III
A ponte foi colocada com firmeza, estabelecendo a ligação entre o Gil Ennes e o cais do porto de Lisboa. O oficial que comandava a operação coçou a barba rala enquanto observava os homens a assegurarem- se de que a ponte estava transitável. Quando as verificações ficaram concluídas e a atracagem completa, voltou-se para a legião de militares miseráveis e esfarrapados que observavam terra com incontida e faminta ânsia.
“Muito bem”, berrou. “Primeiro descem os oficiais, depois as praças e, no fim, saem os acamados. Quero um desembarque ordeiro e sem confusões. “ Fez um gesto para um sargento colocado junto à ponte. “Vamos lá. “
Os oficiais dirigiram-se para a ponte e atravessaram-na. Afonso aguardou a sua vez na fila, paciente, os olhos perdidos no horizonte entrecortado pelos familiares telhados vermelhos de Lisboa, a baça cor de tijolo a espraiar-se sob o azul-pálido do céu invernal. A sua atenção deambulou distraidamente em redor, fixou-se nas gaivotas que grasnavam em irrequietas nuvens, melancólicas, iam e vinham como ondas a cortarem o ar, por vezes rasavam as águas cristalinas do Tejo e perdiam-se nas cintilações de luz reflectida na crista da espuma, o aroma salgado do mar, no seu encontro amoroso com o rio, a encher-lhe as narinas e a trazer- lhe aos pulmões o esquecido perfume da sua terra, a maresia fresca e revigorante que flutuava na brisa baixa.
O capitão atravessou finalmente a ponte, pisou o chão do cais e verificou, surpreendido, que a fila dos oficiais se mantinha.
“Ó meu major, que bicha é esta?“, perguntou a Montalvão três lugares mais à frente.
“É para a Comissão Protectora dos Prisioneiros de Guerra.“ “Ah sim? Já temos comissão protectora? E ela protege-nos de quê?”
“Deve ser dos boches”, riu-se Montalvão.
À medida que a fila avançava, Afonso apercebeu-se de que, instaladas por detrás de uma mesa, umas senhoras de meia-idade iam entregando aos oficiais uns papéis pequenos.
Quando chegou a sua vez, uma das mulheres também lhe deu uma mão-cheia dos papéis.
“ O que é isto, minha senhora?”
“São senhas, senhor oficial” “Senhas? Senhas para quê? “
“Correspondem a donativos de vestuário e dinheiro. Com essas senhas, o senhor oficial pode adquirir os produtos de que necessita.
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Afonso guardou as senhas no bolso e seguiu o grupo de oficiais. Aglomeravam-se todos à volta de uma outra mesa instalada no cais, discutindo animadamente, alguns mostravam-se agastados e erguiam a voz, outros abriam os braços em desconsolo resig nado. O capitão estranhou o burburinho e foi ter com Montalvão.
“Meu comandante, o que se passa? “
O major encolheu os ombros.
“Não sei bem”, disse, hesitante. “Parece que há um problema qualquer e não podemos ir para Braga “
“Não podemos ir para Braga? Porquê? “
“Não sei, não sei, não percebi. “
Afonso furou por entre o grupo e foi ter com um tenente que se encontrava sentado na mesa. Era um rapaz jovem, de bigode fino e com um tique na boca. O tenente tomava nota dos nomes dos recém- chegados.
“Ó tenente, o que se passa? “
O tenente nem levantou os olhos.
