IV

Afonso estava sentado numa banqueta de Picantin Post, a fumar um cigarro, quando ouviu uma buzina Strombo a dar o alerta de gás tóxico. O alarme soava mesmo ao lado, ferindo-lhe os ouvidos. Sobressaltado, o capitão olhou em direcção à origem do som e descobriu, com estupefacção, que era Agnès quem accionava a Strombo. Deu um salto na banqueta, confuso. Receava acreditar nos seus olhos. Mas, no instante seguinte, as dúvidas desfizeram-se, era mesmo ela, sentiu um banho de felicidade a encher-lhe a alma e uma libertadora sensação de euforia a percorrer-lhe o corpo. Correu para ela, imensamente aliviado por vê-la viva, a tremenda alegria que o invadia a relegar para segundo plano a estranheza por encontrá-la ali nas trincheiras. Mas, quando se aproximava da sua francesa, preparando-se para a apertar num maravilhoso abraço de reencontro, viu o vulto cinzento de um alemão a aparecer sobre as trincheiras, mesmo por detrás de Agnès. Sacou da pistola e abateu-o. Logo um outro alemão surgiu também, e um outro ainda, e mais outro.

Puxando Agnès para trás de si, foi-os abatendo um a um. Mas eles não paravam de chegar, pareciam um formigueiro, avançavam inexoravelmente e tentavam cercá-los. Afonso começou a desesperar, a sentir que não conseguiria travar aquela inesgotável onda de assalto. Protegia Agnès com o corpo e abria fogo sem descanso para a direita e para a esquerda, febrilmente, matava-os uns atrás dos outros e eles, mesmo assim, avançavam, eram tantos que o oficial português entrou em pânico, tentou abraçar Agnès e disparar ao mesmo tempo, sentiu que a queriam levar, que lha tentavam roubar, que a procuravam matar, isso não podia ser, isso não podia ele permitir, nem pensar, nem pensar, uma imensa aflição encheu-lhe a alma, um indizível terror apossou-se-lhe do coração ante a perspectiva de a voltar a perder. Pôs-se a chorar, implorando à divina Providência para que a poupasse, para que a deixasse ficar com ele, Agnès era agora um frágil vulto atrás de si, ambos cercados por alemães que avançavam ameaçadoramente, ela debilmente protegida por um desesperado Afonso.

“O que é, filho? “

Afonso deu consigo sentado na cama, a gritar e a chorar, um nó na garganta, a mãe à porta a olhá-lo com alarme. Sentiu gotas de suor na testa, estava ofegante e tinha lágrimas nos olhos. Olhou em redor, momentaneamente confuso, aparvalhado, mas acabou por perceber. Suspirou.


446


“Não é nada, mãe. Foi um pesadelo. “

A senhora Mariana levou a mão ao peito.

“Ai que susto que me pregaste, Afonso. Gritavas que era uma coisa aflitiva, valha-me Deus. “

“Foi só um pesadelo. “

“É mais um esta semana, filho. Vê lá se sonhas com coisas mais alegres, ouviste? “

“Sim, mãe. Boa noite. “

“Boa noite, filho. Descansa, vá. “

Afonso fechou os olhos, recostou-se na cama e tentou acalmar-se. Desde que soubera da morte de Agnès que aquele tipo de pesadelo lhe aparecera, era sempre diferente e, no entanto, sempre o mesmo, tão repetitivo no tema que se tornara recorrente.

Lembrou-se das conversas com a namorada sobre Freud e a importância dos sonhos e pôs-se a imaginar o que Agnès lhe diria sobre aquele pesadelo em particular. Talvez que ele ocultava um desejo e um sentimento de culpa, o desejo de a ver viva e os remorsos por não ter sabido protegê-la da morte, por não ter estado com ela no momento da doença, quem sabe se a sua presença não teria sido crucial para impedir o desenlace trágico. A mente de Afonso era assaltada por mundos alternativos, por hipóteses diferentes, a palavra “se” atormentava-o a todo o instante. Se ao menos eu tivesse feito algo diferente, pensava. Se eu não lhe tivesse arranjado aquele lugar no hospital, ou se eu tivesse ficado com ela no dia em que a fui ver ao hospital pela última vez, ou se eu tivesse fugido dos campos alemães, ou ainda se eu tivesse feito algo diferente, algo que alterasse o encadear dos acontecimentos, então talvez ela ainda vivesse. Eram tantos os “ses”, tantos os pequenos nadas que não foram alterados, tantas as minúsculas pedrinhas que provocaram aquela dolorosa avalancha. A culpa consumia-o, cruel e implacável, obsessiva e incansável.

O capitão permaneceu dois meses fechado em casa da mãe, na Carra-chana.

Encerrou-se no quarto com os seus demónios, atormentado pelos fantasmas que lhe assombravam a alma. Carolina foi vê-lo várias vezes nas duas primeiras semanas. A partir da terceira semana passou a visitá-lo todos os dias. De início ela falava e ele permanecia calado, em silêncio, deprimido, mergulhado nas suas memórias e nos seus planos destroçados, por vezes com ataques de ansiedade ou acessos de culpa. Tinha insónias e receava permanecer acordado, era atormentado por pesadelos e temia mergulhar no sono.

Não comia, sentia-se fraco e sem energia, a boca secava-se-lhe e a cabeça doía-lhe, deixara de se lavar, de se barbear ou de mudar de roupa. Mostrava-se apático, metido consigo, calado, solitário, não passavam cinco minutos em que não pensasse em Agnès, em que não sentisse dó da sua desgraça. Os sonhos e os pensamentos concentravam-se obcecadamente 447


no mesmo tema, como se tentasse reorganizar o passado, como se procurasse um desenlace diferente, mais feliz. Custava-lhe aceitar a realidade, alimentava por vezes a secreta esperança de receber uma carta que tudo desmentisse, acordava de manhã com a fugaz ilusão de que tudo não passara de um pesadelo, mas era apenas por um breve instante de traiçoeira fantasia. Depressa caía em si e percebia que o guião já estava escrito, não era possível mudar o passado, o que fora feito ficara feito, aquela era uma estrada já percorrida e sem retorno, uma ópera triste que já fora cantada. Pequenas coisas, palavras, sons, melodias, aromas, minúsculos nadas, lembravam-lhe Agnès. Doía-lhe a forma abrupta como tudo acontecera, a impossibilidade de se despedir. Agonizava sobre os instantes que precederam o falecimento, interrogava-se se ela sofrera, se estaria assustada, se se apercebera da morte a acercar-se, insidiosa e inexorável como uma terrível tempestade que se abate sobre a terra. Nesses instantes tornava-se ainda mais sombrio, deprimido, sorumbático, sentia-se vazio e fechava-se em si, mergulhava nas trevas de um abismo sem fundo.

