CAPÍTULO 48


— Os bárbaros moram ali, Anjin-san — disse o samurai, apontando à frente.

Pouco à vontade, Blackthorne semicerrou os olhos na escuridão, o ar irrespirável e sufocante. — Onde? Aquela casa? Ali? — Sim. Está certo, sinto muito. O senhor está vendo? Havia outra série de cabanas e vielas a cem passos à frente, além da faixa nua de terreno pantanoso e, dominando-as, uma casa grande, vagamente delineada contra o céu de azeviche. Blackthorne olhou em torno um momento para tomar posições aproximadas, usando o leque contra os insetos noturnos. Logo depois de terem passado a Primeira Ponte ele se vira perdido no labirinto.

O caminho levava através de inúmeras ruas e ruelas, inicialmente em direção à praia, seguindo para leste algum tempo, sobre pontes maiores e menores, depois novamente para o norte, acompanhando a margem de outro regato que serpeava através dos arredores da cidade. À medida que se distanciavam do castelo, mais sórdidas se tornavam as ruas, mais pobres as construções. As pessoas eram mais obsequiosas e menos reflexos de luz vinham de trás das shojis. Yedo era uma massa que se espraiava horizontalmente e parecia a Blackthorne ter sido construída de vilas separadas meramente por ruas e riachos.

Ali na extremidade sul-oriental da cidade, o terreno era totalmente pantanoso e o caminho se desmanchava em podridão sob os pés. Durante algum tempo o mau cheiro fora se adensando perceptivelmente, um miasma de algas marinhas, fezes e lama estagnada, e pairando sobre isso um odor agridoce que ele não conseguia identificar, mas que parecia familiar.

— Fede como Billingsgate em maré baixa — resmungou ele, matando outro inseto que lhe pousara no rosto. Sentia o corpo todo pegajoso de suor.

Então ouviu um débil trechinho de um alegre canto marítimo em holandês e todo o seu desconforto foi esquecido. — Será que é Vinck?

Exultante, acelerou o passo na direção do som, com carregadores a lhe iluminar cuidadosamente o caminho e samurais seguindo-o.

Agora, mais próximo, viu que a construção de um andar era parte japonesa, parte européia. Erguia-se sobre pilares e era rodeada de uma alta e tosca cerca de bambu, aparentemente prestes a ruir, muito mais nova do que as cabanas que se amontoavam por perto. Não havia portão na cerca, apenas um buraco. O telhado era de sapé, a porta da frente sólida, as paredes de madeira rústica, e as janelas cobertas com venezianas em estilo holandês. Aqui e ali havia salpicos de luz vinda das fendas. O canto e a troça aumentaram, mas ele ainda não conseguia reconhecer as vozes. As lajes por trás da cerca levavam direto aos degraus da varanda, através de um jardim maltratado. Amarrado com cordas ao portão, um curto mastro de bandeira. Ele parou e o contemplou. Do mastro pendia indiferentemente uma bandeira holandesa, mole e provisória, e o pulso dele se acelerou ao vê-Ia.

A porta da frente estava escancarada. Um raio de luz jorrava para a varanda. Baccus van Nekk, bêbado, cambaleou até a borda do terraço, olhos semicerrados, puxou o codpiece para o lado, e urinou num jato alto e curvo.

— Ahhhhh — murmurou ele, num êxtase suspiroso. — Nada como uma mijada.

— Não é mesmo? — disse Blackthorne, do portão. — Por que você não usa um balde?

— Hein? — Van Nekk piscou, míope, para a escuridão, na direção de Blackthorne, que se erguia com os samurais sob os archotes. — Jesus Deus do paraíso! — Ele segurou as partes com um grunhido e se curvou desajeitadamente só da cintura para cima. — Gomen nasai, samurai-sama. Ichiban gomen nasal a todos os macacos-samas. — Ele se endireitou, forçou um sorriso, e murmurou meio consigo mesmo: — Estou mais bêbado do que imaginei. Pensei que o bastardo filho de uma puta estivesse falando holandês! Gomen nasal, neh? — disse de novo, voltando vacilante para dentro da casa, coçando-se e ajeitando o codpiece às apalpadelas.

— Ei, Baccus, não sabe fazer coisa melhor do que emporcalhar o próprio ninho?

— O quê? — Van Nekk deu meia-volta abruptamente e olhou para os archotes, desesperadamente tentando enxergar com clareza. — Piloto? — disse, a voz estrangulada. — É o senhor, piloto? Deus amaldiçoe os meus olhos, não consigo enxergar. Piloto, pelo amor de Deus, é o senhor?

Blackthorne riu. O velho amigo parecia tão despido ali, tão imbecil, o pênis pendurado para fora. — Sim, sou eu! — Depois, para os samurais que observavam com desdém mal dissimulado: — Matte kurasai. Esperem por mim, por favor.

