CAPÍTULO 7


Toda Hiromatsu, chefe supremo das províncias de Sagami e Kokuzé, o general e conselheiro de mais confiança de Toranaga, comandante-chefe de todos os seus exércitos, desceu a passos largos pela prancha de desembarque até o desembarcadouro, sozinho. Era alto para um japonês, pouco menos de seis pés, um homem de compleição taurina com maciços maxilares, que carregava seus sessenta e sete anos com vigor. Seu quimono militar era de um marrom severo, com exceção dos cinco pequenos escudos Toranaga - três ramos de flores de bambu entrelaçados. Usava um peitoral lustroso e protetores de braços de aço. Apenas a espada curta lhe pendia da cintura. A outra, a mortífera, ele a levava frouxamente na mão. Estava pronto a desembainhá-la e matar imediatamente para proteger seu suserano. Tinha esse costume desde os quinze anos de idade.

Ninguém, nem mesmo o taicum, conseguira mudá-lo.

Um ano antes, quando o taicum morrera, Hiromatsu se tornara vassalo de Toranaga. Toranaga lhe dera Sagami e Kokuzé, duas das suas oito províncias, para governar, quinhentos mil kokus anuais, e também o deixara conservar o seu hábito. Hiromatsu era ótimo em matar.

Ao longo da praia alinhavam-se todos os aldeães - homens, mulheres, crianças -, de joelhos e cabeça baixa. Diante deles, os samurais em filas disciplinadas, formais. Yabu estava à frente, com seus lugar-tenentes.

Se Yabu fosse uma mulher ou um homem mais fraco, sabia que estaria batendo no peito, gemendo e arrancando os cabelos. Era coincidência demais. Pois o famoso Toda Hiromatsu estar ali, naquele dia, significava que Yabu fora traído - ou em Yedo, por alguém da sua casa, ou ali, em Anjiro, por Omi, um dos homens de Omi ou um dos aldeães. Fora surpreendido em desobediência. Um inimigo tirara partido do seu interesse pelo navio.

Ajoelhou-se, curvou-se e todos os samurais o imitaram. Amaldiçoou o navio e quem navegava nele.

- Ah, Yabu-sama - ouviu Hiromatsu dizer, e viu-o ajoelhar-se na esteira que fora estendida para ele e retribuir a mesura.

Mas a reverência foi menos profunda que o correto e Hiromatsu não esperou que ele se curvasse de novo, de modo que soube, sem que lhe dissessem, que se encontrava em seriíssimo perigo. Viu o general sentar-se sobre os calcanhares. "Punho de Aço" era como o chamavam pelas costas. Apenas Toranaga ou um dos três conselheiros teria o privilégio de hastear a bandeira de Toranaga. Por que enviar um general tão importante no meu encalço?

- O senhor me honra vindo a uma das minhas pobres aldeias, Hiromatsu-sama - disse.

- Meu senhor me enviou. - Hiromatsu era conhecido pela sua rudeza. Não tinha nem malícia nem astúcia, apenas uma fidelidade absoluta a seu suserano.

- Estou honrado e muito contente - disse Yabu. - Precipitei-me de Yedo para cá por causa do navio bárbaro.

- O Senhor Toranaga convidou todos os daimios amigos a esperar em Yedo até que ele regressasse de Osaka.

- Como está o nosso senhor? Espero que esteja tudo bem com ele.

- Quanto mais depressa o Senhor Toranaga estiver a salvo em seu castelo de Yedo, melhor. Quanto mais depressa o conflito com Ishido for declarado e nós reunirmos nossos exércitos, investirmos contra o Castelo de Osaka e o queimarmos até os tijolos, melhor. - Os maxilares do velho se avermelhavam à medida que sua ansiedade por Toranaga aumentava; odiava estar longe dele.

O taicum construíra o Castelo de Osaka para ser invulnerável. Era o maior do império, com masmorras e fossos interligados, castelos menores, torres e pontes, e espaço para oitenta mil soldados dentro de seus muros. Em torno dos muros e na cidade imensa estavam outros exércitos, igualmente disciplinados e igualmente bem armados, todos fanáticos partidários de Yaemon, o herdeiro.

- Eu lhe disse uma dúzia de vezes que era louco em se pôr nas mãos de Ishido. Doido!

- O Senhor Toranaga tinha que ir, neh? Não tinha escolha. - O taicum ordenara que o conselho de regentes, que governava em nome de Yaemon, se reunisse por dez dias no mínimo duas vezes por ano e sempre no Castelo de Osaka, trazendo consigo um máximo de quinhentos secretários para dentro dos muros. E todos os outros daimios ficavam igualmente obrigados a visitar o castelo com as respectivas famílias, para prestar homenagem ao herdeiro, também duas vezes por ano. Assim eram todos controlados, ficavam todos indefesos parte do ano, todos os anos. - O encontro estava marcado, neh? Se ele não fosse seria traição, neh?

- Traição contra quem? - Hiromatsu ficou ainda mais vermelho. - Ishido está tentando isolar nosso amo. Ouça, se eu tivesse Ishido em meu poder como ele tem o Senhor Toranaga, eu não hesitaria um momento, fossem quais fossem os riscos. A cabeça de Ishido lhe teria sido arrancada dos ombros há muito tempo, e seu espírito estaria à espera do renascimento. - Involuntariamente o general estava torcendo a bainha da espada que carregava na mão esquerda. A direita, áspera e calosa, esperava pronta, no colo. Ele estudou o Erasmus. - Onde estão os canhões?

- Mandei trazê-los para terra. Por segurança. Toranaga-sama vai fazer outro acordo com Ishido?

- Quando parti de Osaka, tudo estava tranqüilo. O conselho se reuniria dentro de três dias.

- O conflito vai se tornar declarado?

- Eu gostaria que sim. Mas e o meu senhor? Se quiser fazer um acordo, fará. - Hiromatsu olhou de novo para Yabu. - Ele ordenou que todos os daimios aliados o esperassem em Yedo. Até que regressasse. Isto não é Yedo.

- Sim. Achei que o navio era importante o bastante para a nossa causa para que o investigasse imediatamente.

- Não havia necessidade, Yabu-san. Deveria ter mais confiança. Nada acontece sem o conhecimento do nosso amo. Ele teria mandado alguém para investigar. Aconteceu de mandar a mim. Há quanto tempo o senhor está aqui?

- Um dia e uma noite.

- Então levou dois dias para vir de Yedo?

- Sim.

- Veio muito depressa. Merece ser cumprimentado.

Para ganhar tempo Yabu começou a contar a Hiromatsu sobre sua marcha forçada. Mas tinha a mente em outros assuntos mais vitais. Quem seria o espião? Como Toranaga recebera a informação sobre o navio tão rapidamente quanto ele? E quem falara a Toranaga sobre a sua partida? Como poderia manobrar agora e lidar com Hiromatsu?

Hiromatsu ouviu-o, depois disse penetrantemente:

- O Senhor Toranaga confiscou o navio e todo o conteúdo.

Um silêncio chocado varreu a praia. Estavam em Izu, feudo de Yabu, e Toranaga não tinha direitos ali. Nem Hiromatsu tinha qualquer direito de ordenar qualquer coisa. A mão de Yabu se apertou sobre a espada.

Hiromatsu esperava com calma estudada. Fizera exatamente como Toranaga ordenara e agora estava comprometido. Era matar ou ser morto, implacavelmente.

Yabu sabia que agora também devia se comprometer. Não havia mais o que esperar. Se se recusasse a ceder o navio, teria que matar Hiromatsu Punho de Aço, porque Hiromatsu Punho de Aço jamais partiria sem ele. Havia talvez uns duzentos samurais de elite na galera atracada ao cais. Também teriam que morrer. Poderia convidá-los a desembarcar, iludi-los e em poucas horas poderia facilmente ter samurais suficientes em Anjiro para dominá-los a todos, pois ele era um mestre na emboscada. Mas isso forçaria Toranaga a enviar tropas contra Izu. Você será engolido, disse Yabu a si mesmo, a menos que Ishido venha socorrê-lo. E por que Ishido deveria socorrê-lo quando seu inimigo Ikawa Jikkyu é parente dele e quer Izu para si? Matar Hiromatsu abrirá as hostilidades, porque Toranaga terá um motivo de honra para investir contra você, o que forçaria a mão de Ishido, e Izu seria o primeiro campo de batalha.

E as minhas armas? Minhas lindas armas e meu belo plano? Perderei minha chance de imortalidade para sempre se tiver que cedê-los a Toranaga.

Tinha a mão sobre a espada Murasama. Sentia o sangue no braço da espada e a cegante premência de começar. Descartara imediatamente a possibilidade de não mencionar os mosquetes. Se houvera traição quanto à notícia do navio, certamente também houvera quanto à especificação da carga. Mas como Toranaga obteve a notícia tão depressa? Por pombo-correio! É a única resposta. De Yedo ou daqui? Quem possui pombos-correio aqui? Por que eu não tenho um serviço assim? É culpa de Zukimoto, ele devia ter pensado nisso, neh? Decida-se. Guerra ou não?

Yabu invocou a má vontade de Buda, de todos os kamis, de todos os deuses que jamais existiram ou ainda estavam por ser inventados sobre o homem ou os homens que o haviam traído, sobre seus pais e seus descendentes em dez mil gerações. E cedeu.

- O Senhor Toranaga não pode confiscar o navio porque já é um presente para ele. Ditei uma carta com essa finalidade. Não foi, Zukimoto?

- Sim, senhor.

- Claro que se o Senhor Toranaga quiser considerá-lo confiscado, ele pode. Mas era para ser um presente. - Yabu ficou contente de ouvir que sua voz soava autêntica. - Ele ficará feliz com o butim.

- Agradeço-lhe em nome do meu amo. – Novamente Hiromatsu se maravilhava com a antevisão de Toranaga. Este havia predito que isso aconteceria e que não haveria luta. "Não acredito", dissera Hiromatsu. "Nenhum daimio suportaria tal usurpação dos seus direitos. Yabu não suportará. Eu certamente não suportaria. Nem mesmo do senhor." "Mas você teria obedecido às ordens e me teria falado sobre o navio", respondera Toranaga. "Yabu deve ser manobrado, neh? Preciso da violência e da astúcia dele. Neutraliza Ikawa Jikkyu e defende meu flanco."

Ali na praia, sob o sol forte, Hiromatsu forçou-se a fazer uma reverência polida, detestando a própria duplicidade.

- O Senhor Toranaga ficará encantado com a sua generosidade.

Yabu observava-o de perto.

- Não é um navio português.

- Sim. Foi o que ouvimos dizer.

- E é pirata. - Viu os olhos do general estreitarem-se.

- Hein?

Enquanto lhe contava o que o padre dissera, Yabu pensava: Se isso for novidade para você como foi para mim, não significa que Toranaga teve a mesma informação original que eu? Mas se você conhecer o conteúdo do navio, então o espião é Omi, um dos samurais dele ou um aldeão.

- Há uma grande abundância de tecido. Algum dinheiro. Mosquetes, pólvora e munição.

Hiromatsu hesitou. Depois disse:

- O tecido é seda chinesa?

- Não, Hiromatsu-san - disse Yabu, usando o "san".

Eram ambos igualmente daimios. Mas agora que ele estava magnanimamente "dando" o navio, sentia-se seguro o suficiente para usar o termo menos respeitoso. Gostou de ver que a palavra não passou despercebida pelo homem mais velho. Sou daimio de Izu, pelo sol, pela lua e pelas estrelas!

- É muito incomum, um tecido grosso, pesado, totalmente inútil para nós - disse. - Mandei trazer para terra tudo o que valia a pena aproveitar.

- Bom. Por favor, ponha tudo a bordo do meu navio.