A dada altura, porém, começou a reagir. Depois do choque inicial e dos primeiros meses de depressão, dias cuja existência não passava agora de um obscuro borrão na sua memória, despertou da letargia. Lembrou-se das palavras de Agnès sobre o efeito terapêutico da compreensão dos traumas e da verbali zação dos sentimentos e sentiu uma inesperada energia, ligeira mas firme, a tomar conta de si. Ajudado pela memória da francesa e por tudo o que ela lhe ensinara a respeito da mente e das suas dores, começou gradualmente a tentar resolver aquele sofrimento que o paralisava. O primeiro passo foi dado quando se pôs a escutar Carolina, sobretudo quando ela lhe falava no trauma da morte do marido. Compreendiam-se bem, tinham passado pelo mesmo, perderam o outro e custava-lhes encarar a realidade. Num certo sentido, eram almas gémeas, irmãos na mesma dor.

Afonso foi-se abrindo lentamente. De ouvinte passivo passou a narrador activo, de início titubeante, era difícil transformar os sentimentos em palavras, a dor era inefável, inexprimível. Mas, com o tempo, o capitão tornou-se mais fluido, mais articulado, emergiu a par e passo do abismo onde tinha mergulhado. Sentado na cama ou encostado à janela, reviveu dolorosamente o passado, passou os sentimentos a palavras, falou-lhe de Agnès, da sua vida, dos seus sonhos, dos seus projectos a dois, do amor que não vivera e da dor que o dilacerava. Chorou como uma criança quando começou a tocar na profunda ferida que lhe rasgava o coração, falava aos soluços e com esforço, receando aquele sofrimento mas enfrentando-o para o resolver, enfrentou- o com tal determinação que até parecia autoflagelação, fazia pena vê-lo sofrer daquela maneira.


448


Uma tarde, logo depois do almoço, o padre Álvaro apareceu-lhe no quarto. Carolina saiu para os deixar a sós e o pároco sentou-se à borda da cama onde Afonso se encontrava estendido e quase se assustou com o aspecto do seu antigo discípulo, o cabelo despenteado e revolto dava-lhe um certo ar de doente, de louco. O capitão, por seu turno, olhou para o padre que o levou na adolescência para Braga e achou-o velho, a pele riscada de rugas e o corpo franzino a dobrar-se em curva, quase como se estivesse a desenvolver uma corcunda, os cabelos grisalhos a revirarem-se com rebeldia na cabeça e na barba.

“Então, filho?“, perguntou o padre Álvaro com voz meiga. “Então?” Afonso permaneceu calado. Avaliou-o com os olhos e depois fixou-se no infinito, num ponto perdido para além da janela. Só falou ao fim de três minutos.

“Porquê? “, perguntou enfim o capitão.

O padre observou-o, surpreendido.

“Como?“

“Porquê?”

“Porquê o quê? “

“Porquê? Por que é que isto me aconteceu?“ Afonso mirou-o. “Passei a guerra a pensar que morria, que talvez não escapasse. E, quando vejo que escapei, quando penso que tudo acabou, que a guerra terminou e que poderei afinal viver, é justamente nessa altura que ela morreu. Qual o sentido de isso ter acontecido? Que propósito essa morte serviu? Por que é que isto aconteceu? Porquê “

“Foi a vontade de Deus, meu filho. “

Afonso endureceu o olhar e voltou a fixar-se no infinito para além da janela.

“Deus não existe”, sentenciou finalmente.

O padre Álvaro endireitou-se, desconfortável com a blasfémia, olhou em redor, como se estivesse a assegurar-se de que o Senhor não estava no quarto e não ouvira tal heresia, e fixou-se no seu protegido.

“Então, filho? O que é isso? Vamos lá, vamos lá, é preciso acreditar n'Ele, na Sua bondade.“ Estendeu o dedo, indicando que aquele era um aviso, e levantou a voz para um nível que considerava suficientemente alto para que o Senhor o escutasse. “E é preciso também temer a Deus.“

“Disparate!“, cortou Afonso, cravando-lhe os olhos, canalizando ali a sua revolta interior. “Deus é bondoso ou Deus é temível? Hã? Em que ficamos? Que contradição é essa? Ou bem que é bondoso, ou bem que é temível. Não pode é ser as duas coisas ao mesmo tempo.“

O padre Álvaro contemplou-o com serenidade.


449


“Deus é bondoso, temos de ter fé mas temos também de O temer. Afonso suspirou, impaciente.

“Sabe, senhor padre, eu vi muita coisa nestes últimos dois anos. Coisas de que não quero falar, coisas de que não consigo sequer falar. Até já me esqueci de algumas delas, veja lá. E, ao ver tudo isso, e após reflectir no assunto, só posso concluir que nos enganamos quando falamos de Deus. “

“Então, filho? Que coisas dizes, minha Nossa Senhora? “ “É tudo uma mão-cheia de disparates”, exclamou. Ergueu a mão esquerda, a palma voltada para cima. “Olhe, diz a Igreja que é preciso acreditar em Deus, é preciso ter fé, é preciso rezar. E eu pergunto, para quê? Então, os que não acreditam n'Ele vão para o inferno só porque não acreditam n'Ele?

Então, se eu for um patife e rezar todos os dias como um beato, e se outro for um homem de bem, íntegro e honesto, mas não tiver fé nem rezar, eu vou para o céu e ele vai para o inferno? Eu que sou um patife e ele que é íntegro? Mas isto faz algum sentido? Que Deus é este que é de tal modo egoísta que exige que O idolatrem, que coloca a idolatração acima da bondade? “

O padre revirou os olhos, fazendo uma prece silenciosa para que o Senhor estivesse distraído e não tivesse escutado aquele chorrilho de palavras pecami-nosas.

“Deus é o Criador, temos de O respeitar, de O amar, de O temer. “

“Olhe, se quiser, até estou pronto para aceitar a Sua existência”, assentiu Afonso.

“Mas garanto-lhe que, se Deus existe, não é certamente este Deus de que fala a Igreja. Deus não é bom nem mau, Deus é inexprimível, está para além das palavras, dos conceitos, da moral. Ele é simplesmente o Criador, a fonte das coisas, a origem da morte e a inspiração da vida. Deus está-se bem ralando para que morram dez, cem ou mil soldados, Ele quer lá saber de mim, de si, de Agnès ou de quem quer que seja. Para Deus, uma pedra vale tanto como uma andorinha, como uma pessoa, como eu ou o senhor, tudo o que existe são Suas criações, tudo tem o mesmo valor.“ Afonso pigarreou, pensativo. “Olhe, sabe qual é a grande questão, a questão que a tudo responde? “

“O quê?“

“A grande questão é a velha dúvida de saber por que razão Ele nos criou, por que razão Ele nos impinge tanto sofrimento, que propósito tudo isto serve? Essa é a grande questão, o grande mistério. “ Mordeu os lábios. “Acho que a chave desse mistério radica no problema de determinar se o futuro está aberto ou está fechado. Ou seja, se as coisas estão ou não previamente determinadas, se somos realmente livres e donos do nosso futuro ou se apenas temos a ilusão da liberdade e não passamos de escravos do destino, meras personagens no teatro divino.“ Afonso estudou as unhas, contemplou-as sem as ver 450


verdadeira-mente, os olhos embrenhavam-se no mistério que o apoquentava. “Estaria a morte de Agnès previamente determinada? Acho que a resposta a este proble-ma permite-nos perceber qual o desígnio da criação.“ O olhar perdeu-se de novo na janela. “A dificuldade, naturalmente, é que não tenho modo de respon-der a essa pergunta que tanto me atormenta. Será que a morte de Agnès estava antecipadamente determinada?“ Suspirou mais uma vez. “Bem, se a morte dela estava escrita desde o início dos tempos, isso significa que Deus é tudo, Ele tudo controla e tudo decide, nós somos uma ínfima parte do Seu ser.

