XV
A mão direita curvou-se em garra, as unhas encardidas da sujidade preta da lama escura da terra, aquela lama viscosa e peganhenta que tudo invadia e tudo impregnava, insidiosa e tão omnipresente que a ela todos se tinham resignado. Vicente meteu a mão por baixo da camisa e coçou o ombro esquerdo.
“Porra p'rás pulgas!“, exclamou, voltando o pescoço para o lado onde sentiu a comichão. Ergueu ligeiramente a camisa, pela gola, e espreitou para a borbulha vermelha nascida da picada do parasita. Acto contínuo, a mesma mão foi coçar o couro cabeludo, irritado pelos piolhos. Vicente passou os olhos pelo abrigo e suspirou de enervação. “Só mesm'a nós é que nos põem neste gali-nheiro”, resmungou. “Quem viu os boches a viverem como fidalgos, lá nos seus palacetes subterrâneos, e quem nos vê p'rá'qui, neste buraco cheio de lam'e merda, deve pensar que somos parvos.“ Calou-se por instantes, a reflectir. “E sabem que mais? Somos mesmo. Somos parvos, som'uns grandes parvos por nos sujeitarmos a estas condições, e todos caladinhos, enquant'os cabrões dos oficiais s'abotoam c'as melhores instalações, os bons ranchos, as grandes vinhaças e as gajas boas, e s'estão a cagar p'ra nós. A cagar.”
“Podes crer, Manápulas”, concordou Baltazar, deitado no seu catre, os braços abertos e as mãos cruzando-se na nuca, a sustentarem a cabeça como almofadas. “Isto não é vida, não é vida. Andamos para aqui a arrastar-nos, manducamos umas rações mal amanhadas e, ainda por cima, temos de aguentar com estes bombardeamentos da porra que não há meio de pararem.“
Lá fora, a artilharia dos dois lados encontrava-se nesse dia muito activa, mais do que o normal. É verdade que a actividade crescera nas duas últimas semanas, mas parecia agora prolongar-se para além do costume. Os canhões vomitavam granadas a um ritmo regular, sucedendo-se explosões em ambos os lados das trincheiras, não muito intensas, mas permanentes, uma detonação aqui, depois outra ali, e outra ainda. Não era uma barragem de ataque, mas um martelar de desgaste.
“Dizes bem, não param”, queixou-se Abel, os nervos em franja. “Isto para mim é o pior. Há dois dias que não durmo. Não sei que bicho mordeu aos gajos, mas a verdade é que, desde que há umas semanas lhes deu para nos chatearem a toda a hora e nos atirarem 374
com as garrafas de litro, os copos de meio litro, as abóboras e eu sei lá que mais, eu não prego olho. “
“P'ra mim, o pior são os barris d'almude”, comentou Vicente, referindo-se aos projécteis de grosso calibre. “Quand'eles estouram, até os tomates se me tremem, caraças! “ Todos esboçaram um sorriso fatigado. A canhoada prosseguia, incansável.
“Os bombardeamentos são tramados, é verdade”, insistiu Baltazar. “Mas a paparoca é que dá cabo de mim. “ Sentou-se no catre e mirou os companheiros, num esforço para desviar as atenções do violento bombardeamento que se desenrolava no exterior. “Então não é que eu fui comprar um queijinho lá à Cantina Depósito, um queijinho que era uma categoria, hã? uma categoria de queijo flamengo, trouxe-o aqui para as trinchas e já me desapareceu todo? “
“Desapareceu, como? “, quis saber Matias, até ali entretido a limpar a Lewis.
“Desapareceu. Pendurei-o ali, apagámos a luz, fui bater uma sorna e, quando lá voltei, foi-se.“
“Estás parvo ou quê? Então deixas o queijo para aí e depois surpreendes-te que ele tenha desaparecido?“
“Sim, claro que me surpreendo. Nunca imaginei que os meus maradas me gamassem comida, caraças “
“A malta? Gamar-te o farnel“ Matias pôs o pano de limpar numa pedra e bateu com o indicador na testa. “Ó homem, tem mas é juízo! Não vês que isto está cheio de ratos?“
“E o que é que os ratos têm a ver com o meu queijo? “ Matias ficou baralhado.