- O quê? - As vísceras de Yabu quase explodiram.

- Tudo. Imediatamente.

- Agora?

- Sim. Sinto muito, mas o senhor naturalmente compreenderá que quero retornar a Osaka o mais depressa possível.

- Sim, mas... mas haverá espaço para tudo?

- Ponha os canhões de volta no navio bárbaro e lacre o navio. Dentro de três dias chegarão barcos para rebocá-lo até Yedo. Quanto aos mosquetes, pólvora e munição, há... - Hiromatsu parou, evitando a armadilha que repentinamente percebeu estar preparada para ele.

"Há espaço suficiente para os quinhentos mosquetes", dissera-lhe Toranaga. "E para toda a pólvora e os vinte mil dobrões de prata. Deixe os canhões no convés do navio e o tecido nos porões. Deixe Yabu falar à vontade mas dê-lhe ordens, não lhe dê tempo para pensar. Não fique irritado ou impaciente com ele. Preciso dele, mas quero essas armas e esse navio. Cuidado porque ele vai tentar pegá-lo numa armadilha a fim de fazê-lo revelar que conhece a carga com exatidão. Ele não deve descobrir o nosso espião."

Hiromatsu amaldiçoou a própria inabilidade para jogar esses jogos necessários.

- Quanto ao espaço necessário - disse abruptamente -, talvez o senhor devesse me dizer. E qual é a carga, exatamente? Quantos mosquetes, quanta munição, e assim por diante? O metal está em barras ou em moedas? É prata ou ouro?

- Zukimoto!

- Sim, Yabu-sama.

- Traga a lista do conteúdo. - Cuido de você mais tarde, pensou Yabu. Zukimoto saiu correndo.- Deve estar cansado, Hiromatsu-san. Talvez tomasse um chá? Preparamos acomodações para o senhor. Os banhos são totalmente inadequados, mas talvez um o refrescasse um pouco.

- Obrigado. O senhor é muito previdente. Um pouco de chá e um banho seriam excelentes. Mais tarde. Primeiro conte-me tudo o que aconteceu desde que o navio chegou aqui.

Yabu contou-lhe os fatos, omitindo a parte sobre a cortesã e o menino, que não tinha importância. Por ordem de Yabu, Omi contou a sua história, exceto a sua conversa particular com Yabu. E Mura contou a sua, excluindo a parte sobre a ereção de Anjin, o que, raciocinou Mura, embora interessante, poderia ofender Hiromatsu, cujas ereções, na idade dele, devem ser poucas e espaçadas. Hiromatsu olhou para a coluna de fumaça que ainda se erguia da pira.

- Quantos piratas sobraram?

- Dez, senhor, incluindo o líder - disse Omi.

- Onde está ele agora?

- Na casa de Mura.

- O que ele fez? Qual foi a primeira coisa que fez lá depois de sair do buraco?

- Foi direto para a casa de banho, senhor - disse Mura rapidamente. - Agora está dormindo, senhor, como um morto.

- Não precisou carregá-lo desta vez?

- Não, senhor.

- Parece que ele aprende depressa. - Hiromatsu deu uma olhada em Omi, novamente. - Acha que podem ser ensinados a se comportar?

- Não. Não com certeza, Hiromatsu-sama.

- Você poderia limpar a urina de um inimigo das suas costas?

- Não, senhor.

- Nem eu. Nunca. Os bárbaros são muito estranhos. - Hiromatsu voltou a atenção para o navio. - Quem vai supervisionar o carregamento?

- Meu sobrinho, Omi-san.

- Bom. Omi-san, quero partir antes do pôr-do-sol. Meu capitão o ajudará a ser muito rápido. Dentro de três bastões. - A unidade de tempo era o tempo que um bastão de incenso padrão levava para queimar, aproximadamente uma hora.

- Sim, senhor.

- Por que não vem comigo para Osaka, Yabu-san? - disse Hiromatsu, como se se tratasse de um pensamento repentino. - O Senhor Toranaga ficaria encantado em receber todas estas coisas das suas mãos. Pessoalmente. Por favor, há bastante espaço. - Quando Yabu começou a protestar, permitiu-lhe que continuasse por um tempo, conforme Toranaga ordenara, e depois disse, conforme Toranaga ordenara: - Eu insisto. Em nome do Senhor Toranaga, eu insisto. Sua generosidade precisa ser recompensada.

Com a minha cabeça e as minhas terras? perguntou Yabu a si mesmo amargamente, sabendo que não havia nada que pudesse fazer agora senão aceitar agradecido.

- Obrigado. Ficaria honrado.

- Bom. Muito bem, está tudo feito - disse Punho de Aço com um alívio evidente. - Agora um pouco de chá. E um banho.

Polidamente Yabu conduziu-o pela colina, até a casa de Omi. O velho foi lavado e esfregado e depois se deitou agradavelmente no calor e no vapor. Mais tarde as mãos de Suwo o puseram novo. Um pouco de arroz, peixe cru e verduras em conservas, consumidos frugalmente a sós. Chá bebido em boa porcelana. Um rápido cochilo sem sonhos.

Após três bastões a shoji se abriu. A guarda pessoal sabia muito bem que não devia entrar no quarto sem ser convidada; Hiromatsu já estava acordado e a espada meio desembainhada o pronta.

- Yabu-sama está esperando lá fora, senhor. Diz que o navio está carregado.

- Excelente.

Hiromatsu se dirigiu para a varanda e satisfez suas necessidades no balde.

- Seus homens são muito eficientes, Yabu-san.

- Os seus homens ajudaram, Hiromatsu-san. São mais que eficientes. - Sim, e pela altura do sol, é bom que sejam mesmo, pensou Hiromatsu, depois disse cordialmente: - Nada como uma boa urinada quando se está com a bexiga cheia, já que há muito vigor atrás do jato. Neh? Faz a gente se sentir jovem novamente. Na minha idade é preciso sentir-se jovem. - Afrouxou a tanga confortavelmente, esperando que Yabu fizesse alguma observação cortês em anuência, mas não houve nenhuma. Sentiu a irritação começar a erguer-se, mas refreou-a. - Mande levar o líder pirata para o meu navio.

- O quê?

- O senhor foi muito generoso fazendo presente do navio o do conteúdo. A tripulação é conteúdo. Portanto leve o líder pirata para Osaka. O Senhor Toranaga quer vê-lo. Naturalmente o senhor faz o que quiser com o resto deles. Mas durante a sua ausência, por favor providencie para que os seus assistentes entendam que os bárbaros são propriedade do meu amo e que é melhor que haja nove em bom estado de saúde, vivos e aqui quando ele os quiser.


Yabu correu para o molhe, onde Omi deveria estar. Quando deixara Hiromatsu no banho, havia subido o caminho que passava, sinuoso, perto do pátio de funeral. Ali se curvara rapidamente para a pira e continuara, ladeando os campos em degraus de trigo e frutas, para finalmente dar num pequeno altiplano bem acima da aldeia. Um bem cuidado santuário de kami guardava aquele lugar agradável. Uma árvore antiga provia sombra e tranqüilidade. Fora até lá para acalmar a raiva o para pensar. Não se atrevera a se aproximar do navio, de Omi ou de seus homens porque sabia que teria ordenado que a maioria, se não todos, cometessem seppuku, o que teria sido um desperdício, e teria massacrado a aldeia, o que teria sido tolice - somente camponeses apanhavam peixe e cultivavam o arroz que produzia a riqueza dos samurais.

Enquanto estivera sentado, encolerizara-se sozinho e tentara estimular o cérebro, o sol declinou e dissipou a névoa do mar.

As nuvens que encobriam as montanhas distantes a oeste se fragmentaram por um instante e ele vira a beleza dos altos picos cobertos de neve. A vista o acalmara e ele começara a relaxar e a pensar num plano.

Ponha os seus espiões para descobrir o espião, disse a si mesmo. Nada do que Hiromatsu disse indicou se o traidor é daqui ou de Yedo. Em Osaka você tem amigos poderosos, o próprio Senhor Ishido entre eles. Talvez um deles possa descobrir esse espírito maligno. Mas mande uma mensagem secreta à sua esposa, para o caso de o informante estar lá. E quanto a Omi?

Deixar à responsabilidade dele encontrar o informante aqui? Será ele o informante? Não é provável, mas não é impossível. É mais que provável que a traição tenha começado em Yedo. Uma questão de tempo. Se Toranaga, em Osaka, recebeu a informação no momento em que o navio chegou aqui, então Hiromatsu teria vindo para cá antes. Você tem informantes em Yedo. Deixe-os provar o próprio valor.

E quanto aos bárbaros? Agora são o seu único lucro do navio. Como é que você pode usá-los? Espere, Omi não lhe deu a resposta? Poderia usar o conhecimento que eles têm do mar o dos navios para negociar com Toranaga pelas armas, neh?

Outra possibilidade: tornar-se vassalo de Toranaga completamente. Dar-lhe o seu plano. Pedir-lhe que o autorize a liderar o Regimento das Armas - para glória dele. Mas um vassalo não deve nunca esperar que seu senhor o recompense por seus serviços ou mesmo os reconheça. Servir é um dever, dever é samurai, samurai é imortalidade. Seria o melhor caminho, pensou Yabu, o melhor. Mas eu posso realmente ser vassalo dele? Ou de Ishido?

Não, isso é impensável. Aliado sim, vassalo não.

Bom, então os bárbaros são um recurso no final das contas. Omi tem razão novamente. Sentira-se mais tranqüilo e então, quando chegara a hora e um mensageiro lhe trouxera a informação de que o navio estava carregado, dirigira-se a Hiromatsu para descobrir que perdera até os bárbaros.

Estava espumando de raiva quando chegou ao molhe.

- Omi-san!

- Sim, Yabu-sama?

- Traga o líder bárbaro aqui. Vou levá-lo para Osaka. Quanto às ordens, veja que sejam todas bem cumpridas enquanto eu estiver fora. Quero-os em boas condições e bem-comportados. Use o buraco, se for preciso.

Desde que a galera chegara, a mente de Omi se encontrava em confusão e ele se sentia muito preocupado pela segurança de Yabu.

- Deixe-me ir também, senhor, Talvez eu possa ajudar.

- Não, agora quero que você tome conta dos bárbaros.

- Por favor. Talvez, de algum modo insignificante, eu possa retribuir sua gentileza para comigo.

- Não há necessidade - disse Yabu, mais afavelmente do que gostaria. Lembrou-se de que aumentara o rendimento de Omi para três mil kokus e ampliara seu feudo por causa da prata e das armas. Que agora haviam desaparecido. Mas vira o interesse do jovem e sentira uma cordialidade involuntária. Com vassalos assim, eu vou cavar um império, prometeu a si mesmo. Omi vai comandar uma das unidades quando eu recuperar minhas armas. - Quando a guerra vier, bem, terei um trabalho muito importante para você, Omi-san. Agora vá e traga o bárbaro.

Omi levou quatro guardas consigo. E Mura para traduzir.


Blackthorne foi arrancado do sono. Precisou de um minuto para clarear a mente. Quando a névoa se dissipou, Omi estava olhando fixamente para ele.

Um dos samurais puxara o acolchoado de cima dele, outro o sacudira para despertá-lo, os outros dois seguravam varas de bambu, finas e de aparência maligna. Mura tinha um rolo curto de corda na mão.

Mura ajoelhou-se e curvou-se.

- Konnichi wa. Bom dia.

- Konnichi wa. — Blackthorne se pôs de joelhos também e, embora estivesse nu, curvou-se com igual polidez. É somente uma cortesia, disse a si mesmo. É costume deles e eles fazem reverência por educação, de modo que não há vergonha nisso. A nudez é ignorada, isso também é um costume deles, e também não há vergonha na nudez.