Tal como uma célula desconhece que faz parte do corpo, nós desconhecemos que fazemos parte de Deus. O corpo é constituído por milhões de células, cada uma é uma entidade viva que tem uma individualidade e que não sabe que faz parte de um todo muito complexo, o corpo. Pois nós, a exemplo do que acontece com as células, vivemos na ilusão de que temos uma individualidade e que uma coisa somos nós e outra é o mundo, o universo, Deus, quando afinal é tudo a mesma coisa, tudo é uma ínfima parte do todo, de Deus “

“E se o futuro não está previamente determinado?“ “Nesse caso, senhor padre, receio mesmo que Deus não exista. Ou, se existir, tem muito pouco poder”

“Ai filho, não será isso antes o indício de que Deus decidiu conceber o homem como um ser livre?”

“Não creio. Sabe, não acredito nessa ideia de que o Todo-Poderoso tenha alienado o seu poder de tudo decidir. Se assim fosse, Ele não seria todo- poderoso. Se existe de facto um Criador omnipotente, pode estar certo de que Ele não criou o universo para deixar as coisas entregues ao acaso. Se Ele é todo-poderoso, Ele tudo decidiu. Consequentemente, se o futuro não está já determinado, é porque Ele tem poderes limitados. Um deus com poderes limitados não é Deus. Nesta hipótese, Deus talvez mesmo nem exista. “

“Ai, Jesus, como é que podes dizer isso?“, exclamou o padre Álvaro, revirando outra vez os olhos para cima, quase pedindo desculpa ao divino pela blasfémia do seu antigo pupilo, como se sentisse que aquele insulto a Deus também fosse da sua responsabilidade.

“Virgem santíssima! “

“Olhe, digo isto por uma razão muito simples. Se o futuro não está previamente determinado, isso significa que eu tenho livre arbítrio e que Deus não me controla nem a mim nem ao futuro. Ora, se eu controlo o meu destino, então é porque Deus não é todo-poderoso. As coisas não acontecem porque têm de acontecer, mas apenas como fruto do acaso e das várias vontades indivi-duais, sem propósito último nem razão transcendente.

Nesse caso, provavel-mente, Deus não passa de um desejo, de uma criação humana destinada a procurar um inexistente sentido para a existência “

“E tu, filho? O que achas? “


451


Afonso recostou-se na cama e fixou os olhos no tecto. Havia duas aranhas coladas às teias num canto das paredes caiadas e escurecidas pela humidade, e o capitão ficou a observá-las a deambularem por entre os insectos inertes presos às suas redes. Estariam aqueles movimentos das aranhas determinados desde que o tempo começou? A questão apoquentava-o deveras.

“Eu quero acreditar que o futuro está previamente determinado”, disse finalmente.

“Só isso dá sentido a tudo o que passei e estou a passar. “

“Acreditando nisso, temes a Deus? “

“Isso é um disparate, já lhe disse. De que serve a Deus o medo dos homens? Na verdade, o medo a Deus é um conceito ridículo uma vez que sugere que o Criador é inseguro, talvez até prepotente, mimado, mesquinho e egoísta. Mas, se o futuro está previamente determinado, presumivelmente por Ele, de que Lhe serve que os homens O

amem ou O receiem se foi Ele quem tudo determinou ao escrever a ópera cósmica que interpretamos a todo o momento? “ Afonso abanou a cabeça e fez um trejeito de boca.

“Não, Deus não é para ser amado nem temido. Deus é, Ele simplesmente é. Move-se com um propósito misterioso e acredito que todos nós, homens, animais, plantas, coisas, todos fazemos parte desse propósito, desse projecto. Nada ocorre por acaso, tudo tem uma causa e um efeito. Agnès morreu e esse é um acontecimento aparentemente insignificante à escala do universo. Porém, acredito que essa morte faz parte do universo, acredito que o universo ficou diferente com o desaparecimento de Agnès e de cada um dos meus camaradas de armas. O seu falecimento é mais um acto da grandiosa peça de teatro previamente composta pelo dramaturgo divino, mesmo que o propósito da morte nos pareça gratuito.

O seu verdadeiro sentido permanece-nos desconhecido “

“Os desígnios do Senhor são insondáveis”, sentenciou o padre Álvaro.

Afonso mirou-o meditativamente.

“Essa é possivelmente a única grande verdade que a Igreja ensina, senhor padre.

Tudo tem um propósito, acho eu, mas esse propósito escapa-nos“ Baixou a cabeça. “A alternativa seria simplesmente insuportável. A de que as coisas acontecem por acon tecerem, sem sentido nem razão. Isso seria insuportável!” Afonso sentiu falta do padre Nunes, pensou que talvez só o seu antigo mestre seria capaz de o compreender realmente e calou-se. A tarde prolongou-se, silenciosa e lânguida.

O padre Álvaro despediu-se ao cair da noite, partiu intranquilo e inquieto, mas Carolina permaneceu. Nesse dia e nos seguintes. Foi para ela que Afonso se voltou em busca do equilíbrio, da salvação. Não tinha capacidade para acompanhar os seus raciocínios, mas oferecia-lhe conforto emocional. Carolina dava-lhe a mão nos momentos mais difíceis, 452


chegava mesmo a abraçá-lo quando o sentia desesperado, perdido, esvaziado. Deu-lhe forças e calor humano, ajudou-o a enfrentar os fantasmas do passado, as memórias de Agnès, a dor pela perda, os remorsos e o sentimento de culpa, a fúria e a revolta pela partida que o destino lhe pregara, o desespero por aquele ser um caminho sem retorno.

Fragilizado, Afonso agarrou-se àquela bóia, prendeu-se àquele porto seguro, soltou as emoções e abriu a alma. Ele abriu-se-lhe tanto que, quase sem dar por isso, de mansinho, foi-lhe também abrindo o coração.

Carolina e Afonso casaram no Verão de 1920, numa boda simples realizada na pequena igreja de Rio Maior. A missa foi celebrada pelo idoso padre Álvaro, tio de Carolina e protector de Afonso em Braga, um entusiástico mestre de cerimónias muito compenetrado no seu papel, o pároco fazia questão de conferir àquele casamento uma solenidade e grandiosidade que o tornariam inesquecível.