“O que é que têm a ver? Mas, se são ratos... “
“Quais ratos, qual porra! Estás a reinar comigo ou quê?“ Baltazar levan-tou-se bruscamente, com grandes gestos, irritado. “Pois se eu pendurei o queijo! Pendurei-o, percebes? Aqui.“ Indicou com as mãos o sítio. “Estás a ver este gancho no tecto?“ Tocou no gancho. “Amarrei o queijo e pendurei-o aqui no gancho. Como é que queres que os ratos tenham vindo buscar o queijo, hã? Como é que queres? Só se forem ratos voadores...“
“Ó Baltazar, tem mas é tino nessa cabeça!“
“Tino? Eu?“
“Sim, tino! Então não sabes que os ratos se penduram nos ganchos para chegarem à comida?“
“Penduram-se nos ganchos? Os ratos? Nos ganchos? Vai-te cardar! “
“Estou-te a dizer que se penduram em tudo, Baltazar. Tudo. Até nos ganchos.“
“Já viste?“
“Por acaso, já.“
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Baltazar olhou-o com incredulidade.
“Estás a reinar.“
“Estou-te a dizer que já vi. Uma vez, quando vocês estavam a trabalhar nas drenagens das trinchas e eu voltei sozinho de um serviço de sentinela, deixei uma baguette pendurada num saco pregado ao tecto. Fui-me deitar e, quando comecei a dormir, senti ratazanas a correrem em cima de mim. Passado um bocado, quis ir mijar. Acendi a vela e vi os ratos todos pendurados no pão, pareciam um cacho, as caudas pretas suspensas no ar.
Ao verem a luz, largaram a baguette, caíram no chão e pisgaram-se todos, mas o certo é que eles estavam lá pendurados. Andei a investigar, a meter o bedelho nas coisas, vi-lhes os olhinhos a brilharem nos buracos e topei tudo. Eles montaram um sistema de túneis nas paredes das trinchas e põem-se à coca. Quando a luz se apaga, vai de saírem e atirarem-se à doida para a comida. A doida. Sentem-lhe o cheiro e saltam de todos os lados. Portanto, foi de certeza assim que eles também te limparam o queijo. “
“Homessa!“, exclamou Baltazar, surpreendido. “Ora querem lá ver isto? É verdade que eles andam sempre por aqui a escarafunchar e à noite, quando a luz está apagada, aparecem mais. Mas nunca imaginei que conseguissem apanhar farnel pendurado no ar, caraças. É do camano!“
“Os ratos são uma merda! “, grunhiu Vicente, ainda a coçar as borbulhas das picadas das pulgas. “Também já não sei onde poss'esconder a comida. E fic'aqui quilhado quand'os sint'andarem por cima de mim durant'a noite. Os mais pequenos saltitam, s'estivermos ferrados nem se dá por ela, inda vá que não vá. Mas há os outros, aqueles gordos e anafados, tão a ver? Esses são mesmo pesados, catano, é difícil ignorá-los. Ainda por cim'às vezes escond'o pão debaixo d'almofada, p'ra eles não lhe chegarem, mas os cabrões não me largam, põem-se-m'a cheirar o cabelo. “
“É, parecem lontras”, assentiu Abel com ar conhecedor. “Já repararam que, depois dos combates, os gajos andam mais gordos? Já repararam nisso, hã“ Calaram-se todos e ficaram momentaneamente a matutar nesta perturba-dora observação do Lingrinhas, embalados pelo som das explosões. Matias lembrou-se do cadáver que semanas antes tinha resgatado da terra de ninguém, meio comido pelas ratazanas, e estremeceu. Na altura não comentou o assunto com ninguém e preferia não o fazer agora.