“Vocês vão ter de ficar aquartelados aqui em Lisboa”, disse, atarefado, sem parar de escrever “Ponha-se na bicha, se faz favor”
Afonso olhou com intensidade para aquele rapazola acabado de sair da Escola de Guerra, deu consigo a pensar que o miúdo nunca tinha escutado um tiro disparado em fúria, evidentemente nem sabia quão desesperada era a angústia que atormentava os homens diante de si, ignorava por certo aquela dolorosa e pungente ânsia de quem sofre pelo reencontro com as famílias, permanecia friamente alheio à fome de afecto e à sede de conforto que lhes assaltava o corpo e inquietava a alma. Em vez de os respeitar, o jovem tenente comportava-se até como se estivesse a fazer-lhes um favor, gastando a sua preciosa atenção com um bando de maltrapilhos malcheirosos. O capitão sentiu uma fúria cega, poderosa e libertadora, crescer-lhe no estômago, encher-lhe o peito, subir-lhe à cabeça e tomar conta de si.
“Tenente”, berrou de súbito, com voz de comando. “Em sentido perante o seu superior! “
O tenente estremeceu de susto, olhou alarmado para Afonso, ergueu- se atrapalhadamente da cadeira e pôs-se muito hirto, em sentido. Fez-se silêncio em redor.
“Mas que merda vem a ser esta? “, insistiu Afonso em tom ameaçador. “Então não se faz continência ao superior hierárquico?”
“Sim, meu capitão”, disse finalmente o tenente, lívido, erguendo a mão em continência.
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Afonso mirou-o de alto a baixo, inspeccionando-o. Apontou para os pés.
“Isto são botas que se apresentem? Hã? Isto são botas que se apresentem?” O tenente mirou de relance as botas.
“Meu capitão... uh... as minhas desculpas”, gaguejou, sem perceber o que havia de errado com as botas.
“Quando eu acabar de tratar de si, quero essas botas a brilharem como a baioneta de um boche, ouviu? Como a baioneta de um boche! “
“Sim, meu capitão. “
Afonso estava rubro. Respirou fundo e acalmou-se, subitamente surpreen-dido com a sua própria fúria, mais ainda por ter dito um palavrão, desde os tempos do seminário que era incapaz de dizer “merda”
“Agora conte-nos lá por que razão a malta tem de ficar aquartelada aqui em Lisboa”, ordenou o capitão, num tom de voz mais tranquilo.
Um clamor de aprovação ergueu-se do grupo de oficiais. O miúdo fora posto na ordem e tinha agora de responder à questão que todos queriam ver esclarecida.
“São... são ordens do general Figueiredo, meu capitão.“ “E quem é esse caramelo? “
“É o meu comandante, meu capitão “
“O general Paneleiredo, ou lá como é que esse tipo se chama, não sabe que a malta das trincheiras não vê a família há mais de um ano? Hã? Não sabe? “ O tenente baixou os olhos.
“Eu... uh... eu cá não sei nada disso, meu capitão “ Afonso ficou a observá-lo, as sobrancelhas cerradas, o ar desconfiado, intimamente perplexo por ter esboçado um segundo palavrão, Paneleiredo era algo que nunca pensou ser capaz de chamar a um superior hierárquico.
“E você? “, perguntou finalmente. “Sabe ao menos por que razão não podemos ir para Braga? “
“É por causa da revolta, meu capitão. “
“Da revolta? Qual revolta? “ “A do Norte, meu capitão “
“A revolta do Norte? Mas você ensandeceu? Que revolta é essa, hã? Explique lá, homem! Vamos, desembuche! “
O tenente transpirava. Olhou em redor, deixando escapar um esgar aflito.
“Foram os monárquicos, meu capitão”, titubeou. “Revoltaram-se há uns dez dias. A Junta Militar do Norte proclamou a monarquia no Porto e aclamou D. Manuel II como rei de Por4tugal. Aqui em Lisboa também se revoltaram, os monárquicos acamparam ali em 438
Monsanto e houve porrada da grossa na semana passada, mas os republicanos acabaram por vencê-los.
O tenente calou-se e os oficiais entreolharam-se, espantados.
“Sim senhor, isto está bonito”, comentou um major.
“Chegámos à balbúrdia, é o que é. “
“É a treta do costume”, avançou outro oficial.