Mas um dos nubentes mal o ouvia. De pé no altar, diante do padre a celebrar a missa em latim, o capitão passou grande parte do tempo abstraído do que se passava em redor de si, a mente a vaguear pelo passado como um vagabundo perdido, a procurar Agnès, a imaginá-la ao seu lado, a fingir que aquela não era a pequena igreja de Rio Maior mas a grande catedral de Amiens, a efabulação tornou-se tão perfeita que até detectou um sotaque francês no latim do eclesiasta. Durante alguns instantes, todavia, regressava à realidade e intuía vagamente a monstruosidade da sua traição, percebia que entregava o seu corpo incompleto àquela mulher, faltava-lhe a alma e o coração, ambos reféns no amor de outra.

Compreendia a falsidade desse momento, a duplicidade daquela situação, os seus sentimentos encontravam-se longe dali, casava com uma e dificilmente passava uma hora em que não pensasse na outra. Arrependia-se e apetecia-lhe fugir, sair da igreja e correr, abandonar o altar e procurar o refúgio no aconchego uterino do quarto da Carrachana.

Num supremo esforço para se distrair, a mente depressa mergulhava no seu sonho, na sua fantasia, na estrada imaginária por onde caminhava em delírio febril, um trilho feito de memórias e sensações, de recordações de tempos felizes e de desejos por satisfazer.

No momento da verdade, quando o padre Álvaro lhe formulou a pergunta sacramental, Afonso disse que sim, ao seu lado estava Carolina e ouviu-o dizer sim, supôs ela que ele lhe dizia sim a si, não sabia que dizia sim a outra que lá não podia estar, o fantasma que para sempre seria a sua sombra.

Montaram casa junto à Praça do Comércio, em Rio Maior, atrás da velha Casa Comercial de José Ferreira Lopes. Dona Isilda iniciou Afonso na gestão da Casa Pereira.

Levou-o às fábricas onde ia buscar a mercadoria, apresentou-o aos fornecedores, explicou-lhe as contas e revelou-lhe as técnicas de venda. Ensinou-lhe como expor os produtos, 453


como receber os clientes, como avaliar os empregados, como decidir quando se deve ou não conceder crédito a um cliente, quanto crédito e durante quanto tempo.

“Um comerciante não tem coração”, repetiu-lhe ela. “A prioridade é defender o negócio, só isso conta. As decisões não podem ser ditadas pela piedade, mas pela racionalidade. “

Afonso afagou o bigode, meditando nestas palavras, duvidando se teria estômago para pôr na prática o que, com aquela facilidade, era dito.

“Mas, dona Isilda, às vezes encontramos situações humanas...“ “A Igreja que as resolva”, cortou a sogra. “Se fores piedoso e estiveres a conceder crédito a toda a gente que não pode pagar e mantiveres na loja empregados incom-petentes, tudo porque tens pena de toda essa gente, irás rapidamente à falência. Quando isso acontecer, rapaz, acabaste por prejudicar todos. Prejudicaste-te a ti, à tua família, aos teus bons empregados e aos teus bons clientes.“ Fez uma pausa e olhou-o bem nos olhos. “E sabes qual é a grande ironia, hã? Sabes? É que, feitas as contas, os maus empregados e os maus clientes ficaram como ficariam se tu os tivesses enfrentado mais cedo, uns ficam na mesma sem emprego e outros sem crédito, porque a casa faliu. A piedade nem a eles serviu. Nem a eles. “

“Mas cortar o crédito a quem precisa dos bens e despedir quem necessita de trabalho para viver é uma crueldade”, disse o capitão. “Não sei se sou capaz de o fazer. “ Isilda suspirou.

“Imagina, Afonso, imagina que estás na guerra e és atingido na perna por uma bala.

Vais para o hospital e os médicos verificam que a perna está a gangrenar. Constatando essa situação, os médicos só têm duas opções. Ou cortam a perna e salvam-te a vida, ou deixam ficar tudo como está, porque têm pena da perna, e tu morres no fim. Morres tu e, grande ironia, morre a própria perna. Agora imagina que o teu corpo é a Casa Pereira, o médico és tu e a perna gangrenada é um mau empregado ou um mau cliente. Se cortares a perna, salvas o corpo. Se não cortares, o corpo morre e a perna também. O que fazes, hã? O que fazes? “Bem... “

“O que fazes?”

“Uh... suponho que tenho de salvar o corpo, não é?“ “Lindo menino“ Ergueu o dedo. “Não te esqueças, rapaz. Um comerciante não tem coração e a prioridade é defender o negócio. “

Não foi fácil a adaptação, mas Afonso gradualmente se habituou às exigências da função, à impossibilidade de agradar a todos, à necessidade de avançar para rupturas, à prioridade de defender o colectivo sobre o individual. Afinal de contas, não era isso o que fizera durante a guerra? Apercebeu-se de uma curiosa ironia, a de que, nos momentos 454


críticos, apesar de o colectivo beneficiar das suas decisões, era o individual que atraía a simpatia geral. Se despedia um empregado fraco, por exemplo, todos o lamentavam, acusavam-no de não ter coração e de ser desumano, ninguém percebia que isso era para o bem da maioria. O colectivo era abstracto, o individual concreto, as pessoas reviam-se no indivíduo, não no grupo. Vendo bem, pensou, a morte da sua ordenança em Picantin tinha sido uma tragédia, mas a morte de qua trocentos homens em toda a batalha não passava de uma mera estatística. O colectivo era mais importante, reflectiu, embora fosse com o indivíduo que as pessoas realmente se identificavam.

O capitão começou por dividir a sua vida entre o negócio da família e a carreira militar. Passava muito tempo a viajar entre Braga e Rio Maior, até chegar à conclusão de que não podia continuar assim. Ainda considerou a hipótese de pedir transferência para o quartel de Santarém, mas, ao fim de dois anos de persistentes conversas, dona Isilda convenceu-o de que havia uma melhor opção.

“Tens de abandonar a vida militar, Afonso”, disse-lhe ela. “Há quanto tempo te digo isto, hã? Um negócio é como um casamento. Requer exclusi-vidade” Farrapos brancos e esponjosos, como tiras de algodão rasgado, pairavam imóveis por entre o azul profundo do céu, eram cirros matinais, nuvens altas e majestosas que assinalavam a suave chegada da Primavera de 1922. Afonso atravessou o Campo do Conde Agrolongo com os sentidos bem despertos, registando cada instante, inebriado por todas as sensações daquela manhã, queria guardar dentro de si o momento da despedida. Escutava com atenção o musical gorjear das recém-chegadas andorinhas, sentia o aroma perfumado dos pinheiros a flutuar na brisa fresca da manhã, era um ventinho macio e puro que lhe acariciava o rosto com gentileza e soprava com brandura sobre as árvores, os ramos agitados num farfalhar delicado, marulhante, sussurrado. Lançou um longo e nostálgico olhar sobre a larga fachada alva do quartel do Pópulo, sabia que aquela era provavelmente a última vez que visitava o edifício onde se fizera oficial.

