras grandes no quadro: ASSASSINOS! Depois, virou-se, olhou-nos de cara feia e disse: “São vocês!” O nome dele era Wyatt.
Encostei-me na asa do avião.
— Sabe o que vai aprender em seu futuro, Richard? Vai descobrir que o tenente Wyatt era a pessoa mais sã que você conheceu na Força Aérea.
Ele sacudiu a cabeça, triste.
— Sabe, de vez em quando fico pensando como seria um encontro meu com você, como seria uma conversa com o homem que serei daqui a trinta anos. Você não é como ele De jeito nenhum! Ele se orgulha de mim!
— Também me orgulho de você. Mas não pelos motivos que imagina. Se me orgulho, é porque sei que você está fazendo seu trabalho da melhor maneira que é capaz. Mas não me orgulha o fato de que o melhor que sabe fazer é se apresentar como voluntário para matar pessoas, metralhar, bombardear e lançar napalm sobre aldeias cheias de mulheres e crianças aterrorizadas.
— Nunca vou fazer isso! O que vou fazer é tomar parte em combates aéreos, em missões de interceptação e defesa.
Fiquei em silêncio.
— Bem, a defesa aérea é o que eu gostaria de fazer… Continuei a olhá-lo, no escuro.
— Ora, estou servindo a meu país e farei qualquer coisa que…
— Você pode servir a seu país de milhares de outras maneiras.
Vamos, por que está aqui, realmente? Será que é suficientemente honesto para pelo menos admitir a verdade para si mesmo?
Ele hesitou por um momento.
— Eu quero voar.
— Você estava aprendendo a voar antes de entrar para a Força Aérea. Poderia ter voado Piper Cubs e Cessnas.
— Eles não são… rápidos o bastante.
— Não são como os aviões que aparecem nos cartazes de recrutamento, não é? Os Cessnas não são como os aviões do cinema.
Silêncio.
— Não.
— Então, por que está aqui?
— É uma coisa que tem a ver com alto desempenho… — Ele se conteve, procurando agora ser o mais honesto possível. — Os caças de combate têm uma atração… Uma coisa relacionada com uma sensação maravilhosa, que nada mais tem, uma sensação de realização!
— Fale-me sobre essa sensação.
— Ela vem de um… um domínio da situação. Quando vôo nesse aparelho… bem, não estou enfiado na lama até a cintura, não estou preso a mesas ou edifícios, nem a coisa alguma na Terra. — Então afagou carinhosamente a asa do caça. — Movo-me mais depressa que o som, a quarenta mil pés de altitude.. Praticamente nenhum outro ser vivo já esteve ali. Alguma coisa dentro de mim sabe que não somos criaturas presas ao chão, diz que nós não temos limites, e é voando num avião desses que quase consigo tomar concreto aquilo que acredito ser verdade. Por acaso, é um caça.
Claro. Fora esse o motivo que me levara a desejar a velocidade, o deslumbramento e o uivo da turbina. Jamais formulara aquilo em palavras, nunca articulara a idéia. Apenas a sentira.
— Detesto quando penduram bombas em aviões — continuou.
— Mas nada posso fazer. Se não fossem as bombas, não haveria um aparelho como esse.
Sem você, pensei, a guerra morreria. Toquei de leve a asa do caça. Até hoje, considero-o o mais belo avião já construído.
— Lindo — falei. — Isca.
— Isca?
— Os aviões de caça são a isca. Você é o peixe.
— E o que é o anzol?
— O anzol há de matá-lo quando você descobrir. O anzol é o fato de que você, Richard Bach, um ser humano, é pessoalmente responsável por todo homem, toda mulher e toda criança que virá a matar com esta máquina.
— Eu? Um momento! A responsabilidade não é minha, não tenho nada a ver com decisões desse tipo. Obedeço a ordens, mas…
— A guerra não é desculpa, a Força Aérea não é desculpa, as ordens não são desculpa. Cada assassínio o perseguirá até o dia de sua morte, a cada noite você acordará aos gritos, matando cada um deles de novo, sempre, sem parar.