“Sempre a mesma merda. “
“E o Sidónio, hã? Não faz nada? “, inquiriu Montalvão.
O tenente mirou-o com um olhar estupidificado.
“O presidente da República morreu. “
Fez-se silêncio no grupo.
“ O que diz você “, perguntou uma voz. “ O Sidónio morreu?”
“Foi assassinado na estação do Rossio”, esclareceu o tenente.
“Aí há coisa de mês e meio, antes do Natal. “
Com o país em pé de guerra e o Norte em rebelião, os militares minhotos foram instalados num quartel de Lisboa, aguardando o desenlace dos acontecimentos. Mas Afonso não era minhoto e tinha a família em Rio Maior, do lado de cá da fronteira invisível que, durante os tormentosos vinte e cinco dias que durou a Monarquia do Norte, dividia o país. Sem nada a prendê-lo à capital, o capitão apresentou-se no quartel-general, preencheu os documentos que regularizavam a sua situação, solicitou uma licença, que lhe foi imediatamente concedida, e dois dias depois, já bem dormido e comido, dirigiu-se à estação do Rossio. Corriam os primeiros dias de Fevereiro de 1919quando apanhou um comboio até às Caldas da Rainha e seguiu de caleche para Rio Maior, mal contendo a ansiedade que lhe enchia o peito.
O reencontro com a família foi emotivo e triste. Afonso soube então que o pai tinha morrido no ano anterior, na sequência de uma queda enquanto apanhava frutos numa árvore. O capitão foi nesse dia ao cemitério visitar a campa onde ele se encontrava sepultado. Depositou uma coroa de flores junto ao túmulo, rezou num murmúrio e encomendou uma missa em memória de Rafael Laureano.
À noite, a família juntou-se na Carrachana para o jantar, vieram os irmãos, Manuel, Jesuína, João e Joaquim, mais as respectivas famílias, todos reunidos para celebrarem o regresso do mais novo. A senhora Mariana colocou na mesa uma panela de misturadas e Afonso engoliu a sua dose com um prazer que o surpreendeu, não se lembrava de ter apreciado tanto aquele prato na sua meninice.
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“Isto está muito bom, mãe, está mesmo saboroso”, exclamou, acompa-nhando a sopa com o pão.
“Então não havia de estar bom?“, riu-se Manuel, o mais velho. “Para quem andava a comer aquelas porcarias todas na França e na Alemanha, isto deve ser um manjar de reis. “
“Diz lá se a nossa paparoca não é melhor do que a dos estrangeiros, hã? Diz lá”, desafiou-o Jesuína.
“Então não é?“, concordou Afonso. “Onde é que lá os franceses têm panela de misturadas?“
“O que é que eles comem, filho?“, quis saber Mariana. “Bem, comem mais ou menos o que nós comemos, só que confeccionado de maneira diferente e com nomes finos. Por exemplo, em vez de linguado frito, eles dizem linguado a la meunière, fica mais chic”
“E tu comias isso, meu filho? “
“Às vezes, quando ia aos estaminets ou aos bistrôts.“ “Ai que nomes esquisitos!“, comentou Jesuína. “Jesus, credo!
Até me faz espécie! “
“Ó Jesuína, tem juízo”, atalhou Joaquim. “Então que nomes querias que os franciús dessem às suas casas de pasto, hã? Tasca do Zé Russo, não? “ Deu uma grande gargalhada.
“Havia de ser bonito, os franciús a dizerem uns aos outros: olha lá, vou ali à Tasca do Zé Russo aviar umas febras! “
Riram-se todos. Manuel sabia ter graça quando se juntavam em grupo. Assumindo-se agora como o chefe da família, ou não fosse ele o homem mais velho depois da morte do pai, gostava de animar as reuniões familiares.