“Mas por qu'é que não se faz um extermínio dos ratos?“, perguntou Vicente, também ele arrepiado com a ideia de os ratos se alimentarem de carne humana. “Sempre s'acabava c'o esta praga...“
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“O comando não deixa”, respondeu Baltazar. “Consta que os maiorais acham que os ratos são úteis “
“Úteis? Os ratos? Úteis p'ra quê?“
“Os tipos acham que os ratos não deixam apodrecer a carne dos mortos, são úteis para a higiene ali da Avenida Afonso Costa”, disse o Velho, projec-tando a mão direita vagamente em direcção da terra de ninguém.
“Porra, caraças!“, vociferou Vicente, elevando a voz. “Só mesm'a mente dos porcalhões dos oficiais p'ra pensar numa nojeira dessas! Cabrões de merda! Marranos d'um raio! E o qu'é qu'eles diriam se lhes atirássemos umas ratazanas esfaimadas p'ra cima dos cornos, hã? Isso também não seria útil p'rá higiene das trinchas? Se calhar era melhor, livrávamo-nos d'uma vez por todas dessa corja de chupistas e paneleiros e íamos mas é todos p'ra casa! “ Era nos momentos de irritação que Vicente mais se atrapalhava a falar e mais sílabas engolia. “Puta qu'os pariu!“
A artilharia calou-se nesse momento e os soldados respiraram de alívio. Matias arrumou a Lewis a um canto, sacudiu as mãos e ergueu-se, decidido.
“Malta”, disse então. “Vamos lá tratar da saúde aos ratos.“ “Como assim, tratar-lhes da saúde?“, admirou-se Baltazar. O cabo ignorou a pergunta.
“Abel e Vicente, vão lá fora buscar quatro pás.“ Os dois soldados ergue-ram-se, sem nada compreenderem, penduraram as máscaras antigás ao pesco-ço, não fosse o diabo tecê-las, e saíram do abrigo para executarem a ordem. Matias acocorou-se junto às provisões, tirou uma lata de corned-beefe e abriu-a. As praças regressaram, entretanto, com as quatro pás e ficaram a aguardar instruções. O cabo pegou em duas pás, ficou com uma na mão e entregou a outra a Baltazar. De seguida, espalhou um pouco de corned-beef pelo chão húmido do abrigo e olhou para os seus homens.
“Vamos apagar a luz. Quando os gajos aparecerem e vierem para aqui manducar a carne, à minha ordem começamos a aviá-los com as pás. Entendido?“ Todos murmuraram que sim e foram apagar os candeeiros. Logo que o abrigo mergulhou na escuridão, ouviu-se o habitual som das patinhas a percorrerem o soalho molhado e a convergirem para o local onde se encontrava a comida. Escutaram-se pequenos corpos a roçar uns nos outros, atarefados e gulosos, certamente que se amontoavam, sôfregos, esfaimados, disputando com ferocidade o mísero pedaço de carne.
“Agora! “, exclamou Matias.
Os quatro homens despejaram as pás sobre o molho invisível de ratos, acertaram no sítio onde estava a carne e ouviram guinchos a escaparem-se do chão. Sempre às escuras, reergueram as pás e voltaram a bater, desta vez usando o perfil da concha da pá como se 377
fosse uma lâmina gigante, e bateram ainda mais uma e outra vez, por vezes as pás atrapalhando-se umas às outras, mas batendo na mesma. Ouviram os ratos a espraiarem-se pelo abrigo, em pânico, e a violência terminou tão depressa como começara. Sentindo a calma restabelecida, Baltazar reacendeu os candeeiros. A luz revelou pequenos corpos negros e castanhos estendidos no chão, ensanguentados, mutilados, contaram sete, dois mortos, três moribundos, dois feridos. Os que ainda mexiam foram prontamente aniquilados pelas vingativas pás. Terminada a matança dos sobreviventes, os soldados encheram as pás de corpos desfeitos de ratos e ratazanas e levaram-nos para as trincheiras.
Chovia lá fora. Atiraram os corpos para poças de lama que se encontravam para além do parapeito e repararam que nesses charcos havia outros ratos, vivos, a nadar, os narizinhos espetados à superfície, todos a convergirem para os cadáveres recém-chegados.
