Só quando estávamos a caminho do hotel, instalados com toda segurança no carro que tínhamos alugado, foi que um de nós levantou a pergunta.
— Muito bem — disse Leslie, enquanto subia o acesso da auto-estrada de Santa Mônica. — Vamos falar sobre isso ou não?
— Na conferência?
— Seja onde for.
— O que vamos dizer? “Aconteceu uma coisa gozada enquanto viajávamos para cá. Paramos em pleno ar durante os últimos três meses, presos numa dimensão onde não existe nem espaço nem tempo, só que às vezes parece que existem, e descobrimos que todo mundo é um aspecto de todas as outras pessoas, porque a consciência é uma só. E, a propósito, o futuro do mundo é subjetivo, e nós determinamos o que há de acontecer ao mundo inteiro conforme aquilo que escolhemos para nós mesmos. Muito obrigado. Alguma pergunta?”
Leslie riu.
— Assim que umas poucas pessoas neste país aceitarem que talvez não seja impossível uma pessoa ter mais de uma vida, a gente aparece e diz que não é nada disso, todo mundo tem um número infinito de vidas, e todas estão acontecendo ao mesmo tempo. É melhor não entrarmos nessa. Vamos guardar para nós o que aconteceu.
— Não é nada de novo, Leslie. Lembra-se do que disse Albert Einstein? Para nós, físicos que temos fé, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, e até uma ilusão obstinada.
— Albert Einstein disse isso?
— Isso para começo de conversa. Toda vez que você quiser ouvir alguma coisa inacreditável, converse com um físico. A luz faz curvas; o espaço se entorta; num foguete, um relógio anda mais devagar do que em casa; divida uma partícula, e você tem duas do mesmo tamanho; dispare um fuzil à velocidade da luz, e nada sai do cano… Não estamos trazendo ao mundo novidade alguma, eu e você.
Qualquer pessoa que tenha lido sobre mecânica quântica, qualquer pessoa que tenha brincado com o gato de Schrödinger…
— Quantos apreciadores do gato de Schrödinger você conhece, Richie? Quantas pessoas vão se deitar, numa noite fria, com livros de cálculo ou de física quântica? Não creio que devamos falar sobre isso.
Não acredito que alguém acreditasse em nós. Isso aconteceu conosco, e às vezes tenho dúvidas a respeito da veracidade.
— Minha querida cética! — brinquei. Mas também eu tinha minhas dúvidas. E se fosse tudo um sonho, um raríssimo sonho a dois: o desenho, Pye… E se tudo tivesse sido fantasia?
Olhei com atenção para o trânsito, testando nossa nova perspectiva. Nós na limusine Mercedes de vidros fumês? Nós no Chevrolet enferrujado parado no acostamento, com o radiador fumegando? Nós ali, recém-casados? Nós ao lado, carrancudos, a caminho da cena de um crime, com ânimo assassino? Experimentamos essas imagens, imaginando-nos em outros corpos, mas sem resultado.
Cada qual era separada e desconhecida, encasulada num veículo de aço.
Era-me tão difícil imaginar-nos numa vida de luxo quanto em outra de miséria, embora tivéssemos conhecido as duas coisas antes. Éramos nós e apenas isso, pensei, ninguém mais.
— Está com muita fome? — perguntou Leslie.
— Faz meses que não como.
— Pode agüentar-se vivo até o Robertson Boulevard?
— Se você puder, também posso.
Leslie procurou a saída para ruas de que se lembrava dos tempos em que morara em Hollywood, uma vida agora mais remota para ela do que a de Le Clerc, pois nada mais a ligava ao lugar.
Às vezes, assistindo a filmes antigos tarde da noite, ela me abraçava de repente e dizia: — Muito obrigada por me tirar de tudo isso! — Entretanto, eu suspeitava de que ela ainda sentia falta de Hollywood, ainda que nunca o admitisse, salvo se o filme fosse muito bom.
O restaurante ainda estava lá: um santuário vegetariano, livre de fumaça e imerso em música clássica, perfeito para os famintos conscienciosos. Tornara-se muito popular desde que havíamos mudado da cidade, e só a um quarteirão de distância achei uma vaga para estacionar.
Leslie desceu do carro e pôs-se a caminhar rapidamente em direção ao restaurante.
— Eu morava neste lugar. Você consegue acreditar nisso? Há quantas vidas isso aconteceu?
— Não se pode colocar a pergunta no passado — falei, segurando-lhe a mão para fazer com que ela andasse mais devagar. — Ainda assim, devo admitir que é mais fácil compreender vidas sucessivas do que vidas simultâneas. Primeiro a velha Atenas, depois uma incursão peia dinastia Han, uma visita ao Velho Oeste…
A caminho do restaurante, passamos por uma grande loja de televisores. Sua janela era uma parede de aparelhos, todos ligados, a balbúrdia perfeita.
— …mas o que acabamos de saber não é fácil de entender.
Leslie olhou para a vitrine, e parou tão de repente que achei que houvesse esquecido a bolsa ou quebrado o salto do sapato. Entretanto, nem voltou nem olhou para baixo. Num instante estava faminta, correndo para o restaurante, no outro se imobilizara, absorta na televisão.
— Todas as nossas vidas ao mesmo tempo? — disse ela, perdida naquelas telas. — Vidas de Jean-Paul le Clerc, vidas dissipadas e vidas de Mashara em diferentes universos, todas transcorrendo ao mesmo tempo, e nós sem sabermos como explicar isso em palavras, ou até mesmo incapazes de compreender?
— Hummm… não é fácil, querida, Que tal comermos alguma coisa?
Leslie bateu na vitrine.
— Olhe.
Cada um dos televisores estava sintonizado num canal diferente, e naquela hora da tarde a maioria apresentava filmes antigos.
Numa tela Scarlett O’Hara jurava que nunca mais seria pobre; em outra, Cleópatra conspirava ao lado de Marco Antônio; debaixo dela dançavam Fred Astaire e Ginger Rogers, num turbilhão de cartolas e chiffons; à direita, movimentava-se Bruce Lee, tomado de uma ânsia de oriental vingança; perto, o capitão Kirk e a linda tenente Paloma ludibriavam um deus espacial; à esquerda deles, um impetuoso cavaleiro atirava cristais mágicos que faziam brilhar sua cozinha.
Outros dramas, em outras telas, cobriam a vitrine ao longo da calçada, e não haveria menos de 36 telas. De cada uma delas pendia uma etiqueta escarlate: COMPRE-ME!
— Simultâneas! — falei.
— Portanto, o passado ou o futuro não dependem do ano em que se está — disse Leslie. — Depende do canal sintoniza do… depende de nosso foco!
— Um número infinito de canais — falei, interpretando a vitrine —, mas nenhum televisor pode mostrar mais do que um canal de cada vez, de modo que cada qual está convicto de que aquele é o único canal que existe!
Leslie apontou.
— Um televisor novo.
No outro canto da vitrine, um console moderníssimo mostrava Spencer Tracy atarantado diante de Katherine Hepburn, enquanto um retângulo menor, dentro da imagem, exibia o final de uma corrida de carros esporte.
— Ah! Ah! — exclamei. — Se formos suficientemente avançados, podemos sintonizar mais de uma vida.
— Como se chega a esse estágio avançado? — quis saber Leslie.
— Custando mais caro. Ela riu.
— Eu sabia que havia uma maneira.
Continuamos a caminhar, enlaçados, entramos em nosso antigo paraíso, conseguimos um reservado. Leslie abriu o cardápio, e logo o fechou.
— Creme de bardana! — exclamou.
— Certas coisas jamais mudam, Leslie. Ela concordou, feliz.