Detivemo-nos estupefatos, petrificados, boquiabertos. A Leslie mais jovem murmurou um muito obrigada ao Richard que eu fora. A seguir, mal se contendo para não correr, ela se apressou na direção de seu quarto.
— Leslie! Espere! — gritou minha Leslie.
A jovem parou e se virou, à espera de ver uma amiga, mas não pareceu nos reconhecer. Com a janela às nossas costas, devíamos estar na sombra, ou em silhueta.
— Leslie — chamou minha mulher, simpática, caminhando em sua direção. — Pode me dar um momento?
O Richard mais moço, enquanto isso, passou por nós, em direção ao seu quarto. O fato de a mulher que o acompanhara no elevador ter-se encontrado com amigos não era com ele.
E não sabermos o que está acontecendo, pensei comigo, não nos impede de sermos os controladores da situação. Senti uma coisa esquisita, ao ver aqueles dois andando em direções opostas quando sabíamos que estavam destinados a passar o resto da vida juntos.
Deixei que Leslie fosse em busca de sua vida anterior, enquanto eu corria na direção do rapaz.
— Com licença — falei, atrás dele. — Richard?
Ele se virou, chamado tanto por minhas palavras quanto pelo som de minha voz, tomado de curiosidade. Lembrei-me da jaqueta que ele usava, cor de pele de camelo. Tinha no forro um rasgão que eu costurara uma dúzia de vezes, sem sucesso. A seda, ou independente do que fosse, não parava de ser cortada pela linha.
— Preciso me apresentar? — perguntei.
Ele me olhou, e nos olhos grandes apareceu alguma coisa como um tranqüilo autocontrole.
— O quê!
— Escute — comecei, o mais calmo possível. — Nós também não estamos compreendendo. Estávamos num avião, uma coisa esquisita bateu em nós e…
— Você é…? — Sua voz sumiu e ele ficou ali, parado, pasmo.
Evidentemente, aquilo para ele era um choque, mas me senti estranhamente irritado com o sujeito. Quem poderia dizer de quanto tempo dispúnhamos para ficar juntos, se minutos ou menos, se horas ou menos, e ele perdia tempo, recusando-se a acreditar no que deveria ser óbvio?
— A resposta é sim — respondi. — Eu sou o homem que você será daqui a alguns anos. Por algum motivo estamos aqui, e foi-nos dada uma oportunidade que todo mundo deseja mas nunca consegue ter.
O choque transformou-se em desconfiança.
— Qual era o apelido que mamãe me dava? — perguntou, apertando os olhos.
Suspirei e respondi.
— Qual era o nome de meu cachorro quando eu era menino, e que fruta gostava de comer?
— Richard, pare com isso! — exclamei. — Lady não era um cachorro, era uma cadela e comia damascos. Você tinha uma luneta astronômica de 12,5 centímetros. O espelho estava lascado porque um dia você deixou cair um alicate quando estava consertando alguma coisa nele, com o tubo virado para cima e não para baixo, havia uma passagem secreta na cerca perto da janela de seu quarto, uma abertura com dobradiças pela qual você podia passar quando não queria usar o portão…
— Muito bem — disse ele, olhando para mim como se eu fosse o resultado de um número de ilusionismo. — Não duvide de que você possa continuar a lembrar essas coisas.
— Indefinidamente. Rapaz, você não pode fazer uma só pergunta a seu respeito que eu não seja capaz de responder, e com meus 17 anos a mais tenho mais respostas do que você tem perguntas!
Ele olhou para mim. Um garoto, pensei, sem nenhum fio de cabelo branco. Um pouco de grisalho nos cabelos há de lhe cair bem.
— Pretende perder o tempo que tivermos em conversa aqui no corredor? Sabe que naquele elevador você acabou de se encontrar com a mulher com quem vai… a pessoa mais importante de sua vida e você nem sabe que se encontrou com ela?
— Ela? — Ele olhou para o corredor. — Mas ela é linda! Como é que ela…
— Como, não sei, mas ela o acha atraente. Creia no que digo.
— Certo, acredito. Acredito! — Tirou a chave do aparta mento do bolso da jaqueta. — Vamos entrar.