— Hai, Anjin-san.

Blackthorne avançou e agora, à luz, pôde ver o lixo espalhado por toda parte no jardim. Com repugnância, tirou os tamancos e subiu correndo os degraus. — Alô; Baccus, está mais gordo do que quando partimos de Rotterdam, neh? — Bateu-lhe cordialmente nos ombros.

— Senhor Jesus Cristo, é o senhor mesmo? — Sim, claro que sou eu.

— Nós o tínhamos dado por morto há muito tempo. — Van Nekk estendeu a mão e tocou Blackthorne para se certificar de que não estava sonhando. — Senhor Jesus, minhas preces foram atendidas. Piloto, o que lhe aconteceu, de onde está vindo? É um milagre! É o senhor mesmo?

— Sim. Agora, por favor, ponha o cod no lugar e vamos entrar — disse Blackthorne, consciente dos seus samurais.

— O quê? Oh! Desculpe, eu... — Van Nekk obedeceu às pressas e lágrimas começaram a lhe escorrer pelas faces. — Oh, Jesus, piloto ... pensei que os demônios do gim estivessem me pregando uma peça de novo. Vamos entrar, mas deixe-me anunciá-lo, hein?

Tomou a dianteira, oscilando um pouco, muito da sua embriaguez já evaporada com a alegria. Blackthorne o seguiu. Van Nekk segurou a porta para que ele passasse, depois gritou por sobre a cantoria roufenha: — Rapazes! Olhem o que o Papai Noel nos trouxe! — Bateu a porta atrás de Blackthorne, para aumentar o efeito.

O silêncio foi instantâneo.

Foi preciso um momento para que os olhos de Blackthorne se acomodassem à luz. O ar fétido quase o sufocou. Viu todos eles a olhá-lo embasbacados como se ele fosse um espectro maligno. Então o encanto se rompeu e houve gritos de boas-vindas e alegria e todo mundo se pôs a abraçá-lo e esmurrá-lo nas costas, todos falando ao mesmo tempo. — Piloto, de onde veio — Tome um drinque — Cristo, é possível — Mijo no meu chapéu, é ótimo vê-lo — Já o tínhamos dado por morto — Não, estamos bem, pelo menos razoavelmente bem — Levante-se da cadeira, sua prostituta, o piloto-sama deve se sentar na melhor cadeira — Ei, grogue, neh, depressa, maldição, depressa! Deus amaldiçoe os meus olhos, saia do meu caminho, quero apertar a mão dele...

Finalmente Vinck gritou: — Um de cada vez, rapazes! Dêem-lhe uma chance! Dêem a cadeira ao piloto e um drinque, pelo amor de Deus! Sim, pensei que ele fosse samurai também...

Alguém empurrou um copo de madeira para a mão de Blackthorne. Ele se sentou na raquítica cadeira e todos ergueram os copos e a enxurrada de perguntas começou de novo.

Blackthorne olhou em torno. A sala estava mobiliada com bancos, algumas cadeiras toscas e mesas, e iluminada por velas e lâmpadas a óleo. No chão imundo, um imenso barril de saquê.

Uma das mesas estava coberta de pratos sujos, com um pernil parcialmente assado e cheio de moscas.

Seis mulheres em andrajos encolhiam-se de joelhos, curvando-se para ele, encostadas à parede.

Seus homens, todos sorridentes, esperavam que ele começasse: Sonk, o cozinheiro; Johann Vinck, imediato de contramestre e atirador-chefe; Salamon, o mudo; Croocq, o menino; Ginsel, o veleiro; Baccus van Nekk, mercador-chefe e tesoureiro, e finalmente Jan Roper, o outro mercador, que estava sentado longe dos outros, com o mesmo sorriso sombrio no rosto magro e tenso. — Onde está o capitão-mor? — perguntou Blackthorne.

— Morreu, piloto, morreu... — responderam seis vozes, uma sobrepondo-se à outra, confundindo o relato até que Blackthorne levantasse a mão. — Baccus?

— Ele morreu, piloto. Não chegou a sair do buraco. Lembra-se de que ele estava doente, hein? Depois que levaram o senhor embora, bem, naquela noite nós o ouvimos sufocando na escuridão. Não foi, rapazes?

Um coro de "sins" e Van Nekk acrescentou: — Eu estava sentado ao lado dele, piloto. Ele estava tentando chegar até a água, mas não havia água, e ele tinha falta de ar e gemia. Não tenho muita certeza sobre a hora, estávamos todos com medo da morte, mas ele acabou se asfixiando e depois, bem... ouvimos o estertor da morte. Foi péssimo, piloto.

— Foi terrível, sim — acrescentou Jan Roper. — Mas foi castigo de Deus.

Blackthorne olhou de um a um. — Alguém o acertou? Para dar-lhe sossego?

