II

A noite caíra fria e húmida sobre Armentières, mas a isso já todos se tinham habituado. O Inverno estava à porta e as árvores preparavam-se para enfrentarem os rigores do frio. Os grandes plátanos e os delicados choupos encontravam-se quase totalmente despidos, é certo que algumas árvores ainda exibiam folhas amareladas ou avermelhadas ornando os ramos ou estendendo-se em tapete à sombra das copas, espectros fantasmagóricos na paisagem verde, plana e bucólica da Flandres. Pendurados nos ramos ou esvoaçando de árvore em árvore, os melros assobiavam aqui e os pardais pipilavam ali, alegres e despreocupados, numa animada sinfonia de despedida do Outono.

O ronco distante de um motor a aproximar-se intrometeu-se naquela harmoniosa melodia da natureza. Um Hudson negro cruzou o grande portão de pedra e entrou nos domínios do Château Redier, a estrada calcetada cortando a meio o vasto jardim, com as suas sebes cuidadosamente aparadas e dispostas em labirinto por entre choupos de faia-branca, ciprestes delgados e tílias de grande porte, o palacete claro a erguer- se ao fundo, logo atrás de uma rotunda estreita com um jardim formado em círculo ao meio, enfeitado por coloridas tulipas, vigorosos jacintos e hibiscos teimosamente roxos. Um anjo de pedra ornava o centro daquele pequeno jardim oval, um repuxo de água a jorrar do pífaro ostentado na boca da estátua cinzenta.

“Encosta junto à escadaria”, indicou Afonso à sua ordenança. “Sim, meu capitão. “ O oficial tinha os olhos pregados no espectáculo de serenidade verde que ordeiramente se perfilava em redor, sentia-se quase chocado com o contraste relativamente ao mar de lama a que se habituara desde que tinha chegado à Flandres. O Hudson contornou a rotunda e imobilizou-se à beira dos degraus de mármore envelhecido do château. Afonso apeou-se e estudou a fachada do edifício, as trepadeiras cobrindo a pedra gasta, o verdete entranhando-se na base do palacete, as enormes janelas sobressaindo daquele emaranhado de plantas e de paredes cinzentas, um elegante alpendre sobre a porta de entrada, guarnecida por duas colunas de um mármore fino, o creme polido rasgado por múltiplos veios encarnados.

Joaquim tirava já a mala da bagageira quando a porta principal se abriu. Um homem pequeno, com um bigode grisalho e um monóculo no olho direito preso à algibeira por uma corrente dourada, desceu as escadarias de encontro aos recém-chegados.


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“Bon soir”, saudou, apresentando-se. Je suis le baron Redier.” “Bon soir, monsieur le baron. Je suis le capitaine Afonso Brandão. Venho da parte do maire.”

“Eu sei, eu sei”, exclamou o barão, estendendo o braço. “Bienvenue. “

“Merci”, agradeceu Afonso, olhando de relance para trás. “Joaquim, traz a mala. “

“Ele precisa de ajuda? “, indagou o barão. “Vou chamar os criados. “

“Não é necessário”, apressou-se a dizer o capitão. “É só uma mala. “ Os dois cruzaram a porta de entrada, o anfitrião concedendo a vez ao convidado, o foyer abriu-se a toda a largura, uma escadaria ampla dando acesso ao piso superior, duas portas, uma à direita e outra à esquerda, revelando corredores e salas. O chão brilhava, reluzente de tão impecavelmente envernizado, parecia um lago cristalino a reflectir, como um espelho, as figuras que o pisavam e tudo o resto, incluindo os enormes retratos que ornavam as paredes, os candelabros que caíam do tecto, os largos cortinados que enfeitavam as janelas.

“Marcel! “, chamou o barão para o corredor à esquerda. Um homem calvo com um colete escuro assomou, solícito, ao foyer.

“Oui, msieur le baron? “

“Conduz a ordenança ao quarto do nosso convidado para depositar a mala. “ Marcel ajudou Afonso a retirar o sobretudo, pendurou-o num comparti-mento do foyer e, de seguida, guiou Joaquim pela escadaria, a mala sempre na mão, até desaparecerem ambos no andar superior.

“Tem fome? “, indagou o barão, caminhando para o salão, à direita.

“Jantei num estaminet, obrigado”, esclareceu o convidado. “Mas não recusa um digestivo... “

“Allons!”