Nada fazia sentido, mas tudo estava correto. Não estávamos em Los Angeles, e sim em Carmel, Califórnia, outubro de 1972, terceiro andar do Holiday Inn. Antes mesmo que ele metesse a chave na fechadura, eu sabia que o quarto estava cheio de modelos de gaivotas, a controle remoto, construídos para um filme que vínhamos rodando na praia. Alguns dos modelos faziam evoluções maravilhosas, mas outros tinham caído de ponta-cabeça e quebrado. Eu havia levado os destroços para o quarto, a fim de recolá-los.
— Vou chamar Leslie — avisei. — Veja se consegue arrumar isso aqui um pouco, está certo?
— Leslie?
— É a… Bem, há duas Leslies. Uma é a mulher com quem você acabou de subir no elevador, ansiosa para que você achasse um jeito de falar com ela. A linda é a mesma mulher 16 anos depois, minha esposa.
— Não consigo acreditar nisso!
— Por que não arruma o quarto um pouco? — propus. — Voltamos daqui a pouco.
Encontrei Leslie no corredor, alguns apartamentos adiante, de costas para mim, conversando com seu ego mais jovem. Enquanto eu caminhava em sua direção, uma camareira saiu do apartamento ao lado, indo na direção do elevador, empurrando um carrinho com roupa suja.
Sem prestar atenção, ela empurrou o pesado carrinho na direção de minha mulher.
— Cuidado! — gritei.
Tarde demais. Leslie virou-se ao ouvir minha voz, mas o carro atingiu-a de lado, passou através de seu corpo como se ela fosse feita de ar, seguido pela camareira, que a pisoteava, sorrindo para a moça.
— Ei! — exclamou a jovem Leslie, alarmada.
— Oi! — respondeu a camareira. — Bom dia!
Corri para Leslie.
— Está bem?
— Muito bem. Acho que ela não… — Virou-se para a moça. — Richard, quero apresentá-lo a Leslie Parrish. Leslie, esse é meu marido.
Richard Bach.
Achei graça do formalismo da apresentação.
— Como vai? — disse à moça. — Pode me ver? Ela riu, com um brilho nos olhos.
— Pensa que é diáfano? — Nenhum choque, nenhuma suspeita.
A jovem Leslie devia ter considerado tudo aquilo um sonho e resolvera se divertir um pouco.
— Estou só verificando — respondi. — Depois do que acabou de acontecer, não tenho certeza de que faço parte deste mundo.
Aposto que…
Levei a mão à parede, desconfiando que a mão atravessaria o reboco. Foi o que aconteceu, e o pulso entrou até o papel de parede. A jovem Leslie riu a valer.
— Acho que somos fantasmas — comentei.
Então foi por isso que não morremos ao chegar, atravessando a parede do hotel, pensei.
Com que rapidez nos ajustamos a situações inacreditáveis! Se caímos de um cais, logo percebemos que estamos debaixo da água.
Movemo-nos de maneira diferente, respiramos diferente, mas em meio segundo estamos adaptados, embora possamos não gostar da água fria.
O mesmo acontecia ali. Estávamos mergulhados em nosso passado, surpresos por havermos caído nele, fazendo o melhor que podíamos naquele lugar esquisito. E a melhor coisa que podíamos fazer era juntar aqueles dois, poupar-lhes a perda dos anos que havíamos desperdiçado antes de concluirmos que éramos almas irmãs.
Era estranho estar conversando com ela, como se nos encontrássemos de novo pela primeira vez. Que coisa esquisita, pensei.
Ela é Leslie, mas não tenho nenhuma história em comum com ela!
— Quem sabe se, em vez de ficarmos aqui… — Apontei para o corredor. — Richard nos convidou para o apartamento dele. Podemos conversar um pouco lá, acertar as coisas sem que carrinhos com roupa suja nos atropelem…
Ela olhou de relance para o espelho do corredor.
— Eu não pretendia me encontrar com ninguém. Estou um horror — disse, ajeitando os longos cabelos louros debaixo do gorro.
Olhei para minha mulher e não pudemos deixar de rir.
— Ótimo! — exclamei. — Foi nosso último teste com você. Se Leslie Parrish um dia olhar para um espelho e disser que está bem, nesse caso não será a verdadeira Leslie Parrish!
Caminhei na frente em direção ao apartamento de Richard, e bati à porta, sem pensar. Os nós de meus dedos, é claro, sumiram na madeira sem nenhum ruído.
