I

Foi como se alguém tivesse ligado o interruptor. Num instante estava tudo calmo, sereno, silencioso. Ouviam-se rãs a coaxar junto aos charcos imundos e grilos a estridular nos descampados devastados. No momento seguinte, porém, a tempestade foi desencadeada com uma violência inaudita. Não foi primeiro um tiro, seguido de outro e de mais outro ainda. Foram os canhões em simultâneo a metralhar explosivos com uma intensidade brutal, numa cerrada barragem de fogo, como uma brusca maré que, sem aviso, galga terreno e invade a praia numa fúria destruidora, como uma orquestra que de repente rasga o silêncio e irrompe furiosamente numa infernal sinfonia.

Desde que regressara de Fleurbaix que o capitão Afonso Brandão tinha mergulhado num grande estado de ansiedade. Comunicou ao major Montalvão tudo o que soubera no quartel-general da 40.a Divisão britânica, mas o coman-dante de Infantaria 8 não se mostrou muito preocupado, provavelmente pensou que era mais um de muitos falsos alarmes dados por mais um oficial demasiado nervoso. Sentindo-se impotente para travar o rumo dos acontecimentos, Afonso resignou-se ao seu destino e regressou ao Picantin Post ainda com a íntima esperança de que os seus receios fossem realmente infundados. Não conseguiu dormir. Passou a noite irrequieto, a inspeccionar as trincheiras, a mandar limpar as armas e a verificar os paióis. Fixava por vezes os olhos nas linhas inimigas, tentando lobrigar movimento, procurando adivinhar o que ali se tramava, mas nada via, era como se ali estivesse erguido um muro negro, ameaçador e sinistro, insondável e impenetrável. Pelas quatro da manhã, já algo cansado, recolheu ao posto e sentou-se junto ao ninho de metralhadoras a beber um chá com dois homens de serviço à Vickers.

Apesar de já estar de sobreaviso, Afonso quase entornou a caneca de chá com o susto provocado por aquela enorme vaga de explosões que de súbito acendeu o horizonte e iluminou as sombras. Um fragor tumultuoso encheu a noite, o solo tremia como se fosse abalado por um tremendo terramoto, brutal e medonho, de uma intensidade alucinante, colérica, o ar vibrava e trepidava ao ponto de baralhar os olhos, a barulheira era tanta e tão cerrada que o capitão teve dificuldade em entender o que lhe gritava um dos homens da metralha-dora situada a uns meros dois metros de distância.

“... á... ra... go. “


394


“ Como?”

“á... ra... go”

Afonso olhou para o soldado, perplexo. Não conseguia entender o que ele lhe gritava. Deu um passo e encostou o ouvido direito à boca da praça.

“Vá para o abrigo! “, berrava o homem.

O capitão fez que não com a cabeça. A intenção do soldado era boa, mas ali quem dava ordens era ele. Olhou para o relógio e verificou que eram quatro e um quarto da madrugada. Esticou a cabeça acima do monte de sacos de terra que protegia o ninho e viu o horizonte incendiado à frente e atrás de si, uma claridade de vermelho do inferno erguia-se das trincheiras enquanto clarões luminosos cruzavam o céu às centenas, aos milhares, todos a assobiarem, eram os projécteis incandescentes que os alemães lançavam como chuva sobre as linhas portuguesas, batendo inicialmente a área do comando, na retaguarda.

Os tiros de canhão eram tantos que não se ouvia nenhum isoladamente, antes formavam todos um urro único, surdo, brutal, sinistro. Pelo sentido das detona-ções, tornara-se evidente que o bombardeamento não era aleatório, mas diri-gido com precisão para as estradas, cruzamentos e pontos de comando. Clarões de fogo brilhavam no sector onde se situava Laventie, era provavelmente o quartel-general da brigada que ardia.

O major Gustavo Mascarenhas acordou em sobressalto e viu pedaços de tijolo, terra e caliça espalhados pela manta que o aquecia. Deu um salto na cama, surpreendido, os ouvidos ainda a zunir, e, já em pé, olhou para além da janela despedaçada. A noite acendera-se, iluminada por sucessivas explosões, a planície tremia sob uma barragem de fogo jamais vista pelas tropas portuguesas. O segundo comandante de Infantaria 13 despiu atabalhoadamente o pijama e colocou a farda num tropel. Uma vez vestido e armado, saiu do quarto e desceu à sala que servia de secretaria, para onde convergiram também os outros oficiais do batalhão transmontano.

“Meu major, já viu isto?“, perguntou-lhe o alferes Veiga, ainda a calçar uma bota.

“Nem no último dia os boches nos deixam em paz. Nem no último dia, caraças. “

“É”, assentiu Mascarenhas, bem-disposto. “Acho que já estão com sauda-des nossas e resolveram mandar-nos estes simpáticos postais de despedida.“ Todos se riram nervosamente, incluindo dois sargentos que executavam tarefas de amanuenses na secretaria do batalhão. O comando de Infantaria 13 encontrava-se instalado num edifício designado por Senechal Farm, em Lacou-ture, um posto que estava para Ferme du Bois como Laventie para Fauquissart.

Lá fora, o barulho das detonações era ensurdecedor. A casa tremia com a vibração das explosões, mas os oficiais mostravam-se calmos.


395


“Sabem o que isto é? “, perguntou o capitão Ambrósio depois de mais um estremeção dos alicerces da casa.

“Uma retaliação pelo nosso bombardeamento de ontem?“, arriscou Veiga.

“Nem mais. Os gajos estão a dar-nos o troco.“

A artilharia portuguesa tinha, na véspera, bombardeado as posições alemãs em Bois du Biez, frente a Neuve Chapelle, e todos concordavam que estavam a assistir à resposta inimiga.

“Ó Veiga, vê lá se este bombardeamento é só em nossa honra ou se está também a atingir outros batalhões”, ordenou Mascarenhas.

O alferes era o sinaleiro de Infantaria 13 e foi ao telefone comunicar com a brigada.

Pegou no aparelho, colou- se ao bocal e colocou o auscultador junto ao ouvido esquerdo.

“Está lá? Está lá?“, chamou. Fez uma pausa. “Ouve bem? Está lá? Está lá?“ Tentou durante mais um minuto até se convencer de que a ligação não era possível. Olhou para Mascarenhas e abanou a cabeça. “Não há resposta, meu major. As granadas devem ter cortado os fios.“

“Pega aí em dois homens e vão lá fora reparar as linhas”, ordenou o major.

Veiga vestiu a gabardina, chamou duas praças, pegou numa caixa de ferramentas e saiu, mergulhando na noite turbulenta.

Havia já uma hora que o pelotão comandado pelo sargento Rosa se enco-lhia na linha da frente, vendo a trincheira da primeira linha a ser metodi-camente despedaçada pelas granadas e bombas que ululavam em aproximação. As primeiras salvas tinham sido dirigidas para a retaguarda, mas a artilharia alemã foi pouco a pouco encurtando o tiro, arrasando as posições portuguesas de trás para a frente como um rolo compressor, até se concentrar na primeira linha. Vicente tinha já sido atingido de raspão no ombro esquerdo por um estilhaço de bomba, quando se ouviu mais um zumbido e todos se encolheram, instintivamente perceberam que a granada ia mesmo cair por cima deles.

A explosão ocorreu em cheio na linha da frente, numa zona guarnecida por alguns homens do pelotão. Foi uma deflagração terrível, seguida de um sopro quente de ar e de uma chuva de destroços, pedras e poeira, era como se um bafo dos infernos por ali estivesse a passar. Matias Grande ergueu-se, os ouvidos a zumbirem, inspeccionou o corpo, confirmou que escapara ileso apesar de a farda ter sido rasgada nas mangas, e olhou para a cratera onde a granada tinha caído. No lugar dos seus camaradas encontrava-se apenas aquele sinistro buraco fumegante, era evidente que os corpos tinham sido cortados aos bocados ou mesmo se tinham evaporado pela acção do calor da explosão. O sargento Rosa 396


levantou-se com igual dificuldade, sentia-se tonto, e olhou para cada um dos homens do pelotão, contabilizando-os.

“Faltam três”, concluiu. Olhou de novo, buscou os rostos que não via e chamou-os.

“O Ribeiro?“ Procurou ainda. “Ribeiro! Ribeiro!“ Todos permane-ceram calados, o olhar pesado, tenso. “O Parente O Oliveira.“

Não houve resposta e o grupo presumiu, sem grande margem para dúvi-das, que os três estavam mortos. Na cratera viam-se alguns pedaços de carne solta e reconheciam-se mesmo dois dedos, um deles um polegar. Havia mais vestígios, mas ninguém os quis analisar. Outros dois homens encontravam-se feridos e gemiam encostados ao que restava do parapeito, uns sacos de terra já rasgados. Um dos feridos sangrava abundantemente da cabeça e o segundo tinha um estilhaço cravado na perna.

“Pedroso”, chamou Rosa. “Ajuda esses dois e leva-os ao posto médico.“

“Sim, meu sargento.“

Pedroso colocou a Lee-Enfield a tiracolo, agarrou no braço do que ficara ferido na perna, que se apoiou nele, e pegou na mão do outro, seguindo trincheira a cima até onde lhes pudesse ser prestada ajuda.

O pelotão encontrava-se agora reduzido a uns meros quatro homens estendidos na primeira linha a vigiarem a terra de ninguém. Ao longo da trincheira abrigavam-se outros pelotões da companhia, mas não estavam à vista. Dez minutos mais tarde, duas outras granadas caíram de seguida em plena linha da frente, a uns quinze metros de distância dos restos do pelotão do sargento Rosa, e os homens entreolharam-se.

“Meu sargento”, chamou Matias, encostado ao ouvido de Rosa. “É melhor irmos para uma trincha de comunicação, senão estamos quilhados. Esta linha não se aguenta. “ Rosa analisou a parte da linha da frente que se estendia ao alcance dos seus olhos e verificou que a trincheira ficara totalmente desmantelada, havia partes em que já não existia parapeito, apenas uma amálgama de terra e lama e tábuas quebradas e sacos rebentados. Os homens encontravam-se todos deita-dos no chão, as mãos a taparem os ouvidos, era a única maneira de se defen-derem das sucessivas explosões. Rosa ergueu-se, tocou nas costas de cada um para lhes chamar a atenção, fez sinal com a cabeça, agarrou no telefone e foi a correr, curvado, até Burlington Arcade, era a primeira trincheira de comuni-cação que lhe apareceu à frente; o que restava do pelotão seguiu- o. Uma vez na nova trincheira, que se encontrava mais composta e oferecia melhor protecção às detonações de flanco, os homens anicharam- se, as Lee-Enfield embaione-tadas, Matias sempre agarrado à sua Lewis, e aguardaram.


397


Afonso olhou mais uma vez para o relógio. Eram seis da manhã, havia quase duas horas que se encolhia no abrigo, esmagado pela violência daquele fogo cerrado. O capitão interrogou-se quanto à duração do bombardeamento. Convicto de que se encontravam perante uma grande ofensiva, admitiu a hipótese de a chuva de bombas se prolongar por mais de um dia e questionou-se se, naquelas condições, seria possível fazer a rendição do CEP pelas novas forças britânicas destinadas àquele sector. Era desejável que isso acontecesse antes do avanço da infantaria alemã, raciocinou, mas Afonso sabia que tal se tornara improvável, jamais os ingleses efectuariam uma rendição de forças sob semelhante bombardeamento.

“Eu acho que eles vão fazer um raide”, opinou o tenente Pinto com a voz trémula.

Todos os oficiais que se encontravam no abrigo de Picantin concordaram. Aquele só poderia ser o bombardeamento preliminar de mais um raide alemão. Afonso tinha outra opinião, mas inibiu-se de a manifestar, sabia que ela só iria corroer a determinação e o moral das tropas.

