XIV

Afonso abandonou as linhas num estado de total exaustão e, tal como todos os homens que participaram no raide, beneficiou de uma dispensa de dois dias. Depois de apresentar um relatório ao major Montalvão, o coman-dante de Infantaria 8, requisitou um cavalo e foi até Béthune, ao anexo que se tinha transformado no seu lar. Deixou a montada amarrada a um carvalho, junto a um bebedouro, e caminhou ansiosamente para o cubículo alugado por Agnès. Estacou frente à porta de madeira tosca, procurou a chave no bolso, colocou-a na fechadura e entrou.

“Agnès“

Ninguém respondeu. Olhou em redor e verificou que tudo se encontrava bem arrumado e o anexo relativamente aquecido. A sua francesa tinha provavelmente ido trabalhar, mas deixara o anexo impecável antes de sair. Afonso fechou a porta, despiu o casaco, foi até ao bacio, mirou-se ao espelho, tinha o ar cansado, a barba por fazer, olheiras a ensombrarem-lhe os olhos. Pegou no jarro, despejou água fria nas mãos, lavou a cara, despiu a roupa imunda, tirou as botas enlameadas e as meias sujas, mergulhou os pés no bacio, a água estava tão fria que até os ouvidos lhe doeram, passou água pelo corpo, esforçando-se por retirar a lama seca que lhe cobria a pele, esfregou com sabão, voltou a passar água, depois mergulhou a cabeça na água barrenta, mais lama saiu, passou ainda uma toalha molhada pelo corpo, a tremer de frio secou-se apressadamente, colocou meias limpas, um pijama lavado, atirou-se para a cama e enroscou-se nos cobertores.

Uma superfície húmida, quente e macia colada às bochechas e um agradável e familiar aroma perfumado fizeram-no abrir os olhos. Viu uns lábios enormes à sua frente e levou dois segundos a compreender. Era Agnès que o beijava.

“Ça va, mon mignon? »

A voz era suave, quase uma carícia, e Afonso sentiu-se bem. “Olá mon petit choux”, disse com voz de sono.

Reparou então que estavam na penumbra, tudo se encontrava escuro, a noite caíra, passara todo o dia a dormir. A francesa passou-lhe a mão carinho-samente pelo rosto.

“Então como foi a guerra hoje? “

Afonso hesitou. Quis contar-lhe tudo, relatar-lhe o raide, os mil perigos, o medo, os mortos e a história do alemão moribundo, ainda abriu a boca mas interrompeu-se a tempo, 366


pensou que era pouco avisado estar a relatar-lhe a operação, ela ficaria assustada e passaria a viver em sobressalto mais do que já vivia, mais valia que continuasse a acreditar que o seu capitão estava agora unicamente encarregado de tarefas burocráticas nas trincheiras.

“Tudo normal”, devolveu, fingindo-se despreocupado. “Muita papelada, muita papelada”

“Não fizeste des bêtises? “

“Non. “

“Não andaste atrás de demoiselles? “

“Nas trincheiras?

Ela riu-se.

“ Oh la la! São as piores! “, exclamou, piscando o adorável olho verde.

“Ah sim, o que para lá mais há são mesmo demoiselles!“, comentou Afonso com um sorriso amargo. “Parvinha “

Disse “parvinha” em português, e ela arregalou os olhos.

“Quoi?“

“Parvinha.“

“est quoi, ça?”

“Parvinha? Uh... sei lá, é tipo... uh... parvalhone.“

“Parvalhone?”

Afonso riu-se. Quando não sabia qual a exacta palavra francesa, afrance-sava uma palavra portuguesa, mas nem sempre saía bem.

“Não interessa”, disse, desistindo de procurar a palavra exacta. “Como vai o pequerrucho? “

Agnès olhou para o ventre. A protuberância da gravidez era ainda minúscula.

“Oh, tem-se portado bem, é um amor.“

“Temos de lhe escolher um nome. Já pensaste? “

“Oui”, disse ela, fazendo-se séria. “Por que não Alphonse, como o seu papá?

“Afonso? Não, vamos pensar noutro... “

“Temos sempre a hipótese do nome do meu pai. Como se diz Paul em português?“

“Paulo.“

“Hum, parece italiano.“ Fez um ar meditativo, apreciando a sonoridade do nome.

“Paolo. Gosto.“

“Paulo”, corrigiu Afonso. “Parece-me bem. “ Deu-lhe um beijo. “Mas, olha lá, e se for menina?“


367


“Se for menina, temos duas hipóteses. Ou Michelle, como a minha mãe, ou então o nome da tua mãe. Como é que ela se chama mesmo?”