— Não... não, oh, não — respondeu Van Nekk. — Ele simplesmente rebentou. Foi deixado no poço com o outro, o japona, lembra-se dele, o que tentou se afogar no balde de mijo? Depois o Senhor Omi mandou tirarem o corpo de Spillbergen de lá e eles o queimaram. Mas aquele outro pobre sodomita foi deixado lá embaixo. O Senhor Omi simplesmente lhe deu uma faca, ele rasgou a barriga e taparam o poço. Lembra-se dele, piloto?

— Sim. E Maetsukker?

— É melhor que você conte isso, Vinck.

— O pequeno Cara de Rato apodreceu, piloto — começou Vinck, e os outros começaram a gritar detalhes e contar a história até que Vinck berrou: — Baccus pediu a mim, por Cristo! Vocês todos terão a sua vez!

As vozes morreram e Sonk disse, solícito: — Conte, Johann. — Piloto, foi o braço dele que começou a apodrecer. Ele se cortou na luta, lembra-se da luta em que o senhor ficou sem sentidos? Jesus Cristo, parece que foi há tanto tempo! De qualquer modo, o braço dele supurou. Sangrei-o no dia seguinte, no outro, aí ele começou a ficar preto. Eu lhe disse que seria melhor que eu o lancetasse ou o braço todo teria que ser tirado, disse-lhe dúzias de vezes, todos nós dissemos, mas ele não concordou. No quinto dia o ferimento estava cheirando mal. Nós o seguramos e eu amputei a maior parte da gangrena mas não adiantou nada. Eu sabia que não ia adiantar, mas alguns de nós achamos que valia a pena tentar. Esse médico amarelo bastardo veio algumas vezes, mas também não pôde fazer nada. Cara de Rato durou um dia ou dois, mas a gangrena estava profunda demais e ele delirou um bocado. Tivemos que amarrá-lo perto do fim.

— Foi isso mesmo, piloto — disse Sonk, coçando-se confortavelmente. — Tivemos que amarrá-lo.

— O que aconteceu ao corpo dele? — perguntou Blackthorne.

— Levaram-no para o alto da colina e queimaram-no, também. Queríamos dar a ele e ao capitão-mor um funeral cristão apropriado, mas não nos deixaram. Simplesmente os queimaram.

Um silêncio invadiu a sala. — O senhor não tocou no seu drinque, piloto!

Blackthorne levou-o aos lábios e provou. O copo estava imundo e ele quase vomitou. A bebida pura queimou-lhe a garganta. O mau cheiro de corpos sem banho e rançosos e de roupa não lavada quase o derrubava.

— Que tal o grogue, piloto? — perguntou Van Nekk. — ótimo, ótimo.

— Conte-lhe, Baccus, vamos!

— Ei! Fiz um alambique, piloto. — Van Nekk estava muito orgulhoso e os outros também sorriam. — Fazemos bebidas aos barris, agora. Arroz, frutas e água, deixamos fermentar, esperamos uma semana mais ou menos, depois, com a ajuda de uma pequena mágica... — O homem redondo riu e se coçou, feliz. — Claro que seria melhor conservá-lo um ano ou mais para amadurecer, mas nós o tomamos mais depressa... — Suas palavras se arrastaram. — Não está gostando?

— Oh, desculpe, está ótimo... ótimo. — Blackthorne viu piolhos no ralo cabelo de Van Nekk.

— E o senhor, piloto? — disse Jan Roper desafiador. — Está ótimo, não está? O que conta?

Outra enxurrada de perguntas, que morreu quando Vinck gritou: — Dêem-lhe uma chance! — Então o homem com rosto coriáceo exclamou: — Cristo, quando o vi em pé à porta, pensei que fosse um dos macacos, verdade... verdade! — Outro coro de anuência e Van Nekk interrompeu: — Ele tem razão. Malditos quimonos imbecis... está parecendo uma mulher, piloto, ou um desses meios homens! Frescos malditos, hein? Muitos japonas são frescos, por Deus! Um andou dando em cima de Croocq... — Houve muita gritaria e troça obscena, depois Van Nekk continuou: — O senhor vai querer suas roupas adequadas, piloto. Ouça, trouxemos a sua roupa para cá. Viemos para Yedo no Erasinus. Rebocaram-no para cá e pudemos trazer nossas roupas para terra, e mais ainda. Trouxemos a sua, deixaram-nos fazer isso, guardá-la para o senhor. Trouxemos uma mala, toda sua roupa de mar. Sonk, vá buscar, hein?

— Claro, mas mais tarde, hein, Baccus? Não quero perder nada.

— Está bem.

O fino sorriso de Jan Roper estava se repuxando. — Espadas e quimanos... como um autêntico pagão! Talvez o senhor agora prefira os modos pagãos, piloto?