“André, liga aí para a linha da frente”, ordenou ao telefonista de serviço.

O sargento André agarrou-se ao telefone e chamou. “Está lá? Está lá? Primeira linha?

“ Fez uma pausa. “Um momento, o capitão Brandão quer falar.“ Afonso foi ao telefone.

“Está lá? Aqui capitão Brandão. Quem fala? “. Pausa. “Sargento Rosa, o que se passa na primeira linha? “. Pausa prolongada. “Sim, fizeram bem. “ Mais uma pausa. “Pois. “ Pausa. “Sargento, a ordem é a de resistir, entendeu? Se vir necessidade, recuem para a linha B. Mas resistam, ouviu? Resistam. “ Pausa. “Até logo, sargento. Até logo. “ Pousou o auscultador e olhou para os seus companheiros no abrigo.

“Então? “, quis saber Pinto.

“A linha da frente está toda destruída”, disse. “Caíram umas granadas em cima do pelotão do Rosa, matando três praças e ferindo duas, já retiradas para o posto médico. O

resto do pelotão colocou-se na Burlington. “ Olhou para o telefonista. “André, passa-me aí os outros postos da primeira linha. “

O sargento agarrou-se ao telefone, mas Joaquim chamou Afonso antes de a nova ligação ser estabelecida.

“Meu capitão, está aqui uma ordenança da companhia do centro”, anunciou, mostrando um soldado magrinho, com ar assustado.

“O que é, rapaz? “


398


“Meu capitão, o meu comandante manda comunicar que retirou parte da companhia para a direita e outra parte para a esquerda porque não se pode estar no ponto onde nos encontrávamos, a barragem é muito forte e já temos dois mortos e seis feridos.“

“Muito bem”, retorquiu Afonso. “Diz ao comandante que eu tomei nota e vou passar essa informação “ Voltou-se para o tenente Pinto. “Cenoura, chama-me aí o Augusto. Quero que ele vá ter com o major Montalvão para lhe transmitir estas informações e pedir instruções. “

“Meu capitão”, interrompeu André, agarrado ao telefone. “Tenho aqui o cabo Veloso na primeira linha “

Afonso olhou para todos os rostos voltados para si, ansiosos, multipli-cando-se em solicitações, e pensou que ia ter um dia bem difícil.

A Senechal Farm era abalada por sucessivas detonações e os seus ocu-pantes começaram agora a ficar seriamente preocupados. O alferes Veiga tinha saído havia quase três horas para consertar as linhas telefónicas, mas a verdade é que os telefones permaneciam mudos.

“São sete da manhã, já lá vão três horas de bombardeamento” impaci-entou-se Mascarenhas. “Isto não deve ser retaliação.“

“É um raide, meu major, só pode ser mais um raide”, alvitrou o capitão Ambrósio.

“E que raide! “

A porta de entrada abriu-se com brusquidão e entrou um soldado esbaforido, outros vinham atrás.

“Meu major, dá licença? “

“O que é?”

“Temos feridos, meu major”

“Entrem, entrem”, disse.

Pela porta passaram quatro homens levando aos ombros outros três com as roupas esfarrapadas, manchas de sangue nos braços, nas pernas, na cabeça. O capitão Ambrósio levou-os para os quartos e ajudou a colocar-lhes os pensos. O sargento Cacheira, um dos amanuenses que se encontravam na sala, encos-tara-se junto de uma janela a observar as explosões quando lançou o alarme.

“Acabaram de cair invólucros vazios”, anunciou. “Têm fumo lá dentro!“ Esticou a cabeça para ver melhor. “Atenção! É gás! É gás! “

Colocaram todos as máscaras, mesmo os feridos. Os militares sentiram a respiração pesada, o ar a rarear, os óculos a embaciarem-se, mas resistiram à vontade de arrancarem as máscaras e assim se deixaram ficar.


399


O Sol ergueu-se por detrás das linhas alemãs, mas ninguém o conseguia ver. A claridade do dia emergia palidamente do nevoeiro cerrado que se abatera sobre as trincheiras, uma neblina tão densa e opaca que apenas permitia uma visibilidade de trinta metros, cinquenta no máximo. Afonso cansou-se de usar os binóculos para tentar observar o que se passava, os seus olhos embatiam numa barreira nublada que as lentes não logravam penetrar. O bombardeamento diminuíra sensivelmente de intensidade sobre as primeiras linhas, com a artilharia alemã concentrada agora na retaguarda do sector português. Esta evolução, por um lado encarada com alívio, era, na verdade, muito preocupante porque significava que o inimigo, com alta probabilidade, fazia avançar a sua infantaria. O problema é que o denso nevoeiro impedia que se observasse o que se passava na terra de ninguém, dando assim uma enorme vantagem às forças atacantes.

“André, não me arranjas a primeira linha?“, perguntou Afonso. O sar-gento abanou a cabeça.

“Acho que os fios telefónicos foram cortados, meu capitão. Ninguém responde.“ Afonso suspirou. Precisava urgentemente de falar com a linha da frente para saber se tinham sido avistados soldados inimigos, mas sem comunicações era difícil determinar a situação da companhia. Os telefones não funcionavam e o nevoeiro não permitia ver os very lights lançados pelos diferentes pelotões e companhias a solicitarem socorro ou a informarem o abandono de linhas.

Percebendo que não podia operar sem dispor de qualquer informação, o capitão foi à porta do abrigo e chamou a sua ordenança.

“Joaquim! Joaquim!“

O soldado saiu do seu bunker e aproximou- se em passo rápido. “Sim, meu capitão?“

“Quero que vás à primeira linha ver o que se está a passar. Se vires algum boche, não quero cá tiroteios. Voltas a correr e informas-me, percebeste? “

“Sim, meu capitão.“

“Vai lá, anda.“

Afonso regressou ao abrigo, pensativo. Se o bombardeamento abrandara, raciocinou novamente, era certamente porque a infantaria alemã avançava. O nevoeiro só servia para ocultar a pro gressão das tropas.

“Cenoura”, disse, dirigindo-se ao tenente Pinto. “Vai dizer aos homens das metralhadoras que quero que reguem a terra de ninguém com rajadas sucessivas. Eles que disparem para lá, mesmo que não enxerguem nada. “

Matias agitava-se na trincheira, preocupado por não conseguir ver a terra de ninguém. Ouviam-se disparos de metralhadora e espingardas, mas nada se podia observar, 400


eram apenas sons que vinham de algures. O problema é que não era só aquele nevoeiro denso que lhe toldava a visão. Era também a posição onde o pelotão se encontrava. A Burlington Arcade podia até ser mais segura do que a primeira linha durante um bombardeamento pesado, mas, devido ao seu enfilamento perpendicular, não constituía certamente o melhor sítio para observar qualquer eventual avanço da infantaria inimiga.

Não era por acaso, de resto, que a Burlington não fora concebida como trincheira de combate, mas apenas de comunicação.

“Meu sargento”, chamou para trás.

Já não havia necessidade de gritar, as granadas continuavam a estourar por ali, mas sem a intensidade das três primeiras horas.

“O que é, Matias?”

“A infantaria boche deve estar a avançar a qualquer momento, se é que não avançou já”, indicou o cabo. “Aqui nesta trincha não os conseguimos topar. Ouvimos os tiros, mas não vemos nada. Temos de nos mudar.“

“E onde queres ir tu, Matias?“, admirou-se o sargento Rosa.

“Não vês que a primeira linha ficou inutilizada? Aliás, já nem há primeira linha. “

“Eu sei, meu sargento. O melhor é irmos para a linha B.“

“O capitão Brandão mandou resistir até ao fim.“

“Sim, meu sargento”, assentiu Matias. “Mas aqui não resistimos nada. Se os boches aparecerem, do ponto que ocupamos só os topamos quando eles nos caírem em cima.

Além do mais, como a artilharia boche já abrandou o tiro sobre esta zona, é muito possível até que eles nos estejam a tentar envolver, apanhando-nos por trás. É por isso que temos de ir para a linha B. Lá resistimos melhor.“

“Ele tem razão, meu sargento”, concordou Baltazar, deitado atrás de Matias.

Rosa ficou a matutar no assunto. Ergueu a cabeça, olhou para um lado e para outro, constatou que, de facto, não conseguia ver o que se passava nem à direita nem à esquerda e voltou-se para o pelotão.

“Está bem”, exclamou finalmente. “Vamos lá.“

Eram oito da manhã quando o pelotão do sargento Rosa abandonou a sua posição na Burlington Arcade, junto à linha da frente, e recuou por aquela trincheira de comunicação rumo à linha B. Os homens avançaram em passo rápido, sempre curvados, e foram dar com a Rue Tilleloy, onde se formava a segunda linha. Continuaram a correr para atravessarem a grande estrada, mas, quando iam a meio, sentiram o ar a ser cortado por projécteis rasantes, estaca-ram surpreendidos, ouviram o matraquear de uma metralhadora 401


à direita, desorientaram-se, um deles caiu no chão com um som seco, foi atingido, Rosa saltou em frente e atirou-se para a berma, o resto do pelotão recuou e ficou do outro lado.

“Boches!“, berrou Matias, ofegante, cosido ao chão. “Estão boches aqui na Tilleloy!“ Os homens ergueram a cabeça e observaram o companheiro que tombara em plena estrada, atingido pela metralhadora inimiga. Era Abel, o rapaz magri-nho e calado que viera de Gondizalves. O ferimento era sério, a sua situação parecia desesperada. O Lingrinhas agarrava-se ao pescoço, donde saíam, em pavorosas golfadas, esguichos de sangue escuro, as mãos pintadas de vermelho a tentarem estancar a hemorragia, o buraco na garganta a emitir horríveis ruídos de ar a tentar entrar e sair. Abel asfixiava em silêncio, incapaz de proferir um gemido que fosse, e ninguém o podia ajudar. Vicente ergueu-se para saltar para a estrada e ir socorrer o amigo, a metralhadora abriu fogo e Matias placou-o pelas pernas e atirou-o ao chão.

“Deixa-me!“, debateu-se Vicente, tentando libertar-se. “Deixa-m'ajudá-lo!“

“Está quieto, Manápulas!“, rugiu o cabo. “Não o podes ajudar. E, se fores para ali, eles matam-te também.“

Matias era muito mais forte do que o companheiro e manteve-o firme-mente preso nos seus enormes braços. Vicente percebeu que não conseguiria libertar-se, esticou a mão esquerda em direcção de Abel, que ainda se contorcia em plena Tilleloy, e começou a chorar, desesperado, impotente. Já tinha visto outros camaradas morrerem, mas este era diferente, fazia parte do seu mais restrito núcleo de amigos do pelotão. O Lingrinhas torcia-se agora em convul-sões, era evidente que vivia os seus últimos instantes, e todos os homens, à excepção de Matias, voltaram a cara para o lado ou fecharam os olhos, não queriam assistir à morte do rapaz. Apenas o cabo viu o extertor final, as pernas a tremerem num violento espasmo, os olhos a revirarem- se para o branco, o corpo a estremecer na derradeira convulsão, um suspiro cavado e tenebroso, a carne a imobilizar-se finalmente, o sangue a estancar e a deixar de jorrar pela garganta.

Os homens do pelotão permaneceram um longo minuto calados. Vicente tinha recuperado o controlo das emoções e manteve-se igualmente silencioso. Mas os homens sabiam que se encontravam numa situação bem mais difícil do que tinham antecipado.

Matias interrogava-se sobre o que estava uma metralhadora alemã a fazer na Rue Tilleloy, no sector de Fleurbaix, à esquerda das linhas portuguesas, uma área que era suposto estar guarnecida pelas tropas britânicas da 40.a Divisão.