“Ó Manel, não é nada disso”, retorquiu Jesuína, vexada por ser alvo da chacota do irmão. “Estava só admirada por o Afonso saber as palavras estran-geiras, só isso. “
“Mas, ó Afonso, então tinhas de comer essas coisas dos franceses, era? “, insistiu a mãe, sempre preocupada com a alimentação que o filho teve na guerra, afinal de contas, constatou, o rapaz veio magro que nem um carapau, até as costelas se lhe viam, coitadinho, decididamente a comida não devia ser lá grande coisa.
Sim, mãe, também comia isso, mas só enquanto estava na retaguarda. Quando ia para as trincheiras, davam-nos uma carne que vinha em latas inglesas, e isso era bem pior do que a alimentação francesa, acredite. E, depois de ser preso pelos boches, a coisa ainda piorou, os tipos quase nem tinham carne para os seus soldados, quanto mais para nós. “
“Ah sim, filho? E o que é que esses comem? “
“Quem? Os bifes ou os boches? “
“Os dois. “
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“Como é bom de ver, os bifes comem bifes”, disse. “Os boches enchem-se de salsichas, aquilo é uma coisa horrorosa, cheia de gordura, mas foi a única carne que para lá vi. Tudo o resto eram vegetais, batatas e coisas do género. “
“Nenhum faz as comezainas da tua rica mãezinha, pois não? “ “Oh, mãe, claro que não. “
“Não há paparoca como a da nossa mãezinha”, concordou Manuel, sempre bem-disposto e já ligeiramente tocado pelo vinho. Olhou para a mulher e acrescentou: “A nossa mãezinha e aqui a minha Aurinda, pois claro “
“Ah, estava a ver!“, devolveu a mulher.
Afonso olhou em redor, como se procurasse alguma coisa. Desde que chegara a casa que queria saber se Agnès lhe tinha escrito, essa era uma questão absolutamente essencial, prioritária. Precisava de conhecer o seu paradeiro, receber notícias, entrar em contacto com ela, arranjar maneira de ir à Flandres para a ir buscar ou para lá ficar. Além do mais, e pelas suas contas, já deveria ser pai havia uns dois ou três meses, mas necessitava da confirmação. O problema era levantar a questão, não sabia bem como o fazer. Engoliu em seco e encarou a senhora Mariana, esforçando-se por dar o ar mais natural possível à pergunta que tinha para lhe colocar.
“Ó mãe, já agora, não recebeu nenhum correio para mim, pois não? “, perguntou, fingindo que essa ideia acabara de lhe ocorrer.
“Correio donde, filho? “
“Sei lá. De França, por exemplo.“
“De França?”
A senhora Mariana mostrava-se genuinamente surpreendida e Afonso, acossado pela impaciência e vergado pela ansiedade, não resistiu e foi direito ao assunto.
“Sabe, mãe, estou à espera de uma carta de uma senhora francesa. “ Foi a risada geral, para grande embaraço de Afonso, imediatamente arrependido por ter levantado a questão à frente de todos. A mãe sorriu e piscou-lhe o olho.
“Com que então o meu menino tem amiguinhas francesas, é? “ Afonso corou.
“Oh mãe, não é nada do que está para aí a pensar...” “Ah, grande Afonso!“, rugiu Manuel do outro lado da mesa. “Bem me parecia que ias honrar o nome dos machos da família, caraças! É d'homem! Aposto que as francesas te vieram todas comer à mão, hã?
Rica vida deves ter tido lá na França, sim senhor!“
“Cala-te, Manel!“, ordenou a mulher, a tesa Aurinda. “Já chega de brincadeiras, deixa lá o rapaz.“
Mas foi Mariana quem não o largou.
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“Então e a Carolina, hã? Já não queres saber dela?“ “Mas o que é que eu tenho a ver com a Carolina, mãe? Ela está casada e que seja muito feliz.”