“Que se comam uns aos outros! “, disse Baltazar com um esgar de nojo. “Bom proveito”
Soaram nesse instante as buzinas Strombos. O soldado colocou a máscara no rosto e apressou o passo em direcção ao abrigo. Vinha aí gás.
Afonso e Pinto foram na manhã de 18 de Março ao Laventie East Post para coordenarem o apoio às primeiras linhas. O regresso da Primavera tinha sido turbulento, com as posições portuguesas a enfrentarem sucessivos vendavais de bombardeamentos alemães. O inimigo lançou novos raides a 12 e nesse dia 18, reflectindo um aumento de actividade que provocou uma razia entre os depauperados efectivos portugueses. Quando o último raide terminou e os alemães retiraram, os dois oficiais seguiram pela Harlech Road em direcção a Red House, na Rue du Bacquerot. A meio da estrada, perto de Harlech Castle, cruzaram-se com o tenente Cook, que vinha em sentido contrário.
“What ho, Afonso, my lad!“, cumprimentou o inglês, fazendo continência. Olhou para o Cenoura. “Como está, seu Pinto?“
“Viva Tim”, saudou Afonso. “Por aqui?“
“É mesmo, estou preparando um report para o meu boss.“ “Isto está mau, hem?“
“Right ho”, assentiu o tenente Cook sombriamente. “Not good, not bloody good.“
“Anda, vamos ali tomar um chazito.“
O inglês aceitou o convite e juntou-se aos dois portugueses. Caminharam pela Harlech Road, apanharam a Rue du Bacquerot junto a Red House e viraram à esquerda até Picantin Road, indo instalar-se em Picantin Post.
“Joaquim, chá para três”, disse Afonso à sua ordenança ao entrar no posto.
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O soldado foi aquecer a chaleira enquanto os três oficiais recém- chegados se instalavam dentro do abrigo do capitão, sentados em caixotes de munições. Cook retirou do bolso um cachimbo e um saquinho com o que parecia ser erva escura.
“Tabaco de Aleppo”, explicou, notando o olhar inquisitivo dos portu-gueses.
O tenente inglês colocou o tabaco no cachimbo e juntou-lhe o lume de um fósforo.
Afonso pigarreou.
“O que é que achas que os tipos estão a preparar? “ “ Quem? Os jerries?”
“Sim. “
O tenente inglês aspirou forte, com o fósforo aceso sobre o tabaco, e conseguiu puxar uma baforada de fumo. O aroma agradável do cachimbo perfumou o abrigo.
“Hard to say”, disse finalmente. Aspirou mais um pouco e largou uma nova nuvem de fumo. “Não há dúvidas de que os jerries vão atacar em breve. No doubts whatsoever. O
próprio Alto Comando já comenta isso abertamente. A questão é saber onde.“
“Achas que será aqui?“
“Hardly.“ Ergueu-se e aproximou-se do mapa que se encontrava na parede. “Temos informações fidedignas que apontam para algures no sector de Arras, mais para o sul.“ Indicou com o cachimbo o ponto que referenciava Arras no mapa. “Aqui.“
“Então por que é que estão a bombardear- nos desta forma todos os dias e a lançar estes raides? “
“O Alto Comando pensa que são manobras de diversão. Os jerries que-rem manter-nos no escuro, a tentarmos adivinhar qual o ponto que vai ser ata-cado. Por isso, reactivaram esta frente“ “Mas sabes o que é que nós já notá-mos?“, perguntou Afonso, remexendo-se desconfortavelmente sobre o caixote onde se encontrava sentado. “Os boches estão a regular o tiro sobre nós.“
Cook fez um ar intrigado.