Ele retesou-se.
— Escute, sem a Força Aérea, se formos atacados… Estou aqui para proteger nossa liberdade*.
— Você disse antes que estava aqui porque queria voar, e por causa da sensação de realização.
— Minha capacidade como piloto protege meu país…
— É isso que os outros também dizem, palavra por palavra. Os soldados russos, os chineses, os árabes, os soldados sem importância da nação sem importância. Eles aprendem a proclamar que Eles Confiam em Nós, Defendamos a Pátria Contra Eles. Mas Eles, Richard, é você.
Sua arrogância desapareceu de repente.
— Lembra-se dos aeromodelos? — perguntou, quase humilde.
— Foram mil aeromodelos, e um pedacinho de mim voou em cada um deles. Lembra-se das árvores em que eu subia, olhando para baixo? Eu era o pássaro, ansioso em poder voar. Lembra-se do primeiro vôo, naquele festival de aviação? Não fui a mesma pessoa durante dias! Aliás, nunca mais fui a mesma pessoa.
— Faz parte do planejamento — respondi.
— Planejamento?
— Assim que você aprendeu a ver, imagens. Assim que aprendeu a escutar, histórias e hinos. Assim que aprendeu a ler, livros, cartazes, bandeiras, filmes, estátuas e tradições, aulas de história, juramento à bandeira. Há Nós e há Eles. Eles nos farão mal se não formos vigilantes, desconfiados, zangados, se não nos armarmos.
Obedeça a ordens, faça o que mandarem, defenda seu país.
“Estimule a curiosidade dos meninos por máquinas que se movimentam: automóveis, navios, aviões. Depois, coloque diante deles as mais esplêndidas dessas máquinas maravilhosas e mágicas, num único lugar: nas forças armadas de todo país do mundo. Arraste os motoristas para tanques de milhões de dólares, faça com que os amantes do mar comandem cruzadores nucleares, ofereça aos candidatos a aviadores, a você, Richard, os mais velozes aviões da história, produzidos em seu próprio país, e você passa a usar esse capacete reluzente, pinta seu nome do lado de fora da carlinga!
“E eles o estimulam: Você t competente mesmo? É resistente mesmo? E eles o elogiam: Elite! Asas indomáveis! Eles o envolvem em bandeiras, espetam asas em seu bolso, pregam distintivos em seus ombros, penduram em medalhas no peito, apenas porque você faz o que lhe é ordenado.
“Não estou falando de idiotas, Richard, estou falando de você, engolindo a isca e sentindo-se orgulhoso disso. Orgulhoso como um belo marlim azul em seu lindo uniforme azul, fisgado por esse maravilhoso avião, puxado pela linha em direção à sua própria morte, sua própria morte agradecida, orgulhosa, patriótica, honrada, inútil, estúpida. Você vai morrer, lentamente, pregado na cruz de sua própria responsabilidade pessoal.
“E os Estados Unidos não se importarão, a Força Aérea não se importará e o general que deu as ordens também não se importará. Só você há de se importar, eternamente, com o fato de haver assassinado as pessoas que vai assassinar. Você, elas e as famílias delas. Grande realização Richard…
Virei-me e me afastei, deixando-o junto à asa do caça. Serão as vidas a tal ponto determinadas pela doutrinação, pensei, que não há possibilidade de mudança? Porventura eu mudaria, eu daria ouvidos a mim mesmo se fosse ele?
Ele não levantou a voz, nem gritou. Falou como se não tivesse notado que eu me afastara.
— O que quer dizer quando afirma que sou responsável?
Que sensação esquisita! Eu estava conversando comigo mesmo, mas aquela mente não era mais minha, não tinha como mudá-la. Só podemos transformar nossas vidas na eternidade in-finitesimal que é o nosso agora. Se nos afastamos um momento daquele agora, já se trata da decisão de outra pessoa!
Esforcei-me por ouvir o que ele dizia.
— Quantas pessoas vou matar?
Retrocedi para ir falar com ele.