“Está casada, não. Está viúva.“
“Viúva? O que é que aconteceu ao marido?“
“Apanhou o tifo. Houve para aí uma epidemia desgraçada no ano passa-do, em Março, e o senhor engenheiro bateu a bota. “
“Coitado. “
“Coitado, não! Não se tivesse metido com a Carolina, que era tua. Olha, ela se calhar até ficou melhor! “ Olhou-o com matreirice. “Assim como assim, está agora sem homem”
“Vai-te a ela!“, berrou Manuel, os bigodes a pingarem gotas de tinto.
“Cala-te, Manel”, insistiu Aurinda.
A paciência de Afonso chegara ao limite.
“Chega, parem com isso”, exclamou, a voz irritada. “Deixem-me em paz! “
“Pronto, pronto, não te enerves. “
Afonso respirou fundo. Tinha levantado a questão e iria agora até ao fim.
“Ó mãe, diga lá, recebeu ou não recebeu nada para mim? “ “ De França?”
“Sim. “
Mariana esboçou um trejeito de boca enquanto vasculhava a memória.
“Não... não... hã, espera... lembro-me de que o Inácio apareceu aí... “
“O Inácio?“
“Sim, o carteiro. Agora, que falas nisso, lembro-me de que ele apareceu aí com uma carta para ti. Como não tínhamos notícias tuas, eu mandei o teu irmão ler a carta”, disse, apontando para Joaquim.
Afonso interrogou o irmão com os olhos, mas este encolheu os ombros.
“Ó Afonso, eu abri a carta, lá isso abri, mas não percebi patavina do que estava para lá escrito, era em estrangeiro.“
“Francês? “
“Sei lá. Até podia ser em chinês. Não se percebia nada, eram uns gata-funhos horrorosos.“
“E o que fizeram com a carta?”
“Olha, filho”, atalhou a senhora Mariana. “Como nós não entendíamos aquela algaraviada toda, fui levar a carta à dona Isilda, que é muito culta e conhece as chinesices todas. Ela leu-a e disse-me para estar descansada, não era nada de importante.“
“A dona Isilda leu a carta? “
“Sim, Afonso, ela leu e.“
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Afonso ergueu-se da mesa, interrompendo-a.
“Desculpe, mãe, mas é imperativo que eu saiba o que dizia essa carta. Quando é que a recebeu? “
“Sei lá, foi... foi antes do Natal, mesmo antes. “
“Em Dezembro? “
“Sim, filho. “
Afonso vestiu um casaco e dirigiu-se apressadamente à porta. “Mas, ó filho, acaba o jantar. Onde vais tu, valha-me Deus?“ “Vou ali à dona Isilda”, despediu-se. “Já volto.“ O capitão seguiu a pé da Carrachana até ao centro de Rio Maior. A Casa Pereira encontrava-se encerrada, já era noite, mas Afonso sabia que a proprie-tária vivia no andar de cima e bateu à porta. Ouviu passos e a porta abriu-se. Carolina fitava-o com ar surpreendido, estupefacto até.
“Olá, Carolina, como vai isso? “
Estava mais madura, o cabelo num desalinho, embora permanecesse atraente.
Continuava a não ser uma beldade, mas não há dúvida de que era capaz de despertar as atenções dos homens.
“Afonso... que surpresa! O que estás aqui a fazer?“ “Vim falar com a tua mãe. Ela está? “
Os olhos de Carolina mostraram uma ligeira decepção, ocultando com dificuldade a desilusão por Afonso ter vindo à procura da mãe, não de si.
“Sim, sim, entra, disse ela, abrindo totalmente a porta. Desculpa receber-te assim, nestes preparos, mas, sinceramente, não estava nada à espera “ Subiram as escadas e Carolina levou-o à presença da mãe. Dona Isilda pareceu-lhe bem mais velha, acabada, o corpo franzino enroscado numa manta junto à lareira. Os olhos brilharam- lhe quando viu o seu antigo protegido entrar na sala, garboso naquela farda azul de militar.