“Meu sargento”, chamou.

“O que é?“, respondeu a voz do outro lado da Tilleloy.

“Não vê os camones?“


402


“Não.“

Matias ficou pensativo.

“Devem ter cavado”, cogitou em voz alta para Rosa. “Os camones cava-ram e os boches estão a entrar por ali“ Fez uma pausa para prosseguir o seu raciocínio. “Isto significa que eles nos começaram a flanquear, meu sargento, estão a dar a volta para nos apanharem por trás. Estamos quilhados! “

“Temos de recuar mais”, disse o sargento. “O que sugeres? “ Matias olhou para o pelotão. Vicente e Baltazar permaneciam deitados atrás de si, muito imóveis. O cabo rastejou até uma árvore calcinada, a dez metros de distância, ergueu a cabeça, devagar, e espreitou pela berma do tronco para a sua direita. Viu homens lá ao fundo. Olhou com atenção para os capacetes e confirmou que eram alemães. Baixou-se e rastejou de volta para junto dos homens.

“Os boches estão mesmo ali ao fundo, a vigiar a Tilleloy”, disse, suficientemente alto para Rosa o ouvir. “Vamos fazer assim. “ Fez uma pausa para recuperar o fôlego. “Eu já os topei e vou abrir fogo sobre os gajos aqui com a minha Luisa. Quando eu mandar as rajadas, vocês saltam para o outro lado”, ordenou, falando agora para os dois soldados ao seu lado. “Depois, é a vez de vocês os três dispararem sobre os boches e de eu saltar.

Compreendido? “

Os homens assentiram com a cabeça e Rosa confirmou de viva voz. Matias fez sinal aos companheiros para se aprontarem, agarrou a Lewis com firmeza, respirou fundo, ergueu-se e abriu fogo.

Acto contínuo, Vicente e Baltazar levantaram-se e atiraram-se para o outro lado da estrada. Os alemães responderam e o cabo baixou-se de imediato. Aguardou um instante.

“Está tudo bem? “

“Sim”, confirmou Rosa. “Aguenta um pouco, vamos agora aprontar-nos nós. Ao meu sinal, abrimos fogo e saltas tu “ Fez-se um compasso de espera para os três homens prepararem as Lee- Enfield. Mais uns instantes e ouviu-se a voz do sargento. “Agora! “ Os três homens ergueram-se e dispararam as espingardas. Ao mesmo tempo, Matias atirou-se para o outro lado da Tilleloy e rebolou pela berma, enquanto a Maxim alemã voltava a bater a estrada, os repicos da rajada a levantarem nuvens de terra e lama.

“Estás fino? “, perguntou Rosa, novamente agachado. “Sim, eu... “ Um ruído por trás deixou-os momentaneamente paralisados. Voltaram as armas para a Picadilly Trench, a trincheira de comunicação que prolongava a Burlington Arcade, e prepararam-se para carregar nos gatilhos, mas o azul da farda do homem que viram emergir da linha fê-los suspender os disparos. O recém-chegado era português.


403


“Então, malta? “, saudou o desconhecido.

Os elementos do pelotão suspiraram.

“Ó homem, íamos dar-te cabo do canastro, caraças”, exclamou o sargento Rosa. “O

que estás aqui a fazer? “

“O capitão Brandão mandou-me ver o que se passa na linha da frente”, disse o soldado, erguendo-se para prosseguir. “Tenho de ir até lá. “

“Como é que te chamas? “

“Joaquim. “

“Pois bem, Joaquim, a linha da frente é aqui.“ “Aqui? Mas isto é a Tilleloy. Eu tenho é de... “

“Joaquim”, cortou Rosa. “A primeira linha já não existe, está arrasada. Percebes? Há boches ali à esquerda com uma costureira pronta a limpar-nos o sebo. Por isso, já não podes avançar, esta é agora a linha da frente. Entendeste?“ Joaquim olhou para os quatro homens com desconfiança. Mas o seu ar sério e cansado, mais o corpo estendido em plena estra-da, convenceram-no de que, por incrível que parecesse, estavam a falar verdade. Os alemães tinham mesmo chegado à Rue Tilleloy.

“Os boches estão aqui? “

“Sim”, confirmou Matias, apontando para a esquerda. “Ali ao fundo. “

“Vocês viram-nos? “

“Nós vimo-los, disparámos sobre eles, eles dispararam sobre nós e mataram-nos um marada. “

Joaquim deu meia-volta.

“Então é melhor acompanharem-me até ao Picantin Post. O capitão Brandão vai querer falar convosco “

À mesma hora, oito da manhã, o alferes Viegas entrou na casa de Senechal Farm com um soldado atrás de si. O homem vinha ofegante, coberto de pó e lama, e, pormenor muito notado pelos oficiais de Infantaria 13, encontrava-se desarmado.

“Meu major”, disse Viegas. “Apanhei este desertor a correr pela estrada, feita galinha tonta. Traz novidades da frente. “

O major Mascarenhas aproximou-se do homem, que parecia absoluta-mente aterrorizado.

“Identificação “

“Sou o soldado Fonseca, meu major” Arfou. “Praça n.o 173, contramestre de corneteiros de Infantaria 17 “


404


“Infantaria 17?“, repetiu Mascarenhas, reconstituindo mentalmente a dis-posição das forças no terreno. “Se não me engano, devias estar em Ferme du Bois. Creio que o teu comando é no Lansdowne Post. O que é que andas aqui a fazer, hã? Quem é que te autorizou a ausentares-te do teu posto? “

O homem olhou-o com horror.

“Mas, meu major... não está a compreender”, exclamou de forma ataba-lhoada. “Os boches... os boches entraram de roldão... um mar deles, pareciam formigas... prenderam tudo, o comando do 17, o comando do 4, mais os homens todos... está tudo a cavar, tudo a cavar... o cavanço é geral, meu major... eles vêm aí, temos de fugir. “

“Mas tu estás a reinar comigo ou quê?“, perguntou Mascarenhas com ar duro. “Quais boches, qual quê! Tu és um desertor, abandonaste os teus cama-radas, é o que é!“

“Meu major... por favor.“ O homem gaguejava, arquejava, revirava os olhos, as palavras saíam-lhe num tropel, hesitantes e trapalhonas, mostrava-se agitado e parecia à beira de um ataque de nervos. “Temos de cavar... por favor, deixe-me cavar daqui!“ Uma sentinela do 13 entrou na sala.

“Meu major, apareceram mais desertores na estrada, vêm a fugir das primeiras linhas.

O que fazemos? “

Mascarenhas hesitou. Olhou para o contramestre dos corneteiros do 17, percebeu que a história por ele contada era verdadeira, só podia ser verdadeira dado o seu estado de nervos e o aparecimento de mais fugitivos, e voltou-se para a sentinela.

“Arrebanhem-me esses desertores todos e recolham a informação que eles têm para dar”, ordenou. “Depois, preparem-nos para resistirem. Está na hora de esses tipos deixarem de cavar e irem combater” Apontou para o soldado Fonseca. “E levem-me também este gajo daqui “

O major fez sinal aos oficiais do seu estado-maior para se aproximarem e foi buscar um mapa, que estendeu sobre uma das mesas da sala. Pegou num lápis e assinalou a situação no terreno antes do ataque.

“Portanto, na linha de Ferme du Bois estava o 17 em Lansdowne Post e o 10 em Path Post, com o 4, atrás, em Chavattes Post”, disse, escrevendo os números dos respectivos batalhões no ponto por eles supostamente guarnecido. “Ora, a acreditar naquele idiota, e tudo indica que ele está mesmo a falar verdade, o 17 e o 4 deixaram de combater. Não temos notícias do 10, mas, se o 4, que está atrás, foi aniquilado, o 10

também já deve encontrar-se fora de combate “ Assinalou cruzes sobre Lansdowne, Path e Chavatte, assumindo que não podia contar com essas forças.


405


Ergueu a cabeça e fitou os seus oficiais. “Isso significa que somos nós agora a linha da frente e que os boches vêm aí“ Fez-se silêncio. “Alguma sugestão? “ O capitão Ambrósio pigarreou.

“Meu major, não deveríamos aplicar o plano de defesa? “

“Sim”, concordou Mascarenhas. “O problema é que não temos plano de defesa.

Pedimo-lo ontem ao major Passos e Souza e ele disse que ia tratar do assunto, mas não nos comunicou mais nada. Portanto, não há plano e temos de ser nós a inventar um. “ Olhou de novo para o mapa e suspirou. “Só vejo um caminho. Temos de avançar no terreno e estabelecer contacto com o inimigo. “ Voltou a mirar os seus oficiais. “Voluntários? “

“Eu, meu major”, exclamou de imediato o tenente Alcídio de Almeida, comandante da segunda companhia.

“Muito bem, Alcídio”, disse Mascarenhas em tom de aprovação. Voltou com o lápis ao mapa. “A segunda companhia vai ocupar aqui a trincheira 5 e enviar patrulhas para explorar o terreno em frente. A missão dessas patrulhas é localizarem o inimigo, ligarem-se a quaisquer homens nossos que venham a encontrar e resistirem até ao limite.“ O major ergueu a cabeça e mirou o alferes Martins, ajudante do batalhão. “Aliás, o mesmo devem fazer a primeira e a terceira companhias. Por isso, senhor alferes, transmita estas ordens ao tenente Gonçalves e ao capitão Magno.“ Endireitou-se, dando sinal de que a reunião estava concluída. “Meus senhores, vamos resistir até virem os reforços. Está previsto que os ingleses nos rendam esta tarde. Uma hora, uns dez minutos apenas, podem fazer a diferença. Temos de esperar por eles para depois, e de forma compacta, empurrarmos os boches lá para o inferno. Por isso, meus caros, conto convosco para aguentarem o impossível, aguentarem até os ingleses chegarem. Boa sorte a todos.“ Os oficiais destroçaram. Mascarenhas acompanhou o tenente Alcídio até junto dos homens da segunda companhia e constatou que as munições eram um ponto crítico.

Faltavam cartuchos, cada soldado apenas estava munido da sua dotação individual.

Além disso, não havia granadas de mão nem de espingarda. O major lembrou-se então de que os homens de Infantaria 24, que antes ocupavam Senechal Farm, deixaram várias caixas de cartuchos abandonadas, espalhadas pelo acantonamento de Lacouture, e foi com os soldados buscar essas munições, entretanto recolhidas e guardadas na secretaria. Os cartuchos foram distribuí-dos a todos. E, quando a segunda companhia partiu finalmente, Mascarenhas saiu à procura de mais munições.

Foi ao fazer a toilette da manhã que Agnès pela primeira vez se apercebeu de que algo de anormal estava a passar-se. Ao aproximar-se da janela do anexo reparou que o rumor da artilharia tinha recrudescido de intensidade em relação ao habitual. Deteve-se a 406


meio de um movimento e ficou estática, atenta aos sons distantes. Em vez dos costumados estampidos que caracterizavam os longín-quos tiros de canhão, notou agora um rolar permanente, um marulhar ininter-rupto e assustador. Abriu a porta e esticou a cabeça para fora, confirmando essa impressão. Ficou apreensiva e pensou imediatamente num raide.

Para se acal-mar lembrou-se repetidamente de que Afonso desempenhava funções de secre-taria e não ocupava as primeiras linhas. Além do mais, nada garantia que, a ser um raide, se tratasse de um raide inimigo. Podia muito bem ser uma operação dos portugueses.

Acalmou-se. O pânico deu lugar a um nervosismo miudinho.