O salão estava quente, agradável, as madeiras escuras iluminadas pelas velas acesas nas paredes e nas mesas, projectando luzes amareladas e sombras tremidas sobre os sofás, os móveis e o soalho coberto de tapetes. Na parede junto aos sofás ardia lenha numa lareira intensa, cheia de fagulhas e estalidos, alguns pedaços de madeira amontoados num cesto de vime à espera de serem atirados para alimentarem aquele fogo acolhedor. O barão dirigiu-se ao bar e agarrou em dois copos.

“ Cognac? Porto?”

“Tem whisky? “ O barão riu-se.

“Whisky? Não imaginei ver um português a beber whisky... “ “A culpa é dos oficiais do regimento escocês”, sorriu Afonso. “Os jocks apresentaram-me o whisky e agora não quero outra coisa.”


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“Mas olhe que os ingleses fazem sempre os brindes com porto”, fez notar o barão.

“Só optam pelo whisky quando já não há mais porto. “

“Eu sei, eu sei, mas o que quer? O whisky aquece-me mais. “ O anfitrião curvou-se, agarrou uma garrafa e colocou-a sobre o balcão do bar. O líquido dourado dançava e brilhava dentro do recipiente delgado, o rótulo a indicar The Balvenie.

“Tenho aqui este blended scotch que vai apreciar”, anunciou. “Foi-me oferecido por um coronel do regimento de Yorkshire”. Levantou a cabeça e olhou em direcção à lareira.

Agnès, qu'estce que tu prends? “

Afonso olhou na mesma direcção, surpreendido. De uma cadeira de balanço à sombra, junto à lareira, saiu uma baforada suave de fumo cinzento-azulado que rapidamente se dissolveu no ar. O oficial português apercebeu-se pela primeira vez da presença feminina no salão.

“Du champagne”, murmurou uma voz doce, impregnada de uma melodia meiga de que só as mulheres francesas são capazes.

O capitão tentou perceber o rosto da mulher, mas a sombra era ali densa e apenas identificou o perfil da cadeira e da cabeça feminina, umas pernas longas a emergirem da penumbra, meio escondidas por entre um desconcertante e sensual vestido vermelho com folhos brancos.

“M'dame”, cumprimentou, baixando levemente a cabeça e olhando sem a ver.

Assiez-vous, s'il vous plait”, disse a mulher, indicando com a mão um sofá junto à lareira, um cigarro entre os dedos.

Afonso pegou no copo com scotch e no outro com champagne, entretanto preparado pelo barão, e aproximou-se da cadeira de balanço. A cadeira rodou e a mulher ergueu-se com delicadeza, dando um passo para receber o champagne. O capitão sentiu primeiro a fragrância perfumada de L'heure bleue a emanar daquele corpo escultural, a harmoniosa mistura de rosas, íris, bauni-lha e almíscar do sofisticado perfume de Guerlain a aguçar-lhe os sentidos. Depois, a bruxuleante luz amarelada da lareira iluminou o misterioso rosto, destapando-lhe os traços finos e distintos, os cabelos castanhos, longos, e os caracóis com madeixas aloiradas, o nariz pequeno e delicado, os olhos de um verde-forte e luminoso, o ar doce e vulnerável, um sorriso enigmático formado em lábios grossos e bem desenhados, transparecia um tom sereno, algo inacessível, naquele rosto belo, sublime mesmo, de francesa coquette. Afonso experimentou um baque, uma falta de ar súbita, oh que encanto! ficou perturbado com o brilho que dela irradiava, a mulher era de uma beleza ofuscante, inalcançável, tão radiosa que se tornava difícil mirá-la de frente e impossível deixar de a olhar. O capitão sentiu-se paralisado de surpresa, não esperava ver ali uma flor 159


daquelas, uma mulher jovem, algures a meio da casa dos vinte, pouco mais nova do que ele próprio, uma jóia rara tão perto do sector da frente. Seria filha do barão?

“Ma femme”, apresentou o barão, aproximando-se com o seu cognac. Agnès. “

“Enchanté, madame la baronne, saudou o oficial, esforçando-se o mais que podia por ocultar a perturbação que a mulher lhe causava e a forte decepção pela notícia de que ela era casada com o seu anfitrião. Beijou-lhe a mão e apresentou-se. “Je suis le capitaine Afonso Brandão, um seu criado. “

“Alphonse? “, sorriu a francesa.

“Se o desejar... “

O sorriso desfez-se do rosto de Agnès no momento em que pela primeira vez o viu de perto. A francesa fitou-o intensamente, por instantes pareceu reconhecê-lo, hesitou, avaliou-o de alto a baixo, observou-lhe o ar sonhador, melífluo, os olhos largos e penetrantes, a tez pálida, o nariz direito, o bigode bem desenhado, o cabelo castanho escuro curto e bem penteado, o porte altivo e tranquilo. Suspirou.