— Em 1962, você será mandado à Europa com a 478ª Esquadrilha Tática de Caças. O episódio será chamado de “a crise de Berlim”. Vai decorar as rotas para dois alvos, um primário e outro secundário. Há uma possibilidade de que, daqui a cinco anos, você lance uma bomba de cinqüenta megatons sobre a cidade de Kiev.
Fiquei a observá-lo.
— A cidade é conhecida principalmente por sua indústria editorial e cinematográfica, mas o importante para você serão as oficinas ferroviárias no centro da cidade e as fábricas de máquinas-ferramentas nas cercanias.
— Quantas pessoas…?
— Haverá em Kiev, naquele inverno, 866.000 pessoas, e se você obedecer às ordens, os poucos milhares que sobreviverem a seu ataque desejarão estar mortos.
— Oitocentos e sessenta e seis mil pessoas?
— Pavios curtos, o orgulho nacional em jogo, a segurança do mundo livre. Um ultimato após o outro…
— Eu lançarei… eu lancei a bomba? — Estava muito tenso, ouvindo seu futuro.
Abri a boca para dizer que não, os soviéticos recuaram, mas fiquei tonto de raiva. Algum ego alternativo, de um holocausto passado e diferente, agarrou-me pelo pescoço e falou com ferocidade. Era uma voz cortante, rouca, desesperada em sua tentativa de convencê-lo.
— Claro que lançou! Não contestei a ordem, tal como você não contestou! Pensei: se estamos em guerra, é o presidente que dispõe de todos os fatos, é ele quem toma as decisões, ele é o responsável. Nem por um instante pensei, até decolar, que o presidente não pode ser responsável pelo lançamento da bomba porque o presidente não sabe pilotar um avião! — Esforcei-me para me controlar, perdido. — O presidente não distingue uma chave de lançamento de míssil de um pedal de leme, ele não pode ligar o motor, não pode taxiar até a pista…
Sem mim ele seria um idiota inofensivo em Washington, e o mundo permaneceria o mesmo sem a guerra nuclear que ele inventou. Mas, Richard, esse idiota tinha a mim! Como ele não sabia matar um milhão de pessoas, fiz isso para ele! A arma dele não era a bomba, era eu! Na época não juntei os fatos: pouquíssimas pessoas no mundo sabiam fazer essas coisas, e sem nós não seria possível haver guerra alguma!
Destruí Kiev, pode acreditar nisso? Incinerei um milhão de pessoas porque um maluco qualquer… me mandou fazer isso!
O tenente estava boquiaberto, a me olhar.
— Por acaso a Força Aérea ensinou-lhe ética? — sibilei. — Você algum dia teve um curso chamado Responsabilidade dos pilotos de caças? Nunca teve, nem terá. Tudo o que a Força Aérea lhe disse é que obedecesse a ordens, que fizesse o que lhe era ordenado. A Força Aérea não diz que você deve viver com a sua consciência. Você obedece à ordem de acabar com Kiev, e seis horas depois um sujeito de quem você seria amigo, um piloto chamado Pavel Tchemov, obedece às ordens que ele recebeu e põe fim à existência de Los Angeles. Todo mundo morre. Se você mata a si mesmo quando assassina os russos, por aue matá-los, então!
— Mas eu… eu prometi obedecer a ordens!
No mesmo instante, o louco largou meu pescoço, desesperado, e desapareceu. Tentei raciocinar de novo com o tenente.
— O que hão de fazer com você se não obedecer às ordens?
Dirão que não é um profissional? Submeterão você à corte marcial?
Vão matá-lo? Isso seria pior do que o que fará à cidade de Kiev?
Durante um longo momento, ele me olhou em silêncio.
— Se você pudesse me dizer qualquer coisa — falou, por fim —, e eu prometesse lembrar-me do que falou, o que me diria? Que está envergonhado de mim?
Dei um murro na asa do avião.
— Ah, garoto, seria muito mais fácil para mim se você simplesmente teimasse, insistisse em que está com a razão ao obedecer a ordens. Por que precisa ser tão cordato?