Saiu à rua quinze minutos depois, num estado de grande inquietação, ansiosa e perturbada. Pegou na bicicleta e dirigiu-se apressadamente ao hospital para assegurar o turno que lhe fora destinado. Pedalou com os olhos voltados para leste, para a fonte do fragor da batalha, e percebeu pela reacção dos transeuntes que também estes achavam que o barulho da artilharia era mais intenso do que o habitual. Igualmente o tráfego de viaturas militares parecia anormalmente elevado, o que contribuía para o estado de nervosismo geral que se apossara de todos.

Logo que entrou no hospital, Agnès notou que o ambiente era caótico, o movimento intenso, o pátio encontrava-se pejado de feridos e pairava no ar uma inquietação indefinível. Com um mau pressentimento a pesar-lhe a alma, a francesa passou pela secretaria.

“mademoiselle!“, chamou a enfermeira-chefe portuguesa quando a viu pela porta do seu gabinete. “Hoje precisamos de si nos traumatizados, vai para lá um reboliço que só visto!“

“Nos traumatizados? Porquê?”

A enfermeira-chefe estacou, surpreendida.

“Porquê? Ora, que pergunta! Então não vê que hoje temos muitos feridos?“ Agnès sentiu-se paralisada. Queria formular a pergunta que tinha em mente, a pergunta crucial, a pergunta que a consumia desde que pela primeira vez ouvira o anormalmente intenso marulhar da artilharia. Experimentava, porém, um pavor que a imobilizava, receava a resposta, temia a verdade. Hesitou um longo segundo, angustiada e indecisa, mas acabou por pronunciar as palavras que a sufocavam.

“O que se passa “

A enfermeira-chefe preenchia o registo das admissões da última hora e nem levantou a cabeça.

“Então não sabe? Os boches lançaram uma grande ofensiva. “ O coração de Agnès disparou.


407


“Onde?“

“Em todo o sector português. Ferme du Bois, Neuve Chapelle, Fauquissart. É uma catástrofe, há muitos mortos e os feridos estão sempre a chegar, são às centenas. “ Agnès olhou apavorada para o registo que estava a ser feito pela enfermeira-chefe, arrancou-o com brusquidão das mãos da sua superiora hierárquica, deixando-a boquiaberta, e procurou com sofreguidão e em grande estado de ansiedade o nome do capitão Afonso Brandão. Percorreu a lista três vezes. Depois de se certificar de que ele não constava do registo, deixou cair o documento no chão e foi a correr para o pátio. Com os olhos marejados de lágrimas e a mão direita colada à boca, ficou vidrada a mirar o horizonte.

“Alphonse”, murmurou, abalada.

Quis gritar, mas as forças faltavam- lhe, apenas um soluço lhe assomou à garganta.

Ali permaneceu especada, de olhar perdido, invadida por pressenti-mentos tumultuosos, o desespero a apossar-se-lhe da alma, a esperança atirada para um recanto, acossada e esquecida. Sentia-se perdida, amedrontada, aban-donada pelo destino, cercada pelo sinistro fragor da batalha, esmagada pelas tenebrosas colunas de fumo negro que se estendiam para o céu num pavoroso augúrio de morte, eram afinal o oráculo, a profecia de uma terrível tragédia.

Pouco passava das nove da manhã e Afonso sabia que a situação era muito crítica. O

sargento Rosa tinha-lhe trazido a notícia de que os alemães estavam a flanquear o batalhão, entrando pelo sector inglês de Fleurbaix, o que significava que o posto corria o risco de ser cercado.

“Não entendo por que motivo os bifes não disseram nada” desabafou para Pinto.

“Então os gajos recuam e não avisam? “

O tenente Pinto encarou-o com ar alucinado. “Devíamos fazer como eles, Afonso”, disse. “Se os tipos cavaram, temos também de cavar, é perigoso estar aqui. “ Afonso ficou siderado com este comentário proferido diante das praças.

“Ó tenente, componha-se!“, rugiu o capitão, assumindo com firmeza o seu papel de superior hierárquico. “Não quero ouvir aqui esse tipo de conversa! Temos um dever a cumprir e vamos cumpri-lo. Faça o favor de garantir que os homens sob este comando se mantêm com espírito de combate “

O tenente nada mais disse e foi sentar- se junto ao telefonista, cabisbaixo. Afonso olhou-o com preocupação. Pinto parecia-lhe muito assustado. Recusa-va-se a sair do abrigo, alegando os mais variados e absurdos pretextos, trans-pirava abundantemente e mantinha-se alheado das funções de comando a que, por ser oficial, estava obrigado. O

capitão considerou que, dadas as circuns-tâncias, isso era normal, ele próprio se encontrava 408


terrivelmente amedrontado, mas o Cenoura não deveria deixar transparecer de modo tão visível o seu medo, sobretudo à frente dos homens. Mais do que afectar o prestígio dos oficiais, essa atitude era, naquelas circunstâncias, tremendamente perigosa.

Uma intensa fuzilaria eclodiu nesse momento no posto. As metralhadoras e as espingardas desataram a disparar, e ouviam-se zumbidos por todo o lado. Afonso saiu do abrigo de comando e foi a correr até um dos três ninhos de Vicers existentes no posto. O

operador da metralhadora disparava furiosamente para a frente, enquanto o ajudante preparava uma segunda cinta de balas para encaixar na arma. O capitão colou-se-lhe à orelha, tentando fazer-se ouvir no meio da cacofonia.

“O que se passa? “

“Boches, meu capitão”, gritou o ajudante de volta. Apontou em frente e Afonso viu capacetes a movimentarem-se nas linhas, eram centenas e centenas. “Estão ali.“ O capitão olhou em redor e viu os soldados que defendiam o posto de Picantin a abrirem fogo para leste e para norte. Voltou ao abrigo de comando para pegar, também ele, numa espingarda e coordenar a defesa. Assomou à porta e deu as suas ordens.

“André, vais com uma praça até Red House pedir socorro. Diz-lhes que estamos a ser cercados e precisamos de reforços e munições.“

“Imediatamente, meu capitão”, exclamou o telefonista, saltando da cadeira e agarrando numa arma.

Afonso olhou em redor.

“ Onde está o tenente Pinto?”

André encarou-o com embaraço. “O tenente... saiu, meu capitão”

“Saiu? Foi para onde? “ O telefonista encolheu os ombros e baixou os olhos. O

capitão percebeu que ele não estava a falar toda a verdade. “André, vai chamá-lo, vá “ Afonso foi ao armário do abrigo e agarrou na última Lee-Enfield que lá se encontrava. Deu meia-volta para sair e viu André especado no mesmo sítio. “Então? O que estás aí a fazer?

“Meu capitão”, gaguejou o telefonista, calando-se de imediato.

“O que é, homem?“, impacientou-se Afonso, cheio de pressa. “Desem-bucha, vá! “

“Meu capitão, o tenente Pinto não está cá”, disse André com grande esforço.

“Isso já eu sei. Vai buscá-lo.“

O telefonista hesitou.

“Meu capitão, o tenente Pinto cavou”

O major Gustavo Mascarenhas olhou para as caixas de munições que conseguira reunir. Eram agora dez horas da manhã e o segundo comandante de Infantaria 13 juntara 409


apenas três mil cartuchos, mendigados junto do coman-dante de um batalhão de ciclistas ingleses que se encontrava no blockhaus de Lacouture, ao lado da igreja. Não eram muitas balas, pensou, mas teriam de viver com o que tinham. O problema era agora fazer chegar estas munições às companhias que partiram à procura do inimigo.

“Meu major, dá licença? “

Mascarenhas virou-se e viu o alferes Viegas.

“O que é, Viegas.“

“Apareceram ali tropas do 15, meu major.“

O major seguiu o alferes e encontrou os elementos de Infantaria 15, de Tomar, junto à igreja. Esse batalhão mantinha-se de reserva atrás de Vieille Chapelle e o seu aparecimento era a primeira boa notícia do dia. Mascarenhas foi ter com o comandante do 15, o major Peres, que se encontrava na cave de uma casa das redondezas, e expôs-lhe o problema da falta de munições.

“Não tenho cartuchos para lhe dar”, retorquiu Peres. Mascarenhas suspi-rou, desalentado.

“Então não sei como resista”, desabafou. “Sem balas não temos como nos opor ao avanço do inimigo. “

O major Peres ficou pensativo, desdobrou um mapa sobre a mesa e indicou um ponto.

“Major Mascarenhas, o melhor que podemos fazer é montar um serviço de remuniciamento através de postos até aqui, a Vieille Chapelle. Vocês vão aos postos buscar as munições e distribuem-nas pelas tropas. Serve? “

“É melhor do que nada”, consolou-se Mascarenhas. “Mas precisava também de reforços “

O major Peres tamborilou com os dedos sobre a mesa onde se estendia o mapa, pesando as opções. Acabou por se decidir.

“Dou-vos uma companhia”, disse. “A do capitão Brito. “ O alferes Viegas entrou nesse momento na cave, acompanhado por um soldado ofegante.

“Meu major, dá licença? “, disse, dirigindo-se a Mascarenhas. “ Diz lá “

“Está aqui o soldado Camacho, da segunda companhia, que acabou de chegar com informações “

“ O que se passa?”

O soldado fez continência, o peito arfando pesadamente, viera a correr.

“Meu major, os desertores estão a dizer que os boches avançam pelos intervalos dos postos, cercando-os e prendendo toda a gente. “ Fez uma pausa para respirar. “O tenente 410


Alcídio pergunta o que fazer. “ Alcídio era o comandante da segunda companhia. “Ele também pede munições. “

“Muito bem, Camacho”, disse Mascarenhas. “Vais voltar para as linhas e levar algumas munições contigo. Diz ao tenente Alcídio que lhe vamos enviar forças do 15 para o apoiarem. Já tiveram contacto com o inimigo?”

“Ainda não, meu major”

“Quando tiverem, as ordens são as de resistir, resistir sempre. Perce-beste?”

“Sim, meu major. “

“Então vai lá. “

Vicente Manápulas sentia os músculos do braço direito cansados de tanto repetir o movimento. Apontava para um alemão, disparava, abria a culatra, puxava-a, deixava a bala entrar no cano, fechava a culatra, apontava, disparava, abria a culatra, puxava-a, deixava a bala seguinte entrar no cano, fechava a culatra, apontava, disparava, e assim sucessivamente, até esgotar, no espaço de dois minutos, as dez balas do depósito da Lee-Enfield. Nessa altura substituía o depósito e recomeçava o processo de abrir a culatra, puxá- la, deixar a bala entrar no cano, fechar a culatra, apontar e disparar. Na verdade, o processo de esvaziar um depósito durava dois minutos porque o capitão Brandão tinha dado ordens para se pouparem balas e só dispararem pela certa. Caso contrário, os soldados eram capazes de despenderem as dez balas em apenas cinquenta segundos, uma vez que o processo de carregar a espingarda durava uns meros cinco segundos.

“A equipa da costureira caiu!“, gritou alguém. “Acudam!“ Vicente perce-beu, pela alteração na cacofonia que o rodeava, que uma das Vickers tinha deixado de disparar.

Seguiu-se alguma confusão, apenas com as espingardas e uma outra Vickers a abrir fogo, até que alguém lhe tocou no ombro. Manápulas virou-se e viu Afonso com o alarme estampado nos olhos.

“Sabes usar a Vickers?“, perguntou-lhe o oficial. “Mais ou menos, meu capitão.”

