II
O cativeiro em Lille durou apenas alguns dias. Afonso foi colocado com três mil prisioneiros portugueses por detrás das portas de ferro do quartel do antigo regimento de couraceiros franceses, instalações militares encerradas na gigantesca Citadelle. Tratava-se de uma enorme fortificação em forma de estrela pentagonal, situada a noroeste de Lille e separada da cidade pelo rio Deúle e respectivos canais.
Foram dias duros, com os homens alimentados a pão, água e sopas aguadas.
Dormiam no chão e tiritavam de frio por falta de agasalhos. Os contactos com civis franceses eram proibidos, uma ordem de resto desnecessária devido ao isolamento em que se encontravam os prisioneiros. Mesmo assim, Afonso lobrigou um francês a prestar serviço na cantina e não tardou em meter conversa.
“Você é de Lille? “, perguntou-lhe na primeira oportunidade quando o homem lhe servia sopa, na fila do refeitório.
O francês olhou em redor, assustado.
“Shut, não posso falar com os prisioneiros. “
Afonso fixou-lhe os olhos.
“Conhece Paul Chevallier? Tem uma loja de vinhos na Vieille Bourse. “ O homem fitou-o com ar surpreendido. Para Afonso era evidente que o seu interlocutor conhecia o pai de Agnès. O francês recompôs-se e fingiu que verificava a sopa do português.
“Agora não”, murmurou muito baixo, falando apressadamente. “Escreva num papel o que quer e dê-mo amanhã, quando vier buscar a sopa “
Afonso passou a tarde à volta de uma folha, tentando redigir uma carta em francês.
Consultou amiúde um oficial português de origem francesa, pedindo-lhe para verificar palavras e rever frases. Procurava desse modo evitar erros ortográficos e incoerências gramaticais, como faltas de concordância e de género, num esforço para criar uma boa primeira impressão no destinatário, o pai de Agnès. Quando terminou de rever o texto, deu-se por satisfeito e passou a versão final para um papel limpo: Caro senhor Paul Chevallier,
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O meu nome é Afonso Brandão, capitão de infantaria do exército português em França, actualmente prisioneiro na Citadelle de Lille. Escrevo-lhe estas curtas linhas para lhe comunicar que conheci a sua filha Agnès em Armentières e ela contou-me que, com o inicio da guerra, deixou de ter contacto com a família.
Assim sendo, informo-o de que o seu marido Serge morreu em combate logo nas primeiras batalhas e ela foi viver para casa do barão Redier em Armentières.
Apaixonámo-nos e pedi-lhe a mão em casamento, tendo a felicidade de a ver aceitar a minha proposta. Ela agora é enfermeira num hospital de guerra português e encontra-se bem de saúde. Rogo-lhe que lhe comunique, se tiver oportunidade de a ver antes de eu a encontrar, que estou vivo e de saúde, tendo sido feito prisioneiro pelos alemães. Não sei qual o destino que me reserva o inimigo, mas garanta-lhe, por favor, que a procurarei logo que seja libertado.
Com os melhores cumprimentos,
Afonso Brandão.
Quando concluiu esta versão final, Afonso releu o texto, dobrou a folha e guardou-a no bolso. Ainda reconsiderou se valeria mesmo a pena omitir que Agnès se tinha casado e separado do barão Redier e que se encontrava grávida de um filho seu, mas receou que os padrões morais do seu futuro sogro fossem de tal modo estreitos que essa informação deitasse tudo a perder. Decidiu, por conseguinte, manter assim o texto. No dia seguinte, ao almoço, passou o papel discretamente para as mãos do francês das sopas, murmurando que o entregasse ao monsieur Chevallier.