— A roupa é fresca, melhor do que a nossa — respondeu Blackthorne, embaraçado. — Eu tinha esquecido que estava vestido de modo diferente. Aconteceram muitas coisas. Esta roupa era a única que eu tinha, de modo que me acostumei a usá-la. Nunca pensei muito sobre ela. Certamente é mais confortável. — Essas espadas são de verdade?

— Sim, claro, por quê?

— Não temos permissão para usar armas. Quaisquer armas! — disse Jan Roper, carrancudo. — Por que o senhor tem? Exatamente como qualquer samurai pagão?

Blackthorne riu brevemente. — Você não mudou, Jan Roper, não é? Mais santarrão do que nunca? Bem, tudo a seu tempo com relação às minhas espadas, mas primeiro a melhor notícia de todas. Ouçam, dentro de um mês ou pouco mais estaremos ao mar de novo.

— Jesus, está falando sério, piloto? — disse Vinck. — Sim.

Houve uma grande explosão de alegria e outra enxurrada de perguntas e respostas. — Eu disse que nós iríamos embora — Eu disse que Deus estava do nosso lado! Deixem-no falar — deixem o piloto falar... — Finalmente Blackthorne levantou a mão.

Apontou para as mulheres, que continuavam de joelhos, imóveis, mais humildes agora, sob a atenção dele. — Quem são elas?

Sonk riu. — As nossas zinhas, piloto. Nossas prostitutas, e baratas, Jesus Cristo, mal custam um caracol por semana. Temos uma casa cheia delas na porta ao lado, e há muitas mais na aldeia.

— São agitadas como arminhos — intrometeu-se Croocq, e Sonk disse: — Ele tem razão, piloto. Claro que são atarracadas e arqueadas, mas têm muito vigor e não têm sífilis. Quer uma, piloto? Temos os nossos próprios beliches, não somos como os macacos, temos todos os nossos beliches e quartos ...

— Experimente a Mary Bunda Grande, piloto, é perfeita para o senhor — disse Croocq.

A voz de Jan Roper sobrepôs-se: — O piloto não quer nenhuma das nossas meretrizes. Ele tem as dele, hein, piloto?

Os rostos reluziram. — É verdade, piloto? Conseguiu mulheres? Ei, conte-nos, hein? Essas macacas são as melhores que jamais existiram, hein?

— Fale-nos das suas zinhas, piloto! — Sonk coçou os piolhos de novo.

— Há muito que contar — disse Blackthorne. — Mas devia ser em particular. Quanto menos ouvidos, melhor, neh? Mandem as mulheres embora, aí podemos conversar em particular.

Vinck brandiu um polegar para elas. — Dêem o fora, hai? As mulheres se curvaram, mastigaram agradecimentos e pedidos de desculpas e saíram apressadas, fechando a porta silenciosamente.

— Primeiro sobre o navio. É inacreditável. Quero lhes agradecer e cumprimentá-los, pelo trabalho todo. Quando chegarmos em casa, vou insistir para que vocês recebam partes triplicadas do prêmio em dinheiro por todo esse trabalho e vai haver um prêmio para além de... — Viu os homens se entreolharem embaraçados. — O que é que há?

Constrangido, Van Nekk disse: — Não fomos nós, piloto. Foram os homens do Rei Toranaga. Eles é que fizeram. Vinck lhes mostrou como, mas nós não fizemos nada.

— O quê?

— Não nos deixaram vez. Nenhum de nós esteve a bordo com exceção de Vinck, que vai até lá uma vez a cada dez dias mais ou menos. Não fizemos nada.

— Ele é o único — disse Sonk. — Johann lhes mostrou. — Mas como você conversa com eles, Johann?

— Um dos samurais fala português e conversamos nessa língua, o suficiente para que um compreenda o outro. Esse samurai, que se chama Sato-sama, ficou encarregado quando chegamos aqui. Perguntou quais de nós eram oficiais ou marinheiros. Dissemos que era Ginsel, mas ele é principalmente atirador, eu e Sonk que...

— Que é o pior cozinheiro de bosta que... — Cale essa boca maldita, Croocq!

— Merda, você não sabe cozinhar em terra, que dirá a bordo, por Deus!

— Por favor, façam silêncio, vocês dois! — disse Blackthorne. — Continue, Johann.

Vinck continuou: — Sato-sama me perguntou o que havia de errado no navio e eu lhe disse que ele precisava ser querenado, raspado e todo consertado. Bem, eu lhe contei tudo o que sabia e eles puseram mãos à obra. Eles o querenaram perfeitamente e limparam os porões, esfregando-os como se fossem a privada de um príncipe — os chefes eram samurais e outros macacos trabalhavam como demônios, centenas de sodomitas. Merda, piloto, o senhor nunca viu trabalhadores como eles!

— Isso é verdade — disse Sonk. — Como demônios!