“Então vai lá. O Sérgio ajuda-te com as cintas de munições. “ Vicente correu curvado até ao ninho da metralhadora e viu os dois homens que a operavam estendidos no chão. Um jazia inerte, o outro mexia-se e estava a ser visto por um companheiro. Num olhar de relance, percebeu que tinham sido atingidos por balas, presumivelmente de metralhadora. Espreitou pela seteira, a brecha aberta entre os sacos de terra, e procurou a arma inimiga que varrera os homens da Vickers. À esquerda, encostada a um tronco de árvore, posicionava-se efectivamente uma Maxim, provavelmente acabada de ser colocada pelos alemães sem que a equipa da Vickers a tivesse referenciado. O Manápulas agarrou as pegas da metralhadora pesada, apontou para a Maxim, esperou que Sérgio viesse juntar-se a 411


ele para o remuniciar e, já confortável, premiu o gatilho. Sucessivos penachos de terra e poeira ergueram-se junto ao tronco. A Maxim respondeu, Vicente insistiu, largou rajada sobre rajada e a metralhadora inimiga calou-se. Quando a poeira assentou, a Maxim apareceu voltada ao contrário, claramente tinha sido atingida.

“Apanhámo-los!“, congratulou-se Vicente, sorrindo para Sérgio.

O ajudante devolveu o sorriso.

“Boa, Manápulas.“

Vicente viu umas dezenas de homens a correrem perto do sítio onde se encontrava a Maxim e voltou a premir o gatilho, largando novas rajadas que atingiram mais alguns alemães. De repente, a metralhadora portuguesa passou a disparar em seco. Vicente ficou admirado, olhou e viu que a cinta de balas se esgotara.

“Mete-me mais munições”, pediu a Sérgio. “Depressa, depressa! O ajudan-te pegou numa nova cinta e encostou-se ao tambor da Vickers para a encaixar na metralhadora. Ao tocar na arma, porém, o Manápulas gritou de dor.

“Caramba, esta merda tá a ferver! “, exclamou, sacudindo a mão.

Vicente experimentou a temperatura do metal com um leve toque dos dedos e verificou que a metralhadora estava efectivamente a escaldar.

“Água”, pediu, olhando freneticamente em redor. “Ond'é qu'há água “ Não encontraram água para arrefecer o tambor e Sérgio foi ter com Afonso para ver se arranjava alguma. O capitão deu um salto ao ninho de metralhadora e, após verificar igualmente a temperatura da Vickers, mirou Vicente.

“A pouca água que temos tem de ser racionada e está destinada unicamente a dar de beber aos homens”, disse.

“Mas, meu capitão, com'é qu'arrefecemos a costureira? Ela tá a escaldar e, se continuar assim, o cano vai derreter. “

Afonso fixou-lhe os olhos.

“Olha lá, não tens vontade de mijar? “

O rosto de Vicente congelou-se numa expressão interrogativa, mas em dois segundos abriu-se-lhe um sorriso, tinha compreendido. O Manápulas foi buscar uma vasilha, puxou a Vickers, retirando-a da seteira aberta entre os sacos de terra, colocou a vasilha por baixo da parte dianteira da manga, desen-roscou a tampa e do interior da manga começou a jorrar água a ferver para a vasilha. Quando a água deixou de correr, recolocou a tampa enquanto Afonso desenroscava outra tampa, esta situada na parte superior da manga, logo a seguir à mira da arma. Os dois homens, aos quais se juntou Sérgio, ergueram-se, mantendo o tronco curvado para não se exporem ao fogo inimigo, abriram as braguilhas e fizeram 412


pontaria à abertura situada no topo da manga. Quando a urina tocou no ferro escaldante produziu-se de imediato um ffzzzz de arrefe-cimento, parte do líquido evaporou-se, a outra parte acumulou-se na manga cilíndrica. Cada um esvaziou a bexiga no interior da manga e Afonso foi chamar mais homens para urinarem na Vickers. Quando a manga ficou cheia, Sérgio enroscou a tampa e Vicente experimentou com os dedos a temperatura do metal.

“Ainda tá quente, mas tá muito melhor”, disse. “Aguenta mais uns cinco minutos, dez no máximo“

“Quando estiver outra vez a ferver, voltas a esvaziar a manga e metes-lhe a água da vasilha”, instruiu-o Afonso, consultando o relógio. Eram dez da manhã.

“Sim”, concordou Vicente. “C'o briol que p'rá'qui vai, por ess'altura a água já deve ter arrefecido. “

Afonso espreitou pela seteira para as posições inimigas. “De qualquer modo, tenta poupar munições, hã? Não te esqueças.

O capitão retirou-se, deixando Vicente e Sérgio a operar a Vickers. O Manápulas recolocou a metralhadora na seteira, viu mais alemães a correrem lá ao fundo, largou uma rajada e outra logo a seguir. Alguns alemães tombaram, os restantes foram procurar refúgio. Vicente girou a Vickers para a esquerda e para a direita, procurando novos alvos.

Pelo canto do olho sentiu um objecto metálico a cair-lhe ao lado, parecia uma garrafa.

Sérgio ergueu-se de repente, como se tivesse sido impelido por uma mola.

“Granada! “, gritou.

O ninho da Vickers explodiu.

Os sons da guerra ecoavam intensos à volta de Senechal Farm. Eram já onze da manhã e o major Mascarenhas mostrava-se surpreendido com a persistência do nevoeiro.

Começou a suspeitar de que todo aquele fumo não resultava de uma mera neblina matinal, mas era também fruto do emprego de granadas de fumo destinadas a ocultarem o movimento da infantaria atacante. Colocou os binóculos nos olhos e inspeccionou o nevoeiro. À esquerda apenas se via vapor branco e à frente também. Girou os binóculos para a direita e, por entre as nuvens baixas, observou vultos a esgueirarem-se pelo terreno.

Baixou os binóculos e mirou a olho nu aquele sector. Havia ali, de facto, alguns pontos minúsculos a movimentarem-se. Presumiu que se trataria de uma das companhias que enviara para estabelecerem contacto com o inimigo, embora não pudesse ter a certeza.

Olhou de novo pelos binóculos, mas a imagem tremia em excesso, devido aos ligeiros movimentos das suas mãos, tremendamente amplificados pelas lentes. Para estabilizar os binóculos assentou-os sobre uma pedra e acocorou-se atrás dela, espreitando pelos óculos.


413


A imagem apresen-tava-se agora muito melhor e Mascarenhas distinguiu com clareza o contorno dos capacetes. Eram alemães.

“Maciel!“, gritou, chamando o alferes que o acompanhava. O homem aproximou-se a correr.

“Sim, meu major? “

“Estás a ver aqueles pontos ali?“, perguntou Mascarenhas, apontando para a direita.

O alferes Maciel virou-se na direcção indicada, esticou a cabeça para a frente, estreitou os olhos e, após uma breve hesitação, assentiu.

“Estou a vê-los, meu major”

“São boches. Façam fogo nutrido sobre aquele sector, mas depois tenham cuidado porque há também para ali homens nossos. 547

As metralhadoras e as espingardas portuguesas abriram uma barreira de fogo sobre a direita, varrendo a área onde os alemães tinham sido avistados. O inimigo respondeu ao fogo com fogo, generalizando-se o tiroteio à direita de Senechal Farm. Os defensores distribuíram as tarefas, com os ciclistas ingleses a defenderem a esquerda, que permanecia calma, Infantaria 13 a vigiar o centro e Infantaria 15 na direita. Uma hora depois foram avistados alemães igualmente à esquerda e as tropas portuguesas varreram o sector com duas metralhadoras e muitas espingardas. Vários soldados inimigos tombaram no solo, apanhados pela saraivada, mas Mascarenhas não tinha ilusões. Os alemães apareciam à esquerda e à direita, em breve Senechal Farm ficaria cercada. Vendo-se momentaneamente impedidos de progredirem, os atacantes fixaram-se no terreno. Depressa Mascarenhas ficou apreensivo, não apenas por causa da fragilidade da sua posição, como sobretudo devido ao crescente isolamento das companhias que enviara para fazerem frente ao inimigo.

“Maciel! “, voltou a chamar.

“Sim, meu major? “

“Manda-me ordenanças com cunhetes para as companhias da frente. “ O alferes Maciel foi executar a ordem e Mascarenhas voltou aos binóculos.

O posto de Picantin já só tinha um punhado de homens a resistirem. Afonso contou-os, eram uns vinte e as três Vickers estavam fora de serviço, uma destruída pela granada que matara Vicente Manápulas e Sérgio, outra bloqueara e a terceira tinha o cano derretido.

Como metralhadoras, apenas funcionavam duas Lewis, uma delas operada por Matias Grande.

“Meu capitão”, gritou o cabo. “Já só tenho um disco” A Lewis era alimen-tada por um disco com noventa e sete balas. A guarnição de Picantin já tinha saqueado um paiol e 414


levado todos os discos para as Lewis, cintas para as Vickers e depósitos para as Lee-Enfield, mas as munições chegavam agora ao fim e a defesa do posto tornava-se insustentável. Afonso sabia que era impossível resistir com baionetas. Sem balas não valia a pena permanecer em Picantin.

“Vamos evacuar o posto!“, gritou. “Toda a gente ajuda os feridos a saírem.

Carreguem-nos às costas, se for preciso. “ Apontou para Matias. “Cabo, você fica aí a dar-nos cobertura com a Luisa e só sai quando o último homem abandonar o posto” Apontou para a sua ordenança. “Joaquim, ajuda-o. “

Joaquim posicionou-se no ninho da Vickers bloqueada com a Lee- Enfield a espreitar pela seteira e Matias Grande colocou-se num ponto donde podia observar em simultâneo a esquerda e a direita. Quando o resto da guarnição deixou de disparar e começou a retirar, Joaquim passou a alvejar os vultos que se moviam em frente, enquanto Matias abria fogo em diversas direcções com rajadas muito curtas. O objectivo dos dois portugueses já não era agora o de abaterem soldados inimigos, mas simplesmente criarem a impressão de que aquela posição tinha ainda muitos homens a defendê-la.

Afonso registou a hora em que o posto foi abandonado. Eram onze da manhã. A guarnição de Picantin Post fez-se às trincheiras quase sem munições e carregando duas dezenas de feridos. A maior parte seguiu pelo próprio pé, alguns apoiando-se nos camaradas quando os seus ferimentos eram numa perna e os impediam de andar normalmente. Três seguiram em macas impro-visadas, não estavam em condições de caminhar. Com a coluna a caminho, Afonso olhou uma derradeira vez para o posto e interrogou-se quanto ao tempo que Matias e Joaquim ainda conseguiriam resistir sozinhos.

Dançando numa direcção e noutra, o cabo continuava a manter o inimigo ocupado, enquanto Joaquim se conservava fixo no ninho da Vickers. Mas a ilusão de que o posto ainda permanecia guarnecido durou apenas cinco minu-tos, findos os quais se esgotou o derradeiro disco da metralhadora de Matias. A Lewis aquecera até ao rubro, o cano prestes a fundir-se, e o cabo largou no chão a arma que tanto o servira nos últimos meses, agarrou numa Lee-Enfield abandonada por um companheiro, estranhou já não ouvir disparar a espin-garda de Joaquim, foi ao ninho da Vickers e viu o seu camarada estendido no chão, varado pelo tiro certeiro de uma Mauser inimiga. Sentiu-lhe o pulso e verificou que Joaquim estava morto. Afagou-lhe o cabelo, numa breve carícia de despedida, e, sem perder mais tempo, largou a correr no encalço da coluna que fugia para Red House.

Os aviões alemães irromperam em voo baixo sobre Senechal Farm. Os Gotha, os Halberstadt, os Roland e todos os outros desceram sobre as posições portuguesas, regando-as com metralhadoras e bombas e enviando sinais lumi-nosos para regularem o 415


fogo da artilharia. Mascarenhas começou a convencer-se de que não conseguiria manter Senechal Farm por muito mais tempo. Nenhuma das ordenanças enviadas para remuniciarem as companhias da frente tinha regressado. Além disso, o facto de aparecerem cada vez mais soldados alemães pela frente deixava supor o pior. A confirmação de que Senechal Farm era agora, literalmente, a linha da frente foi dada quando surgiu no local um punhado de sobreviventes da primeira companhia e alguns homens das restantes.