“Mariana. “

“Mariana então. Um desses dois. “

“Por que não Inês? “

“Inês? Que nome é esse? “ “É Agnès em português. “

Agnès fez um trejeito de boca, pensativa.

“É uma ideia. Vamos amadurecer isso, afinal de contas temos tempo. O doutor Almeida disse-me que o parto só deve ser lá para Outubro “ Afonso fez nessa noite amor com intranquilidade, as imagens do raide, do alemão desventrado, da correria tresloucada, dos projécteis a sibilarem, tudo sempre na sua mente.

Olhava Agnès e via a guerra, os mortos, as explosões, os disparos, os very lights, os gritos, a crueldade, o medo. Teve dificuldade em concentrar-se. Depois de saciarem os corpos, agarrou-se a ela como se a fosse perder dentro de instantes. Emocionado, pegou-lhe na mão e fitou-a nos olhos.

“Queres casar comigo? “

Agnès estremeceu e abraçou-o com força.

“Oui, oui”, soprou. “Pensei que nunca irias perguntar.

Ele beijou-a nos lábios e sentiu-lhe a face molhada.

“Casamo-nos, temos o filho e vens comigo para Portugal. Vais ver aquele sol...“ Ela fungou.

“Oui.“

“Vou pedir uma licença para casar. Que dizes de final de Abril?“

“Parece-me difícil.“

“Porquê?“

“Alphonse, não te esqueças de que eu ainda estou casada. Já meti os papéis do divórcio, mas acho que só lá para o Verão serei uma mulher livre” Afonso suspirou, conformado.

“Então será no Verão. O problema é que a Igreja não aceita divórcios...

“Não sejas bête. Não vês que eu não me casei pela Igreja?

“Como assim, não te casaste pela Igreja?“

“Com Serge casei-me na igreja, mas ele morreu. Com Jacques, que é ateu, casei-me na Conservatória de Armentières. Portanto, para a Igreja eu nem sequer sou casada, sou viúva.

“Mas isso resolve tudo”, exclamou Afonso com entusiasmo.


368


“Assim sendo, casamos mesmo pela Igreja, comme il faut.” Pedimos ao capelão do Exército e fazemos a cerimónia ali na paróquia de Aire ou de Merville. “

“Não, aí não, é demasiado vulgar. Sempre sonhei num casamento gran-dioso. Por que não na Catedral de Amiens? “

“Na Catedral de... “

“A Catedral de Amiens é a maior de França, uma coisa magnífica.“

“Muito bem, será na Catedral de Amiens”, concordou. “Só é pena que a minha família não possa assistir”

Ficaram algum tempo agarrados um ao outro, em silêncio. De repente, Afonso pegou na vela que estava na mesinha de cabeceira, levantou-se, foi sentar-se à mesa, nu, cobriu-se com uma manta e rodeou- se da caneta, do tinteiro e de um papel de carta.

“O que estás tu a fazer? “, perguntou ela, apoiada sobre o cotovelo, na cama, admirada por vê-lo a escrever àquela hora.

“Vou escrever uma carta”, limitou-se a dizer.

Agnès ficou a observá-lo, o seu homem curvado sobre a folha de papel a desenhar as letras com a língua entre os lábios, relendo baixinho o que escre-vera naquele idioma desconhecido, volta e meia pousava a ponta da caneta no tinteiro e voltava a escrever.

Finalmente dobrou a folha, inseriu-a no envelope, passou a língua molhada pela cola, fechou o envelope e entregou-lho. A fran-cesa ficou a olhar para o sobrescrito, surpreendida.

“Escreveste-me a mim?“, perguntou sem compreender. “Não, escrevi à minha mãe.”

“Mas o que é que queres que eu faça com isto? Queres que a vá pôr no correio?”

“Não, não, isso seria mau sinal”, disse-lhe ele. “Só deves mandar essa carta se me acontecer alguma coisa, entendeste? “

A francesa fitou-o com alarme e ansiedade.

“Se te acontecer alguma coisa?”

“Não te preocupes, é uma mera medida de prevenção. Estamos em guerra, eu ando nas trincheiras, em princípio não acontece nada porque estou encarre-gado da papelada, não de combater, mas nunca se sabe, não é? De modo que, se me acontecer alguma coisa, o que não penso que venha a acontecer, mas, se acontecer, tens aí o contacto da minha mãe com todas as minhas explicações. “

“Que explicações?”


369


“As coisas normais em tais circunstâncias. Quem tu és, que eu te amo, que quero casar contigo, que tens o meu filho no ventre, que ela deve dar-te toda a assistência de que precisares, que todas as minhas poucas posses vão para ti... tudo.“ Agnès voltou a mirar a carta, atrapalhada.

“E a que propósito é que tu te lembraste disso agora, a esta hora?“ Ele abraçou-a.