— Porque sou o senhor!
Encostei-me no metal frio e enterrei o rosto nas mãos. Senti um toque no ombro, e levantando o olhar vi o brilho de cabelos dourados ao luar.
— Apresenta-me? — disse Leslie. As sombras revelavam uma feiticeira na noite.
Empertiguei-me logo, captando apenas um vislumbre do que ela pretendia.
— Este é o tenente Bach. Quero apresentá-lo a Leslie Parrish.
Sua companheira, sua futura mulher, aquela por quem esteve procurando, aquela que você encontrará ao fim de muitas aventuras, no começo da serenidade feliz.
— Como vai? — cumprimentou ela.
— Eu… ah… Como vai? — respondeu ele, hesitante. — Você disse… minha mulher?
— No tempo oportuno — respondeu Leslie.
— Tem certeza de que se refere a mim?
— Existe, neste momento, uma Leslie jovem — disse ela — que está começando a carreira, imaginando quem será você, onde está, quando vão se encontrar…
O rapaz a encarava com assombro. Durante anos sonhara com ela, a amara, soubera que em algum lugar escondido do mundo ela estava à sua espera.
— Não posso acreditar nisso. Você veio de meu futuro?
— Um de seus futuros — retrucou Leslie.
— Mas como podemos nos encontrar, onde você está agora?
— Não poderemos nos encontrar enquanto você estiver na Força Aérea! Num determinado futuro, jamais nos encontraremos.
— Mas se somos companheiros um do outro, devemos nos encontrar! Os companheiros nascem para passar a vida juntos!
Leslie recuou um pouco, afastando-se dele.
— Talvez não.
Nunca esteve tão linda como esta noite, pensei. E como ele anseia por saltar no tempo para encontrá-la!
— Jamais pensei que alguma coisa pudesse… Qual é o poder capaz de afastar duas pessoas que nasceram uma para a outra? — perguntou ele.
Era minha mulher quem falava? Ou seria uma Leslie alternativa, vinda de seu próprio futuro diferente?
— Meu querido Richard — disse ela —, naquele futuro em que você bombardeia Kiev, e seu amigo russo, o piloto, bombardeia Los Angeles? O estúdio da Twentieth Century-Fox, onde estarei trabalhando, fica a mais ou menos um quilômetro e meio do ponto zero. Estarei morta um segundo após a queda da primeira bomba. — Virou-se para mim, com um darão de terror na expressão, sentindo que o objetivo de nossas vidas estava perdido. Há alguns futuros, clamava aquela outra Leslie… Nem sempre as pessoas que nasceram uma para a outra se encontram!
Coloquei-me a seu lado, enlaçando-a, amparando-a enquanto passava o terror.
— Não podemos modificar isso — avisei.
Ela concordou, já sem angústia, entendendo a situação antes de mim.
— Tem razão — disse com tristeza, e virou o rosto para o tenente. — A escolha não é nossa. É sua.
Havíamos dito tudo quanto sabíamos. Ele estava a par de tudo que sabíamos.
Em algum ponto de nosso futuro simultâneo, Leslie fez o que Pye nos indicara. O momento da despedida havia chegado. Fechando os olhos, imaginando o mundo dos desenhos sob a água, ela empurrou o manete do Seahawk para a frente.
O céu noturno, os caças e toda a base estremeceram à nossa volta, como também o próprio tenente, que dizia “Esperem…!”.
E desapareceram.
Meu Deus, pensei. Ante a ordem de algum presidente, mulheres, crianças e homens, amantes e padeiros, atrizes e músicos, comediantes, médicos e bibliotecários… o tenente mataria todos, sem misericórdia.
Gatinhos e pássaros, árvores, flores e fontes, livros, museus e obras de arte… ele calcinará sua própria alma irmã, e nada que possamos argumentar é capaz de detê-lo. Ele sou eu, mas não posso detê-lo!
Leslie leu meu pensamento, segurou-me a mão.
— Richard, querido, escute. Talvez não pudemos detê-lo. Mas talvez consigamos.