“Você faz-me lembrar alguém que uma vez conheci”, disse com lentidão, algo séria, solene até, uma inesperada palidez a esvaziar-lhe a face, era notória uma enigmática perturbação a ensombrar-lhe o olhar. Mas depressa o rosto marmóreo se reabriu num sorriso, primeiro forçado e tenso, depois gradual-mente genuíno e fácil, de uma candura que se tornou desarmante. “Donde vem você, Alphonse? “

“ Merville. “

“Não”, riu-se Agnès, esforçando-se por ficar mais alegre, parecia que se tinha transformado em meros segundos. “Qual é o seu país? “

“Sou português, m'dame”

“On dit que les portugais sont toujours gais”, exclamou, citando um ditado francês segundo o qual os portugueses são sempre divertidos.

“Pas toujours, m'dame”, negou Afonso.

Agnès fez um trejeito mimado na boca, como se estivesse decepcionada.

“Você não é divertido? “

“Eu sou”, exclamou, corrigindo o tiro e desejando agradá-la. “Mas se visse os meus generais... “

A baronesa voltou a sentar-se na cadeira de balanço e os dois homens acomodaram-se no sofá, um requintado canapé de faia estofado em gros e petit point. Afonso não conseguiu impedir-se de pensar que havia uma sensível diferença de idades no casal anfitrião, ele aproximava-se dos sessenta, ela mais de trinta anos mais nova, andaria algures por volta dos vinte e cinco. Era bonita como uma princesa, mas vivia encerrada naquele 160


palacete, uma prisioneira encarcerada numa terra de miséria e desolação, rodeada por ruínas e destroços, num mundo de homens e fel, com a guerra perto e o inimigo às portas.

Estranhamente não definhava, essa vulnerabilidade tornava-a até mais atraente, mais desejável, mais frágil, era como uma flor teimosamente exposta a um temporal, delicada mas obstinada, e essa tocante teimosia despertava no oficial um inexplicável e irresistível sentimento de protecção.

“Quero agradecer por me terem acolhido”, disse Afonso, clareando a voz e fixando-a nos perturbadores olhos verdes, envolvendo-se assim, quase sem dar por isso, num subtil jogo de sedução.

“Oh, é um prazer”, retorquiu Agnès, devolvendo-lhe o olhar e aceitando o jogo.

“Jacques e eu percebemos que temos de cooperar com o esforço de guerra.”

“Não tenho como dizer não a um pedido do presidente da Câmara”, atalhou o barão. “Mas, às vezes, dá-me a impressão de que monsieur le maire acha que o meu château é um hotel, e isso aborrece-me. “

“C'est la guerre, Jaques”, exclamou a francesa, com uma expressão reprovadora para o marido.

Afonso percebeu que, apesar de o esconder, o barão não se sentia inteira-mente agradado com a sua presença. O alojamento de militares no castelo era-lhe imposto pelo presidente da Câmara de Armentières, encarregado de instalar os oficiais dos exércitos expedicionários aliados que combatiam em França. Naquele sector concentravam-se a 1.a e a 2.a Divisões do Corpo Expedicionário Português, o CEP, ladeado, à esquerda, pela 38. a Divisão do XI Corpo e, à direita, pela 25. a Divisão do Corpo, ambas pertencentes ao Exército do British Expeditionary Force, o BEF, a força expedicionária britânica. Os soldados que não ocupavam a frente eram instalados em quintas, a vinte cêntimos por noite com cama e cinco cêntimos quando não havia cama. Por cada cavalo eram pagos cinco cêntimos por abrigo fechado, com os proprietários franceses a reterem o direito de ficarem com o esterco para estrume. As autoridades civis francesas mostravam-se, porém, empenhadas em evitarem, na medida do possível, que os oficiais ocupassem os currais e as cavalariças onde dormiam os soldados e os solípedes. Um oficial pagava um franco por noite e sentia-se naturalmente com direito a instalações mais condignas do que as praças e os animais. Mas, com as pensões lotadas, as casas particulares já todas requisitadas e os hotéis a cobrarem preços inacessíveis, por vezes apenas restavam como alternativa os palacetes da região.

“Como vai a guerra, capitão Alphonse? “, quis saber a baronesa. “É como os jornais dizem? “


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“E o que dizem os jornais? “

“Que estamos a ganhar. “

“Não se pode acreditar sempre nos jornais... “

Agnès admirou-se.