O capitão dirigiu-se ao quartel para apresentar os papéis e despedir-se dos camaradas que com ele viveram a guerra. À conversa nas escadarias ou na messe, os veteranos deitavam ainda contas aos acontecimentos do 9 de Abril, contavam histórias, reconstituíam episódios, recordavam companheiros caídos, faziam balanços. O curioso é que, da guerra, as memórias pareciam apenas concentrar-se no pitoresco, relegando para um conveniente esquecimento justamente tudo aquilo que fizera daquela experiência uma coisa terrível. Não havia no Pópulo quem não tivesse orgulho na cruz de guerra de primeira classe que distinguira Infantaria 8 pelo seu comportamento na grande batalha, ou não considerasse justa a Ordem Militar da Torre e Espada que dois anos antes fora concedida à cidade de 455


Lille pelo apoio que os seus habitantes prestaram aos reclusos portugueses, alimentando- os e ajudando-os à revelia dos ocupantes.

Afonso por todos passou, acenando aqui e cumprimentando acolá, subiu as largas escadarias cruzadas do pátio central e encostou-se languidamente à janela da secretaria.

“Então muito bom dia”, saudou, espreitando para o interior. Um alferes curvava-se sobre a mesa a dactilografar documentos. O homem ergueu a cabeça e levantou-se quando viu o superior hierárquico.

“Bom dia, meu capitão”, disse, fazendo continência. Deu dois passos e chegou-se à janela. “Posso ajudá-lo? “

Afonso olhou em redor e mirou o alferes.

“O que tenho de fazer para sair do Exército?”

“Como?”

“Eu quero sair do Exército. O que tenho de fazer? “ O alferes hesitou.

“Bem... uh... tem de preencher uns documentos e fazer um requerimento ao senhor comandante. “

“E quais são os termos do requerimento? “

“Tenho ali uma minuta, quer ver? “

“Ora passe-me lá isso. “

O alferes foi a uma gaveta, tirou uma folha e entregou-lha. “Aqui está. Mas, por favor, meu capitão, devolva-ma depois, é a minha única cópia. “

“Fique descansado. “

O alferes afinou a voz com um hum hum arranhado. “Sabe, o senhor comandante pode recusar o seupedido... “

“Fique descansado”, sorriu Afonso. “Eu falo com o comandante e ele não recusará nada. Depois do que passei na Flandres, era o que mais faltava “ O capitão demissionário preenchia os documentos no corredor do pri-meiro andar do quartel, sentado num banco junto à janela da secretaria quando sentiu um vulto a prostrar-se diante de si.

“Então, capitão? A escrever uma carta a uma demoiselle, é? Ergueu a cabeça e reconheceu o agora coronel Eugénio Mardel, o homem que comandara a Brigada do Minho durante a grande batalha. Levantou-se num salto, um enorme sorriso no rosto.

“Meu comandante”, exclamou, fazendo continência. “Bons olhos o vejam” Mardel estendeu a mão, informal.

“Como está, capitão? Então como foi a sua passagem pela Alemanha, hã? Os boches trataram-no bem? “


456


Apertaram as mãos com vigor.

“Cinco estrelas, meu comandante. Cinco estrelas. Até distribuíam caviar de aperitivo e champagne para matar a sede. Mardel riu-se.

“Imagino.

“O que está o senhor comandante a fazer aqui no Pópulo? “ “Olhe, vim visitar os regimentos da brigada, uma espécie de passeio da saudade, percebe?“

“Ah, muito bem, muito bem”

“Você já almoçou? “

“Não, ainda não. Mas confesso que já estou cá com uma traça.“

“Então venha daí comigo. Há por aqui alguma tasca de jeito.

“Temos o restaurante do hotel, do outro lado do largo.”

“Come-se bem? “

“Melhor do que nas trinchas, meu comandante“

Abandonaram as instalações do Pópulo e foram almoçar juntos ao restau-rante do Grande Hotel Maia, mesmo em frente ao quartel, no outro lado do Campo do Conde Agrolongo. Pediram umas iscas de fígado à moda de Braga e mergulharam nas memórias do passado. A pedido de Mardel, Afonso relatou tudo o que lhe acontecera desde o dia da batalha. Quando concluiu o relato, o coronel manteve-se silencioso, o olhar ausente.

“Em que pensa, meu comandante?“

Mardel pigarreou.

“Questiono-me se tudo isto valeu a pena”, desabafou. “Cumprimos o dever, é certo, mas será que serviu para alguma coisa?”

Afonso fitou-o nos olhos.

“A guerra é feita por jovens, que se matam para glória de velhos. Para os jovens, claro que não valeu a pena. Para os velhos... “

A frase ficou em suspenso e foi Mardel quem a concluiu. “Para os velhos ficam glórias que não merecem”, disse. “Eu sei. “ Fez uma careta. “Sabe, capitão Brandão, apenas seis batalhões foram condecorados por bravura em combate durante o 9 de Abril. Nesse número contavam-se os nossos quatro batalhões da Brigada do Minho, mais os dois batalhões transmontanos, Infantaria 10, de Bragança, que combateu à direita de Ferme du Bois, e Infantaria 13, de Vila Real, que resistiu em Lacouture.

“O segundo comandante do 13, o major Mascarenhas, é meu amigo dos tempos da Escola do Exército. “

“Ah sim? Pois, olhe, o seu amigo foi um bravo. “

“Eu sei. “


457


“Bem, isto para dizer que só os minhotos e os transmontanos combateram. Os restantes batalhões, incluindo todos os da Brigada de Lisboa, mais os algarvios do 4 e os alentejanos do 11 e do 17, cavaram perante o inimigo ou renderam-se quase sem oferecerem resistência e não foram distinguidos. “

Afonso franziu o sobrolho.