— Acho melhor você bater — falei à jovem Leslie.
Ela bateu, pancadinhas alegres e ritmadas, para mostrar que seu toque era não só eficaz como musical.
A porta abriu-se logo Richard segurava uma gaivota feita de balsa, com um metro de envergadura. No olhar que dirigiu à moça havia uma curiosa mistura de ansiedade e medo.
— Olá! — falei. — Richard, quero apresentá-lo à Leslie Parrish, sua futura mulher. Leslie, esse é Richard Bach, seu futuro marido.
Ele encostou a gaivota na parede e apertou a mão da moça formalmente.
O brilho divertido nem por um instante deixou-lhe os olhos enquanto ela o olhava, apertando-lhe a mão com a maior gravidade possível.
— Muito prazer em conhecê-lo.
— E Richard, esta é minha mulher, Leslie Parrish-Bach.
— Como vai? — cumprimentou ele.
Ficou parado por alguns instantes, olhando de uma das Leslies para outra e para mim, como se um grupo de crianças batesse à sua porta no dia das bruxas.
— Vamos entrar — falou, por fim. — O apartamento está uma bagunça…
E ele falava sério. Se o limpara, nada se notava. Gaivotas de balsa, módulos de controle remoto, baterias, folhas de balsa, lixo nos caixilhos das janelas, tudo cheirando a tinta.
Ele havia colocado na mesinha quatro copos de água, três saquinhos de flocos de milho e uma lata de amendoins. Se nossas mãos atravessam as paredes, pensei, é possível que não tenhamos muito sucesso com os flocos de milho.
— Para sua tranqüilidade de espírito, Miss Parrish — começou ele —, já fui casado, mas nunca mais volto a me casar. Não estou entendendo absolutamente quem são essas pessoas, mas lhe asseguro que não tenho a mínima intenção de lhe fazer qualquer proposta…
— Ah, meu Deus! — exclamou minha mulher, em voz baixa, olhando para o teto. — O discurso anticasamento.
— Por favor, Wookie — sussurrei. — Ele é um rapaz simpático, só está assustado. Não vamos…
— Wookie? — admirou-se a jovem Leslie.
— Desculpe — respondi. — É um apelido que saiu de um filme que vimos juntos há muito… daqui a muito tempo. — Comecei a ter a impressão de que talvez a conversa não seria fácil.
— Vamos começar pelo início — disse minha mulher, organizando o inverossímil. — Richard e eu não sabemos como foi que chegamos aqui, nem quanto tempo isso vai durar, não sabemos para onde vamos. Tudo que conhecemos são vocês, sabemos do passado e do futuro de vocês… ao menos os próximos 16 anos.
— Vocês dois vão se apaixonar um pelo outro — falei. — Já estão apaixonados, só que não sabem que cada um de vocês é a pessoa que o outro amaria se se conhecessem. Neste exato momento, vocês acham que não há no mundo ninguém que seja capaz de compreender vocês ou de amá-los. Mas há, e estão um diante do outro!
A jovem Leslie sentou-se no chão, encostou-se num sofá e reprimiu um sorriso. Apoiou o queixo nos joelhos.
— Temos alguma influência nesse nosso amor, ou se trata de um destino irrecorrível?
— Boa pergunta — disse Leslie. — Vamos lhes contar aquilo de que nos lembramos do que aconteceu. — Fez uma pausa, concatenando as idéias. — Depois vocês deverão fazer o que julgarem acertado.
O que nós lembramos, pensei. Lembro-me deste lugar, lembro-me de ter visto Leslie por acaso no elevador, ficar depois anos sem revê-la. Mas não me lembro de nenhum encontro aqui neste apartamento com futuras Leslies, nem de nenhum futuro Richard me mandando arrumar as coisas.
O jovem Richard sentou-se numa cadeira, olhando para a jovem Leslie. Para ele, a beleza física dela raiava o limiar da dor. Ele se sentia acanhado diante de mulheres bonitas, e nem por um momento lhe passou pela cabeça que ela estivesse tão acanhada quanto ele. Não era de admirar que tivessem passado anos antes que começassem a se conhecer.