“Sei lá, lembrei-me, pronto. “ Deu-lhe um beijo. “Mas não te preocupes, ma mignonne, já te disse que não morro nem que me matem, vais ver. Nem que me matem.

Aqui o teu Afonso é rijo como um carapau, está para lavar e durar. “ Depois de Agnès ter adormecido, o capitão permaneceu ainda longas horas desperto, a rever os acontecimentos da madrugada, segundo a segundo, imagem por imagem, emoção atrás de emoção. Sentia-se exausto mas, quando se foi deitar, tardou a adormecer, era a consciência que o apoquentava, a imagem do alemão com as entranhas de fora, a voz numa súplica de moribundo a ecoar-lhe na memória.

Teve vários pesadelos durante a noite, chegou a acordar transpirado, Agnès a acalmá-

lo, “tout va bien, mon petit, tout va bien”, sussurrou-lhe ela, mas quando acordou da última vez viu que a luz do Sol lhe entrava pela janela. Apalpou a cama, pro curando a francesa ao lado, mas a mão apenas encontrou o lençol, percebeu que ela já lá não estava, tinha ido trabalhar. Deixou-se ficar ainda uma meia hora na cama, meio para lá, meio para cá, no quentinho, na sorna, numa modorra gostosa, até que sentiu fome, bocejou e levantou- se. Era meio-dia. Vestiu uma farda lavada, colocou o sobretudo e saiu à rua.

Choviscava cá fora, mas o boné de oficial protegia-lhe a cabeça. Deu de comer e de beber ao cavalo, que permanecia atado à árvore, e seguiu a pé pela vila. A trovoada da artilharia mostrava-se nesse dia particularmente intensa e Afonso agradeceu aos céus por não se encontrar de serviço nas trincheiras. Cirandou pelas ruas de Béthune e foi a um estaminet muito frequentado pelos oficiais do CEP, a proprietária era madame Cazin, uma normanda rechonchuda e bem-disposta, boa compincha dos portugueses. Afonso sentou-se numa mesa à janela e a senhora Cazin trouxe-lhe uma marmite Dieppoise, um suculento prato da sua Dieppe natal, servido num tacho onde se misturavam peixe, mariscos e molho de natas, com uma tarte normande a rematar, tudu regado a poiré, uma bebida tradicional normanda feita a partir de peras. Estava já ele a trincar a maçã da tarte quando viu um rosto familiar entrar no estaminet.

“Psst, Mascarenhas”, chamou. “Ó Mascarenhas! Mascarenhas! “ O seu amigo transmontano da Escola do Exército, o sportinguista dos cinco costados que era segundo comandante de Infantaria 13, veio ter consigo.


370


“Ora viva, Afonso! Com que então por aqui? “

“Cá vamos. Senta-te, homem. “

O major Mascarenhas acomodou-se na cadeira em frente, a claridade da luz do dia a penetrar pela janela e a iluminar-lhe o lado direito do rosto.

“O que é que andas aqui a fazer?“, perguntou o recém-chegado. “Deser-taste ou quê?

Que eu saiba, o 8 está nas linhas e aquilo anda hoje bem quentinho.“

“Pois anda, mas eu estou de licença, graças a Deus.“ “Ah sim? Quem é que tiveste de subornar, meu sacripanta?“ “Não me digas nada, homem. Participei ontem de madrugada num raide à Mitzi.“

“O quê? O raide do 21? Tu estiveste lá? “

“Estive pois. “

“Mas o que é que tu andavas a fazer no raide do 21? Mudaste de batalhão ou quê? “

“É muito complicado, Mascarenhas, muito complicado. Coisas de política dentro do CEP. Era uma operação da 1.a Divisão, mas o pessoal da 2.a também quis um quinhão e quem serviu de carne para canhão foi aqui o teu amiguinho“

“Ena, caramba”, riu-se Mascarenhas. “Não me digas. Conta lá como foi aquilo “

“Correu mais ou menos”

“Mais ou menos? Fala-se num grande êxito, nos objectivos todos alcan-çados e numa catadupa de cruzes de guerra e promoções a caminho...

Afonso encolheu os ombros, cansado.

“Sim, sob esse ponto de vista não correu mal. No conjunto de todos os pelotões que participaram no raide, matámos um porradal de boches, fizemos um prisioneiro, destruímos um decauville e uma data de abrigos, não foi mal. “

“Vocês sofreram muitas baixas? “

“No meu pelotão, nenhuma. Mas, nos outros pelotões, mais de uma dezena de homens ficaram feridos, incluindo um alferes e um tenente. Acho que encontraram um abrigo que era um verdadeiro vespeiro de boches, mas mataram-nos todos. Ou melhor, quase todos, ainda prenderam um, vá lá. “

“Ouvi dizer que os nossos dois oficiais que ficaram feridos estão mal”, comentou Mascarenhas em voz baixa. Fez- se, por um momento, um silêncio embaraçado, mas o transmontano depressa relançou a conversa em tom mais animado. “E tu? Viste muitos boches?”