“Estamos a perder? “

“Não, não ganhamos nem perdemos. Estamos imobilizados “ “Mas não é verdade que o inimigo recuou há alguns meses? “ Afonso sorriu.

“Lá recuar, recuou. Mas recuou por sua própria iniciativa, não fomos nós que o empurrámos.”

“Como assim?“, interrompeu o barão, a garganta aquecida pelo cognac. “Se eles recuam, é porque nós avançamos, ninguém recua porque lhe apetece.”

“O que se passou, sieur le baron, é que os boches construíram umas trincheiras melhores numa posição elevada e na retaguarda das suas trincheiras habituais e depois abandonaram as suas posições e foram instalar-se nessas trincheiras. Chamamos a essas novas posições a linha Siegfried, mas parece que os boches lhe chamam linha Hindenburg.

Seja como for, este recuo para a Siegfried significa que eles perderam uns quilómetros mas ganharam posições quase impregnáveis. “

“Então não acha que vamos ganhar a guerra? “

“Para ganhar uma guerra é preciso que ela acabe”, comentou o capitão com secura.

“E esta não vai acabar? “, quis saber Agnès.

“Não dá sinais disso. Repare que já estamos a 20 de Novembro, perto do final de 1917 portanto, a guerra dura há mais de três anos e as posições permanecem estáticas. Nem nós rompemos, nem eles se mexem.”

“O senhor é um homem de pouca fé, pelo que vejo”, comentou a francesa.

“Pelo contrário, m'dame, sou um homem de fé.“ “Pois não parece”, obser-vou ela.

“Não foi no seu país que apareceu, no mês passado, Nossa Senhora a anunciar o fim da guerra em breve?”

“Sim, já li sobre isso”, disse Afonso, inclinando-se para a sua pasta. “Até tenho aqui um jornal que me mandaram há dias com notícias sobre essa aparição, veja lá!” O capitão retirou da pasta um exemplar de O Século, uma folha gigante dobrada em duas, de modo a dar quatro páginas, e amarfanhada pelo correio, mas perfeitamente legível.

O jornal estava datado de segunda-feira, 15 de Outubro. Ou seja, trinta e cinco dias antes.

As duas colunas do lado direito da primeira página encontravam-se preenchidas, do topo à base, com um texto dedicado ao assunto, o antetítulo anunciando em caixa alta “Coisas espanto-sas!“ e o título falando em “Como o Sol bailou ao meio-dia em Fátima”. O


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subtítulo era longo. “As aparições da Virgem - Em que consistiu o sinal do céu - Muitos milhares de pessoas afirmam ter-se produzido um milagre - A guerra e a paz.” Agnès inclinou-se para melhor ver o jornal.

“Quem são?“, perguntou, apontando para uma grande fotografia por cima do texto mostrando três crianças de olhos fixos na imagem, duas raparigas de saia larga e lenço na cabeça a ensanduicharem um rapaz com um barrete, por trás um muro de pedra.

“São as crianças que dizem ter falado com a Virgem”, explicou Afonso. Leu a legenda e identificou-os, o dedo movendo-se da esquerda para a direita. “Esta chama-se Lúcia, este Francisco e esta Jacinta. “

A francesa mirou a imagem, fascinada.

“E o que viram elas exactamente? “

O capitão pôs-se a ler o texto, momentaneamente silencioso. “Bem, o repórter começa por descrever como chegou à charneca de Fátima, que viu lá muita gente, estavam todos a rezar”, disse, explicando o texto que acabara de ler. Fez mais uma pausa enquanto lia os parágrafos seguintes. “Começou a chover e as três crianças chegaram ao local meia hora antes da anunciada aparição, os fiéis ajoelharam-se na lama à sua passagem e uma das crianças, a Lúcia, pediu-lhes para fecharem os guarda-chuvas”. Nova pausa para leitura. “O

repórter diz que, à hora certa, o céu começou de repente a clarear, a chuva parou e apareceu o Sol “ Ainda mais uma pausa. “Aqui é muito interessante, ora oiçam”, exclamou Afonso, passando a traduzir o texto palavra a palavra, em voz alta. “O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se reali-zando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta e aos espectadores que se encontram mais perto se ouve gritar Milagre, milagre! Maravilha, maravilha! Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o Sol tremeu, o Sol teve nunca vistos movimentos bruscos fora de todas as leis cósmicas - o Sol bailou, segundo a típica expressão dos camponeses. “

Afonso levantou a cabeça do jornal.