- Anjin? Por favor, vestir - disse Mura.

Anjin? Ah, lembro agora. O padre disse que eles não conseguem pronunciar o meu nome, então me deram o nome de "Anjin", que significa "piloto", sem a intenção de insultar. E serei chamado de Anjin-san - Sr. Piloto - quando merecer.

Não olhe para Omi, advertiu a si mesmo. Ainda não. Não se lembre da praça da aldeia, de Omi, de Croocq e de Pieterzoon.

Uma coisa de cada vez. É isso o que você vai fazer. Foi o que você jurou diante de Deus: uma coisa de cada vez. A vingança será minha, por Deus.

Blackthorne viu que suas roupas tinham sido limpas de novo e abençoou quem as limpara. Despojara-se delas na casa de banho como se estivessem contaminadas de peste. Fizera-os esfregar-lhe as costas três vezes. Com a esponja mais áspera e com pedra-pomes. Mas ainda sentia a urina queimando.

Desviou os olhos de Mura e fitou Omi. Sentiu um prazer envolvente por saber que seu inimigo estava vivo e perto dele. Curvou-se, imitando mesuras que já vira, e manteve-se na posição um instante.

- Konnichi wa, Omi-san - disse. Não há vergonha alguma em falar a língua deles, nem em dizer "bom dia" ou em fazer uma reverência primeiro, como é hábito deles.

Omi retribuiu a reverência.

Blackthorne notou que não foi exatamente igual à sua, mas por enquanto bastava.

- Konnichi wa, Anjin - disse Omi.

A voz era cortês, mas não o suficiente.

- Anjin-san! - Blackthorne olhou diretamente para ele.

Suas vontades se chocaram e Omi foi desafiado como um homem o é jogando cartas ou dados. Pago para ver: não tem educação?

- Konnichi wa, Anjin-san - disse Omi finalmente, com um breve sorriso.

Blackthorne vestiu-se rapidamente.

Vestiu calças folgadas e um codpiece{1}, meias, camisa e casaco, o longo cabelo em ordem, amarrado num rabo, e a barba aparada com a tesoura que o barbeiro lhe emprestara.

- Hai, Omi-san? - perguntou Blackthorne quando terminou de se vestir, sentindo-se melhor mas muito cauteloso, desejando ter mais palavras para usar.

- Por favor, mão - disse Mura.

Blackthorne não compreendeu e disse isso com sinais. Mura ergueu as próprias mãos e parodiou o ato de amarrá-las.

- Mão, por favor.

- Não. - Blackthorne disse diretamente a Omi e balançou a cabeça.

- Não é necessário - disse em inglês -, não é necessário em absoluto. Dei a minha palavra. - Manteve a voz gentil e razoável, depois acrescentou com rudeza, imitando Omi: - Wakarimasu ka, Omi-san?

Omi riu. Depois disse:

- Hai, Anjin-san. Wakarimasu. - Voltou-se e saiu.

Mura e os outros arregalaram os olhos, atônitos. Blackthorne seguiu Omi para o sol. Suas botas tinham sido limpas. Antes que pudesse enfiá-las, a empregada "Onna" já estava de joelhos, ajudando-o.

- Obrigado, Haku-san - disse ele, lembrando-se do verdadeiro nome dela. Qual é a palavra para "obrigado"? perguntou a si mesmo. Caminhou na direção do portão, Omi na frente.

Estou atrás de você, seu maldito bast... Espere um minuto! Lembra-se do que prometeu a si mesmo? E por que xingá-lo, mesmo interiormente? Ele não o xinga. Imprecações são para os fracos ou para os imbecis. Não são?

Uma coisa de cada vez. Já basta que você esteja atrás dele. Você sabe disso claramente e ele também. Não cometa erros, ele sabe disso muito claramente.


Os quatro samurais ladeavam Blackthorne na descida da colina, a enseada ainda oculta, Mura discretamente dez passos atrás, Omi na frente.

Será que vão me levar para o subterrâneo novamente? perguntou-se Blackthorne. Por que queriam me amarrar as mãos? Omi não disse ontem — Jesus Cristo, foi ontem só? -: "Se você se comportar pode ficar fora do buraco. Se se comportar, amanhã outro homem poderá ser tirado do buraco. Talvez. E até mais homens, talvez"? Não foi isso o que ele disse? Eu me comportei? Gostaria de saber como Croocq está. O rapaz estava vivo quando o carregaram para a casa onde a tripulação ficou primeiro.

Blackthorne sentia-se melhor hoje. O banho, o sono e a comida fresca haviam começado a recuperá-lo. Sabia que se fosse cuidadoso e pudesse descansar, dormir e comer, dentro de um mês estaria em condições de correr ou nadar uma milha, comandar um navio de combate e levá-lo à volta do mundo.

Não pense nisso ainda! Simplesmente preserve a sua força. Um mês não é muito para se esperar, hein?

A caminhada colina abaixo e através da aldeia o estava fatigando. Você é mais fraco do que pensava... Não, você é mais forte do que pensava, ordenou a si mesmo.

Os mastros do Erasmus salientavam-se acima dos telhados de cerâmica e Blackthorne sentiu o coração acelerar. Adiante a rua fazia uma curva, acompanhando o contorno do flanco da colina, descia até a praça e terminava. Um palanquim com cortinas parado ao sol. Quatro carregadores em tangas sumárias de cócoras ao lado dele, distraidamente cutucando os dentes. No momento em que viram Omi puseram-se de joelhos, fazendo uma longa e profunda reverência.

Omi mal lhes fez um gesto de cabeça quando passou por eles, mas nesse momento uma garota atravessou o portão, indo para o palanquim, e ele parou. Blackthorne susteve o fôlego e também parou.

Uma jovem empregada veio correndo segurar uma sombrinha verde para dar sombra à garota. Omi curvou-se, a garota retribuiu, o se puseram a conversar alegremente, a imponente arrogância de Omi desaparecida.

A garota usava um quimono cor de pêssego, uma larga faixa de ouro à cintura e sandálias com tiras de ouro. Blackthorne notou o olhar que ela lhe deu. Era claro que ela e Omi falavam a seu respeito. Não sabia como reagir, ou o que fazer, de modo que não fez nada além de esperar pacientemente, exultando com a vista dela, sua pureza e o calor da sua presença. Perguntou a si mesmo se ela e Omi eram amantes, ou se ela era a esposa de Omi, e pensou: Ela existe realmente?

Omi perguntou-lhe alguma coisa e ela respondeu, agitando o leque verde que cintilou tenuemente e dançou à luz do sol, sua risada musical, sua extraordinária delicadeza. Omi também estava sorrindo, depois deu meia-volta sobre os calcanhares e se afastou a passos largos, novamente samurai.

Blackthorne seguiu-o. Viu que os olhos dela se detinham nele quando passou e disse:

- Konnichi wa.

- Konnichi wa, Anjin-san - respondeu ela, e sua voz o comoveu. Tinha mal e mal cinco pés de altura e era perfeita.

Quando se curvou ligeiramente, a brisa agitou a seda do quimono e mostrou um vislumbre de quimono interior escarlate, o que ele achou surpreendentemente erótico.

O perfume da garota ainda o rodeava quando ele dobrou a esquina. Viu o alçapão e o Erasmus. E a galera. A garota desapareceu-lhe da mente. Por que as nossas vigias de armas estão vazias? Onde estão nossos canhões e, em nome de Cristo, o que uma galera de escravos está fazendo aqui, o que aconteceu no buraco?

Uma coisa de cada vez.

Primeiro, o Erasmus: o toco do mastro de proa que a tempestade havia arrebatado sobressaía de modo desagradável. Isso não importa, pensou ele. Poderíamos zarpar facilmente. Poderíamos soltar as amarras - a brisa noturna e a maré nos levariam silenciosamente e poderíamos carenar amanhã, bem longe desta ilha minúscula. Meio dia para assentar o mastro sobressalente e então todas as velas enfeixadas e rumo ao alto-mar! Talvez fosse melhor não lançar ferros mas escapar para águas mais seguras. Mas quem tripularia? Você não pode levar o navio sozinho. De onde veio esse navio de escravos? E por que está aqui? Podia ver aglomerados de samurais e marinheiros lá embaixo, no desembarcadouro. O vaso com sessenta remos - trinta de cada lado - estava em ordem e equilibrado, os remos ensarilhados com cuidado, prontos para partida imediata. Ele estremeceu involuntariamente. A última vez que vira uma galera fora ao largo da Costa do Ouro, dois anos antes, quando sua esquadra zarpara, os cinco navios juntos. Era um rico navio mercante costeiro, português, fugindo dele contra o vento. O Erasmus não pôde alcançá-lo, capturá-lo nem afundá-lo.

Blackthorne conhecia bem a costa norte-africana. Fora piloto e capitão durante dez anos da London Company of Barbary Merchants, a sociedade anônima que equipava navios mercantes de combate para romper o bloqueio espanhol e comerciar com a costa da Barbaria. Pilotara para a África setentrional e ocidental, para o sul até Lagos, para o norte e o leste através do traiçoeiro estreito de Gibraltar - sempre patrulhado pelos espanhóis -, até Salerno, no reine de Nápoles. O Mediterrâneo era perigoso para a navegação inglesa e holandesa. O inimigo espanhol e português estava lá maciçamente e, pior que isso, os otomanos, os turcos infiéis, infestavam a região com galeras de escravos e navios de combate.

Essas viagens tinham sido muito proveitosas e ele pudera comprar seu próprio navio, um brigue de cento e cinqüenta toneladas, para fazer comércio por conta própria. Mas fora afundado por ordem sua e ele perdera tudo. Tinham sido surpreendidos a sotavento, numa calmaria ao largo da Sardenha, quando a galera turca saíra do sol. A luta fora cruel e depois, pelo crepúsculo, o esporão da nau inimiga atingira-lhes a popa e eles foram abordados rapidamente. Ele nunca esquecera o grito penetrante: "Allahhhhhhhhhhhhhhhh!", quando os corsários saltaram as amuradas. Estavam armados com espadas e mosquetes. Ele havia reagrupado seus homens e o primeiro ataque fora rechaçado, mas o segundo os subjugou e ele ordenara que incendiassem o paiol de armas. Com o navio em chamas, resolveu que era melhor morrer do que ser posto aos remos. Sempre tivera um terror mortal por ser capturado vivo e ser transformado em escravo de galera - o que não era um destino inusitado para um marujo capturado.

Quando o paiol foi pelos ares, a explosão arrancou a quilha do navio e destruiu parte da galera corsária. Na confusão que se seguiu, ele conseguiu nadar para a chalupa e escapar com quatro tripulantes. Foi preciso deixar para trás os que não conseguiram nadar com ele, e ainda se lembrava dos gritos por ajuda, em nome de Deus. Mas Deus virara o rosto para aqueles homens naquele dia, portanto pereceram ou foram postos aos remos. Deus mantivera o rosto voltado para Blackthorne e os quatro homens, e eles conseguiram atingir Cagliari, na Sardenha. De lá rumaram para casa, sem um tostão.