“Meu major”, disse um cabo acabado de chegar, o olhar alucinado. “Eles varreram-nos quando os atacámos com uma carga de baioneta. Há ainda algum pessoal do 13 a resistir nas trinchas, mas estão cercados e não vão durar muito.“ Mascarenhas olhou em redor.

“Maciel!“, chamou. “Distribui cartuchos por estes homens” O fogo inimi-go tornou-se mais nutrido quando era meio-dia e meia, os alemães dispunham visivelmente de mais soldados no sector. Os aviões pareciam moscardos a polvilharem o céu. Mascarenhas observou-os um a um e apenas identificou enormes cruzes negras desenhadas nas asas e na carlinga.

“Mas onde é que estão os camones?“, interrogou-se em voz alta, abrindo os braços com frustração. “Só se vêem aeroplanos boches! “

Infantaria 13 e uma companhia de Infantaria 15 resistiam ali com apenas duas Lewis e as Lee-Enfield de cada praça. Os portugueses batiam os alemães de flanco, procurando retardar a sua progressão. A uma da tarde, a resistência dos defensores estava circunscrita, na esquerda, ao blockhaus, onde se refu-giava o batalhão de ciclistas ingleses, e ao cemitério, onde permaneciam outros ingleses. No meio permaneciam os portugueses, ocupando Senechal Farm, e, à direita, junto a King George's Street, outra força portuguesa.

A certa altura, o alferes Sevivas, que empunhava uma das Lewis em Senechal, desapareceu, e a resistência ficou ali circunscrita a uma única metralhadora ligeira. O alferes Maciel, visivelmente consternado, aproximou-se do seu segundo comandante.

“Meu major, vamos ser envolvidos”, disse.

“Eu sei, já reparei.“ Mascarenhas olhou para o compacto abrigo de cimen-to que se encontrava junto à igreja de Lacouture. “Temos de retirar para o blockhaus.“ Observou a disposição das suas forças. “Quem é aquele?“, pergun-tou, apontando para o soldado que tinha a única Lewis operacional nas mãos.

“É o sargento Carvalho, meu major. “

“Ele que nos cubra. “

A ordem de evacuação foi dada de imediato. Dezenas e dezenas de solda-dos portugueses convergiram para o sector da igreja, correndo curvados por entre o arvoredo, 416


saltando sobre as crateras, contornando o arame farpado, cruzando a ribeira Loisne, e entraram no blockhaus. O sargento Carvalho ficou para trás, sozinho, a Lewis a manter as formações alemãs em respeito naquele terreno acidentado e coberto de verdura. Quando verificou que os companhei-ros tinham todos retirado de Senechal Farm, Carvalho esgueirou-se pelos arbustos, correu, correu, correu e entrou enfim, também ele, no maciço abrigo de betão.

Havia quase duas horas que a coluna chefiada por Afonso errava pela labiríntica rede de trincheiras, tentando desesperadamente evitar o contacto com o inimigo. As munições encontravam-se praticamente esgotadas e o volume de feridos fazia daqueles homens uma ineficaz força de combate. A coluna estava agora reduzida a metade desde que abandonara o Picantin Post. Os alemães flagelavam implacavelmente a unidade, que foi perdendo homens à medida que os sobreviventes de Infantaria 8 deparavam com as forças inimigas.

A ideia inicial de Afonso era retirar para Red House, onde se encontrava o comando de Infantaria 29, mas, por esta altura, esse plano estava totalmente desbaratado. Todos os caminhos se mostravam bloqueados, as posições e postos portugueses tinham caído nas mãos do inimigo e a coluna que evacuara Picantin já só procurava recuar, fosse para onde fosse, mas recuar.

Pelas duas da tarde, os homens do 8 foram alvejados simultaneamente à frente e na retaguarda. Afonso percebeu que já só tinha uma carta na manga, uma carta frágil, incerta, fraca. Mas era a única.

“Os feridos que podem caminhar vão prosseguir a retirada” gritou, deitado no chão enquanto as balas zumbiam sobre as cabeças dos portugueses. “Serão escoltados pelo cabo Esperança e mais um homem. Os restantes ficam comigo para atrair o inimigo e cobrir a retirada. Quando os feridos estiverem longe, retiraremos igualmente. Entendido? “

“E os feridos que não podem andar, meu capitão? “, perguntou Rosa, apontando para os três homens deitados nas macas.

“Vão ter de se render, não vejo outra hipótese.“ Os homens assentiram, sabiam que não restavam alternativas. O cabo Esperança rastejou para junto dos feridos que conseguiam andar e daí, à distância, chamou Afonso.

“Meu capitão, qual é o homem que levo comigo?“ “Sei lá”, devolveu Afonso, encolhendo os ombros com indiferença. “Um à sua escolha, tanto me faz.“ O cabo escolheu uma praça da sua confiança e ambos foram puxando os feridos até chegarem a uma zona de trincheira com os parapeitos altos. Puse-ram-se aí todos de pé e partiram, os que tinham uma perna inutilizada apoiados em espingardas, usadas como se fossem bengalas. Deitado na lama, Afonso contou os seus efectivos. Tinha ali o cabo 417


Matias, o sargento Rosa, o soldado Baltazar e mais um outro que só conhecia de vista.

Somavam cinco homens.

“Quantas balas temos?“, perguntou Afonso.

Os soldados contaram os cartuchos. Eram, ao todo, vinte e duas balas.

“Ainda dá para aviarmos vinte e dois boches”, gracejou Baltazar. “Categoria, hã “ Ninguém se riu.

“Quando eles vierem, só disparem pela certa, no momento em que eles estiverem mesmo perto. Entenderam? “ Afonso fechou ruidosamente a culatra da sua espingarda.

“Cada tiro, cada melro. “

Os alemães disparavam furiosamente sobre a posição portuguesa, prote-gida por sacos de terra, e a ausência de fogo de resposta deu-lhes atrevimento. Começaram a aproximar-se, devagar, devagarinho. Quando se encontravam a cinquenta metros, Afonso mandou disparar e vários alemães rolaram por terra. Os restantes abrigaram-se e voltaram a regar os portugueses com tiros de Mauser. A certa altura, uma Maxim juntou-se ao tiroteio.

Logo à segunda rajada, por sinal certeira, o sargento Rosa foi atingido na cabeça e tombou morto, o outro homem sofreu vários tiros nas costas e deixou igualmente de dar sinal de si.

Um dos feridos que se encontrava deitado na maca também foi atingido e agonizava, moribundo. Afonso, Matias e Baltazar entreolharam-se. Perceberam que tinham chegado ao fim da linha. Antes que fosse disparada a terceira rajada, Afonso esticou o pescoço e gritou:

“Kamerad! “

O primeiro a levantar-se, os braços bem erguidos, foi Baltazar. O Velho pôs-se de pé e foi imediatamente abatido por vários tiros de espingarda. Matias viu-o tombar ao seu lado sem soltar um gemido, os olhos a rolarem para cima e a ficarem brancos, um buraco na testa e outros presumivelmente no tronco, a nuca aberta pela saída da bala, via- se a matéria branca e esponjosa da massa encefálica a escorregar para fora do crânio. O cabo observou-o, estupefacto, mal queria acreditar que aquele era o seu amigo Baltazar, que ele caíra morto, abatido como um cão quando se rendia. Parecia a Matias que vivia um sonho, experimentou uma sensação de profunda irrealidade, de uma estranheza dormente, teve a impressão de que nada daquilo estava a acontecer, via e não acreditava. Primeiro tinha sido o Lingrinhas, depois o Manápulas, agora o Velho, o seu desfalcado pelotão já não existia, tinha sido dizimado em poucas horas, os amigos transformados em pedaços de carne inerte. Cerrou os olhos, abanou a cabeça e abriu-os novamente, na ilusão de que despertaria assim do sonho, mas Baltazar permanecia deitado, o olhar vidrado. Estava mesmo morto.

Fitou-o aparvalhado, atordoado, perdido numa incredulidade embasbacada.


418


A voz do capitão, rouca e gutural, despertou-o da letargia. “Kamerad! “, gritou Afonso, a plenos pulmões. “Kamerad! “ O tiroteio foi enfim suspenso. Aproveitando a pausa, o capitão voltou a berrar. “Ich bin Kamerad! “

Ouviu-se um burburinho à distância e uma voz respondeu a Afonso.

“Ergebt euch.“, gritou. “Legt die Waffen nieder Los Los“ Depois, uma segunda voz adoptou o francês das trincheiras. “Armes pas bonnes. Portugais prisoniers, bonnes.

Portugais guerre, pas bonnes Jetez les armes “

Afonso olhou para Matias. O cabo encontrava-se em estado de choque, embora já estivesse a sair do breve transe em que mergulhara. A sensação de irrealidade permanecia forte, ainda acreditava que tudo aquilo podia não passar de um sonho mau, mas, à cautela, algo dentro de si decidiu que se deveria portar com prudência, afinal de contas o que estava a acontecer em seu redor começava a parecer muito real.

“Eles querem que atiremos as armas fora”, explicou-lhe Afonso. Os dois pegaram nas respectivas Lee-Enfield e projectaram-nas para a frente, de forma suficientemente alta para serem vistas à distância. A seguir, devagar, a medo, ergueram-se com as mãos levantadas, primeiro permaneceram curvados, esperando a todo o momento o pior, e depois, mais confiantes, endireitaram o tronco, os braços sempre esticados para o céu.

Mascarenhas espreitou pela seteira e olhou na direcção que lhe indicava o alferes Veiga. Lá ao fundo circulavam camionetas a transportarem soldados e viam-se homens com bandeirolas a regularem o trânsito, eram os alemães a enviarem reforços para aproveitarem as brechas abertas pela ofensiva dessa manhã. O céu cobrira-se de aviões inimigos, o que consternava os sitiados.

“É impressionante!“, exclamou Mascarenhas. “Não se vê um único aero-plano nosso.“

Veiga assentiu.

“Estamos totalmente isolados, meu major. Somos uma ilha num mar de boches.“ Já passava das quatro da tarde e o major decidiu inspeccionar o blockhaus. O abrigo de cimento onde se encontrava encerrado estava camuflado por uma casa. Era constituído por dois andares, ambos com seteiras por onde os ciclistas britânicos colocavam as suas metralhadoras pesadas e regavam as posições ini-migas. Mascarenhas contou os efectivos, contabilizando setenta ingleses e quase cento e setenta portugueses, a maior parte do 13, mas alguns do 15. Muitos dos portugueses estavam feridos e tinham pensos espalhados pelo corpo. Dentro do blockhaus havia ainda uma zona de segurança adicional, um abrigo de betão com câmara de rebentamento, onde se entrincheirara o comandante britânico com a maior parte das munições. Mascarenhas foi lá implorar um remuni-ciamento e o 419


major inglês cedeu-lhe cinco mil cartuchos. O major do 13 distribuiu as balas pelos homens e, já sem nada para fazer, voltou às seteiras.

A sombra da noite emergiu no horizonte como um vulto umbroso, sobretudo do lado donde vinha o inimigo, mas os aviões mantinham-se no ar com os seus voos rasantes.

“Parecem moscas”, comentou Mascarenhas junto do cabo Guedes.

“Gostava de apanhar um com a minha Luisa”, comentou o cabo. “Daqui não é possível”, explicou-lhe o major. “Precisavas de estar num ponto alto. “ O cabo franziu o sobrolho.