“Interessante, não? “

“Oui”, disse Agnès, fascinada, fixando a fotografia das três crianças na primeira página. “Não tem mais? “

O português retomou a leitura silenciosa do jornal e resumiu o seu conteúdo.

“Diz aqui que o repórter falou com as pessoas e nem toda a gente estava de acordo com aquilo a que todos tinham acabado de assistir. A maioria confirma ter visto um bailado do Sol, mas outros garantiram terem observado o rosto da própria Virgem e que o Sol 163


girou sobre si mesmo como uma roda de fogo-de-artifício, descendo do ponto onde se encontrava. E uns poucos asseguram que até o viram mudar de cor.

“Ilusão de óptica”, comentou o barão Redier com um sorriso condescen-dente.

“É possível”, assentiu Afonso.

“Não digam disparates”, comentou Agnès. “E as crianças? “ O capitão leu mais um pouco.

“O essencial está nesta frase que vos vou traduzir”, indicou.

“Lúcia, a que fala com a Virgem, anuncia, com gestos teatrais ao colo de um homem que a transporta de grupo em grupo, que a guerra terminará e que os nossos soldados iam regressar. “

Quando Afonso levantou a cabeça, viu Agnès recostar-se na cadeira de balanço, serena.

“Então sempre é verdade”, disse ela. “A guerra vai acabar. “

“É o que diz aqui.”

“E não acredita?”

“Que a guerra vai acabar?“, admirou-se o barão Redier, juntando-se à conversa.

“Então não há-de ele acreditar? Até eu! Nem que seja daqui a cem anos, mas que ela vai acabar, lá isso vai.“

“Não sejas parvo, Jacques, a profecia é a de que a guerra vai acabar em breve. “

“Não foi isso, em bom rigor, o que o nosso convidado leu no jornal”, disse o barão, apontando para O Século. “O que, pelos vistos, está ali escrito é que a guerra terminará.

Ora, bem vistas as coisas, essa não me parece ser uma profecia muito difícil de fazer, é evidente que a guerra, mais tarde ou mais cedo, vai terminar. Até eu posso prever isso. A grande questão é saber quando, e isso esses intrujões fanatizados já não se atrevem a profetizar. “

“Presume-se, pelo contexto da frase, que será em breve. Não acredita nisso, Alphonse? “

“Bem, eu gostaria que fosse verdade... “

“Mas acredita ou não acredita?”

“Não sei em que pensar”, atrapalhou-se Afonso. “Era bom que fosse verdade. “

“Isso é tudo uma fantasia”, riu-se o barão. “Vivemos tempos difíceis e é nestas alturas que aparecem profetas, milagres, crendices a apontar o caminho da salvação. As mensagens messiânicas são normais nestes períodos de incerteza e aflição. “

“Acha? “, interrogou-se o capitão.


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“Tenho a certeza”, asseverou o anfitrião. “Vai ver que a guerra não irá acabar imediatamente e que, daqui a algum tempo, já ninguém vai falar dessas crianças. “ Agnès olhou-o com irritação. Após um breve instante de olhar carregado, suspirou e voltou-se para Afonso.

“Jacques é ateu”, explicou. “É pior do que Robespierre. Veja lá que até faz pouco de Lourdes. “

“Ah”, exclamou Afonso, nada surpreendido.

“O senhor sabe o que aconteceu em Lourdes? “

“Naturalmente”, assentiu o capitão. “Tal como em Fátima no mês passado, a Virgem apareceu numa gruta de Lourdes a uma criança... “

“Bernardette Soubirous.”

“Isso. A primeira aparição foi em 1858, já lá vão quase sessenta anos. “

“Oh la la!“, espantou-se a bela baronesa. “Até sabe o ano.“ “Eu disse-lhe que era um homem de fé”, sorriu Afonso. “Crendices! “, cortou o barão, sempre céptico, abanando a cabeça.

“Eu tive uma vez um professor na faculdade que era tão anti-religião como o meu marido”, disse Agnès com um sorriso. “Era o professor de Anatomia, chamava-se Bridoux.

Dizia ele que a religião era a inimiga da ciência. “ Fitou Afonso. “Também acha isso, Alphonse? “

“Sim, até certo ponto poderá ser verdade”, assentiu Afonso. “Sabe, tanto a religião como a ciência oferecem explicações para o mundo, mas o problema é que essas explicações competem entre si. Para que uma seja verdadeira, a outra tem de ser falsa. É

por isso que a religião sempre fez tudo o que podia para desacreditar a ciência e é por isso que a ciência faz agora o mesmo à religião. Há, todavia, uma hipótese que ainda ninguém colocou e que me parece merecer ser explorada.