“Isso é curioso”, comentou com lentidão. “Será que o pessoal do Norte é mais valente do que o do Sul? “

“Não tenho a certeza de que essa seja a pergunta certeira. Penso que a verdadeira questão é saber se o pessoal do campo é mais bravo do que o das cidades. “ Mardel passou a mão pelo cabelo. “Sabe, capitão Brandão, não há guerreiro mais temível do que o agricultor. A malta do campo está habituada à dureza da vida, ao trabalho na terra, às contrariedades impostas pela natureza, e não se impressiona facilmente com as dificuldades da guerra. São tesos p'ra caraças! Já os galrichos das cidades são o que se sabe, querem é regabofe e fadinho, gajas e boa vida, bola e paparoca na mesa. Quando a coisa aquece e dá para o torto, cavam todos “

“Isso pode explicar o comportamento dos lisboetas, não digo que não. Mas e os alentejanos e os algarvios? “

“Confesso que não encontro explicação para esses. Dizem-me que eles têm uma natureza mais indolente, mas tenho dúvidas de que tenha sido a indo-lência que os pôs no cavanço. Até porque o Wellington tinha unidades algarvias e fartava-se de as gabar. “Bem, não interessa”, exclamou Afonso, fazendo um gesto impaciente com a mão. “O que é facto é que fomos a única brigada que resistiu em bloco. Mas de que serviu isso? “

“De nada, acho eu”, suspirou Mardel. Encolheu os ombros. “De nada. Morreram quatrocentos portugueses nessa batalha e mais de seis mil foram feitos prisioneiros. Se formos a ver bem, os mais espertos até foram os lisboetas, que cavaram e andam agora a passear com as mulheres pelo Rossio e pela Rotunda, vivinhos da silva. Nós e os transmontanos, que demos luta, nós é que nos tramámos, em vez de estarmos a saborear a vida, andamos a lamentar os mortos e a consolar as viúvas. E o trágico, meu caro capitão, o trágico é que o sacrifício dos que combateram foi em vão. Os boches entraram pelas nossas linhas como um furacão, foram por ali fora, os bifes viram-se aflitos para os travarem e a situação tornou-se de tal modo crítica para os aliados que os camones chegaram a emitir uma ordem a dizer às tropas para que morressem onde estavam. Você imagina o que isso é, capitão Brandão, receber uma ordem para morrermos onde estamos?“ O capitão abanou a cabeça.

“Ainda bem que nunca recebemos uma ordem dessas... “


458


Mardel fez um silêncio pensativo.

“Aí é que você se engana”, disse finalmente. “Essa ordem também nos foi dada. “

“A nós, portugueses? “

“Afirmativo. “

“Para morrermos onde estávamos? “

“Afirmativo. “

“Essa ordem foi dada pelos bifes? “

“Afirmativo. “

“Durante a batalha? “

“Antes da batalha. “

“Antes da batalha? Como assim? “

“Seis dias antes do ataque dos boches, o general Haking, que comandava o XI Corpo, emitiu uma ordem à 2. Divisão do CEP para morrer na linha caso o inimigo avançasse. A ordem mencionava explicitamente essa instrução, morrer na linha B. “

“E o que é que vocês fizeram? “

“O que é que havíamos de fazer, diga lá? Ouvimos, calámos e não dissemos nada a ninguém, não queríamos espalhar o pânico. É por isso que você não soube. “

“Ah bom”, exclamou Afonso. “Muito me conta, sim senhor. “ Fez uma pausa, observando o empregado do restaurante do hotel a servir as iscas de fígado, acompanhadas de arroz branco e cebola frita. Quando o empregado se retirou, os dois oficiais começaram a comer em silêncio. Afonso trincou a primeira fatia da sua isca e retomou a conversa enquanto mastigava. “Mas então, meu coronel, estava a dizer-me que os boches avançaram por ali fora e os camones começaram a ver as coisas pretas “

“Pois, foi isso, mas tudo se compôs e veio a verificar-se que aquela foi verdadeiramente a última grande ofensiva dos boches. Os aliados estancaram a hemorragia aberta no nosso sector e passaram depois ao ataque, acabando por ganhar a guerra. “

“Vá lá, vá lá, a nossa reputação conseguiu escapar ilesa... “ Mardel parou momentaneamente de mastigar e fez um trejeito de boca.

“Negativo, capitão Brandão, negativo. A bem dizer, a nossa reputação ficou foi na lama. Os bifes passaram a olhar-nos com desconfiança, diziam que não tínhamos capacidade de combate, que tínhamos fugido, que éramos uns desorganizados, que só servíamos para dar umas pinadelas às demoiselles, que isto e que aquilo, e mandaram as nossas tropas fazerem trabalhos de estrada, como se a malta não passasse de uns operários de terceira, de uns chinocas. Foi uma vergonha.“

“Ora essa! Mas eles não sabiam o que aconteceu? “


459


O coronel inclinou-se na mesa e fitou-o fixamente.

“E o que aconteceu, diga-me lá? “

Afonso devolveu-lhe o olhar, atrapalhado.

“Bem... uh... enfim, tudo”, gaguejou.

“Mas o quê? Explique-me lá o que poderíamos nós dizer aos bifes? “

“Sei lá... talvez, não sei, talvez que houve seis batalhões nossos que resistiram, por exemplo, ou que a nossa única divisão, que se encontrava já bem cansada e desgastada, apanhou com quatro divisões boches pela frente, todas elas fresquinhas como alfaces. Ou ainda que a nossa única divisão defendia uma linha que era suposto ser defendida por duas divisões, portanto com menos soldados por quilómetro de trincheira.“ O capitão fez um ar inquisitivo. “Não é? Que eu saiba, não foi pouco, não acha?

Mardel voltou ao seu prato, trinchando mais uma fatia.

“Alguns camones sabiam o que aconteceu realmente, é verdade, mas a maior parte só ligou ao facto de que os boches entraram pelo nosso sector. Ou seja, se nós cedemos, é porque éramos fracos. Ponto final. Tudo o resto não passava de conversa.

Afonso suspirou.

“Bem, meu coronel, temos de reconhecer que isso tem efectivamente algum fundamento. É um facto que as nossas tropas estavam muito desgas-tadas, mas disso não tinham os bifes culpa nenhuma. Se as tropas se sentiam cansadas, que descansassem, caraças! Portugal devia era substituí-las. Se não substituiu é porque mostrou incapacidade para andar ali. E, se não era capaz de sustentar o esforço de guerra, que não se metesse naquelas cavalgadas. O governo devia era ter juízo e mandar a gente de volta.“

“É verdade, é verdade”, concordou Mardel, mastigando a comida. “Os bifes não têm nada a ver com o facto de que a malta foi abandonada por Lisboa. Tudo o que eles sabiam é que já não nos encontrávamos em condições de combater, e isso, bem vistas as coisas, era realmente verdade. “

Afonso engoliu a derradeira fatia de iscas.

“Portanto, se bem compreendi, nunca mais nos mandaram para a frente de combate.“

“Bem, isso é inexacto”, indicou Mardel. “A malta de artilharia voltou a combater, integrada em unidades inglesas, e nós chegámos também a meter dois batalhões de infantaria em acção, mesmo no final da guerra. Andaram para lá a perseguir os boches nas margens do Escalda. “

“Ah sim? Lisboa sempre mandou os reforços? “

Mardel riu-se com gosto.


460


“Lisboa? Lisboa estava-se a cagar para a malta! “ Ergueu o indicador. “Não nos mandaram nem um homem, nem sequer um maricas para amostra, eles não queriam saber do pessoal para nada “

“Mas, então, que infantaria foi essa? “

“A mesma de sempre, homem, a malta que já lá andava. “ “Ah é? E como é que o pessoal reagiu? “

“Mal, como você calcula. Houve revoltas sucessivas, incluindo até da Brigada do Minho, e ocorreu mesmo um incidente do qual nem quero falar. “ Afonso ficou curioso.