“Olha quem é ele!“, exclamou. “O nosso herói” Afonso beijou-lhe a mão. “Como está, dona Isilda? “
“Melhor”, sorriu ela. “Melhor, agora que te vejo. Estás um homem, rapaz, um homem. “
“E a senhora continua rija... “
“Não digas disparates, Afonso. A idade não perdoa.“
“Como vai o seu irmão? “
“Bem, ele vai bem. Foi transferido para Chaves, vê lá tu, mas anda fino. E pergunta muitas vezes por ti, oh se pergunta! “
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“Mande-lhe cumprimentos meus, dona Isilda. Diga-lhe que tenho sauda-des dele. “
“Serão entregues. Vai ficar contente por te saber de regresso da guerra. Coisa terrível, a guerra, hã? Terrível!”
Afonso suspirou.
“Sim, é algo inimaginável”. Fez uma pausa. “A propósito, fiz muitas amizades lá em França, e a minha mãe disse-me ter recebido uma carta para mim escrita numa língua que ela não identificou, que presumo ser francês, e que a trouxe aqui para a senhora ler. Tem aí essa carta? “
Dona Isilda agitou-se na cadeira, desconfortável. O rosto ensombrou-se-lhe e olhou de soslaio para Carolina, que assistia à conversa de pé.
“Carolina, minha filha, vai ali preparar uma tisana para a mãe e para o Afonso, vais?” Carolina ensaiou uma vénia e retirou-se para a cozinha. Mal a filha abandonou a sala, dona Isilda fez sinal a Afonso para se sentar e pegou- lhe na mão.
“Meu filho, tens de ser forte”, disse simplesmente. Afonso olhou-a com horror, um pavoroso pressentimento a pesar-lhe na alma.
“ O que foi, dona Isilda?” “Eu queimei essa carta. “
“Queimou a carta? Mas a que propósito? “
“Queimei a carta porque ela era terrível, Afonso, terrível. “ O capitão sentiu um baque no coração.
“O que é que a senhora quer dizer com isso? O que é que dizia a carta?” A velha baixou os olhos e suspirou.
“Não me lembro dos pormenores, só do essencial. A carta foi remetida de Lille e era assinada por um senhor”
“Um homem?”
“Sim, um homem. “
Só podia ser Paul Chevallier, pensou Afonso.
“E o que dizia ele? “
Dona Isilda apertou-lhe a mão ainda com mais força. “Dizia que a filha tinha morrido. “
Afonso abriu a boca, horrorizado. Não queria acreditar no que estava a ouvir.
“Qual... qual filha?“, balbuciou.
“Lembro-me de que se chamava Agnès”, disse dona Isilda. “Ela morreu. Ela e... a criança. Entendes? A criança. Apanharam a gripe espanhola e morre-ram em Lille “ Afonso permaneceu um longo minuto paralisado, boquiaberto, em estado de choque.
Tentou falar, mas nada conseguiu dizer. Lembrou-se da última imagem que guardava de 444
Agnès, a francesa no portão do hospital, sorridente, os olhos enamorados, despedindo-se de si com ar feliz, alegre com a notícia de que Afonso iria em breve abandonar as trincheiras. O capitão levantou-se com brusquidão e arrastou-se pela sala, sentiu-se a perder o equilíbrio, ouviu vagas vozes em torno de si, eram dona Isilda e Carolina a falar, mas não as entendeu, cambaleou pelas escadas aos sucessivos encontrões ao corrimão, julgou-se mergulhado num pesadelo mau, caminhou como um sonâmbulo e, quando finalmente saiu à rua, a noite ficou turva de lágrimas e ele chorou, chorou como nunca tinha chorado desde a infância, chorou com abandono, com desespero, chorou perdidamente, a voz largando urros terríveis, em atroz sofrimento. Sentiu-se perdido, rejeitado pela sorte, acossado pelo destino. Descobriu-se horrivelmente só.
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