“Qual é? “

“É a possibilidade de estarem as duas a falar verdade, embora complementando-se uma à outra, dizendo verdades diferentes. Já reparou que não é possível demonstrar cientificamente a existência de Deus, mas também não é possível demonstrar o contrário? “

“É um facto. “

“Os filósofos ateus afirmam que nós projectamos numa entidade divina as nossas próprias características, o que significa que Deus é uma mera criação humana. “

“Quem diz isso? “

“Oh, vários filósofos. Sei lá, Schopenhauer, Hegel, Feuerbach... “

“Todos alemães”, riu-se Agnès. “Só por isso os boches merecem perder a guerra. “ 165


Afonso sorriu.

“Já vi que acha essas ideias uma heresia. “

“Não, nem por isso, estava só a brincar. Julgo até que essa é uma tese que merece atenção.”

“É o que eu penso. Mas a verdade é que, se, por um lado, o homem criou Deus à sua imagem, por outro, coloca-se a questão de saber quem criou o homem? Ou, mais importante ainda, quem criou tudo o que nos rodeia, quem criou o universo? Será que as coisas surgiram sem qualquer razão, o universo apareceu por aparecer, assim sem mais nem menos? “

“Concordo consigo”, disse Agnès, estimulada por este pensamento. “Talvez a verdade seja partilhada pela religião e pela ciência, essa é uma hipótese fascinante.”

“A minha ideia vai para além disso, m'dame, a minha ideia é a de que não há uma única verdade. Nietzsche dizia que não há factos, só interpretações, o que é verdade do ponto de vista do ser humano. É indesmentível que existe uma realidade, aquilo a que Kant chamava a coisa em si, o nómeno. Mas, como o próprio Kant notou, nós não vemos a coisa em si, apenas vemos as suas manifestações. Ou seja, nós interpretamos o real. “ Olhou em volta e viu uma fotografia emoldurada na parede, era o barão montado a cavalo, com uma espingarda a tiracolo e rodeado de cães, uma cena de caça em Compiègne.

Afonso apontou para a imagem. “É um pouco como aquela fotografia ali, está a ver?

Aquele não é o senhor barão, mas uma imagem dele. Percebe? A fotografia não é o real, é uma representação do real, construída a partir de um ângulo, com determinados filtros e segundo um determinado código arbitrário. Tal como a fotografia reconstrói o real, pondo-o a preto e branco, por exemplo, nós também o reconstruímos. Já Kierkegaard tinha observado que tudo o que existe é algo exclusivamente individual. Ou seja, nós pomos algo de nós próprios quando interpretamos a realidade e é por isso que a nossa verdade é diferente da verdade de outras pessoas.”

“Portanto, não há verdade. É isso? “

“Não, claro que há verdade, claro que há. Mas há muitas verdades. O real é uno, embora inatingível na sua plenitude. As verdades são múltiplas, uma vez que são interpretações individuais do real. Eu sei que parece complicado, mas...“

“Não, não, estou a entendê-lo perfeitamente, é realmente uma ideia inte-ressante. “

“Sabe, eu acho que esta é a única maneira de estabelecer que a religião e a ciência podem estar as duas a falar verdade”, concluiu o capitão. “O real é uno, mas cada um destes discursos, o religioso e o científico, apresenta uma interpre-tação individual desse 166


real. As duas podem até ser contraditórias e, paradoxal-mente, permanecerem ambas verdadeiras.“

Fez-se silêncio, apenas quebrado pelo som dos estalidos da madeira a arder na lareira. As sombras do lume dançavam pela 5ala, as fagulhas saltitando e bailando pelo ar como pirilampos nervosos. Todos fitavam o fogo, Afonso com um sorriso de íntima satisfação. Desde os tempos do padre Nunes, no seminário, e do Trindade Ranhoso, na Escola do Exército, que não voltara a discutir filosofia com ninguém. Era um imenso prazer estar a fazê-lo agora, pela primeira vez em tanto tempo, naquele recanto perdido de França, ainda para mais com uma mulher lindíssima.

Interrogou-se se alguma vez conseguiria falar de coisas tão profundas e apaixonantes com uma portuguesa, mas tinha muitas dúvidas, não se imagi-nava a conversar sobre Hegel com Carolina.