“Incidente? Que incidente? “

“Já lhe disse que não quero falar nisso. “

“Vá lá, diga lá. Já que mencionou o assunto, conclua, que diabo! Não me deixe assim pendurado, isso não se faz. “

Mardel hesitou. Respirou fundo, inclinou-se sobre a mesa e baixou a voz.

“Isto que lhe vou contar não se pode saber, percebeu? Não se pode saber.“

“Muito bem, vou ficar de bico calado, esteja descansado. Mas conte lá. “

“Então é assim”, começou Mardel, inclinando-se para a frente, o tom muito secretivo. “Tudo aconteceu em meados de Outubro, mais exactamente na noite do dia 16.

Portanto, a menos de um mês do fim da guerra. Estava-se na altura a tentar reunir unidades com o objectivo de as preparar para serem enviadas para a frente de combate, era um esforço destinado a reorganizar o CEP. Ora bem, os magalas do reconstituído batalhão 11/17 souberam destas intenções e pegaram em armas durante o bivaque. Que não iam, que nem pensar em marchar para o açougue, que mandassem outros, que já tinham feito mais do que o suficiente, que queriam era voltar para Portugal, que fossem todos para o raio que os partisse e que fossem também para outras partes, enfim, você imagina. Vai daí, o comando não esteve de modas. No dia seguinte, 17 de Outubro de 1918, nunca mais me esquece essa data, nesse dia decidiram actuar à séria. Chamaram Infantaria 23, os revoltosos foram cercados e, pimba! metralharam-nos.“

Fez-se uma pausa.

“O quê?“, murmurou Afonso, incrédulo. “O quê? “

“Mataram-nos a tiros de metralhadora. “

A derradeira visita de Afonso a Braga serviu para acertar as últimas contas do passado. O capitão demissionário nunca mais falou com o tenente Pinto. Quando por acaso com ele se cruzava nos corredores do quartel, virava a cara para o lado, não lhe 461


perdoava a fuga no momento mais difícil da companhia no 9 de Abril, quando do cerco ao Picantin Post.

A verdade, porém, é que só havia mesmo uma pessoa que Afonso fazia absoluta questão de reencontrar. O problema é que desconhecia o seu paradeiro. Fez vários inquéritos e a oportunidade acabou por surgir a dois dias de regressar a Rio Maior, quando o alferes que trabalhava na secretaria do quartel descobriu um documento a referenciar a residência do homem que procurava num sítio chamado Palmeira, um lugar remoto a norte de Braga. Sem perder tempo, o capitão requisitou um cavalo e trotou até ao local. Meteu pelos caminhos de terra e foi dar com a morada que rabiscara num papel.

“É aqui que mora o Matias Silva? “, perguntou Afonso, inclinando- se da montada.

Uma velha minhota, curvada na bengala, a pele enrugada em torno dos olhos azuis, um lenço negro a cobrir-lhe a cabeça, apontou tremulamente para a casa ao lado.

“O Matias é ali, senhor”

Afonso olhou para a casa de pedra que lhe foi indicada. Parecia- lhe uma versão minhota dos pardieiros da Carrachana, claramente partilhava com o antigo cabo a mesma origem humilde. Desmontou, amarrou o cavalo a uma árvore e deu uns passos pelo caminho de cabras até chegar diante da casa. A porta de madeira tosca estava entreaberta e o capitão entrou, hesitante.

“Está aqui alguém? “, chamou.

Ouviu o som de um talher a bater na porcelana e uma tosse cavada. Olhou na direcção do ruído. Um enorme vulto encontrava-se na penumbra, sentado à mesa e debruçado sobre uma tigela. Não se lhe via o rosto, mas Afonso reconheceu-o. O vulto ficou momentaneamente paralisado e, ao fim de um longo e silencioso segundo, ergueu-se com lentidão.

“Meu capitão.“

Os dois homens aproximaram-se e estacaram um diante do outro, meio sem jeito. Já não se viam havia quatro anos, desde que os alemães os tinham separado em Illies.

Abraçaram-se finalmente. Abraçaram-se com força, como irmãos, como velhos amigos que as circunstâncias da vida tinham afastado, como companheiros de estrada que se reencontravam após uma longa e difícil jornada.

“Sente-se aqui, sente-se aqui”, disse Matias, puxando Afonso para a mesa. O capitão acomodou-se e o antigo cabo foi buscar uma outra tigela de sopa. “É uma canjinha de sonho, meu capitão. Se o Baltazar aqui estivesse, chamava-lhe uma categoria. “ Tossiu. “Foi a minha Francisca que a fez, ora prove lá. “ Afonso engoliu uma colher e piscou o olho.


462


“Está boa. “

“Está, não está? A minha Francisca é uma grande cozinheira lá isso é. Pena que não esteja aqui, foi ali ao rio lavar a roupa e pô-la a abelar. Mas já volta. “ Tossiu. “Ela era a minha namorada sabe? Quando voltei da Alemanha, pensei cá para mim: Ó Matias, a moça é séria e honesta, não é nenhuma sansardo-ninha, não é nenhuma rifeira, é boa de verdade, casa-te com ela, anda.

Tossiu outra vez, desta feita prolongadamente.

“Isso está mal”, notou Afonso com preocupação.

Reconhecera aquela tosse e sabia que não era de bom agoiro.

Matias ficara rubro de tanto tossir, mas acabou por recuperar o fôlego.

“São a merda dos gases, meu capitão.“ Tossiu novamente. “Os boches ainda me estão a matar com os gases que me meteram no corpo. Até sinto o líquido a escorrer cá dentro, no peito. “ Respirou fundo, para demonstrar o que dizia, e, de facto, os pulmões pareciam assobiar. “Os gases estão a fazer aquilo que as costureiras e abóboras não conseguiram nas trinchas, estão-me a dar cabo do canastro “ Sorriu com tristeza. “Era estranha aquela vida nas trinchas, não era? A morte perseguia-nos todos os dias, cheirava-nos, roçava-nos, mas, sabe, eu sempre tive em mim a vontade de viver”

“Você era um optimista”, considerou Afonso. “Havia uns que achavam que iam morrer, passavam a vida à espera da desgraça, tudo os deitava abaixo, viviam invadidos de maus pressentimentos, eram verdadeiras aves agoirentas. O Manápulas era assim... “

“E depois havia os outros, os tipos como você, aqueles que tornavam grandes as mais minúsculas coisas, saboreavam uma pausa, procuravam a felicidade nos pequenos nadas, num naco de pão, num rouxinol que cantava, num raio de Sol capaz de vencer aquele sombrio manto de nuvens cinzentas “

Um novo acesso de tosse encheu a sala. Matias respirou fundo e engoliu em seco.

