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Durante a refeição, não paramos de falar. Seria uma coincidência, a loja de televisores com sua ilustração da aventura que tínhamos vivido, ou as respostas constantemente nos haviam cercado sem que nunca as notássemos? Por mais famintos que estivéssemos, esquecíamos de comer.

— Não é uma coincidência, querida. Pensando bem, tudo é metáfora.

— Tudo?

— Experimente me perguntar. Depois do que aprendemos, você pode citar qualquer coisa que quiser, e lhe demonstrarei que essa coisa nos tenta ensinar o que é real. — Mas isso me pareceu fanfarronice.

Leslie olhou para uma paisagem marinha, pintada na parede oposta.

— O oceano — propôs ela.

— O oceano tem muitas gotas de água, gotas ferventes e geladas, gotas brilhantes e escuras, gotas que voam no ar e gotas comprimidas por muitas toneladas de pressão — falei. — Gotas que passam de uma dessas espécies para outra e logo para outra mais, gotas que se vaporizam e que se condensam. Cada gota forma uma unidade com o oceano. Sem ele, as gotas não podem existir. Sem as gotas, o oceano nada é. Mas não se pode dizer que uma gota no oceano seja uma “gota”. Não há fronteiras entre as gotas, até alguém traçá-las.

— Excelente! — aplaudiu Leslie.

Olhei para as pequenas toalhas de papel sobre a mesa, representando um mapa de Los Angeles.

— Ruas e estradas — propus. Leslie fechou os olhos.

— Ruas e estradas ligam todos os lugares a todos os demais, porém cada motorista escolhe aonde deseja ir. Pode tomar o caminho de um belo sítio campestre ou se meter no basfond. Pode ir a uma universidade ou a um bar, pode ir além do horizonte, em qualquer parte aonde conduzem as estradas, ou pode ficar indo e voltando para os mesmos lugares, ou pode ainda estacionar e não ir a lugar algum.

Pode escolher o clima de acordo com os lugares onde dirige, gélido, ensolarado ou tórrido, pode guiar com segurança ou perigosamente, pode dirigir um carro de corridas, um seda ou um caminhão, pode manter o veículo em perfeito estado ou deixar que ele caia aos pedaços.

Pode dirigir sem um mapa, transformando cada curva numa surpresa, ou pode planejar meticulosamente aonde vai e saber com certeza como proceder para chegar lá. Cada estrada que esse motorista tomar já se encontra ali, antes que ele entre nela, e estará no mesmo lugar depois que ele passar. Já existem todas as viagens possíveis, e o motorista forma uma unidade com todas elas. Ele simplesmente escolhe, a cada manhã, qual a viagem que fará nesse dia.

— Viu! Perfeito!

— Nós aprendemos isso há pouco ou sempre soubemos e nunca perguntamos? — Antes que eu pudesse começar a responder, ela me pôs à prova outra vez: — A aritmética.

Não conseguíamos aplicar o princípio a qualquer coisa, mas tínhamos êxito com quase todo sistema, atividade ou profissão.

Programação de computadores, cinema, comércio varejista, boliche, indústria, aviação, agricultura, engenharia, arte, educação, iatismo… Por trás de quase tudo achávamos uma metáfora com a mesma concepção serena do funcionamento do universo.

— Leslie, você tem a sensação de que… Somos agora as mesmas pessoas que éramos antes?

— Acho que não. De cada vez que aprendemos, ficamos diferentes, não é? Se voltássemos inalterados depois “do que aconteceu… Não é isso que você quer dizer, não é?

— Quero dizer diferentes de verdade — falei, mantendo a voz baixa.

— Olhe em volta para as pessoas neste restaurante.

Leslie olhou, durante bastante tempo.

— Talvez isso vá passar, mas…

— …nós conhecemos todas as pessoas aqui — completei. Na mesa a nosso lado estava uma mulher vietnamita, grata à gentil, cruel e odienta América, orgulhosa das duas filhas, as mais adiantadas na escola. Compreendemos tudo, orgulhamo-nos por ela e pelo que tinha feito para que a vida corresse daquela maneira.

Do outro lado do salão, quatro adolescentes riam e davam tapas uns nos outros, sem se importarem com as outras pessoas, procurando chamar a atenção por motivos que não compreendiam. Ecoaram em nossos corações as lembranças daqueles anos penosos e desajeitados de nossas próprias vidas, gerando uma compreensão instantânea.

Sozinho, um rapaz estudava para os exames finais, desligado de tudo, menos da página diante de si, acompanhando gráficos com o lápis. Sabia que com toda certeza nunca mais na vida elaboraria tabulações de momentos de flexão de vigas I, mas sabia também que o importante é o caminho do aprendizado, e que cada passo nesse caminho é importante. Nós também sabíamos.

Um casal de cabelos grisalhos, bem vestido, conversava em voz baixa num reservado. Eram tantas coisas a lembrar sobre o que tínhamos feito de uma vida, era tão confortador termos agido da melhor forma que podíamos, termos planejado futuros que ninguém mais poderia imaginar.

— Que sensação esquisita! — comentei.

— É mesmo — concordou Leslie. — Isso nunca havia acontecido antes?

Algumas experiências de sair do corpo, pensei, tinham uma certa unidade cósmica. Mas eu nunca tivera a sensação de formar uma unidade com pessoas enquanto plenamente desperto, sentado num restaurante. — Não desse jeito. Acho que não. — Lembranças dispersas, que remontavam ao passado mais longínquo, uma ligação diáfana com todos os demais, subjacente ao que parecia ser nossas diferenças.

Unicidade, dissera Pye. É difícil criticar, pensei, é difícil julgar quando somos nós que estamos sob a luz do refletor. Não há necessidade de julgamento quando já compreendemos.

Unicidade. Em vez de estranhos, pensei, serão aqueles jovens que fomos, as almas sábias em que ainda temos de nos converter? Um foco de aconchegante e esperançosa curiosidade ligava um de nós a outra pessoa, um calmo e silencioso prazer ante nosso poder de construir vidas, aventuras e anseios de saber.

Unicidade. Do outro lado da cidade, eram eles também nós?

Anônimos e celebridades, traficantes e policiais, promotores, terroristas e músicos?

Aquele prazeroso conhecimento permaneceu conosco, enquanto conversávamos. Não é o conhecimento que surge e desaparece, pensei, é a percepção que temos dele. O que vemos é nossa consciência, e quando essa consciência é afastada, como as cenas se modificam! Somos, neste mundo, apenas reflexos, somos espelhos vivos uns dos outros, somos nossa própria famí lia querida, que enfim se reencontra após uma longa separação.

— Acho que aconteceu conosco muito mais do que estamos começando a perceber — disse Leslie.

— É como se nosso vagonete corresse sobre um milhão de chaves, querida, e estivéssemos vendo os trilhos mudarem debaixo de nós. Onde vamos sair, para onde estamos nos dirigindo?

A noite caiu enquanto conversávamos. Nós nos sentíamos como amantes que se reencontrassem no paraíso — éramos as mesmas pessoas que tínhamos sido, mas agora lembrávamos quem éramos antes, havíamos vislumbrado o que poderíamos realizar em nosso futuro.

Saímos por fim do restaurante, enlaçados novamente, para a noite e a cidade. Caminhávamos, carros passavam nas ruas para norte, sul, leste, oeste, um garoto fez uma curva graciosa, num skate, à nossa volta, com um guinchar de rodas. Todos nós seguindo nossos caminhos, ao encontro das escolhas deste minuto, desta noite, desta vida.

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