“O meu major está-me cá a dar uma ideiazinha”, disse, com um sorriso malicioso.

“Vou lá acima, ao telhado. Pode ser que tenha sorte. “

Guedes pegou na Lewis e subiu ao telhado da casa erguida por cima do blockhaus.

Encostou-se à chaminé e ficou a aguardar, observando a evolução dos aparelhos sobre Lacouture. Um avião aproximou-se finalmente pela frente, baixou e, quase em voo rasante, começou a metralhar o abrigo de betão. O cabo ergueu a Lewis, apontou e largou uma rajada. O aparelho flectiu para a direita e ganhou altura, esquivando-se ao fogo do telhado.

Desapontado, Guedes regressou ao blockhaus.

Afonso e Matias Grande caminhavam lado a lado sem trocarem palavra. Sentiam-se demasiado cansados para isso. Marchavam como máquinas, alheios ao que os rodeava, a mente apenas fixa nos acontecimentos da manhã, relem-brando cada episódio, os instantes dos bombardeamentos e as circunstâncias que envolveram a morte dos amigos.

Caminhavam como sonâmbulos, trope-çando pelo caminho, a mente ausente, estavam já mergulhados no passado, nas memórias daquela manhã brutal, reviviam ainda cada sentimento, cada sensação, o terror e o medo, os cheiros e os sons, as explosões e os gritos.

O nevoeiro já tinha levantado, revelando uma paisagem lunar fumegante, as trincheiras revolvidas pelas bombas e pelas granadas ao ponto de se terem tornado irreconhecíveis. Os prisioneiros seguiam sozinhos, sem escolta, cruzando-se com milhares e milhares de soldados alemães que marchavam por Fauquissart rumo à frente de combate.

O oficial que os revistara tirara-lhes as máscaras antigás, pelo que ambos vigiavam o terreno de uma forma incons-ciente, pareciam alheados de tudo e, no entanto, algures na sua mente permane-ciam vigilantes, preocupados em detectarem atempadamente qualquer nuvem suspeita. Avançaram pela Great Northern e passaram ao lado de Flank Post.

Afonso lançou um olhar ausente sobre o abrigo, mas a desolação daquele sítio familiar despertou-lhe a atenção, o posto encontrava-se totalmente devastado. Viam-se alguns mortos, corpos esfacelados, deitados de bruços ou em posições estranhas. Os soldados 420


alemães paravam aqui e ali para examinarem os cadáveres. Tiravam-lhes dinheiro, algumas peças do vestuário, botas, relógios e, sobretudo, comida.

Afonso e Matias chegaram à antiga linha da frente e constataram que, das trincheiras portuguesas, apenas restava agora um vago enfilamento. O seu interesse pelo que os rodeava aumentou consideravelmente a partir desse ponto, foi como se começassem a emergir de um sonho. Entraram na terra de ninguém e meteram em direcção às antigas linhas inimigas. Afonso achou estranho estar a passear assim, à luz do dia e com descontracção, por sectores onde antes apenas se circulava à noite e muito a medo.

Um soldado alemão, por sinal corpulento, aproximou-se dos dois e gritou para Matias, apontando-lhe para os pés.

“Gib mir deine Stiefel! “

“Ele quer as tuas botas”, traduziu Afonso.

Matias ficou surpreendido, mas obedeceu. Sentou-se no chão e descalçou maquinalmente as botas, que entregou ao soldado inimigo. O alemão tirou as suas e colocou as do português, que eram aproximadamente do mesmo tamanho. Ergueu-se e assentou bem os pés no solo.

“Mist, die sind kaputt!“, vociferou, desagradado. Arrancou as botas de Matias e atirou-as furiosamente contra o cabo. De seguida, calçou de novo as suas e foi-se embora.

“O gajo devia julgar que as nossas botas eram iguais às dos camones”, comentou Matias enquanto se calçava.

“O que é que têm as tuas botas? “

“Estão descosidas à frente”, explicou o cabo, exibindo a sola aberta. “Está a ver? “ Esticou a perna e aproximou a bota dos olhos do capitão. “O boche ficou pior do que uma barata. “

Atingiram a primeira linha alemã em Nut Trench e meteram por um enfilamento de trincheiras até chegarem à curva de uma estrada. Fazendo um esforço para recordar o traçado das linhas inimigas nos mapas, Afonso concluiu que aquela era a Rue Deleval, uma estrada com tanta importância para os alemães como a Rue Tilleloy para os portugueses. Se esta era a Rue Deleval, raciocinou Afonso, ali à esquerda situava-se a Farm Delapone e Orchard e a curva onde se encontravam correspondia a Irma's Elephant.

Um oficial aproximou-se dos dois e ordenou-lhes que se dirigissem para um ponto à direita, na Rue Deleval. Obedeceram e foram dar a um local onde se encontrava um punhado de militares portugueses.

“Ora viva”, saudou Afonso.

“Ruhe!“, berrou um guarda, mandando-o calar.


421


O grupo permaneceu em silêncio à espera de instruções. A noite caía e surgiu um segundo oficial que os mandou seguir dois soldados. Dirigiram-se para oeste e fizeram a curva para sul num local que Afonso identificou como sendo “Sousa”, uma casa assinalada no mapa do CEP e que, por ironia, perten-cera a um português radicado na Flandres.

Desceram pela estrada, caminhando paralelamente às antigas primeiras linhas alemãs, viram a Rue Dante à esquerda, mas os guardas ignoraram-na, e prosseguiram pela Rue Deleval.

Continuavam a ver-se aqui muitas formações de soldados a marchar com aprumo para combate, homens enquadrados por oficiais a cavalo que lançavam sobre os prisioneiros olhares cheios de curiosidade. Diversos oficiais alemães chegaram a abrandar a marcha das montadas para melhor observarem os soldados inimigos. Seguindo mecanicamente os guardas, os portugueses cruzaram Clara Trench e Butt House, mas, quando atingiram a Fauquissart Road, apanharam-na em direcção a leste, rumo a Aubers, afastando-se definitivamente da Rue Deleval e da zona da frente.

As granadas começaram a atingir o blockhaus com violência às seis e meia da tarde.

Ouvia-se o guincho dos projécteis em voo e, com o impacto das bombas, o edifício estremecia, abanando até aos alicerces, um fragor terrível a encher o interior. A estrutura rangia, algumas partes desmoronavam-se, caíam destroços por toda a parte, uma nuvem de pó dançava no ar. Mas, no essencial, o abrigo aguentava-se, era sólido e maciço.

Mascarenhas decidiu percorrer os dois andares do blockhaus, preocupado em manter o moral dos homens. Nada melhor do que uma conversa para distrair a mente e fazer os homens esquecerem as granadas que choviam sobre o edifício.

“Não se preocupem, o abrigo foi construído para aguentar isto e muito mais”, explicou a um grupo do 13 que guarnecia uma das seteiras.

“Ó meu major, a malta cá não corta prego”, disse um soldado com um sorriso forçado. “Mas, mesmo que estivéssemos cagados de medo, não tínhamos por onde cavar, não é? “

“Quem vai cavar são os boches, vocês vão ver. Os camones vão-nos enviar reforços, corremos com esses cabrões todos e ainda vamos ser tratados como uns heróis. “ Uma granada atingiu o blockhaus, fazendo estremecer o edifício, e todos se calaram.

Caiu algum pó, mas não houve consequências de maior.

“A mim, o que me deixa mais nicado é a fome “, exclamou um soldado.

Mascarenhas sorriu.

“Se pudesses encomendar um prato, o que é que escolhias? “ “Ó meu major, isso é pergunta que se faça? “


422


“Então, rapaz? Não temos comida, mas nada nos proíbe de sonharmos com ela, não é?”

“Ah, meu major, eu alambazava-me com uma boa feijoada à transmontana, caraças, uma daquelas que a minha mãe faz. “

“Tu és donde? “

“Eu sou de Bisalhães, meu major, mesmo ali ao pé de Vila Real. “Bem sei, bem sei”, retorquiu Mascarenhas. “A terra dos barros negros. “ O major sabia que não havia nada de que um soldado mais gostasse do que falar de comida e sonhar com a sua terra. Esses eram dois temas que garantidamente desperta-vam o interesse de qualquer homem, para além das mulheres, claro. Dadas as circunstâncias, falar sobre esses assuntos era o melhor modo de os manter distraídos e animados. Voltou-se, por isso, para outro soldado. “E tu donde és?“

“Eu sou de Lamas de Olo, meu major.”

“Onde é isso? “

“Em Trás-os-Montes, meu major”

“Ó homem, isso já eu sei, aqui toda a malta é de Trás-os-Montes. Mas onde é que fica essa terra? “

“Lamas de Olo é lá para o Alvão, meu major. Entre o Tâmega e o Corgo “

“E é bonito? “

“Se é bonito? É o paraíso, meu major, o paraíso! Vive-se lá no meio da serra, tomam-se umas banhocas nas Fisgas de Ermelo, dá-se um passeio até ao Alto das Caravelas, anda-se à caça, come-se perdiz com uvas, faisão com castanhas, eu sei lá.“ O homem suspirou.

“Ah, meu major, isto é que são cá umas saudades.“

“Não me falem em comida, caraças, não me falem na paparoca”, cortou o primeiro soldado. “Com a larica com que estou, até a merda do corno-bife me sabia a cabrito assado!“

Uma nova explosão interrompeu a conversa, era uma minenwerfer que embatera no bloclzhaus com aparato. O clarão da explosão iluminou as seteiras, agora que a noite caíra e toda a luz brilhava mais forte.

O soldado alemão apontou a Mauser para o tenente português e berrou:

“Die Jace her! “

O tenente ficou embasbacado, sem perceber o que queria o homem.

“Dê-lhe a gabardina”, disse-lhe Afonso. “Ele quer a gabardina” Aparva-lhado, o tenente despiu a gabardina, o alemão ficou com ela e foi-se embora.

“Ora esta”, queixou-se o tenente. “Agora gamaram-me a gabardina, vejam lá... “ 423


Ninguém disse nada, as ordens eram para manter o silêncio. O grupo prosseguiu a marcha, os guardas ignorando os soldados que pilhavam os prisioneiros. Contornaram o Bois du Biez, a posição alemã tantas vezes bombardeada pela artilharia portuguesa, e observaram com curiosidade os sólidos bunkers instalados no bosque e os muitos canhões que por ali se encontravam espalhados, eram um autêntico mar. Não se viam corpos de homens, mas havia em abundância cadáveres de cavalos, vítimas inocentes dos bombardeamentos portugueses. Prosseguiram o caminho pela Fauquissart Road e chegaram a Aubers. A povoação mostrava-se aniquilada, as casas reduzidas a ruínas, parecia Neuve Chapelle.

Depois de Aubers seguiram até Illies, onde foram levados para uns barracões erguidos num perímetro protegido por arame farpado. Ao fim de uma hora serviram-lhes o jantar, pão de centeio com uma salsicha e um dedo de manteiga. Foi o seu primeiro contacto com os bratwurst. Para beber, os guardas distribuíram água. Quando os prisioneiros terminaram a pequena refeição, receberam a visita de um general com ar bonacheirão.

“Guten Abend. uJillkommen in Illies”, saudou-os o oficial. “Mein Name ist General Albert Zeitz. “ Os portugueses olharam-no com cara de quem nada percebia e o general depressa mudou para o patusco francês das trincheiras. “Moi général Zeitz. Allemands bonnes. Portugais promenade aujourd'hui à Lille. Compris “ Um major português levantou o braço e o general fez-lhe sinal para falar.