Só essa constatação encheu-o de admiração por Agnès.

A francesa, por seu turno, tinha também a mente concentrada em Afonso, nas palavras que pronunciava, na maneira ágil como raciocinava. Era a primeira vez desde o namoro com Serge que mantinha uma conversa tão interessante com alguém, um diálogo que a libertava daquelas quatro castra-doras paredes e, atravessando uma maravilhosa janela imaginária, a lançava destemidamente numa viagem feita de encantamento e magia, um deslum-brante périplo pelo inspirador mundo das ideias, um universo rico, pleno de pensamentos audazes, de novidades palpitantes, de revelações surpreendentes. Lembrava-se de ter tido essa sensação quando visitou a Exposição Universal de Paris ou quando o pai lhe ensinou os segredos do vinho. Também viveu as mesmas emoções de descoberta ao frequentar as aulas de Medicina e na altura em que conheceu Serge e o seu sublime mundo das artes. Agora vinha este capitão português despertar-lhe esses sentimentos, esse gosto pelo conhecimen-to, pela exploração, e Agnès desejou arden temente ficar ali toda a noite a descobri-lo.

Talvez pressentindo que havia uma perturbadora química a nascer entre o oficial e a sua mulher, o barão decidiu pôr um fim abrupto ao serão. Engoliu de uma assentada todo o cognac e levantou-se com vigor.

“É tarde. O Marcel vai conduzi-lo ao seu quarto”, disse. Olhou para a porta e elevou a voz: “Marcel! “

O mordomo apareceu em alguns instantes.

“Leva o senhor capitão aos seus aposentos”, ordenou. “Senhor capitão”, disse, despedindo-se do seu convidado com um sinal de cabeça, e olhou para a mulher. “Viens, Agnès. “


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A francesa demorou-se um instante na cadeira de balanço, como se hesi-tasse.

Ergueu-se devagar, quase contrariada, e olhou para o capitão português.

“Bonne nuit, Alphonse”, sussurrou com a sua voz meiga e serena. “À demain.“

“Mdame!“, exclamou Afonso, pondo-se de pé num salto e fazendo uma vénia galante.

Marcel conduziu-o pelos corredores do palacete, indicando-lhe o cabinet de toilette e os seus aposentos. O quarto onde foi instalado era sumptuoso, tão luxuoso que, por momentos, o oficial se sentiu um palmípede, um daqueles homens do quartel-general que faziam a guerra comodamente instalados num palacete, fardados de pijama e armados com chinelas de quarto. Tudo ali era requintado. Molduras ovais decoravam as paredes com retratos pintados, ilustrando rostos e feitos das sucessivas gerações de Redier, a família que dera o nome ao château. No centro do quarto destacava-se, imponente, uma cama de armação Luís XV, toda feita em nogueira, um motivo de concha esculpido na madeira da cabeceira.

O quarto de banho era grande e frio. Encostada à parede estava uma pia em art nouueau, o suporte de ferro batido revirado em arabescos, curvas aqui e ali, contorcendo-se para um lado e para outro, um espelho redondo no centro ladeado por duas velas. Afonso acendeu-as, a bacia tinha uma torneira dourada de alavanca, o bico longo de níquel curvado para baixo, abriu-a, sentiu o líquido gelado queimar-lhe os dedos, passou a água fugitivamente pela face, como um gato, pegou no savon au miel que se encontrava no bojo circular da pia e esfregou as palmas das mãos, sentiu a fragrância do sabão e passou-a pelo rosto, esfregou a cara com água e secou-se à toalha. Olhou de relance para a banheira Chariot instalada junto à janela, toda ela em ferro fundido, o interior em branco, o exterior em rosa-forte, os pés dourados, sonhou tomar banho ali no dia seguinte, agora não, a bexiga apertava-se-lhe. Saiu do cabinet de toilette e foi ao quartinho adjacente onde se encontrava a retrete, o vaso de por celana com uma elegante gravura floral decalcada, um longo tubo de níquel pregado à parede a ligar o vaso à cisterna branca de ferro fundido fixada junto ao tecto e sustentada por dois suportes dourados de girassol, levantou o assento de mogno e urinou para o vaso, no final puxou a alavanca que caía da cisterna, a água foi despejada com fragor dentro do vaso.

O capitão regressou ao quarto sem lhe passar pela cabeça voltar a lavar as mãos, sentia-se satisfeito com estes luxos, isto sim, isto é que era vida, a malta à volta com as latrinas e ele ali a satisfazer-se naquele palacete, o pessoal deitado em palheiros ou a chafurdar na lama dos boletos campestres e ele com um quarto digno de reis só para si.