— Quando nos conhecemos, as aparências nos bloquearam, outras pessoas nos impediram inclusive de tentar conhecer um ao outro — disse Leslie. — Aconteceram-nos coisas terríveis durante anos, antes de nos reencontrarmos.
— Cometemos, separados, erros que jamais teríamos cometido juntos — acrescentei. — Mas, agora, que vocês sabem… não percebem? Não precisam cometer os mesmos erros!
— Quando nos reencontramos — prosseguiu Leslie —, tinham-se passado anos. Tudo que podíamos fazer era juntar os pedaços e rezar para que conseguíssemos construir a vida bela que víamos que podíamos ter juntos. Se tivéssemos nos conhecido antes, não precisaríamos passar por toda aquela recuperação. É claro que nos encontramos antes, vimo-nos no mesmo elevador em que vocês subiram. Só que não tivemos coragem ou perspicácia suficiente… — Leslie sacudiu a cabeça. — Não tínhamos aquilo quer era preciso ter para sabermos o que poderíamos ser um para o outro.
— Por isso, achamos que vocês são malucos por não caírem um nos braços do outro agora mesmo — continuei —, dar graças a Deus por terem se encontrado e começar a modificar a vida de vocês, para ficarem juntos. Desperdiçamos tanto tempo quando éramos vocês, passamos por cima de tantas oportunidades de fugir de desastres e seguirmos juntos.
— Desastres? — perguntou Richard.
— Isso mesmo — confirmei. — Vocês estão no meio de vários neste exato momento. Só que ainda não sabem.
— Você sobreviveu — disse ele. — Acha que sabe todas as respostas?
Por que ele assumia uma atitude tão defensiva? Caminhei um pouco, olhando para ele.
— Temos algumas respostas, mas o importante para você é saber que ela sabe a maioria dessas respostas e que você tem respostas para ela. Juntos, nada conseguirá parar vocês!
— Parar-nos como? — perguntou a jovem Leslie, surpresa com a intensidade de meus sentimentos, desconfiando, finalmente, de que talvez aquilo não fosse um sonho.
— Impedir que vocês vivam o amor supremo — disse minha mulher —, impedir que alcancem juntos uma vida tão maravilhosa aue ficarão incapazes de imaginar um sem o outro!
Como era possível que aqueles dois resistissem à dádiva imensa que lhes oferecíamos? Quantas vezes temos a oportunidade de conversar com as pessoas em quem nos transformaremos, aquelas que conhecem cada um dos erros que haveremos de cometer?
Minha mulher estava sentada no chão, ao lado de Leslie, como uma gêmea mais velha.
— Na privacidade deste quarto, onde estamos a sós, precisamos lhes dizer uma coisa: apesar de todos os seus erros, cada um de vocês é uma pessoa extraordinária. Vocês têm se apegado a um senso de dever, a uma ética interior, mesmo quando proceder assim é difícil, perigoso, ou quando as pessoas consideram vocês esquisitos. É essa esquisitice que os distingue. Ela os toma solitários. Além disso, faz com que cada um seja perfeito para o outro.
Os dois escutavam com tamanha atenção que eu nada con seguia perceber em seus rostos.
— Ela não tem razão? — perguntei. — Digam-nos para sumir se isto é absurdo. Se não for verdade, podemos ir embora, Temos nosso próprio probleminha para resolver…
— Não! — disseram os dois, em uníssono.
— Uma coisa vocês já nos disseram — comentou a jovem Leslie. — É que vamos viver mais 16 anos! Não haverá guerras, não chegará o fim do mundo. Mas… talvez seja essa a pergunta que quero fazer. Nós sobrevivemos a esta época, ou melhor, vocês sobreviveram?
— Pensam que sabemos o que está acontecendo? — perguntei.
— Errado! Sequer sabemos se estamos mortos ou vivos. Tudo que sabemos é que, por alguma razão, é possível, sem que o universo se desmorone, que nós, vindos do futuro de vocês, os encontremos, chegados de nosso passado.
— Queremos uma coisa de vocês — disse Leslie.
A jovem ergueu os olhos, os mesmos olhos tão bonitos.
— O que é?
— Somos nós que viemos procurá-los, somos nós que pagamos por nossos erros, que tiramos proveito do esforço de vocês. Somos nós que nos orgulhamos de suas melhores escolhas e que nos entristecemos com as errôneas. Somos os melhores amigos de vocês, além de vocês mesmos. Independentemente do que acontecer, não se esqueçam de nós, não nos traiam!