Isso fora há oito anos, o mesmo ano em que a peste irrompera de novo em Londres. Peste, carestia e tumultos de desempregados famintos. Seu irmão mais novo e família tinham sido destruídos. Seu primogênito também perecera. Mas no inverno a peste sumiu, ele conseguiu um novo navio com facilidade e partiu para o mar, a fim de refazer fortuna. Primeiro para a London Company of Barbary Merchants. Depois uma viagem às índias Ocidentais, à caça de espanhóis. Em seguida, um pouco mais rico, navegara para Kees Veerman, o holandês, na sua segunda viagem em busca da lendária passagem nordeste para Catai e as ilhas das Especiarias, na Ásia, que se supunha existirem nos mares de Gelo, ao norte da Rússia czarista. Procuraram durante dois anos, então Kees Veerman morrera nos desertos árticos, assim como oitenta por cento da tripulação, e Blackthorne dera meia-volta, levando o resto dos homens para casa. Então, há três anos, fora seduzido pela recentemente formada Companhia das índias Orientais Holandesas e pedira para pilotar sua primeira expedição ao Novo Mundo. Comentava-se à boca pequena que eles haviam adquirido, a um custo imenso, um portulano português contrabandeado que supostamente revelava os segredos do estreito de Magalhães, e queriam pô-lo à prova. Naturalmente os mercadores holandeses teriam preferido usar um dos seus próprios pilotos, mas não havia nenhum que se comparasse em qualidade com os ingleses treinados pela monopolística Trinity House, e o valor espantoso do portulano forçou-os a arriscar com Blackthorne. Mas ele fora a melhor escolha: era o melhor piloto protestante vivo, sua mãe fora holandesa e ele falava holandês perfeitamente. Blackthorne concordara, entusiasmado, aceitara os quinze por cento do lucro total como paga, e, como era de costume, jurara solenemente, diante de Deus, fidelidade à companhia, fazendo o voto de levar a esquadra e de trazê-la de volta para casa.

Por Deus, vou levar o Erasmus de volta, pensou Blackthorne.

E com tantos homens quantos ele deixar vivos.

Atravessavam a praça agora. Ele desviou os olhos da galera e viu os três samurais guardando o alçapão. Estavam comendo em tigelas, manejando habilmente os pauzinhos que Blackthorne os vira usando muitas vezes mas com que não conseguia lidar.

- Omi-san! - Por meio de sinais, explicou que queria ir até o alçapão, só para dar um alô aos amigos. Só por um instante. Mas Omi balançou a cabeça, disse alguma coisa que ele não compreendeu e continuou através da praça, para a praia lá embaixo, passando pelo caldeirão e em frente, rumo ao molhe.

Blackthorne seguiu-o obedientemente. Uma coisa de cada vez, disse a si mesmo. Seja paciente.

Quando atingiram o quebra-mar, Omi voltou-se e chamou os guardas do buraco. Blackthorne viu-os abrir o alçapão e descer. Um deles fez um sinal a aldeães, que trouxeram a escada e um barril cheio de água fresca e o carregaram para baixo. O vazio foi trazido para cima. Assim como a latrina.

Aí está! Se você for paciente e aceitar o jogo com as regras deles, pode ajudar a sua tripulação, pensou ele com satisfação.

Havia grupos de samurais reunidos perto da galera. Um homem alto, velho, mantinha-se à parte. Pela deferência que o Daimio Yabu lhe demonstrava, e pelo modo como os outros saltavam à sua mais ligeira observação, Blackthorne imediatamente percebeu a sua importância. Será que é o rei deles? perguntou a si mesmo.

Omi ajoelhou-se com humildade. O velho fez uma meia mesura, voltou os olhos para Blackthorne.

Reunindo tanta dignidade quanto conseguiu, Blackthorne ajoelhou-se, estendeu as mãos sobre o chão de areia do quebra-mar, como Omi fizera, e se curvou tão baixo quanto o samurai.

- Konnichi wa, sama — disse polidamente.

Viu o velho fazer uma meia mesura novamente. Houve uma discussão entre Yabu, o velho e Omi. Yabu falou a Mura. Mura apontou para a galera.

- Anjin-san. Por favor, lá.

- Por quê?

- Vá! Agora. Vá!

Blackthorne sentiu o pânico despertar.

- Por quê?

- Isogi! - comandou Omi, fazendo-lhe um gesto na direção da galera.

- Não, eu não...

Houve uma ordem imediata de Omi, quatro samurais caíram em cima de Blackthorne e lhe seguraram os braços para trás. Mura estendeu a corda e começou a atar-lhe as mãos as costas.

- Seus filhos das putas! - gritou Blackthorne. - Eu não vou subir a bordo desse maldito navio de escravos!

- Nossa Senhora! Deixem-no em paz. Ei, seus macacos bebedores de mijo, deixem o bastardo em paz! Kinjiru, neh? Ele é o piloto? O anjin, ka?

Blackthorne mal podia crer nos próprios ouvidos. Aquela linguagem violenta e injuriosa, em português, viera do convés da galera. Então viu o homem começar a descer a prancha de desembarque. Tão alto quanto ele e mais ou menos da mesma idade, mas de cabelo preto e olhos escuros e descuidadamente vestido com roupas de marujo, florete do lado, pistolas ao cinto. Um crucifixo cravejado de pedras preciosas pendia-lhe do pescoço. Usava um gorro vistoso e um sorriso rasgava-lhe o rosto.

- Você é o piloto? O piloto do holandês?

- Sim - Blackthorne ouviu-se responder.

- Bom. Bom. Eu sou Vasco Rodrigues, piloto desta galera! - Voltou-se para o velho e falou uma mistura de japonês e português, chamando-o ora de macaco-sama, ora de Toda-sama, que, pelo modo como pronunciava, soava "Toady-sama". Por duas vezes sacou da pistola, apontou enfaticamente para Blackthorne e enfiou-a de volta no cinto, falando em japonês escabrosamente entremeado de vulgaridades em português de sarjeta, que somente homens do mar compreenderiam.

Hiromatsu falou brevemente, os samurais soltaram Blackthorne e Mura o desamarrou.

- Assim é melhor. Ouça, piloto, este homem é como um rei. Disse-lhe que fico responsável por você e que lhe arrebentaria a cabeça, tão depressa quanto vou beber com você! — Rodrigues curvou-se para Hiromatsu, depois sorriu para Blackthorne.

- Curve-se para o bastardo-sama.

Como que em sonho, Blackthorne fez o que lhe dizia o outro.

- Você faz isso como um japona - disse Rodrigues com um sorriso irônico. - É mesmo o piloto?

- Sim.

- Qual é a latitude de The Lizard?

- Quarenta e nove graus e cinqüenta e seis minutos norte, e cuidado com os recifes situados a sul-sudoeste.

- Você é o piloto, por Deus! - Rodrigues apertou a mão de Blackthorne calorosamente. - Venha a bordo. Há comida, conhaque, vinho e grogue. Todos os pilotos deviam amar todos os pilotos, que são o esperma da terra. Amém! Certo?

- Sim - disse Blackthorne fracamente.

- Quando ouvi dizer que íamos levar um piloto conosco, eu disse: ótimo. Faz anos que não tenho o prazer de falar com um verdadeiro piloto. Venha a bordo. Como foi que você passou por Malaca, sua cobra? Como evitou as nossas patrulhas no oceano Indico, hein? O portulano, de quem você roubou?

- Para onde vão me levar?

- Para Osaka. O grão-senhor e alto executor em pessoa quer vê-lo.

Blackthorne sentiu voltar o pânico.

- Quem?

- Toranaga! Senhor das Oito Províncias, fiquem elas onde o Diabo quiser! O daimio-chefe do Japão. Um daimio é como um rei ou um senhor feudal, mas melhor. São todos déspotas.

- O que ele quer comigo?

- Não sei, mas é por isso que estamos aqui, e se Toranaga quer vê-lo, piloto, ele o verá. Dizem que ele tem um milhão desses fanáticos de olhos oblíquos que morreriam pela honra de lhe limpar a bunda se ele fesolvesse que o prazer dele era esse! "Toranaga quer que você traga o piloto, Vasco", disse o intérprete dele. "Traga o piloto e a carga do navio. Leve o velho Toda Hiromatsu lá para examinar o navio e..." Oh, sim, piloto, foi tudo confiscado, pelo que ouvi, o navio e tudo o que está dentro.

- Confiscado?

- Pode ser um boato. Os japonas às vezes confiscam coisas com uma mão e as devolvem com a outra, ou fingem que nunca deram a ordem. É difícil compreender esses bastardinhos sifilíticos!

Blackthorne sentiu os olhos gelados dos japoneses cravados nele e tentou ocultar o medo. Rodrigues seguiu-lhe o olhar.

- Sim, estão ficando impacientes. Já falamos o bastante. Venha a bordo. - Voltou-se, mas Blackthorne o deteve.

- E os meus amigos, a minha tripulação?

- Hein?

Blackthorne contou-lhe rapidamente sobre o buraco. Rodrigues interrogou Omi num japonês estropiado.

- Diz que eles ficarão bem. Ouça, não há nada que você ou eu possamos fazer agora. Você terá que esperar... nunca se pode saber com um japona. Eles têm seis caras e três corações. - Rodrigues fez uma reverência como um cortesão europeu a Hiromatsu. - É assim que fazemos no Japão. Como se estivéssemos na corte daquele fornicador do Filipe II, que Deus leve logo aquele espanhol para o túmulo. - Mostrou-lhe o caminho para o convés. Para surpresa de Blackthorne, não havia correntes nem escravos.

- Qual é o problema? Está doente? - perguntou Rodrigues.

- Não. Pensei que isto fosse um navio de escravos.

- Não os têm no Japão. Nem nas minas. É loucura, mas é isso. Você nunca viu doidos como estes e eu dei a volta ao mundo três vezes. Temos remadores samurais. São soldados, soldados pessoais do sodomita velho... e você nunca viu escravos remando melhor ou homens lutando melhor. - Rodrigues riu. - Põem a bunda diante dos remos e eu os incito para ver esses pederastas sangrar. Nunca desistem. Fizemos o caminho todo de Osaka até aqui, trezentas e tantas milhas marítimas, em quarenta horas. Desça. Vamos zarpar brevemente. Tem certeza de que está bem?

- Sim. Sim, acho que sim. - Blackthorne estava olhando para o Erasmus, atracado a cem jardas. - Piloto, não há um jeito de ir a bordo, há? Não me deixaram voltar a bordo, não tenho roupas e eles lacraram o navio no momento em que chegamos. Por favor?

Rodrigues examinou atentamente o navio.

- Quando foi que perderam o mastro de proa?

- Pouco antes de desembarcarmos aqui.

- Ainda há um sobressalente a bordo?

- Sim.

- Qual é o porto de origem?

- Rotterdam.

- Foi construído lá?

- Sim.

- Estive lá. Bancos de areia péssimos mas uma boa enseada. Tem boas linhas, o seu navio. É novo... nunca tinha visto um desse tipo antes. Nossa Senhora, deve ser veloz, muito veloz. Muito difícil de lidar. - Rodrigues olhou para ele. - Você pode pegar o equipamento rapidamente? - Pegou o marcador de meia hora, de vidro e areia, ao lado da ampulheta, ambos presos à bitácula, e virou-o.

- Sim. - Blackthorne tentou evitar que lhe transparecesse no rosto a esperança crescente que sentia.

- Haveria uma condição, piloto. Nada de armas, nas mangas ou em qualquer lugar. Sua palavra de piloto. Eu disse aos macacos que seria responsável por você.

- Concordo. - Blackthorne olhou a areia caindo silenciosamente pelo gargalo do marcador de tempo.

- Eu lhe estouro a cabeça, piloto ou não, se houver o simples cheiro de trapaça, ou corto-lhe a garganta. Se eu concordar.

- Dou-lhe minha palavra, de piloto para piloto, por Deus. E sífilis nos espanhóis!

Rodrigues sorriu e bateu-lhe ruidosa e cordialmente nas costas.

- Estou começando a gostar de você, Inglês.

- Como sabe que sou inglês? - perguntou Blackthorne, sabendo que o seu português era perfeito e que nada que tivesse dito poderia diferenciá-lo de um holandês.

- Sou um adivinho. Todos os pilotos não são? - Rodrigues riu.

- Conversou com o padre? O Padre Sebastio lhe disse?