— Fiz tudo do melhor modo que pude e... Jesus, piloto, acha mesmo que podemos dar o fora?

— Sim, se formos pacientes e se... — Se Deus quiser, piloto. Só então.

— Sim. Talvez você tenha razão — respondeu Blackthorne, pensando: e daí que Roper seja um fanático? Preciso dele... de todos eles. E da ajuda de Deus. — Sim. Precisamos da ajuda de Deus — disse, e voltou-se para Vinck: — Como está a quilha? — Limpa e firme, piloto. Eles a deixaram melhor do que eu imaginei. Esses bastardos são tão espertos quanto quaisquer carpinteiros, construtores navais e cordoeiros da Holanda toda. O cordame está perfeito... tudo.

— Velas?

— Eles fizeram um conjunto de seda, dura como lona. Com um jogo sobressalente. Tiraram as nossas e as copiaram exatamente, piloto. Os canhões estão tão perfeitos quanto possível — todos de volta a bordo, e há pólvora e munição em quantidade. O navio está pronto para zarpar, esta noite, se for necessário. Claro que ele não esteve no mar, por isso não sabemos sobre as velas até enfrentarmos um vendaval, mas eu apostaria a minha vida como as costuras estão tão apertadas quanto quando ele foi lançado ao Zuider Zee pela primeira vez — melhor até, porque os costados já estão experimentados agora, graças a Deus! — Vinck fez uma pausa para tomar fôlego. — Quando zarpamos? — Dentro de um mês. Mais ou menos.

Eles se cutucaram sorrindo de júbilo, e brindaram sonoramente ao piloto e ao navio.

— E quanto à navegação inimiga? Há alguma por aqui? E presas, piloto? — perguntou Ginsel.

— Muitas... para além dos seus sonhos. Estamos todos ricos.

Outro grito de alegria. — Já era tempo.

— Ricos, hein? Vou comprar um castelo para mim.

— Senhor Deus todo-poderoso, quando eu chegar a casa... — Ricos! Urra para o piloto!

— Muitos papistas para matar? Bom — disse Jan Roper brandamente. — Muito bom.

— Qual é o plano, piloto? — perguntou Van Nekk, e todos pararam de falar.

— Falo disso num minuto. Vocês têm guardas? Podem circular livremente, quando têm vontade? Com que freqüência... — Podemos ir a qualquer lugar na área da aldeia — disse Vinck calmamente, talvez numa distância de meia légua ao redor. Mas não podemos ir a Yedo e não...

— Não podemos atravessar a ponte — interrompeu Sonk. — Conte-lhe sobre a ponte, Johann!

— Oh, pelo amor de Deus, eu já estava chegando à ponte, Sonk. Pelo amor de Deus, pare de interromper. Piloto, há uma ponte a cerca de meia légua a sudoeste. Há muitos avisos nela. Só podemos ir até lá. Não podemos ir além. "Kiniiru", por Deus, dizem os samurais. Compreende "kiniiru", piloto?

Blackthorne assentiu e não disse nada.

— À parte isso, podemos ir aonde quisermos. Mas só até as paliçadas. Há paliçadas em toda a volta, a uma meia légua de distância. Senhor Deus... vocês conseguem acreditar, voltar para casa em breve!

— Conte-lhe sobre o médico, hein, e sobre o ...

— Os samurais mandam um médico de vez em quando, piloto, e temos que tirar a roupa e ele nos examina...

— Sim. Ter um bastardo macaco e pagão olhando para a gente, nu assim, é o suficiente para fazer um homem cagar.

— Com exceção disso, piloto, eles não nos incomodam, a não ser...

— Ei, não se esqueça de que o médico nos deu umas ervas imundas em pó, um "char", que devíamos pôr de infusão em água quente, mas jogamos tudo fora. Quando adoecemos, o bom Johann nos faz uma sangria e ficamos curados.

— Sim — disse Sonk. — Jogamos o "char" fora. — A não ser isso, com exceção do...

— Afora isso temos sorte aqui, piloto, não é como no começo.

— Ele tem razão. No começo...

— Conte-lhe sobre as inspeções, Baccus!

— Eu estava chegando a isso, pelo amor de Deus, tenham paciência, dêem uma chance a alguém. Como posso contar alguma coisa com vocês todos tagarelando? Sirvam-me um drinque! — disse Van Nekk, e continuou: — A cada dez dias alguns samurais vêm aqui, nós nos alinhamos lá fora e eles nos contam. Depois nos dão sacos de arroz e dinheiro, dinheiro de cobre. É o suficiente para tudo, piloto. Trocamos arroz por carne e outras coisas — frutas ou seja o que for. Há de tudo e as mulheres fazem tudo o que queremos. Primeiro nós...

— Mas não foi assim no começo. Conte-lhe sobre isso, Baccus!

Van Nekk sentou-se no chão. — Deus me dê forças!