“ Jhat do you mean “
“O fogo de artilharia não está a cair aleatoriamente. Antes pelo contrário, eles estão a disparar com muita precisão sobre determinados alvos. Por exemplo, andam a regular o tiro sobre estradas, cruzamentos e postos de comando. “ Estreitou os olhos. “Dá a impressão de que estão a ensaiar. Para que é que lhes serve bombardearem estradas, a não ser para as referenciarem de modo a que, se lançarem um grande ataque, possam impedir a circula ção de reforços?“
“Isso é curioso”, reflectiu Cook, sentando-se no seu caixote. “Confesso que me vou inclinando para a possibilidade de eles estarem tentando criar uma manobra de diversão, mas isso que você diz me deixa na dúvida.“ Aspirou o cachimbo e soltou mais uma lufada 379
de fumo aromático. “Sabe, dá a impressão de que esses raides todos estão servindo para os sujeitos testarem as vossas defesas. Admito que eles lancem uma operação por aqui, mas olhe que vai ser coisa limitada, será só para nos xingarem, entendeu?“ Afonso e Pinto entreolharam-se. O capitão ergueu-se, foi buscar uma pasta que guardava debaixo do catre e voltou a sentar-se no caixote. Abriu a pasta e exibiu uma resma de folhas dactilografadas em papel químico, eram cópias de documentos.
“Estás a ver isto?“, perguntou, levantando as folhas e agitando- as à frente do inglês.
“São os nossos relatórios diários. São elaborados pelos oficiais da Brigada do Minho e referem-se à actividade aqui em Fauquissart, o sector à nossa guarda.” Afonso pôs-se a folhear os documentos, lendo aqui e ali, mudando de folha, lendo mais um pouco, mudando novamente, e assim por diante. A certa altura parou numa folha, voltou para a folha anterior, de novo a seguinte, outra vez a anterior. “Cá está”, exclamou finalmente.
Apontou para o meio da página. “Olha para isto.“
“What? “
Afonso leu o documento.
“Este é o relatório do dia 7 de Março, há menos de duas semanas. Nessa noite saíram várias patrulhas para a terra de ninguém, e diz aqui o seguinte. “ Fez uma pausa para ler o texto. “Foi notado bastante ruído de viaturas à retaguarda das linhas inimigas.“ Ergueu a cabeça e fixou o inglês. “Ouviste? É a primeira vez que um relatório menciona a existência de ruído de viaturas na retaguarda alemã.“ Mudou para a folha seguinte. “Agora é o relatório de 8 de Março. “ Começou a ler o trecho que lhe interessava. “Ouviu-se o rodar de vagonetas à retaguarda da primeira linha inimiga.“ Sem levantar a cabeça, passou à folha seguinte. “Este é o relatório de 9 de Março “ Uma ligeira pausa. “Durante toda a noite foi ouvido o rodar de vagonetas à retaguarda da primeira linha inimiga “ Nova folha.
“Relatório de 12 de Março “ Hesitou, surpreendido. “Olha, falta-me o de 10 e o de 11.“ Procurou na resma, foi para trás e para a frente, mas não encontrou. Encolheu os ombros, resignado. “Não faz mal, vamos ver o de 12“ Curta pausa. “Todas as patrulhas informam que durante a noite houve grande movimento de viaturas à retaguarda das linhas inimigas e rodar de vagonetas. “ Folha seguinte. “Relatório de 13 de.“
“All right, all right, got it”, interrompeu Cook. “Já entendi que há grande movimento de viaturas nas linhas alemãs. “
Afonso ergueu a cabeça e fixou-lhe os olhos.
“Exactamente. Eles estão a movimentar tropas à nossa frente. “ “Pode ser muita coisa.“
“Pode ser. “
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“Pode ser que estejam movimentando forças para outros pontos da frente.“
“Pode ser. Mas também pode ser que estejam a movimentar forças de outros pontos para aqui. Aliás, tudo isto coincide com o aumento dos bombardeamentos e dos raides inimigos sobre as nossas linhas. Basta somar dois e dois“ Joaquim entrou no abrigo com a chaleira a ferver e copos de latão. Os dois oficiais portugueses serviram-se, mas o inglês preferiu concentrar-se no cachimbo. Cook aspirou forte, os lábios a envolverem o bocal, mas não saiu fumo nenhum.