- Não converso com padres se posso evitar. Uma vez por semana é mais que suficiente para qualquer homem. - Rodrigues cuspiu com destreza nos embornais e foi para o passadiço de bombordo, que dava para o quebra-mar. — Toady-sama! Ikimasho ka?

- Ikimasho, Rodrigu-san. Ima!

- Será ima. - Rodrigues olhou para Blackthorne pensativamente. - "Ima" significa "agora", "imediatamente". Vamos partir imediatamente, Inglês.

A areia já fizera um montinho no fundo do vidro.

- Quer pedir a ele, por favor? Se posso ir a bordo do meu navio?

- Não, Inglês. Não pedirei porra nenhuma!

Blackthorne repentinamente se sentiu vazio. E muito velho.

Observou Rodrigues ir até a grade do tombadilho e berrar para um pequeno e distinto marujo que se encontrava no convés elevado da proa.

- Ei, capitão-san. Ikimasho? Traga os samurais para bordo, ima! Ima, wakarimasu ka?

- Hai, Anjin-san.

Imediatamente Rodrigues tocou o sino do navio sonoramente seis vezes e o capitão-san começou a gritar ordens aos marujos e samurais em terra e a bordo. Acorreram todos para o convés, a fim de se prepararem para a partida, e, na confusão disciplinada, controlada, Rodrigues tranqüilamente pegou o braço de Blackthorne e o empurrou na direção do passadiço de estibordo, longe da praia.

- Há um escaler lá embaixo, Inglês. Não se mova depressa, não olhe em torno, e não preste atenção a não ser em mim. Se eu lhe disser que volte, faça-o rapidamente.

Blackthorne atravessou o convés, desceu a escada do costado, dirigindo-se para o pequeno bote japonês. Ouviu vozes zangadas atrás dele e sentiu os cabelos na nuca levantando-se, pois havia muitos samurais por todo o navio, alguns armados com arcos e flechas, poucos com mosquetes.

- Não é preciso se preocupar com ele, capitão-san, sou responsável. Eu, Rodrigu-san, ichi ban Anjin-san, pela Virgem! Wakarimasu ka? - A voz de Rodrigues dominava as outras vozes, mas elas estavam ficando cada vez mais zangadas.

Blackthorne estava quase no escaler agora e viu que não havia cavilhas de remos. Não sei remar como eles, disse a si mesmo. Não posso usar o bote! P longe demais para nadar. Ou não é?

Hesitou, examinando a distância. Se dispusesse de todo o vigor, não teria esperado um instante. Mas agora?

Ouviu pés se atropelarem escada abaixo atrás dele e lutou contra o impulso de se virar.

- Sente na popa - ouviu Rodrigues dizer com urgência. - Apresse-se!

Fez o que lhe dizia o outro, que saltou agilmente, agarrou os remos e, ainda em pé, remou com grande habilidade.

Um samurai estava no topo da escada, muito perturbado, com dois outros ao seu lado, arcos preparados. O capitão samurai chamou, inconfundivelmente acenando para que voltassem.

A algumas jardas do vaso, Rodrigues voltou-se.

- Vou até lá - gritou, apontando para o Erasmus. - Ponha os samurais a bordo! - Deu as costas resolutamente ao seu navio e continuou remando, empurrando os remos à moda japonesa. - Se eles puserem flechas nos arcos, me diga! Vigie-os cuidadosamente! O que estão fazendo agora?

- O capitão está muito zangado. Você não vai se meter em apuros, vai?

- Se não zarparmos na hora, o velho Toady pode ter motivo de queixa. O que aqueles arqueiros estão fazendo?

- Nada. Estão escutando o que ele diz. Ele parece indeciso. Não. Agora um deles está puxando uma seta.

Rodrigues preparou-se para parar.

- Nossa Senhora, eles têm pontaria demais para a gente arriscar qualquer coisa! A seta ainda está no arco?

- Sim... mas espere um momento! O capitão está... alguém se aproximou dele, um marujo, acho. Parece que está perguntando alguma coisa sobre o navio. O capitão está olhando para nós. Disse alguma coisa ao homem com a seta. Agora o homem a está guardando. O marujo está apontando para alguma coisa no convés.

Rodrigues arriscou uma olhada rápida e furtiva para ter certeza e respirou com mais facilidade.

- É um dos imediatos. Vai levar a nossa meia hora toda para acomodar os remadores.

Blackthorne esperou, a distância aumentou.

- O capitão está olhando para nós novamente. Não, está tudo bem. Ele se foi. Mas um dos samurais está nos vigiando.

- Deixe que vigie. - Rodrigues relaxou mas não diminuiu o ritmo nem olhou para trás. - Não gosto de ficar de costas para samurais, não quando eles estão de armas nas mãos. O que não quer dizer que alguma vez eu tenha visto um dos bastardos desarmado. São todos bastardos!

- Por quê?

- Eles adoram matar, Inglês. O costume é até dormirem com as espadas. Este país é ótimo mas os samurais são perigosos como víboras e muito mais vis.

- Por quê?

- Não sei, Inglês, mas são - replicou Rodrigues, contente de conversar com alguém da sua espécie. - Claro, todos os japonas são diferentes de nós, não sentem dor ou frio como a gente, mas os samurais são ainda piores. Não têm medo de nada, e menos ainda da morte. Por quê? Só Deus sabe, mas é a verdade. Se os superiores deles dizem "mate", eles matam, "morra", eles caem em cima das espadas ou rasgam a própria barriga. Matam e morrem tão facilmente quanto nós mijamos. As mulheres samurais também, Inglês. Matam para proteger o amo, que é como chamam os maridos aqui, ou matam a si mesmas se lhes disserem que façam isso. Fazem isso cortando a garganta. Aqui um samurai pode ordenar à esposa que se mate e ela tem que fazer isso, por lei. Jesus, Nossa Senhora, as mulheres são uma coisa diferente, uma espécie diferente, Inglês, não há nada na Terra como elas, mas os homens... Samurais são répteis e o mais seguro a fazer é tratá-los como cobras venenosas. Você está bem agora?

- Sim, obrigado. Um pouco fraco, mas bem.

- Como foi a sua viagem?

- Dura. Quanto a eles, os samurais, como fazem para se tornar samurais? Simplesmente pegam duas espadas e fazem aquele corte de cabelo?

- É preciso nascer samurai. Claro, há todos os níveis de samurai, de daimios, no topo, até o que chamamos de soldado raso, na base. Na maior parte é hereditário, como conosco. Antigamente, assim me disseram, era a mesma coisa que na Europa de hoje: camponeses podiam ser soldados e soldados camponeses, com cavaleiros hereditários e nobres armados cavaleiros. Alguns soldados camponeses chegaram ao mais alto grau. O taicum foi um.

- Quem é ele?

- O grande déspota, o dirigente do Japão todo, o grande assassino de todos os tempos. Eu lhe falo dele um dia. Morreu há um ano e agora está ardendo no inferno. - Rodrigues cuspiu no mar. - Hoje em dia você tem que nascer samurai para ser um deles. É tudo hereditário, Inglês. Nossa Senhora, você não tem idéia de quanto valor eles dão a herança, família, nível e aparência. Você viu como Omi se curva diante daquele diabo de Yabu, e ambos rastejam na frente do velho Toady-sama. "Samurai" vem da palavra japonesa que significa "servir". Mas embora todos se curvem e se desmanchem em rapapés diante do superior, são todos samurais igualmente, com privilégios especiais de samurai. O que está acontecendo a bordo?

- O capitão está tagarelando com outro samurai e apontando para nós. O que há de especial com eles?

- Aqui os samurais governam tudo, possuem tudo. Têm seu próprio código de honra e conjunto de regras. Arrogantes? Nossa Senhora, você não faz idéia! O mais inferior deles pode matar legalmente qualquer não-samurai, qualquer homem, mulher ou criança, por qualquer razão ou nenhuma razão. Podem matar, legalmente, só para testar o fio das malditas espadas deles, já os vi fazer isso, e têm as melhores espadas do mundo. Melhor do que aço de Damasco. O que aquele fornicador está fazendo agora?

- Só olhando. Está com o arco nas costas agora. - Blackthorne estremeceu. - Odeio aqueles bastardos mais do que aos espanhóis.

Novamente Rodrigues riu enquanto remava.

- Para dizer a verdade, eles me talham o mijo também! Mas se você quer ficar rico depressa, tem que trabalhar com eles, porque possuem tudo. Tem certeza de que está bem?

- Sim, obrigado. O que você estava dizendo? Os samurais possuem tudo?

- Sim. O país todo está dividido em castas, como na índia. Samurais no topo, camponeses os seguintes em importância. - Rodrigues cuspiu no mar. Só os camponeses podem possuir terra. Compreende? Mas a produção é todinha dos samurais. São donos do arroz todo, que é a única safra importante, e dão uma parte aos camponeses. Somente os samurais têm permissão para carregar armas. Para todo mundo, exceto para um samurai, atacar um samurai é rebelião, punível com morte instantânea. E qualquer um que veja um ataque assim e não o comunique na hora é igualmente responsável, assim como as viúvas, e mesmo as crianças. A família toda é condenada à morte se não comunica o que viu. Por Nossa Senhora, eles são cria de Satã, os samurais! Vi crianças sendo retalhadas em pedacinhos. - Rodrigues pigarreou e cuspiu. - Ainda assim, se você sabe uma ou duas coisas, este lugar é o paraíso na terra. - Ele deu uma olhada para trás, para a galera, a fim de se tranqüilizar, depois sorriu, irônico. - Bem, Inglês, nada como um passeio de bote em torno da baía, hein?

Blackthorne riu. Os anos se desvaneceram quando ele se regalou com o movimento familiar das ondas, o cheiro de sal marinho, gaivotas grasnando e brincando no céu, a sensação de liberdade, a sensação de estar chegando depois de muito, muito tempo.

- Pensei que você não fosse me ajudar a ir até o Erasmus!

-— Esse é o problema com todos os ingleses. Não têm paciência. Ouça, aqui você não pede nada aos japoneses - samurais ou outros, é tudo a mesma coisa. Se fizer, eles vão hesitar, depois perguntar ao superior pela decisão. Aqui você tem que agir. Claro - sua risada sincera atravessou as ondas -, às vezes você pode ser morto se age errado.

- Você rema muito bem. Estava perguntando a mim mesmo como usar os remos quando você chegou.

- Você não acha que eu o deixaria ir sozinho, acha? Qual é o seu nome?

- Blackthorne. John Blackthorne.

- Já esteve no norte alguma vez, Inglês? No norte longínquo?

- Estive com Kees Veerman no Der Lifle. Há oito anos.Foi a segunda viagem dele para encontrar a passagem nordeste. Por quê?

- Gostaria de ouvir sobre isso, e sobre todos os lugares onde você esteve. Acha que algum dia encontrarão o caminho? O caminho setentrional para a Ásia, a leste ou oeste?

- Sim. Vocês e os espanhóis bloqueiam ambas as rotas meridionais, de modo que teremos que encontrá-lo. Sim, encontraremos. Ou os holandeses. Por quê?

- E você pilotou pela costa da Barbaria, hein?

- Sim. Por quê?

- E conhece Trípoli?

- A maioria dos pilotos já esteve lá. Por quê?

- Pensei que já o tinha visto uma vez. Sim, foi em Trípoli. Alguém me apontou você. O famoso piloto inglês. Que foi com o explorador holandês, Kees Veerman, até os mares de Gelo, e que uma vez foi capitão com Drake, hein? Na Armada? Que idade tinha na época?

- Vinte e quatro. O que você estava fazendo em Trípoli?