O francês levou algum tempo a cumprir a missão. Alegou que não encontrava Paul Chevallier e que a sua loja de vinhos estava encerrada. As autoridades alemãs anunciaram entretanto que os portugueses iriam ser enviados para um campo de prisioneiros na Alemanha, e Afonso começou a temer que saísse de Lille antes de estabelecer contacto com o pai de Agnès. Mas, ao quarto dia, a resposta veio finalmente. O francês entregou-lhe um envelope por baixo da tijela da sopa e Afonso teve dificuldade em reprimir, durante a refeição, a vontade de ler imediatamente a carta que escondera dentro das calças. Engoliu apressadamente a sopa e o naco de pão e retirou-se para as camaratas, onde, encostado a uma parede, encetou o envelope:
Meu caro capitão Brandão,
Não sabe até que ponto fez de mim um homem feliz por ter recebido enfim noticias da minha pequena Agnès. Lamento a morte de Serge, parecia-me bom 430
rapaz mas, devo dizer, não o conheci bem. O que interessa, porém, é que a minha filha se encontre de saúde e feliz, como parece ser o caso.
A vida aqui em Lille, sob ocupação inimiga, tem sido muito difícil. A minha pobre Michelle faleceu há três anos, segundo os médicos vitima de pneumonia, mas na realidade vitima dos alemães. Os ocupantes começaram em 1914 a requisitar todos os bens das casas dos franceses. Levaram-nos mobílias, bicicletas, telefones e, o mais grave de tudo, até as camas. Tivemos de passar a dormir no chão. Houve também uma grande fome em 914 e 915. Debilitada e deitando-se todas as noites no frio soalho de pedra de nossa casa, a minha mulher não resistiu e desenvolveu uma pneumonia fatal. Restou-me a minha filha Claudette, mas, em 1916, os alemães deportaram-na de Lille, levando-a com muitas outras raparigas para trabalhos forçados no campo. Foram vinte e cinco mil pessoas de Lille, sobretudo mulheres e crianças, enviadas à força para a provincia para cultivarem a terra, partirem pedras, construirem pontes, fazerem sacos de terra e outros trabalhos de escravo. Felizmente, só durou cinco meses essa provação, e Claudette já se encontra de novo comigo.
Perdoe-me estas divagações de velho, mas elas têm um propósito. Conto-lhe todos estes pormenores sobre a nossa vida para o caso de ocorrer a circunstância contrária à que o senhor teme, isto é, encontrar-se o senhor primeiro com a minha filha. Asseguro-lhe porém, meu caro capitão, que, no caso de ser eu o primeiro a vê-la, lhe mostrarei sem falta a missiva que teve a amabilidade de me remeter e pode estar certo de que abençoarei o matrimónio que já acordaram, ciente de que o senhor a honrará e fará dela uma mulher feliz.
Deus o abençoe,
Paul Chevallier.
Dias depois, os guardas alemães mandaram os prisioneiros formar para serem transferidos para a Alemanha. Afonso e os seus companheiros saíram da Citadelle e atravessaram uma grande avenida, com o irónico nome de Boulevard de la Liberté, até chegarem à gare de mercadorias, no outro lado da cidade.
A viagem de comboio durou quatro dias e só terminou em Rastatt, uma pequena povoação na orla da Floresta Negra, na Baviera, onde os prisioneiros, esfaimados e doridos, foram encerrados num Russen Lager, ou campo russo. O campo tinha trinta hectares e estava dividido por blocos, cada um isolado por duas redes de arame farpado. O
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campo era inicialmente destinado a prisioneiros russos, mas, com a saída da Rússia da guerra no ano anterior, passou a albergar franceses, britânicos e portugueses.
Começou aí um calvário de vida de recluso. Afonso e outros oficiais foram submetidos a uma dura dieta de beterraba, cenoura, batata e farinha, por vezes com pedaços de carne ou farrapos de bacalhau. Os militares portugueses passavam as refeições a protestar contra a qualidade da alimentação, enquanto os oficiais britânicos se mantinham à mesa compostos e serenos.