— Está se sentindo mal, pobre rapaz? — perguntou Sonk, solicitamente. — É melhor não beber mais ou vai ficar com os demônios de novo, hein? Ele fica com os demônios, piloto, uma vez por semana. Nós todos também.

— Você vai ficar quieto enquanto eu falo com o piloto?

— Quem, eu? Eu não disse nada. Não o estou interrompendo. Tome, tome o seu drinque!

— Obrigado, Sonk. Bem, piloto, primeiro eles nos colocaram numa casa a oeste da cidade...

— Ficava lá embaixo, perto dos campos.

— Maldição, então conte você a história, Johann!

— Está bem. Cristo, piloto, foi terrível. Nada de bóia ou bebida e essas malditas casas de papel, é como morar num campo — um homem não pode dar uma mijada ou enfiar o dedo no nariz, nada sem que alguém esteja olhando, hein? Sim, e o barulho mais leve faz os vizinhos caírem em cima da gente, e samurais na varanda, e quem quer esses bastardos por perto, hein? Ficavam brandindo as malditas espadas contra a gente, gritando e chamando, dizendo-nos que ficássemos quietos. Bem, uma noite alguém derrubou uma vela e os macacos caíram todos em cima da gente! Jesus Deus, o senhor devia tê-los ouvido. Vieram fervilhando com baldes de água, doidos, sibilando e curvando-se e praguejando... Foi só uma parede sifilítica que se queimou... Centenas deles se lançaram sobre a casa como baratas. Bastardos! O senhor...

— Acabe logo com isso! — Você quer contar?

— Continue, Johann, não preste atenção nele. É só um cozinheiro cheio de merda.

— O quê?

— Oh, cale a boca! Pelo amor de Deus! — Van Nekk retomou a narrativa mais uma vez. — No dia seguinte, piloto, tocaram-nos de lá e nos puseram em outra casa da área do embarcadouro. Era igualmente ruim. Depois, algumas semanas mais tarde, Johann topou com este lugar. Era o único de nós, naquela época, que tinha autorização para sair, por causa do navio. Iam buscá-lo diariamente e levavam-no de volta ao pôr-do-sol. Ele estava pescando — estamos a apenas algumas centenas de jardas do... é melhor que você conte, Johann.

Blackthorne sentiu uma coceira na perna nua e esfregou-a sem pensar. A irritação piorou. Então viu a protuberância sarapintada de uma picada de pulga, enquanto Vinck continuava orgulhosamente. — É como Baccus disse, piloto. Perguntei a Sato-sama se podíamos nos mudar e ele disse sim, por que não. Eles geralmente me deixavam pescar com um dos pequenos botes deles, para passar o tempo. Foi o meu nariz que me trouxe aqui, piloto. O velho nariz conduziu-me: sangue!

— Um matadouro! — disse Blackthorne. — Um matadouro e um curtume! Isto é... — Ele parou e empalideceu.

— O que foi? O que há?

— Isto é uma aldeia eta? Jesus Cristo, essa gente é eta?

— O que há de errado com os "eters"? — perguntou Van Nekk. — Claro que são "eters".

Blackthorne afastou os mosquitos que infestavam o ar, a pele arrepiando-se. — Malditos insetos... são detestáveis, não são? Há um curtume aqui, não há?

— Sim. Algumas ruas acima, por quê? — Nada. Não reconheci o cheiro, só isso. — O que há com os "eters"?

— Eu... eu não percebi, que estúpido fui. Se tivesse visto um dos homens, eu o teria reconhecido pelo cabelo curto. Com as mulheres nunca se sabe. Desculpem. Continue a história, Vinck. — Bem, então eles disseram...

Jan Roper interrompeu: — Espere um minuto, Vinck! O que há de errado, piloto? O que há com os "eters"?

— É só que os japoneses acham que eles são diferentes. São os executores, trabalham com peles e lidam com cadáveres. — Sentiu os olhos deles, de Jan Roper em particular. — Os etas trabalham as peles — disse ele, tentando conservar a voz indiferente, e matam todos os cavalos velhos e bois e lidam com corpos mortos.

— Mas o que há de errado nisso, piloto? O senhor pessoalmente enterrou uma dúzia, amortalhou-os, lavou-os — todos nós fizemos isso, hein? Nós abatemos os animais que comemos, sempre fizemos isso. Ginsel foi carrasco... O que há de errado nisso tudo?

— Nada — disse Blackthorne, sabendo que era verdade, embora se sentisse embaraçado ainda assim.

Vinck bufou. — Os "eters" são os melhores pagãos que vimos aqui. Mais parecidos conosco do que os outros bastardos. Temos muita sorte de estar aqui, piloto, carne fresca não é problema, nem sebo — eles não nos causam problema.

— É isso mesmo. Se o senhor tivesse morado com "eters", piloto...