“Sabe, só era possível viver ali se conseguíssemos ignorar o que aquilo tinha de mau, se conseguíssemos erguer um muro que nos isolasse de toda aquela desgraça. “ Matias tossiu. “Lembra-se, meu capitão, da indiferença com que olhávamos para um morto ou para um corpo mutilado? Isso era o muro que nos protegia. Tanto nos esgotámos a sofrer por nós que já não conse-guíamos sofrer por eles. Essa é que era a verdade, os mortos tornaram-se-nos indiferentes.“

“Excepto os camaradas”, atalhou Afonso.

“Excepto os maradas”, confirmou o antigo cabo. Tossiu. “Os maradas eram a melhor coisa daquela merda toda. Só eles contavam. “ Tossiu nova-mente. “Qual pátria, qual porra! Era pelos maradas que eu lutava. Manducávamos juntos, dormíamos juntos, 463


sofríamos juntos, éramos amigos, irmãos, tudo. Foi ali na guerra que eu verdadeiramente conheci os homens, conheci-os à séria, no bom e no mau, mas sobretudo no bom, na entreajuda, na amizade, nas pequenas coisas e nos grandes gestos.“ Baixou a cabeça. “O

proble-ma era quando morriam, isso era insuportável. “ Fitou Afonso. “Sabe que eu fiz uma peregrinação aqui pelo Minho para visitar as famílias dos maradas do meu pelotão, os maradas caídos em França? É verdade, fiz isso. Foi duro, foi xuega para caramba. Fui a Barcelos falar com a mãe do Vicente Manápulas, dei um salto a Gondizalves para ver os pais e os irmãos do Abel Lingrinhas e viajei até ao Gerês, até Pitões das Júnias, para conhecer a mulher e os filhos do Baltazar Velho. E aqui ao lado, em Palmeira, está a mulher e o filho do Daniel Beato, um marada que o capitão não conheceu, mas que foi decapitado por uma granada “

“Por que fizeste isso? “

Matias suspirou.

“Remorsos, acho eu”, disse. “Sabe que eu sonho muitas vezes com os maradas? O

que é engraçado é que eles nunca estão mortos. Sonho que fazemos as coisas do costume, andamos a matar ratos, a abrir drenos, a contar anedotas, todos armados em ribaldeiros.

Quando se passam duas semanas sem sonhar com eles, sinto saudades e quero sonhar outra vez. “ Tossiu. “Estranho, não é? “

“Isso é a guerra que continua na nossa cabeça. “ “Talvez. Mas, no meio disto tudo, meu capitão, há uma coisa que não compreendo, que não aceito. “ Tossiu ainda. “Sabe o que é? “

“O quê?”

“Não percebo por que sobrevivi. Não entendo, não concebo por que razão morreram eles todos e eu vivi. O que fiz eu de especial para viver? Qual o sentido de ter escapado? Porquê eu? Não percebo, não percebo. “ Baixou a voz. “Sinto-me culpado, agónico, anelante, é como se os tivesse traído, como se os tivesse abandonado, como se não os merecesse. Eles lutaram até à morte e eu rendi-me, não tive coragem de ir até ao fim, sobrevivi sem os salvar, amaldiçoo-me todos os dias por isso. “

“Também penso nisso muitas vezes”, confessou Afonso. “Mas a verdade é que, naquela altura, naquelas circunstâncias, não tínhamos alternativas. O que podíamos nós fazer? Deixarmo-nos abater como cães? “

Matias mirou o infinito, irremediavelmente perdido na sua batalha interior.

“Sabe, meu capitão, descobri que o mais duro não é fazer a guerra”, mur-murou o antigo cabo. “O mais difícil é sobreviver a ela, é viver com ela depois de ter vivido nela.

Percebe o que eu quero dizer?”


464


Afonso respirou fundo.

“Então não percebo, Matias? Todas as noites sonho com isso. “ Fez uma pausa.

“Nem sei mesmo se sobrevivi. Olha, por exemplo, às vezes sonho que estou nas trinchas rodeado de mortos, viro um corpo para cima para lhe ver a cara e descubro que o cadáver sou eu. “ Estremeceu, arrepiado com o pensamento.

“Levei muito tempo a perceber este sonho, mas acho que já entendi. Ele significa que uma parte de mim morreu nas trinchas e que estou de luto pela minha própria morte.“

“É isso mesmo, meu capitão. Estamos de luto por nós mesmos. “ Suspirou. “Sabe, quando andamos aos tiros, as coisas acontecem e nós nem damos por isso, ou não ligamos, continuamos a agir sem pensarmos, mecanicamente, amanhã é um novo dia, há que seguir em frente “ Fez uma pausa e olhou para a mão, olhou-a mas não a via, estava absorto no seu raciocínio. “Agora, quando se acaba a guerra, quando ela acaba, meu capitão, a coisa começa logo cá dentro, a moer, a moer, a moer sem descanso. Bateu com o indicador na testa. “Parece que não, mas fica cá tudo, aqui na tola, para depois ser digerido, devagar, devagar. “ Nova pausa. “Olhe, a morte do Lingrinhas, o senhor não assistiu, mas foi uma coisa... nem sei como dizer. Nós estávamos a retirar da primeira linha, ele foi apanhado por uma costureira boche e ficou ali, no meio da Tilleloy, com um buraco na garganta, a asfixiar, a bombar. O Manápulas tentou ajudá-lo, tentou ir lá, e sabe o que fiz eu? Hã?

Sabe? “

Afonso abanou a cabeça.

“Agarrei o Manápulas e não o deixei ajudar o Lingrinhas.“ Uma grossa lágrima correu pelo rosto rude de Matias. “Agarrei-o com toda a força, toda a força, e não o deixei ajudar o Lingrinhas, coitadinho, o Lingrinhas que morria ali no meio da Tilleloy, sozinho, sozinho, sem ninguém ao menos lhe dar a mão.

Soluçou. “Sonho muitas vezes com o Lingrinhas e o Manápulas, sonho que deixo o Manápulas ajudar o Lingrinhas e que o Lingrinhas se safa e fico feliz... Mas depois, quando acordo... quando acordo vejo que não passou tudo de um sonho, que o Lingrinhas morreu porque não deixei o Manápulas ajudá-lo. “ Fungou e limpou o nariz. “E o Velho, que morreu estupidamente! Se o meu capitão visse os filhos, coitados, tão felizes quando lhes disse que o Baltazar os adorava, que ele só falava neles... que morte estúpida o Velho teve, meu capitão. Morrer quando se rendia... “

Afonso saiu destroçado do encontro com Matias. A conversa foi catársica, fez-lhe bem, mas não tinha a certeza de conseguir sobreviver a outra igual. Planeara antecipadamente dar um salto a Vila Real para abraçar o major Mascarenhas, o velho amigo sportinguista da Escola do Exército, o homem de Infantaria 13 que resistira mais de vinte e 465


quatro horas em Lacouture, mas a dolorosa experiência com Matias dissuadiu-o, achou que não iria aguentar e preferiu regressar discretamente a Rio Maior. Seria Carolina quem iria suportar a guerra que ele levava na cabeça.


466


Загрузка...