Ao fim de poucos dias, Afonso foi transferido para a fortaleza de Friedrichfest, ainda em Rastatt, regressando mais tarde ao Russen Lager. Algumas semanas depois, os alemães levaram-no para Karlsruhe, fechando-o no Kriegs offizier gefangenenlager, um confortável campo de oficiais prisio-neiros situado num acolhedor parque da cidade e onde os portugueses se entretinham a admirar as atrevidas fraulein que se iam propositadamente bambolear frente aos reclusos estrangeiros. Houve mesmo um, o tenente Ribeiro, que fez amizade com uma alemã muito loira, a bochona, como lhe chamavam, não era esbelta mas parecia uma valente valquíria e caiu-lhe no goto, o namoro tornou-se tema de conversa entre os reclusos, era danado o Ribeiro! Não durou muito a permanência nesse cárcere paradisíaco, uma vez que o capitão recebeu nova ordem de transferência, desta feita para um miserável campo em Hannover, onde encontrou o comandante do seu batalhão, o major Montalvão, igualmente capturado na grande batalha.
Durante todo o tempo em que andou a saltar de campo de prisioneiros em campo de prisioneiros, Afonso procurou arranjar maneira de manter contactos com o exterior.
Escreveu à família através da Cruz Vermelha, mas teve maiores dificuldades em localizar Agnès, uma vez que não tinha memorizado a morada do anexo de Béthune. Optou por endereçar as cartas ao Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, sem nunca obter resposta. O
silêncio da francesa deixou-o perturbado e era permanente tema de preocupação. O capitão variava diariamente de estados de espírito, mergulhando em quieta melancolia ou consumindo-se em agitada inquietação, humores que alternava com esgotante frequência.
Os torpores melancólicos eram dominados por recordações pormenorizadas de todos os instantes que com ela passara e por emocionantes fantasias sobre o reencontro, mas os momentos de inquietação revelavam-se piores, interrogava-se então sobre a gravidez e a sua evolução e questionava-se doentiamente quanto aos motivos por detrás do silêncio às suas insistentes cartas. Poderá a correspondência ter-se extraviado? Terá Agnès abandonado o hospital? Será que ela já o esquecera? Emergia esgotado desses instantes de maior angústia, compensando-os com outros momentos onde alimentava a certeza de que estava tudo bem, tentava consolar-se, tranquilizar-se, convencia-se de que, afinal de contas, 432
as sucessivas transferências de campos de prisioneiros certamente dificultavam as coisas à Cruz Vermelha, impediam que os serviços fizessem chegar às suas mãos as ansiadas cartas de resposta.
Na companhia de Montalvão, Afonso mudou-se meses mais tarde para o campo de Breensen, em Mecklemburg, o último destino dos permanentes pas-seios pelo interior da Alemanha. Passou ali o mês de Outubro numa monótona existência, apenas animada por uma divertida representação de uma peça de teatro, encenada em três actos pelo tenente-coronel Malheiro, com o título de O Amor na Base do CEP. A acção decorria nas praias de Tréport e Paris-Plage, em França, facto que o capitão achou significativo. Na verdade, a escolha dessas estâncias de veraneio para o local da acção era bem representativa da forma como alguns oficiais encaravam os seus deveres na guerra, aquela era mesmo uma história de cachapins e palmípedes, oficiais da retaguarda habituados ao ócio e à vida au grand air na prazenteira costa francesa. Afonso conhecia alguns que até se gabavam de serem pagos para irem gozar a praia, beneficiando de um absurdo sistema de subvenções que premiava o desleixo. Enquanto um capitão que arriscava a vida nas trincheiras se limitava a ganhar a subvenção de campanha, aqueles que iam passear pelas grandes estâncias de veraneio beneficiavam de um subsídio extra de vinte francos diários para pagarem alimentação e casa e mais uns valentes trocos para o combustível.
Embora a peça lhe tenha devolvido inadvertidamente à memória alguns dos aspectos mais caricatos e lamentáveis da organização do CEP, a verdade é que a representação teatral teve o condão de, mesmo que por apenas um breve instante, lhe permitir desligar-se das suas preocupações obsessivas. Aquele tornou-se indubitavelmente um acontecimento no campo de prisioneiros, por sinal até bem divertido, sobretudo porque as várias personagens femininas eram, como não podia deixar de ser, interpretadas por oficiais. Foi de rir até às lágrimas ver o capitão Grilo, com o seu bigode farfalhudo e os braços gordos e peludos, a personificar uma jovem actriz parisiense, supostamente esbelta e deslumbrante, e a fazer arrebatadas declarações de amor ao enfezado tenente Santos. Só faltou os dois oficiais beijarem- se nos lábios para que a excitada plateia deitasse abaixo o barracão.