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Suspirou com alegria, “ah caraças! Ah camano!“, murmurou, tinha de aproveitar bem aquele momento.

Despiu-se, abriu a cama e deitou-se, puxou os cobertores até quase à cabeça, ainda encheu os pulmões com o aroma fresco dos lençóis lavados e imaculadamente alvos, sentiu o calor a anichar-se no seu corpo encolhido, respirou com tranquilidade, fechou os olhos e adormeceu num instante, o murmúrio longínquo dos canhões a ressoar como vagas a baterem lá longe, fustigando imaginários rochedos da costa, a furiosa tempestade transformada em distante e modorrenta maré que o embalava no seu agitado sono de soldado.

O oficial português foi acordado de manhã por uma criada que lhe trouxe leite, café, três tostas, um pouco de manteiga e uma compota, que devorou com avidez. Afiou a navalha e fez a barba com água fria, vestiu-se e saiu do quarto. A meio do corredor viu Marcel a transportar roupas de cama.

“Msieur, où est Joaquim? “

“Pardon.”

“Joaquim, le portugais. Onde está ele? “

“Ah”, compreendeu Marcel. Attendez, s'il vous plait. “

O mordomo pousou as roupas numa cadeira alta do corredor, deu meia-volta e apressou o passo, desaparecendo pela escadaria.

Afonso seguiu na mesma direcção, desceu as escadas e deu consigo no foyer. Agnès apareceu à porta do salão e encostou-se à aduela.

“Bonjour, Alphonse. “

“Bonjour, m dame. “

“Dormiu bem? “

“Magnificamente, merci”, disse, observando-a com curiosidade. Era de facto uma criatura bela, os olhos verdes ainda mais brilhantes à luz do dia. De noite parecia uma gata, tentadora e misteriosa, mas agora surgia-lhe como um anjo, um ar imaculadamente divino e gracioso. “Et vous? “

Agnès encolheu os ombros.

“Ça va. “

Afonso apreciou o seu jeito suave e doce, a beleza tranquila, o ar carinhoso e levemente triste. Admirou-a e sentiu-se interessado em conhecê-la melhor. Mas uma voz atrás de si, em português, desviou-lhe a atenção.

“Meu capitão! “

Era Joaquim, fazendo continência.


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“Vai buscar o carro”, ordenou o oficial.

“Está lá fora, meu capitão. “

Marcel abriu a porta e Afonso voltou-se para Agnès.

“Mdame, muito obrigado pela sua hospitalidade”, agradeceu, pegando na carteira e no billeting certificate que trazia guardado no bolso. “Ora, um oficial é um franco e um soldado são vinte cêntimos. Portanto, julgo dever-lhe um franco e vinte cêntimos. “ A baronesa aproximou-se um passo, ignorando as moedas que ele lhe estendia mas pegando no billeting certificate. Estudou o documento com curiosidade, era o certificado de aboletamento e estava assinado pelo maire e pelo comandante do batalhão e autenticado com o carimbo do CEP. Levantou os olhos do papel e fitou o capitão.

“Voltará esta noite? “

“Não, m'dame. “

“E porquê? “

“Parto hoje para as trincheiras. “

Agnès cerrou os lábios.

“Vai lá estar muito tempo? “

“Uma semana, m'dame. “

“Então seja nosso hóspede daqui a uma semana”, disse-lhe, devolvendo o billeting certificate.

Afonso hesitou um instante, sem saber como responder ao inesperado convite.

“Com muito gosto, m'dame, teria muito prazer em cá voltar”, disse, “mas tudo vai depender dos boches e do maire. “

“Você tenha cuidado e trate dos boches que eu tratarei do maire. “

“E o billet? “, quis ele saber, referindo-se ao boleto.

“Paga-me o billet para a semana. “

Os dois apertaram as mãos, ela com um sorriso sempre levemente desenhado nos lábios, desta vez era um rubor suave, de rosa-avermelhado, a encher-lhe a face de calor, o aroma floral de L'heure bleue a perfumar o ar com as suas essências frutadas.

“Você é realmente parecido com uma pessoa que conheci. “

“Espero que seja uma parecença agradável.”

Ela sorriu com tristeza.

“Je vous attends”, murmurou intensamente, evitando responder. Deu meia-volta para se retirar e, afastando-se, olhou de relance para trás, com um movimento gracioso e uma expressão afável. “Bonne chance! “


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