- Estava pilotando um navio pirata inglês. Meu navio tinha sido pego nas índias por aquele pirata, Morrow, Henry Morrow. Queimou meu navio até a linha d'água depois de tê-lo saquêado, e ofereceu-me o lugar de piloto... o dele estava inutilizado, disse ele... sabe como é. Ele queria ir dali (estávamos nos abastecendo de água ao largo de Hispaniola quando ele nos capturou) para o sul, ao longo do Spanish Main, depois de volta através do Atlântico para tentar interceptar, perto das Canárias, o barco espanhol do carregamento anual de ouro, depois seguir em frente através do estreito de Trípoli, caso o perdêssemos, para procurar outras presas, depois para o norte novamente, para a Inglaterra. Fez a oferta usual de libertar meus companheiros, dar-lhes comida e botes em troca, se eu me juntasse a ele. Eu disse: "Claro, por que não? Desde que não peguemos nenhum navio português, que você me desembarque perto de Lisboa e não roube meus portulanos". Discutimos muito, como de hábito, você sabe como é. Então jurei por Nossa Senhora, ambos juramos pela cruz, e estava feito. Tivemos uma boa viagem e alguns gordos mercadores espanhóis caíram na nossa rede. Quando estávamos ao largo de Lisboa, ele me pediu que ficasse a bordo, deu-me o recado habitual da boa Rainha Bess, de como ela pagaria uma recompensa principesca a qualquer piloto português que se juntasse a ela e ensinasse a habilidade aos outros pilotos de Trinity House, e de como daria cinco mil guinéus pelo portulano do estreito de Magalhães, ou do cabo da Boa Esperança. - Ele tinha o sorriso largo, dentes brancos e fortes, e o bigode e a barba pretos bem tratados. - Eu não os tinha. Pelo menos foi o que lhe disse. Morrow cumpriu a palavra, como todos os piratas deveriam cumprir. Desembarcou-me com os meus portulanos. Claro que mandara copiá-los, já que ele mesmo não sabia ler nem escrever. Até me deu minha parte do dinheiro. Já navegou com ele alguma vez, Inglês?

- Não. A rainha o armou cavaleiro anos atrás. Nunca servi em nenhum dos navios dele. Fico contente de saber que foi justo com você.

Estavam se aproximando do Erasmus. Samurais observavamnos lá de cima, de modo esquisito.

- Essa foi a segunda vez que pilotei para hereges. Na primeira vez não tive tanta sorte.

- Oh?

Rodrigues fixou os remos, o bote desviou habilmente para o lado e ele se agarrou às cordas de abordagem.

- Suba, mas deixe a conversa comigo.

Blackthorne começou a subir enquanto o outro piloto amarrava o bote com segurança. Rodrigues foi o primeiro no convés. Curvou-se como um cortesão.

- Konnichi wa a todos os samas comedores de grama!

Havia quatro samurais no convés. Blackthorne reconheceu um deles como um guarda do alçapão. Embaraçados, curvaram-se rigidamente para o português. Blackthorne imitou a este último, sentindo-se desajeitado; teria preferido curvar-se corretamente.

Rodrigues caminhou diretamente para a escada da gaiúta. Os lacres estavam em perfeita ordem, no lugar. Um dos samurais o interceptou.

- Kinjiru, gomen nasai. É proibido, sinto muito.

- Kinjiru, hein? - disse o português, abertamente não impressionado. - Sou Rodrigu-san, anjin de Toda Hiromatsu-sama. Este lacre - apontou para o selo vermelho com a escrita esquisita -, Toda Hiromatsu-sama, ka?

- Iyé - disse o samurai, sacudindo a cabeça. - Kasigi Yabu-sama!

- IYE? - disse Rodrigues. - Kasigi Yabu-sama? Sou de Toda Hiromatsu-sama, que é rei mais importante do que o sodomita do seu, e Toady-sama é de Toranaga, que é o maior sodomita-sama do mundo todo. Neh? - Arrancou o selo da porta, levou uma mão a uma das pistolas. As espadas estavam meio fora das bainhas, e ele disse calmamente a Blackthorne: - Prepare-se para abandonar o navio - e ao samurai disse grosseiramente: - Toranaga-sama! - Apontou com a mão esquerda a bandeira que tremulava no topo do mastro do seu navio.- Wakarimasu ka?

Os samurais hesitaram, as espadas prontas. Blackthorne preparou-se para mergulhar.

- Toranaga-sama! - Rodrigues lançou o pé contra a porta, o trinco estalou e a porta se abriu com violência. - WAKARIMASU KA?

- Wakarimasu, Anjin-san. - Rapidamente os samurais largaram as espadas, curvaram-se, pediram desculpas, curvaram-se novamente e Rodrigues disse roucamente: - Assim é melhor - e foi em frente.

- Jesus Cristo, Rodrigues - disse Blackthorne quando se viram no convés inferior. - Você faz isso sempre e se safa?

- Faço com muita freqüência - disse o português, enxugando o suor da testa -, até quando seria preferível nunca ter começado.

Blackthorne encostou-se ao tabique.

- Sinto como se alguém me tivesse dado um pontapé no estômago.

- É o único jeito. Você tem que agir como um rei. Ainda assim, com um samurai, nunca se pode saber. São tão perigosos quanto um padre mijado com uma vela na bunda, sentado em cima de um barrilete de pólvora quase cheio!

- O que foi que disse a eles?

- Toda Hiromatsu é conselheiro-chefe de Toranaga, é um daimio maior do que o daimio local. Foi por isso que cederam.

- Como é ele, Toranaga?

- É uma longa história, Inglês. - Rodrigues sentou num degrau, tirou a bota e esfregou o tornozelo. - Quase quebrei o pé na sua porta comida de piolhos.

- Não estava trancada. Você poderia simplesmente tê-la aberto.

- Eu sei. Mas não teria sido tão eficaz. Pela Virgem abençoada, você tem muito que aprender!

- Você me ensinará?

Rodrigues calçou a bota nova.

- Isso depende - disse.

- De quê?

- Teremos que ver, não? Fui só eu que falei até agora, o que é justo: eu estou bem, você não. Logo chegará a sua vez. Qual é a sua cabina?

Blackthorne estudou-o por um momento. O cheiro embaixo dos conveses era denso, estragado.

- Obrigado por me ajudar a vir a bordo.

Seguiu em direção à popa. A porta estava destrancada. A cabina fora revistada e tudo o que era removível fora levado. Não havia livros, roupas, instrumentos ou penas. Seu baú também estava destrancado. E vazio.

Branco de raiva, dirigiu-se para a cabina grande, Rodrigues observando-o atentamente. Até o compartimento secreto fora descoberto e pilhado.

- Levaram tudo. Filhos de piolhos infestados de peste!

- O que você esperava?

- Não sei. Pensei... com os lacres... — Blackthorne foi até a sala forte. Estava nua. Assim como o paiol. Os porões continham apenas os fardos de tecido de lã. - Deus amaldiçoe os japonas! - Voltou à sua cabina e fechou o baú com estrépito.

- Onde estão? - perguntou Rodrigues.

- O quê?

- Os seus portulanos. Onde estão os seus portulanos?

Blackthorne olhou-o penetrantemente.

- Nenhum piloto se preocuparia com roupas. Você veio aqui por causa dos portulanos. Não veio?

- Sim.

- Por que está tão surpreso, Inglês? Por que você acha que eu vim a bordo? Para ajudá-lo a pegar mais trapos? Estão todos puídos e você precisará de outros. Tenho um monte para você. Mas onde estão os portulanos?

- Sumiram. Estavam no meu baú.

- Não vou roubá-los, Inglês. Só quero lê-los. E copiá-los, se for necessário. Cuidarei deles como se fossem os meus, portanto não precisa se preocupar. - A voz endureceu. - Por favor, pegue-os, Inglês, só nos resta pouco tempo.

- Não posso. Sumiram. Estavam no meu baú.

- Você não os teria deixado aí, vindo para um porto estrangeiro. Não se esqueceria da primeira regra de um piloto: escondê-los cuidadosamente, e deixar apenas cópias falsas desprotegidas. Vamos!

- Foram roubados!

- Não acredito em você. Mas admitirei que os tenha escondido muito bem. Procurei durante horas e não encontrei nem sombra deles.

- O quê?

- Por que tão surpreso, Inglês? Está com a cabeça enfiada na bunda? Naturalmente vim de Osaka até aqui para examinar os seus portulanos!

- Você já esteve a bordo?

- Nossa Senhora! - disse Rodrigues com impaciência. - Sim, claro, duas ou três horas atrás, com Hiromatsu, que queria dar uma olhada. Ele rompeu os lacres e depois, quando fomos embora, o daimio local lacrou o navio de novo. Apresse-se, por Deus. A areia está esgotando.

- Foram roubados! - Blackthorne contou-lhe como haviam chegado e como despertara em terra. Depois chutou o baú para o outro lado da sala, enfurecido com os homens que haviam saquêado o seu navio. - Foram roubados! Todas as minhas cartas! Todos os meus portulanos! Tenho cópias de alguns na Inglaterra, mas o meu portulano desta viagem sumiu e o... — Ele se deteve.

- E o portulano português? Vamos, Inglês, tinha que ser português.

- Sim, e o português sumiu também. - Controle-se, pensou. Sumiram e acabou. Quem será que os tem? Os japoneses? Ou será que os deram ao padre? Sem os portulanos e as cartas você não pode pilotar de volta para casa. Nunca chegará a casa... Isso não é verdade. Pode voltar com cuidado, e uma sorte enorme... Não seja ridículo! Está a meio caminho em torno do globo, em terra inimiga, em mãos inimigas, e não tem nem portulano nem cartas. - Oh, Jesus, dê-me forças!

Rodrigues observava-o atentamente. Finalmente disse:

- Sinto muito por você, Inglês. Sei como se sente. Aconteceu comigo uma vez. Foi um inglês também, o ladrão. Possa o navio dele estar no fundo do mar e ele estar ardendo no inferno para sempre. Vamos, vamos voltar.


Omi e os outros esperaram no molhe até que a galera contornasse o promontório e desaparecesse. Para oeste, laivos de noite já manchavam o céu carmesim. Para leste, a noite unia céu e mar, sem horizonte.

- Mura, quanto tempo vai levar para recolocar todos os canhões no navio?

- Se passarmos a noite trabalhando, pelo meio-dia de amanhã estará terminado, Omi-san. Se começarmos ao amanhecer, terminaremos bem antes do pôr-do-sol. Seria mais seguro trabalhar durante o dia.

- Trabalhem durante a noite. Tragam o padre ao buraco imediatamente.

Omi deu uma olhada em Igurashi, o primeiro lugar-tenente de Yabu, que ainda estava olhando na direção do promontório, o rosto tenso, a lívida cicatriz sobre a cavidade do seu olho vazado lugubremente ensombrecida. - Seria bem-vindo se ficasse, Igurashi-san. Minha casa é pobre, mas talvez possamos recebê-lo confortavelmente.

- Obrigado - disse o homem mais velho, voltando-se para ele -, mas nosso amo disse que eu retornasse a Yedo imediatamente, portanto retornarei imediatamente. - Sua preocupação transparecia ainda mais. - Gostaria de estar naquela galera.

- Sim.

- Odeio a idéia de Yabu-sama estar a bordo com apenas dois homens. Odeio.

- Sim.

Apontou para o Erasmus. - Um navio do Demônio, é isso o que é! Tanta riqueza, depois nada.

- Será com certeza? Será que o Senhor Toranaga não ficará satisfeito, enormemente satisfeito, com o presente do Senhor Yabu?

- Aquele ladrão de províncias é tão cheio de si e da própria importância que não vai sequer notar o montante de prata que roubou do nosso amo. Onde estão os seus miolos?

- Presumo que tenha sido apenas a preocupação com um possível perigo contra o nosso senhor que o induziu a fazer essa observação.