A representação não passou, porém, de uma fugaz distracção para Afonso, sempre com a mente voltada para a gravidez de Agnès. Pelas contas que os médicos tinham feito, o parto deveria ocorrer por esta altura e o capitão deses-perava por não poder estar presente.
Havia momentos em que a ansiedade o sufocava, apetecia-lhe fugir, passar pelo portão a correr, saltar as vedações, tinha sede de liberdade e fome de amor, faltava-lhe o ar naquela prisão, queria sair dali a todo o custo, a guerra não havia meio de terminar.
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Este estado de espírito só veio a ser alterado numa manhã cinzenta de Novembro.
Afonso acordou cedo, como todos os prisioneiros, vestiu-se e saiu do barracão, enfrentando o frio cortante e agreste da alvorada para se dirigir às latrinas. Quando passava perto do portão reparou que os guardas alemães do campo de Breensen estavam todos agarrados a jornais, o ar circunspecto, sombrio, trocando comentários em murmúrios secretivos. Já na véspera tinha notado que o ambiente era estranho entre os carcereiros, mas não atribuíra grande importância a esse facto. Agora, porém, o comportamento dos guardas tornara-se mais pesado e parecia ter os jornais como epicentro. Cheio de curiosidade, Afonso aproximou-se do grupo, formado por quatro soldados.
“Hallo“, cumprimentou. “ Jie geht “
Um soldado respondeu com um grunhido maldisposto, os outros mantiveram-se calados, ignorando-o, os olhos sempre fixos no jornal, perdidos nas notícias da frente.
Estranhando aquela postura, Afonso baixou a cabeça, espreitou a primeira página e sentiu um baque no coração. O jornal, datado desse dia, 12 de Novembro de 1918, anunciava que a guerra tinha acabado na véspera. Os aliados venceram.
Apesar do armistício, Afonso permaneceu mais dois meses no cativeiro. Foi libertado em Janeiro, em pleno Inverno, o corpo debilitado pelo frio e pela malnutrição. Apanhou um comboio para França, planeando ir à procura de Agnès, mas não tinha dinheiro e encontrava-se febril e enfraquecido. Percebeu que não estava em condições de ir no encalço da sua francesa e deixou-se levar até Brest com outros companheiros que com ele vieram desde Breensen.
No dia 25 apanhou o paquete Gil Ennes no grande porto francês e rumou a Portugal, o navio repleto de ex-prisioneiros e doentes, a maior parte tuberculosos. O
capitão procurou entre os tuberculosos aqueles que estiveram internados no Hospital Misto de Medicina e Cirurgia e depressa encontrou quem se lembrasse de Agnès.
“Er'uma gaja muita boa, nã era? “, disse um dos tuberculosos, por entre dois ataques de tosse. Falava de modo trapalhão, como Vicente, uma espécie de Manápulas com cerrado sotaque algarvio. “Alembro-me dela, pois m'alembro. Atão nã havia de m'alembrar? Aquil'é qu'era uma mulher, camano, nã era com'uns estafermos ordinarões que p'ra lá andavam, umas gajas qu'até bigode tinham naquelas bêças. “
“O que lhe aconteceu?”
“À francesa? Depois do 9 de Abril andava muita tristonha, tadinha!“ Tossiu. “A gaja tava prenha, acho qu'o homem er'um português que se finou durant'a batalha“ Mais tosse.
“Andava desconsolada, a pobrezita. Ao fim d'algum tempo meteu baixa e nunca mais lhe pusemos os olhos em cima.“ Ainda mais tosse. “Foi uma pena, aquela moça até 434
ressuscitava um morto, cara-ças, er'um'alegria vê- la passar pel'enfermaria a abanar aquela pêda gostosa.“
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