“Damn!“, praguejou, inspeccionando o tabaco inserido no cachimbo. “Se apagou. “ Colocou o cachimbo de lado, irritado, e serviu-se de chá. “O problema é que esta actividade dos boches está a reflectir-se negativamente no moral das tropas”, disse Afonso.
“Eu notei”, devolveu Cook. “Enxerguei sentinelas cochi-lando nas trincheiras, munições espalhadas pelo chão, à toa, parapeitos por reparar. Isso não é bom, não.“ Afonso suspirou.
“Andamos aqui há demasiado tempo, demasiado. Olha, Tim, quando a nossa brigada entrou nas linhas, em Setembro, os boches tinham diante de nós a 219.a Divisão. Em Novembro, essa divisão foi rendida pela 50. a Em Janeiro saiu a 50.a e entrou a 44.a E este mês a 44. a foi descansar e temos agora pela frente a 81.a Divisão alemã. Ou seja, em seis meses eles colocaram ali quatro divisões diferentes, rodando os homens e deixando- os descansar. Pois nesses seis meses nós nunca descansámos e tivemos sempre de enfrentar tropas frescas. “ Bebeu um golo de chá. “Mesmo as vossas forças têm estado sempre a ser rendidas. À nossa esquerda, desde Setembro, estiveram sucessivamente a 38.a Divisão britânica, a 12.a Divisão e agora a 57.a Divisão. E à direita sucederam-se, no mesmo período, a 25.a Divisão, a 42.a Divisão e agora a 55.a Divisão. E nós sempre na mesma, parece que criámos raízes. Como é que queres que o moral das nossas tropas permaneça elevado Hã?”
Cook assentiu com a cabeça.
“Vocês têm de ser substituídos, não tenho dúvida nenhuma. Nem eu, nem o Alto Comando. Aliás, essa é a minha recomendação ao meu boss. “ Engoliu de assentada o resto do chá e ergueu-se. “Look, Afonso, tenho de ir andando para fazer meu report. Se eu tiver novidades, eu te digo, tá? “ Fez continência. “Cheerio, old chap. “ Começou por ser apenas um rumor, alguém que disse que alguém ouviu dizer, e a palavra foi circulando de boca em boca, esvoaçando pelas trincheiras, saltitando pelos abrigos. No posto de sinaleiros, porém, o boato transformou-se em certeza.
“Sim, meu capitão, os boches lançaram uma grande ofensiva”, confirmou o oficial de serviço aos sinais, um tenente.
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“Onde? “, quis saber Afonso.
“Entre Arras e St. Quentin, meu capitão. “
Afonso dirigiu-se ao mapa.
“Hum, isso é em frente de Amiens”, verificou, medindo as distâncias em relação a Armentières e em relação a Paris. “E como é que estão as coisas? “
“Acho que mal, meu capitão. Temos poucas informações, mas dizem que é o maior bombardeamento de sempre e que há uma maré de boches a avança-rem sobre os camones.“
“Os gajos avançaram até onde?“, quis saber Afonso, sempre com os olhos pregados ao mapa.
“Isso não sei, meu capitão.“
Afonso sentiu um peso a libertar-se-lhe dos ombros. Corria o dia 21 de Março e aquela era certamente a grande ofensiva da Primavera. Os alemães davam o tudo por tudo para quebrarem as linhas aliadas e, mais importante do que o resto, não escolheram o sector do rio Lys para o fazerem. O capitão quase sorriu de contentamento, o pior cenário, aquele que mais temera e que mais o consumira, não se confirmara. Tim tinha razão quando dizia ter informações seguras de que os alemães iriam antes avançar no sector de Arras.
Reforçando a convicção de que já não havia motivos para recear uma grande operação alemã contra o CEP, a actividade do inimigo sobre as posições portuguesas diminuiu drasticamente de intensidade nos dias que se seguiram ao grande ataque do dia 21. As patrulhas ainda continuaram a registar enorme movimento de viaturas na retaguarda das linhas alemãs, mas a partir do dia 25 instalou-se a tranquilidade.
Afonso suspirou de alívio.
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