— Jesus Cristo, o piloto teve que morar com os outros bastardos o tempo todo! Ele não conheceu nada melhor. Que tal irmos buscar a Mary Bunda Grande, Sonk?

— Ou a Rabo Rápido?

— Merda, ela não, não essa prostituta velha. O piloto vai querer uma especial. Vamos pedir à Mama-san...

— Aposto como ele está morto de fome, com vontade de comer uma bóia de verdade! Ei, Sonk, corte um pedaço de carne para ele.

— Tome mais um pouco de grogue...

Em meio ao tumulto feliz, Van Nekk deu uns tapinhas nos ombros de Blackthorne. — Está em casa, amigo velho. Agora que voltou, nossas preces foram atendidas e está tudo bem no mundo. Está em casa, amigo velho. Ouça, fique com o meu beliche. Insisto...

Alegremente Blackthorne acenou uma última vez. Houve um grito de resposta vindo da escuridão do outro lado da pontezinha. Então virou as costas, a forçada amabilidade evaporada, e dobrou a esquina, a guarda samurai de dez homens a rodeá-lo.

No caminho de volta ao castelo, sua mente esteve num turbilhão. Não havia nada de errado com os etas, e havia tudo de errado com eles, aqueles lá são a minha tripulação, minha própria gente, e os etas são pagãos e estrangeiros e inimigos...

Ruas e vielas e pontes passaram como um borrão. Então ele notou que estava com a mão por dentro do quimono, coçando-se, e parou.

— Aqueles malditos imundos... — Desenrolou o sashh, arrancou o quimono encharcado e, como se ele estivesse contaminado, atirou-o numa vala.

— Dozo, nan desu ka, Anjin-san? — perguntou um dos samurais.

— Nani mo! Nada, por Deus! — Blackthorne continuou a caminhar, carregando as espadas.

— Ah! Eta! Wakarimasu! Gomen nasai! — Os samurais tagarelaram entre si, mas ele não lhes prestou atenção.

Assim é melhor, pensou ele com um alívio imenso, sem perceber que estava quase nu, sentindo apenas que a pele parara de coçar agora que tirara o quimono infestado de pulgas.

Jesus Deus, eu adoraria um banho bem agora!

Contara suas aventuras à tripulação, mas não que era samurai e hatamoto; ou que era um dos protegidos de Toranaga, ou sobre Fujiko. Ou Mariko. E não lhes contara que iam aportar à força em Nagasaki e tomar o Navio Negro de assalto, ou que ele estaria à testa dos samurais. Isso pode vir mais tarde, pensou cansado. E o resto todo.

Eu poderia falar a eles sobre Mariko-san?

Seus tamancos de madeira soavam ruidosos contra os sarrafos de madeira da Primeira Ponte. Sentinelas samurais, também semidespidas, e indolentemente recostadas até o virem, curvaram-se polidamente enquanto ele passava, observando-o atentamente, porque aquele era o bárbaro incrível que, surpreendentemente, fora favorecido pelo Senhor Toranaga, a quem Toranaga, inacreditavelmente, concedera a honra, jamais concedida antes a um bárbaro, de hatamoto e samurai.

Ao portão principal sul do castelo, outro guia esperava por ele. Escoltaram-no aos seus aposentos, dentro da fortificação interna. Fora-lhe designado um quarto numa das casas de hóspedes, fortificadas mas atraentes, porém polidamente ele recusou dirigir-se imediatamente para lá. — Primeiro banho, por favor — disse aos samurais.

— Ah, compreendo. Isso é muito atencioso de sua parte. A casa de banho fica nesta direção, Anjin-san. Sim, a noite está quente, neh? E ouvi dizer que o senhor esteve lá embaixo, com os imundos. Os outros hóspedes da casa apreciarão a sua consideração. Agradeço-lhe em nome deles.

Blackthorne não compreendeu todas as palavras, mas captou o sentido. "Imundos." Isso descreve a minha gente e a mim — nós, não eles, pobres coitados.

— Boa noite, Anjin-san — disse o chefe dos criados de banho. Era um homem de meia-idade, imenso, com um vasto ventre e um grande bíceps. Uma criada acabara de despertá-lo para avisar que outro cliente retardatário estava chegando. Ele bateu palmas. Criadas de banho apareceram. Blackthorne seguiu-as para a sala onde elas o limparam, ensaboaram e esfregaram, e ele as fez repetir tudo uma segunda vez. Em seguida dirigiu-se para o banho de imersão, entrou na água escaldante e entregou-se ao abraço relaxante do calor.

Depois, mãos fortes o ajudaram a sair e lhe untaram a pele com óleo perfumado, descontraindo-lhe músculos e pescoço, depois levaram-no para uma sala de repouso e lhe deram um quimono de algodão, lavado e fresco. Com um longo e profundo suspiro de prazer, ele se deitou.