- Tem razão, Omi-san. Não tive a intenção de insultar.

- Você foi muito inteligente e útil para o nosso amo. Talvez também tenha razão quanto a Toranaga - disse Igurashi, mas estava pensando. Aproveite a sua riqueza recente, seu pobre tolo! Conheço meu amo melhor do que você, e o seu feudo aumentado não lhe fará bem em absoluto. A sua promoção teria sido uma retribuição justa pelo navio, o dinheiro e as armas. Mas agora isso tudo 'sumiu. E por sua causa, meu amo está em perigo. Você mandou a mensagem e o tentou, dizendo: "Veja os bárbaros primeiro". Deveríamos ter partido ontem. Sim, então meu amo estaria longe daqui agora, em segurança, com o dinheiro e as armas. Você é um traidor? Está agindo para si mesmo ou para o seu estúpido pai, ou para um inimigo?,Para Toranaga, talvez? Não importa. Pode acreditar em mim, Omi, seu jovem tolo comedor de bosta, você e o seu ramo do clã Kasigi não vão durar muito nesta terra. Eu lhe diria isso na cara, mas então teria que matá-lo e isso seria menosprezar a confiança do meu amo. É ele quem deve dizer quando, não eu. - Obrigado pela sua hospitalidade, Omi-san - disse. - Ficarei ansioso por revê-lo em breve, mas agora vou me pôr a caminho.

- Faria uma coisa para mim, por favor? Transmita os meus respeitos a meu pai. Eu ficaria muito agradecido.

- Eu ficaria muito feliz em fazer isso. Ele é um excelente homem. E ainda não cumprimentei a você pelo novo feudo.

- O senhor é muito gentil.

- Obrigado novamente, Omi-san. - Ergueu a mão numa saudação amigável, fez um gesto aos seus homens, e conduziu a falange de cavaleiros para fora da aldeia.

Omi foi até o buraco. O padre estava lá. Omi podia ver que o homem estava zangado e esperou que ele fizesse alguma coisa abertamente, publicamente, para trucidá-lo.

- Padre, diga aos bárbaros que subam, um de cada vez. Diga-lhes que o Senhor Yabu disse que eles podem viver novamente no mundo dos homens. - Omi mantinha a linguagem deliberadamente simples. - Mas à menor infração a uma regra, dois deles serão colocados de novo no buraco. Eles devem se comportar e obedecer a todas as ordens. Está claro?

- Sim.

Omi fez o padre repetir. Quando teve certeza de que o homem sabia tudo corretamente, fê-lo falar para dentro do buraco. Os homens subiram, um a um. Estavam todos atemorizados. Alguns tiveram que ser ajudados. Um homem estava sentindo dores fortes e gritava sempre que alguém lhe tocava o braço.

- Devia haver nove.

- Um está morto. O corpo está lá embaixo, no buraco - disse o padre.

Omi pensou um instante.

- Mura, queime o cadáver e conserve as cinzas junto com as do outro bárbaro. Ponha esses homens na mesma casa onde estavam antes. Dê-lhes muita verdura e peixe. E sopa de cevada e frutas. Mande lavá-los. Eles fedem. Padre, diga-lhes que, se se comportarem e obedecerem, continuarão recebendo comida.

Omi observou e ouviu cuidadosamente. Viu-os reagir com reconhecimento e pensou, com desprezo: Que estúpidos! Privo-os por apenas dois dias, depois concedo-lhes uma ninharia e agora eles comeriam bosta, realmente comeriam. - Mura, ensine-os a se curvar adequadamente e leve-os daqui.

Depois voltou-se para o padre. - Bem?

- Eu vou agora. Vou minha casa. Deixo Anjiro.

- É melhor que parta e fique longe para sempre, você e todos os padres como você. Talvez a próxima vez que venha ao meu feudo seja porque alguns dos meus camponeses cristãos ou vassalos estejam pensando em traição - disse, usando a ameaça velada e o estratagema clássico que os samurais anticristãos usavam para controlar a difusão indiscriminada do dogma estrangeiro nos seus feudos, pois, embora os padres estrangeiros fossem protegidos, os japoneses convertidos não o eram.

- Cristãos bons japoneses. Sempre. Somente bons vassalos. Nunca tiveram maus pensamentos. Não.

- Fico contente em ouvir isso. Não se esqueça de que o meu feudo se estende a vinte ris em todas as direções. Compreendeu?

- Compreendo. Sim. Compreendo muito bem.

Viu o padre curvar-se rigidamente - até os padres bárbaros deveriam ter boas maneiras - e se afastar.

- Omi-san? - disse um dos seus samurais. Era jovem e muito bonito.

- Sim?

- Por favor, desculpe-me, sei que não se esqueceu, mas Masijiro-san ainda está no buraco. - Omi se aproximou do alçapão e olhou fixamente para o samurai lá embaixo. Imediatamente o homem se pôs de joelhos, curvando-se respeitoso.

Os dois dias o haviam envelhecido. Omi sopesou seu serviço passado e o valor futuro. Então pegou a adaga do cinto do jovem samurai e atirou-a no buraco.

Ao pé da escada, Masijiro arregalou os olhos para a faca, não acreditando no que via. Lágrimas começaram a correr-lhe pelo rosto.

- Não mereço esta honra, Omi-san - disse abjetamente.

- Sim.

- Obrigado.

O jovem samurai ao lado de Omi disse:

- Posso, por favor, pedir que ele seja autorizado a cometer seppuku aqui, na praia?

- Ele falhou lá dentro. Fica lá dentro. Ordene aos aldeões que encham o buraco. Eliminem qualquer vestígio dele. Os bárbaros o conspurcaram.


Kiku riu e balançou a cabeça.

- Não, Orni-san, sinto muito, por favor, nada de mais saquê para mim ou o meu cabelo vai desabar, eu vou desabar, e então onde estaríamos?

- Eu desabaria com você e nós nos deitaríamos e estaríamos no nirvana, fora de nós mesmos - disse Omi, feliz, a cabeça girando por causa do vinho.

- Ah, mas eu estaria roncando, e o senhor não pode se deitar com uma horrível garota bêbada que ronca e ter muito prazer nisso. Certamente não, sinto muito. Oh, não, Omi-sama do Novo Feudo Enorme, o senhor merece muito mais do que isso! - Ela verteu outro dedal do vinho quente no minúsculo cálice de porcelana e ofereceu-o com as duas mãos, o indicador e o polegar esquerdos delicadamente segurando o cálice, o indicador direito tocando-lhe a face inferior. - Aqui está, porque o senhor é maravilhoso!

Ele aceitou e bebeu, apreciando o calor e o sabor adocicado da bebida.

- Estou tão contente por ter conseguido convencê-la a ficar um dia extra, neh? Você é tão bonita, Kiku-san.

- O senhor é bonito, e o prazer é meu. - Os olhos dela dançavam à luz da vela encerrada numa flor de papel e bambu que pendia da viga de cedro. Aquele era o melhor conjunto de quartos na casa de chá perto da praça. Ela se inclinou para servir-lhe mais arroz da tigela simples de madeira que estava sobre a mesa baixa laqueada na frente dele, mas Omi sacudiu a cabeça.

- Não, não, obrigado.

- Devia comer mais, um homem forte como o senhor.

- Estou satisfeito, realmente.

Ele não retribuiu o oferecimento porque ela mal havia tocado a pequena salada - pepinos cortados em fatias finas e minúsculos rabanetes esculpidos, em conserva no vinagre doce -, que fora tudo o que aceitara da refeição toda. Tinha havido pedacinhos de peixe cru sobre bolas de arroz em papa, sopa, a salada, e verduras frescas servidas com um molho picante de soja e gengibre. E arroz. Ela bateu palmas suavemente e a shoji foi aberta imediatamente pela sua empregada particular.

- Sim, ama?

- Suisen, leve todas estas coisas embora e traga mais saquê e outro bule de chá. E frutas. O saquê deve estar mais quente do que da última vez. Vamos, boa-para-nada! - Tentou soar imperiosa.

Suisen tinha catorze anos, era meiga, ansiosa por agradar, e uma aprendiz de cortesã. Estava com Kiku há dois anos e Kiku era responsável pelo seu treinamento. Com um esforço, Kiku afastou os olhos do puro arroz branco que adoraria ter comido e ignorou a própria fome. Você comeu antes de chegar e comerá depois, lembrou-se a si mesma. Sim, mas ainda assim é tão pouco! "Ah, mas as damas têm um apetite minúsculo, realmente minúsculo", costumava dizer sua professora. "Os hóspedes comem e bebem - quanto mais melhor. As damas não, e certamente nunca com os hóspedes. Como podem conversar ou entreter ou tocar o samisen ou dançar se estiverem enchendo a boca? Você comerá mais tarde, seja paciente. Concentre-se no seu hóspede."

Enquanto observava Suisen criticamente, avaliando-lhe a habilidade, contava histórias a Omi para fazê-lo rir e esquecer o mundo exterior. A jovem se ajoelhou ao lado dele, arrumou as tigelinhas e os pauzinhos sobre a bandeja de laca numa disposição agradável, conforme fora ensinada. Depois pegou o frasco de saquê vazio, inclinou-o para ter certeza de que estava vazio - teria sido muita falta de educação sacudi-lo -, em seguida se levantou com a bandeja, levando-a silenciosamente até a porta shoji, ajoelhou-se, pôs a bandeja no chão, abriu a porta, levantou-se, atravessou a porta, ajoelhou-se de novo, levantou a bandeja, colocou-a no chão novamente, do lado de fora, sempre em silêncio, e fechou a porta completamente.

- Realmente preciso arrumar outra criada - disse Kiku, sem estar descontente. Essa cor fica bem nela, estava pensando. Preciso mandar buscar mais um pouco dessa seda em Yedo. Que vergonha ser tão cara! Não importa, com todo o dinheiro que foi dado a Gyoko-san pela noite passada e por hoje, haverá mais que o suficiente, da minha parte, para comprar para a pequena Suisen vinte quimonos. É uma criança tão meiga, e realmente muito graciosa. - Ela faz tanto barulho... perturba o aposento todo ... sinto muito.

- Não a notei. Só a você - disse Omi, terminando o vinho. Kiku agitou o leque, seu sorriso iluminando-lhe o rosto. - O senhor faz que eu me sinta muito bem, Omi-san. Sim. E amada.

Suisen trouxe o saquê rapidamente. E o chá. A ama verteu no cálice um pouco de vinho para Omi e passou-o a ele. A jovenzinha discretamente encheu os cálices. Não derramou uma gota e achou que o som que o líquido fazia caindo no cálice tinha exatamente o timbre suave que devia ter, por isso suspirou intimamente, com um alívio imenso, sentou-se sobre os calcanhares, e esperou.

Kiku estava contando uma história divertida que ouvira de uma das amigas em Mishima, e Omi ria. Enquanto fazia isso, ela pegou uma das pequenas laranjas e, usando as longas unhas, abriu-a como se fosse uma flor, os gomos da fruta as pétalas, as divisões da pele as folhas. Removeu um gomo do núcleo e ofereceu-o com as duas mãos, como se fosse o modo usual de uma dama servir a fruta ao seu convidado.

- Aceita uma laranja, Omi-san?

A primeira reação de Omi foi dizer: Não posso destruir essa beleza. Mas isso seria inepto, pensou ele, deslumbrado pelo talento dela. Como posso cumprimentá-la, e à sua anônima professora? Como posso retribuir a felicidade que ela me deu deixando-me ver-lhe os dedos criar uma coisa tão preciosa e no entanto tão efêmera?