“Compris. Portugais cansés, promenade pas bonne. Dormir bonne. Compris? “ O general assentiu. Não sabia o que raio queria dizer cansés, nunca tinha ouvido semelhante palavra, mas admitiu tratar-se de uma expressão requin-tada, rebuscada, porventura até um francês de qualidade literária. O que valia, pensou, é que as restantes palavras lhe eram familiares. Sorriu com bonomia, satisfeito por poder comunicar com tanta fluência com os prisioneiros, e não lhe custou, por isso, ceder à sua vontade.

“Compris”, concordou, magnânimo.

Alguns homens dormitavam encostados ao cimento. O bombardeamento contra o blockhaus tinha parado, mas todos se sentiam fracos, sonolentos, eram os efeitos do cansaço e da fome.

“O que eu agora não dava pelo corned-beef e pelas compotas dos camo-nes”, desabafou o alferes Viegas, sentindo-se fraco e esfaimado.

“Estamos todos com fome, Viegas”, disse Mascarenhas. “Mas temos de aguentar, pode ser que cheguem reforços. “

O alferes inclinou a cara.


424


“O meu major acredita mesmo nisso? “

Mascarenhas suspirou.

“Acredito que é possível. “

“Lá possível é, meu major”, admitiu Viegas com um trejeito de boca. “Mas olhe que isto está mal. Só se vêem boches lá fora, os aeroplanos são todos deles e o som da artilharia está a afastar-se, dá a impressão de que os tipos continuam a avançar e a nossa primeira linha a recuar”

O major aproximou-se de uma seteira, vigiada por uma sentinela do 15. Para lá da pequena abertura era a escuridão total.

Sim, vai lá fora um movimento danado, disse, chamando o alferes com a mão. “Anda cá, anda cá. Queres ouvir isto? “

Calaram-se e ficaram à escuta. No exterior, à distância, escutava-se o som de motores.

“São camiões, meu major. “

“Pois são. Os gajos estão a reforçar as linhas e nós não passamos de um empecilho, um espinho que lhes ficou cravado nas costas. “

De súbito, eclodiu uma sequência de detonações e o blockhaus voltou a ser atingido sucessivamente pelas granadas. O abrigo tremeu até aos alicerces e todos os soldados acordaram, assustados com o fragor infernal do bombar-deamento. O relógio de pulso de Mascarenhas, um Longines prateado, assina-lava as quatro da manhã. Alguns homens sentiam-se de tal modo cansados que voltaram a adormecer, mesmo debaixo daquela cacofonia de explosões, mas a maior parte permaneceu de vigília.

“Gás! “, gritou uma voz, dando o alerta.

As máscaras foram colocadas à pressa, os dentes a apertarem o bocal, uma pinça metálica a bloquear as narinas para obrigar a respiração a processar-se pela boca, as fitas elásticas a ajustarem a tela da máscara ao rosto. Ficaram assim vinte minutos, num grande incómodo, o ar a faltar-lhes, a respiração pesada e ruidosa. Quando tiraram as máscaras, primeiro um homem, depois os restantes, o ar regressara ao normal, as narinas apenas detectaram o eterno cheiro a pólvora a que se tinham habituado em zona de guerra.

A fome começou entretanto a apertar. Apesar de o edifício continuar a ser alvejado pela artilharia inimiga, rangendo assustadoramente a cada impacto de granada, Mascarenhas decidiu mandar sair uma patrulha para avaliar a situação e, já agora, detectar alimentos.

“Voluntários “, pediu.

Ofereceram-se cinco homens e o major determinou que o raide seria comandado pelo mais graduado, o cabo Macedo. A porta foi destrancada e a patrulha esgueirou-se pela 425


escuridão com a missão de ir vasculhar uma casa próxima. O edifício localizava-se na linha de tiro das seteiras do blockhaus, pelo que os alemães não se tinham ainda atrevido a ocupá-lo ou mesmo a inspec-cioná-lo. Às sete da manhã, o bombardeamento contra o reduto de Lacouture foi suspenso e a patrulha regressou, antecipando-se à alvorada. Os homens trouxeram comida e ofereceram-na aos oficiais. Era pão e queijo.

Os prisioneiros levantaram-se com a aurora e formaram no pátio dos barracões a tremelicarem de frio. Um oficial alemão dividiu os portugueses em dois grupos, de um lado os oficiais, do outro os soldados, a maior parte com aspecto miserável, pareciam vagabundos e pedintes. Afonso e Matias viram-se assim separados, irmãos de armas divididos pela hierarquia e pelo destino. Procuraram-se com os olhos, despediram-se com um aceno à distância, em silêncio desejaram-se mutuamente boa sorte e seguiram caminhos diferentes.

A coluna do capitão marchou até Fournes, as bermas da estrada pejadas de civis franceses que olhavam, calados, taciturnos, para os prisioneiros de guerra. Alguns acenavam com pães ou aproximavam-se com tigelas de caldo, mas logo lanceiros a cavalo, que faziam a escolta da coluna, intervinham, interpondo-se entre os civis e os prisioneiros, impedindo o contacto, afugen-tando a multidão.

Ao final da manhã, a coluna entrou em Lille pela Porte de Béthune, a sul da grande cidade, e meteu pela Rue d'Isly, a qual mais à frente, após a Place de Tourcoing, se transformava no Boulevard Vauban. Soldados alemães montaram cordões de segurança em toda a largura da avenida, impedindo ainda que os civis entrassem em contacto com os prisioneiros. Os populares enchiam os passeios, olhando com tristeza para os soldados capturados. Alguns atiravam pães ou chouriços para a coluna, outros choravam amargamente, a mão na boca, choravam com tal emoção que Afonso se sentiu comovido e chorou tam-bém. Em alguns pontos, o cordão dos soldados estava rompido, presumivelmente por falta de efectivos, e alguns civis arriscavam umas palavras, lançadas com carinho, atiradas como flores.

“T'es anglais?“, perguntou uma mulher jovem, olhando Afonso com inten-sidade.

“Non”, disse o capitão, abanando a cabeça e caminhando sempre. “Je suis portugais.

A mulher hesitou, surpreendida. Não sabia que havia portugueses a combaterem pela França. Era jovem, mas o rosto mostrava-se prematuramente envelhecido, não era fácil a vida sob ocupa ção inimiga. Vendo os soldados vencidos a desfilarem diante de si, lamentando a sua derrota mas querendo confortá-los, abriu-se num sorriso triste. Quase a 426


correr pelo passeio, num comovente esforço para acompanhar a marcha dos prisioneiros, a francesa beijou os dedos e soprou na direcção de Afonso.

“Merci, le Portugal. “

Quando os prisioneiros cruzaram a Rue Colbert, os civis que enchiam os passeios começaram a cantar. La Marseillaise estava proibida pelas autoridades ocupantes, mas os franceses tinham outras opções para animarem os prisio-neiros e desafiarem os carcereiros.

As vozes ergueram- se em coro, desafinadas e em desafio, os olhares fixos nos homens derrotados que marchavam miseravelmente pelo piso calcetado do Boulevard Vauban: Où t'en vas-tu, soldat de France, Tout équipé, prêt au combat? Où t'en vas-tu, petit soldat? C'est comme il plait à la Patrie, Je n'ai qu'à suivre les tambours. Gloire au drapeau, Gloire au drapeau.

J'aimerais bien revoir la France, Mais bravement mourir est beau.

Afonso achou a letra desadequada, era uma canção para militares fran-ceses que partiam para a guerra, não para soldados portugueses que dela vinham em cativeiro. Mas o capitão percebeu a intenção, sentiu o calor humano a erguer-se daquelas vozes, o orgulho a vibrar no coro, a multidão a agradecer, a prestar homenagem aos estrangeiros que por ela combateram. O oficial português deixou de caminhar curvado, com os olhos fixos no chão, arrastando-se pela calçada, abatido e cabisbaixo, não era essa a pose que dele esperavam aqueles franceses. Ergueu a cabeça, endireitou o tronco, atravessou a verdejante Esplanade e entrou com altivez pela majestosa Porte Royale, cruzando os muros fortificados da Citadelle.

O tiroteio recomeçou às oito da manhã, mas desta feita os sitiados pude-ram responder ao fogo inimigo. O Sol já nascera, iluminando os campos calci-nados de Lacouture e as posições donde os alemães abriam fogo sem cessar. As munições chegaram ao fim e Mascarenhas foi ao abrigo onde se refugiava o comandante do batalhão britânico e pediu mais cartuchos.

“Take it”, disse o major inglês, apontando para umas caixas de munições. “Les derniers, compris? Les derniers. “

Mascarenhas contou os cartuchos, eram dois mil. Os últimos. As munições foram distribuídas pelos homens que guarneciam as seteiras, com a recomen-dação de serem conservadores no gatilho e só atirarem pela certa. O major observou os terrenos circundantes e constatou que havia alemães por toda a parte, o blockhaus encontrava-se totalmente cercado. Às onze da manhã, as munições esgotaram-se, cada espingarda ficara reduzida à baioneta e a duas ou três balas, guardadas para derradeiras eventualidades.

Um homem aproximou-se então com uma bandeira branca na mão esquerda.

Mascarenhas observou-o pelo binóculo. O indivíduo vestia uma farda kakhi, era um 427


soldado britânico. As portas do blockhaus foram abertas, dando passagem ao homem.

Tratava-se de um maqueiro inglês que tinha sido aprisio-nado pelos alemães e trazia uma mensagem do inimigo. A mensagem foi entre-gue ao major inglês, que se reuniu à porta fechada com os comandantes de Infantaria 13 e Infantaria 15. A reunião terminou meia hora mais tarde e o comandante do 13 chamou os homens e anunciou que o comando do reduto tinha decidido que iriam render-se. Já não havia munições e o inimigo, aperce-bendo-se de que o fogo do blockhaus quase parara, ameaçava atirar tudo pelos ares. O

maqueiro saiu com a resposta dos sitiados e voltou mais tarde com as instruções dos alemães.

Mascarenhas desarmou os cem soldados de Infantaria 13, enquanto os oficiais do 15

e do batalhão inglês faziam o mesmo às suas praças. As Lee-Enfield, as Lewis e as Vickers foram amon toadas num canto. Os homens choravam convulsivamente ao formarem no interior do blochaus. Ainda choravam quando as portas se abriram e marcharam para fora do abrigo, entregando-se ao inimigo. O major ficou na cauda do grupo e foi dos últimos a abandonarem o reduto. De repente, ouviu armas a abrirem fogo e viu os homens à sua frente a recuarem, num pânico, num tropel aflito, os braços esticados no ar em sinal de rendição, mas também de desespero.

“Os gajos estão a disparar!“, gritou um soldado que tentava a todo o custo reentrar no blochaus. “Os gajos estão a matar-nos. “

Mascarenhas ainda viu, estupefacto e indignado, os alemães a descarre-garem as armas sobre os prisioneiros, mas um oficial inimigo interveio e o fogo foi suspenso. Alguns homens rebolavam-se pelo chão, feridos. O oficial alemão, com uma fita branca no braço e uma pistola em riste, gritava com os seus soldados. Depois, fez sinal aos sitiados para saírem, mas parecia mais preocupado em vigiar os seus efectivos do que os portugueses e os ingleses.

Os prisioneiros receberam ordem de marcha e seguiram pela estrada rumo ao cativeiro. Os homens de Infantaria 13, transmontanos rudes e teimosos, gente do campo habituada à vida dura em Boticas, em Alfândega, no Moga-douro, em Romeu e em Moncorvo, estes rústicos de modos bruscos e palavras toscas ergueram as vozes como crianças e começaram, de baixinho, num coro suave, a entoar o hino do batalhão: Palpita um peito d'aço em cada farda Do 13 nem um passo p'ra retaguarda.

Um alemão mandou-os calar. Passavam poucos minutos do meio-dia de 10 de Abril.


428


Загрузка...