— Dozo gomen nasai, chá, Anjin-san? — Hai. Domo.

O chá chegou. Ele disse à criada que ficaria ali naquela noite, não iria para os seus aposentos. Depois, sozinho e em paz, tomou o chá, sentindo-o purificá-lo, "...ervas ‘char’ de aparência imunda...", pensou com desagrado.

— Tenha paciência, não deixe que isso lhe perturbe a harmonia — disse alto. — Eles são apenas pobres ignorantes imbecis, que não conhecem coisa melhor. Você já foi a mesma coisa um dia. Não tem importância, agora você pode mostrar a eles, neh? Tirou-os da cabeça e estendeu a mão para pegar o dicionário. Mas naquela noite, pela primeira vez desde que se vira na posse do livro, pousou-o descuidadamente ao lado e soprou a vela. Estou cansado demais, disse a si mesmo. Mas não cansado demais para responder a uma questão simples, disse a sua mente: eles são realmente imbecis ignorantes, ou é você que está se fazendo de tolo? Responderei a isso mais tarde, quando for o momento. Agora a resposta não tem importância. Agora só sei que não os quero perto de mim.

Virou-se, colocou o problema de lado, e adormeceu.

Despertou revigorado. Um quimono limpo, uma tanga e tabis estavam preparados para ele. As bainhas das suas espadas tinham sido polidas. Vestiu-se rapidamente. Fora da casa, os samurais esperavam, acocorados. Levantaram-se e se curvaram.

— Somos a sua guarda hoje, Anjin-san. — Obrigado. Ir navio agora?

— Sim. Aqui está o seu passe.

— Bom. Obrigado. Posso perguntar o seu nome, por favor? — Musashi Mitsutoki.

— Obrigado, Musashi-san. Ir agora?

Desceram para os embarcadouros. O Erasmus estava firmemente atracado a três braças sobre um leito arenoso. Os porões tinham um cheiro agradável. Ele mergulhou e nadou por sob a quilha. A alga grudada era mínima e havia muito pouca craca. O leme estava intacto. No paiol, que estava seco e impecável, encontrou uma pederneira e ateou uma fagulha a um minúsculo monte de pólvora. Ardeu instantaneamente, em perfeitas condições.

Subindo ao topo do mastro de proa, procurou vestígios de rachas. Não havia nenhum, ali ou na subida ou ao redor de qualquer um dos mastros que examinou. Muitas das curdas, adriças e ovéns estavam atados incorretamente, mas para mudar isso bastaria meio turno apenas.

Mais uma vez no tombadilho, permitiu-se um grande sorriso. — Você está tão perfeito quanto... quanto o quê? — Não conseguiu pensar num "quê" suficientemente grande, por isso apenas riu e desceu novamente. Na sua cabina, sentiu-se estranho. E muito só. Suas espadas estavam sobre o beliche. Tocou-as, depois tirou a Vendedor de óleo da bainha. O acabamento era perfeito e a ponta perfeita. Olhar para a espada deu-lhe prazer, pois era realmente uma obra de arte. Mas uma obra de arte mortífera, pensou como sempre, virando-a à luz.

Quantas mortes você causou na sua vida de duzentos anos? Quantas mais causará, antes que você mesmo morra? Será que algumas espadas têm vida própria mesmo, conforme diz Mariko? Mariko. O que será dela?

Então viu no aço o reflexo do seu baú e isso tirou-o da sua súbita melancolia.

Embainhou a Vendedor de óleo, evitando cuidadosamente tocar a lâmina, pois o costume dizia que até um simples toque podia empanar tal perfeição.

Encostando-se ao beliche, seus olhos deram com o baú vazio. — E os portulanos? E os instrumentos de navegação? — perguntou à sua imagem na lâmpada de cobre que fora escrupulosamente polida, como tudo mais. Ele se viu responder: — Você compra tudo em Nagasaki, junto com a sua tripulação. E pega Rodrigues. Sim. Você o pega antes do ataque. Neh?

Observou o próprio sorriso alargar-se. — Você tem muita certeza de que Toranaga o deixará ir, não tem?

— Sim — respondeu com total confiança. — Vá ele ou não a Osaka, conseguirei o que quero. E conseguirei Mariko também. Satisfeito, enfiou as espadas no sash, subiu de volta ao convés e esperou até que as portas fossem lacradas de novo.

Quando retornou ao castelo, ainda não era meio-dia, então se dirigiu para os seus aposentos para comer. Comeu arroz e dois pratos de peixe que tinham sido grelhados na brasa com soja, pelo seu próprio cozinheiro, conforme ele ensinara ao homem. Um pequeno frasco de saquê, depois chá.

— Anjin-san? — Hai?

A shoji se abriu. Fujiko sorriu timidamente e curvou-se.


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