Segurou a flor nas mãos um instante, depois agilmente removeu quatro gomos equidistantes uns dos outros, e comeu-os com prazer. Isso deixou uma nova flor. Ele removeu mais quatro gomos, criando um terceiro desenho floral. Em seguida pegou um gomo e moveu um segundo, de modo que os três remanescentes ainda fizessem outra flor. Então pegou dois gomos e recolocou o último no centro da base da laranja, como se fosse uma lua crescente dentro de um sol. Comeu um muito lentamente. Quando terminou, pôs o outro no centro da mão e ofereceu a ela. - Este você deve aceitar porque é o penúltimo. É o meu presente para você.

Suisen mal podia respirar. Para que era o último?

Kiku pegou a fruta e comeu-a. Era a melhor que jamais provara.

- Este último - disse Omi, colocando a flor inteira gravemente sobre a palma da mão direita - é o meu presente aos deuses, sejam eles quem forem, estejam onde estiverem. Nunca comerei esta fruta novamente, a menos que venha das suas mãos.

- Isso é demais, Omi-san! - disse Kiku-san. - Liberto-o do seu voto! Isso foi dito sob a influência do kami que vive em todas as garrafas de saquê!

- Recuso-me a ser libertado.

Estavam os dois muito felizes juntos.

- Suisen - disse ela -, deixe-nos agora. E por favor, criança, por favor, tente fazê-lo com graça.

- Sim, ama. - A jovem dirigiu-se para o aposento contíguo e examinou se os futons estavam meticulosamente em ordem, os instrumentos do amor' e as pérolas do prazer perto, à mão, e as flores perfeitas. Uma ruga imperceptível foi alisada na coberta já alisada. Depois, satisfeita, Suisen se sentou, suspirou de alívio, abanou-se com o leque lilás para diminuir o calor do rosto, e esperou, contente.

No cômodo ao lado, que era o mais requintado da casa de chá, o único com um jardim só seu, Kiku pegou o longo samisen.

Era de três cordas, parecido com uma guitarra, e o primeiro acorde sublime de Kiku encheu o quarto. Depois ela começou a cantar. Primeiro suave, depois penetrante, suave de novo, depois mais baixo, mais suave suspirando suavemente, sempre suavemente, ela cantou sobre o amor, o amor não correspondido, a felicidade e a tristeza.

- Ama? - O sussurro não teria perturbado o mais leve dos sonos, mas Suisen sabia que a ama preferia não dormir depois das nuvens e da chuva, mesmo que a chuva fosse forte. Preferia descansar, meio desperta, em meio à tranqüilidade.

- Sim, Sui-chan? - sussurrou Kiku tão quietamente quanto a criada, usando "chan", como se faria com uma criança favorita.

- A esposa de Omi-san voltou. O palanquim dela acabou de subir pelo caminho em direção de casa.

Kiku deu uma olhada em Omi. Tinha o pescoço confortavelmente apoiado sobre o travesseiro de madeira macia, os braços cruzados. Seu corpo era forte e sem marcas, a pele firme e dourada, com reflexos aqui e ali. Ela o acariciou suavemente, o suficiente para fazer o toque passar-lhe para o sonho, mas não o suficiente para despertá-lo. Depois deslizou de sob o acolchoado e passou o quimono em torno do corpo.

Levou muito pouco tempo para refazer a maquilagem enquanto Suisen lhe penteava e escovava o cabelo e o amarrava de novo no estilo shimoda. Depois patroa e empregada caminharam silenciosamente pelo corredor, saíram para a varanda, atravessaram o jardim e dirigiram-se para a praça. Havia botes, como pirilampos, cobrindo o percurso entre o navio bárbaro e o quebra-mar, onde ainda havia sete canhões para serem carregados. A noite ainda ia alta, faltava muito para o amanhecer.

As duas mulheres passaram rápidas e silenciosas ao longo da estreita alameda entre um amontoado de casas e começaram a subir o caminho.

Carregadores exaustos e cobertos de suor recuperavam as forças junto do palanquim no topo da colina, do lado de fora da casa de Orni. Kiku não bateu no portão do jardim. Havia velas acesas na casa e criados correndo de um lado para o outro. Fez um gesto para Suisen, que imediatamente se dirigiu para a varanda, para a porta dianteira, bateu e esperou. Num instante a porta se abriu. A criada assentiu com a cabeça e desapareceu. Outro instante e a criada voltou. Chamou Kiku com um aceno e fez uma profunda reverência quando esta passou com dignidade. Outra criada precipitou-se na frente e abriu a shoji do melhor aposento.

A cama da mãe de Omi estava intacta. Ninguém dormira ali. A mãe estava sentada, rigidamente ereta, perto do pequeno nicho que sustentava o arranjo de flores. Uma pequena janela shoji abria-se para o jardim. Midori, esposa de Omi, estava em frente à sogra.

Kiku ajoelhou-se. Faz só uma noite que eu estive aqui, aterrorizada na noite dos gritos? Curvou-se, primeiro para a mãe de Omi, depois para a esposa, sentindo a tensão entre as duas mulheres. Por que será que há sempre tanta violência entre sogra e nora? perguntou a si mesma. A nora não se torna sogra, um dia? Por que então ela sempre trata a própria nora com língua viperina e faz da vida dela uma miséria, e por que a garota faz o mesmo quando chega a sua vez? Ninguém aprende?

- Sinto muito perturbá-la, Ama-san.

- É muito bem-vinda, Kiku-san - replicou a velha. - Não há problema algum, espero?

- Oh, não, mas eu não sabia se a senhora gostaria ou não que eu despertasse seu filho - disse, já sabendo a resposta.

- Achei que era melhor perguntar-lhe, já que - voltou-se, sorriu, curvou-se ligeiramente para Midori, de quem gostava muito - a senhora voltou.

- E muito gentil, Kiku-san disse a velha -, e muito previdente. Não, deixe-o em paz.

- Muito bem. Por favor, desculpe por perturbá-la assim, mas achei que era melhor perguntar. Midori-san, espero que a viagem não tenha sido muito má.

- É lamentável, mas foi horrível - disse Midori. - Estou contente de estar de volta e odiei estar longe. Meu marido está bem?

- Sim, muito bem. Riu muito esta noite e pareceu estar feliz. Comeu e bebeu frugalmente e está dormindo sonoramente.

- A Ama-san estava começando a me contar algumas das coisas terríveis que aconteceram enquanto estive fora e...

- Você não devia ter ido. Era necessária aqui - interrompeu a velha, com rancor na voz. - Ou talvez não. Talvez devesse ter ficado longe definitivamente. Talvez você tenha trazido um mau kami para a nossa casa junto com a sua roupa de cama.

- Eu nunca faria isso, Ama-san - disse Midori pacientemente. - Por favor, acredite que eu preferiria me matar a trazer a mais leve mácula ao seu bom nome. Por favor, perdoe-me por ter estado ausente e pelos meus erros. Sinto muito.

- Desde que aquele navio diabólico chegou aqui só tivemos problemas. Isso é mau karni. Muito mau. E onde você estava quando foi necessária? Tagarelando em Mishima, enchendo a barriga e bebendo saquê.

- Meu pai morreu, Ama-san. Um dia antes de eu chegar.

- Hum, você não teve nem a cortesia ou a previdência de estar junto do leito de morte de seu pai. Quanto mais depressa você deixar nossa casa permanentemente, melhor para todos nós. Quero chá. Temos uma hóspede aqui e você nem se lembrou o suficiente da sua educação para oferecer-lhe um refrigério!

- Foi pedido, imediatamente, no momento em que ela...

- Não chegou imediatamente! - A shoji se abriu. Uma empregada, nervosa, trouxe chá e alguns doces. Primeiro Midori serviu a velha, que imprecou asperamente contra a criada e deu uma dentada sem dentes num doce, sorvendo ruidosamente a sua bebida. - Deve desculpar a criada, Kiku-san - disse. - O chá está sem gosto. Sem gosto! E escaldante. Suponho que só se pode esperar que isso aconteça nesta casa.

- Tome, por favor, fique com o meu. - Midori soprou gentilmente sobre o chá para esfriá-lo.

A velha pegou-o com má vontade.

- Por que não ser correto da primeira vez? - Mergulhou num silêncio mal-humorado.

- O que pensa de tudo isso? - perguntou Midori a Kiku.

- O navio, Yabu-sama e Toda Hiromatsu-sama?

- Não sei o que pensar. Quanto aos bárbaros, quem sabe? Certamente são uma extraordinária coleção de homens. E o grande daimio, Punho de Aço? É muito curioso que tenha chegado quase ao mesmo tempo que o Senhor Yabu, neh? Bem, a senhora deve me desculpar, não, por favor, preciso ir embora.

- Oh, não, Kiku-san, não quero nem ouvir falar nisso.

- Aí está, Midori-san - interrompeu a velha com impaciência. - Nossa hóspede está desconfortável e o chá, terrível.

- Oh, o chá é suficiente para mim, Ama-san, realmente. Não, se me desculparem, estou um pouco cansada. Talvez antes de partir, amanhã, eu possa ser autorizada a vir vê-las. É sempre um imenso prazer conversar com as senhoras.

A velha permitiu-se ser bajulada e Kiku seguiu Midori à varanda e ao jardim.

- Kiku-san, você é tão atenciosa - disse Midori, segurando-lhe o braço, aquecida pela beleza dela. - Foi muito gentil de sua parte, obrigada.

Kiku deu uma olhada para trás, para a casa, e arrepiou-se:

- Ela é sempre assim?

- Hoje foi cortês, comparada a algumas vezes. Se não fosse por Omi e por meu filho, juro que lhe sacudiria o pó de sob meus pés, rasparia a cabeça e me tornaria monja. Mas tenho Omi e o meu filho, e isso compensa tudo. Só agradeço a todos os kamis por isso. Felizmente Ama-san prefere Yedo e não consegue ficar muito tempo longe de lá. - Midori sorriu tristemente. - A gente se treina para não ouvir, você sabe como é. - Suspirou, muito bonita ao luar. - Mas isso não tem importância. Conte-me o que aconteceu desde que parti.

Fora por isso que Kiku viera à casa com tanta urgência, pois obviamente nem a mãe nem a esposa gostariam que o sono de Omi fosse perturbado. Viera para contar tudo à adorável Senhora Midori, de modo que ela pudesse ajudar a proteger Kasigi Omi, assim como ela mesma tentaria fazê-lo. Contou-lhe tudo o que sabia, exceto o que acontecera no quarto com Yabu. Acrescentou os rumores que ouvira e as histórias que as outras garotas lhe haviam passado ou inventado. E tudo o que Omi lhe dissera - suas esperanças e temores e planos -, tudo sobre ele, exceto o que acontecera no quarto naquela noite. Sabia que isso não era importante para a esposa.

- Tenho medo, Kiku-san, medo pelo meu marido.

- Tudo o que ele aconselhou foi sábio, senhora. Acho que tudo o que fez foi correto. O Senhor Yabu não recompensa ninguém levianamente e três mil kokus é um aumento respeitável.

- Mas o navio é do Senhor Toranaga agora, e todo aquele dinheiro.

- Sim, mas Yabu-sama oferecer o navio como presente foi uma idéia de gênio. Omi-san deu a idéia a Yabu, e certamente isso em si já é pagamento suficiente, neh? Omi-san deve ser reconhecido como um vassalo proeminente. - Kiku torceu a verdade só um pouquinho, sabendo que Omi estava em grande perigo, e toda a sua casa. O que tem que ser será, lembrou a si mesma. Mas não há mal em desanuviar o rosto de uma bela mulher.

- Sim, posso ver isso - disse Midori. Faça que isso seja verdade, rezou. Por favor, faça que isso seja verdade. Abraçou a garota, os olhos cheios de lágrimas. - Obrigada. Você é muito gentil, Kiku-san, muito gentil. - Ela tinha dezessete anos.


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