— Sabem o que aprendemos? — perguntei. — Tranqüilidade a curto prazo, em troca de problemas a longo prazo, não é boa coisa. O caminho fácil não é o melhor. — Virei-me para meu ego mais jovem.
— Sabe quantas propostas assim hão de lhe acontecer entre sua idade e a nossa?
— Muitas?
— Isso mesmo — assenti.
— Como é que evitamos as escolhas erradas? — perguntou ele.
— Tenho a impressão de que já segui pelo caminho fácil algumas vezes.
— É de se esperar — respondi. — As opções erradas são tão importantes quanto as corretas. Às vezes, ainda mais.
— Não são muito agradáveis — retrucou ele.
— Não, mas elas…
— Vocês são o único futuro que temos? — perguntou a jovem Leslie de repente, interrompendo-se na ânsia de fazer a pergunta, e sem motivo aparente senti uma pontada de medo.
— Vocês são nosso único passado? — perguntou minha mulher.
— É claro… — disse Richard.
— Não! — Olhei para ele, atônito. — Claro que não! É por isso que não nos lembramos de qualquer um de nós no Holiday Inn de Carmel! Não lembramos porque isso não aconteceu a nós, aconteceu a vocês!
As implicações dispararam como feixes de laser por todos no apartamento, modificaram-nos para o resto de nossas vidas. Estávamos ali dando aos dois o melhor do que tínhamos, mas seria possível que fossem apenas um de nossos passados, um dos caminhos que conduziam às pessoas que somos? Por um instante havíamos significado segurança para eles, tínhamos confirmado que sobreviveriam. Mas, seria crível que não fôssemos o inevitável futuro que os esperava, que podia haver outras opções para eles, caminhos diferentes dos que tínhamos seguido?
— Não importa que sejamos o futuro de vocês ou não — disse minha mulher. — Não virem as costas para o amor que… — Leslie parou no meio da frase, olhando para mim com um ar de susto. O quarto estremecia, um ronco surdo sacudia o edifício.
— Terremoto? — sugeri.
— Não. Não é um terremoto — disse a jovem Leslie. — Não estou sentindo nada. Richard?
O rapaz balançou a cabeça.
— Nada.
Para nós, o apartamento inteiro se sacudia agora, em freqüências baixas que se aceleravam a cada segundo.
Minha mulher pôs-se de pé num salto, em pânico. Tendo sobrevivido a dois grandes terremotos, não estava nada interessada num terceiro. Peguei-lhe a mão.
— Os mortais aqui neste quarto não sentem nenhum terremoto, Wookie, e nós, fantasmas, não nos importamos com a queda de escombros…
Neste instante o quarto começou a se agitar convulsivamente, tinta azul-claro num misturador de tintas. O ruído tornava-se cada vez mais intenso, os jovens se espantavam com o que estava acontecendo a Leslie e a mim. A única coisa sólida era minha mulher a meu lado, apressando-se, gritando para os dois.
— Fiquem juntos! — bradou ela.
Num piscar de olhos o quarto de hotel desapareceu com um solavanco, engolfado num ruído de motor e espadanar de água.
Borrifos batiam com força no vidro, e ali estávamos de novo na cabine de nosso hidravião, os ponteiros dos instrumentos se agitando, o mar raso batendo sob nós, o Seahawk já leve, pronto para voar.
Leslie gritou de alívio e deu uma pancadinha carinhosa no painel do avião.
— Alô, Growly! Como é bom rever você!
Puxei o manche em minha direção, e em poucos segundos nossa pequena nave apartou-se da água, deixando para trás um véu de borrifos, e aquelas linhas complicadas do leito marinho se distanciaram.
Como era tranqüilizador estar de volta ao ar!
— Foi o Growly que decolou! — falei. — O Growly nos tirou de Carmel! Mas, em sua opinião, o que foi que empurrou o manete para a frente? O que foi que começou a decolagem?
A resposta veio antes que Leslie pudesse falar, dada por uma voz às nossas costas.
— Fui eu.
Viramos no mesmo instante, surpresos. De repente, a trezentos pés de altitude e sobre um mundo que não conhecíamos, tínhamos um passageiro a bordo.