“Nem por isso. Os gajos pisgaram-se, ainda apanhámos uns quantos em fuga e outros escondidos nos abrigos, mas nada de especial. “


371


“Espero que o raide tenha posto os tipos em sentido. Andam a ficar cada vez mais atrevidotes, com os ataques que nos lançaram nos dias 2 e 7. Já reparaste que os gajos intensificaram as operações?

“É, está a chegar a Primavera, a lama começa a secar e a coisa vai aquecer.

“Mas não são só os raides”, insistiu o major. “Estive a ler os relatórios e reparei que os tipos intensificaram também as patrulhas, este mês já tentaram entrar várias vezes à sucapa na nossa primeira linha. Ora isso raramente acontecia antes.“

“Ah sim? Não sabia disso...“

“E já notaste que a artilharia boche tem estado mais activa do que o normal?”

“Issu eu já tinha reparado. Interrogo-me sobre o que é que eles andam a congeminar.

Aliás, o próprio Mardel anda preocupado, daí o raide que ontem fizemos. “

“Pois hoje as coisas voltaram a aquecer, o comando teve informações de que os gajos iam atacar a todo o momento e emitiu uma ordem para a nossa artilharia bombardear Piètre, Ligny le Petit e alguns sectores da retaguarda por alturas de Illies. De modo que, neste momento, vai para lá uma actividade danada.“

Ficaram os dois a ouvir o rumor distante da artilharia, os canhões portu-gueses e alemães em fogo e contrafogo. Madame Cazin aproximou-se entre-tanto da mesa com a ementa. Mascarenhas consultou a lista e pediu umas andouilles com maçã. A dona do estaminet afastou-se e o major piscou o olho a Afonso.

“Não sei que treta é esta das andouilles, mas pelo nome parece uma ave. Será que são andorinhas?“

Afonso sorriu.

“Chouriço em tripas”, disse.

“Tripas?“

“Recheadas de chouriço. E maçãs. Os normandos põem maçãs em tudo. “

“Normandos?“

“Sim, homem, normandos. Não sabias que a dona deste estaminet é normanda?“

“O quê? Aquela? Uma viking?“

“Não, homem, a Normandia é uma região de França aqui perto, junto à costa. Ela veio de lá, é só isso.“

“Ah”, exclamou. Fez uma pausa e ficou a pensar no prato que encomen-dara. “Não desgosto de tripas, nem de chouriço. Lá em Vila Real comemos isso e muito mais “ Permaneceram os dois calados, a olhar pela janela que se encontrava ao lado da mesa.

Afonso bebeu o último trago do poiré.

“Sabes que mais me admirou quando andámos ontem a passear lá pela Mitzi?“ 372


“O quê?”

“As trinchas dos gajos.“

“ O que é que têm.“

“São de um luxo do caraças. Tudo bem tratado, o chão seco, sofás, beliches, livros, iluminação eléctrica, gramofones, relógios de pêndulo, tapetes, eu sei lá. Até vi um abrigo decorado com papel de parede, vê lá tu.“

“Estás a reinar.“

“A sério. Aquilo é incrível, parece que estão em casa, é tudo muito asseado, muito organizadinho. Além do mais, são de uma segurança a toda a prova. Os abrigos da linha estão cavados em profundidade, defendidos por paredes de betão e ligados uns aos outros por uma rede de túneis subterrâneos. Não dá para acreditar”

“Mas isso é mesmo assim? “

“É como te digo. O Tim já uma vez me tinha dito issn, só que eu não acreditei, achei que eram balelas. Mas agora que vi... “Como é que eles conse-guem ter isso tudo assim tão arranjadinho.“

“Investiram muito nas instalações de defesa. Ao que parece, enquanto nós consideramos as trincheiras um local de passagem, um abrigo efémero enquanto não os obrigamos a recuar, eles consideram-nas um posto de permanência a longo prazo, um sítio donde nunca sairão. Os nossos comandos acham que temos de permanecer desconfortáveis para que tenhamos vontade de os expulsar, dizem eles que é para mantermos o espírito ofensivo. Já os comandos dos tipos pensam que a sua tropa tem de permanecer confortável para não ter vontade de recuar. De modo que, enquanto a malta está na pocilga, os gajos refastelam-se em sumptuosas mansões cavadas na terra.“ Mascarenhas abriu as mãos com as palmas para cima, num gesto confor-mado.

“C'est la vie “


373


Загрузка...