CAPÍTULO 4


Imediatamente um samurai, seguido de perto por dois outros, começou a descer os degraus, espadas desembainhadas. Blackthorne girou a escada e investiu contra o homem da dianteira, tentando estrangulá-lo e desviando-se do violento golpe de espada.

- Ajudem! Vamos! Pelas suas vidas!

Blackthorne mudou de posição para arrancar o homem dos degraus, enquanto o segundo homem se atirava para baixo. Vinck saiu de seu estado cataléptico e se lançou contra o samurai, frenético. Interceptou o golpe que teria cortado fora o pulso de Blackthorne, segurou o braço que empunhava a espada e esmagou o outro punho contra a virilha do homem. O samurai resfolegou o chutou com raiva. Vinck mal pareceu notar o golpe. Subiu os degraus e se atirou ao homem pela posse da espada, suas unhas partindo para arrancar-lhe os olhos. Os outros dois samurais estavam contidos pelo espaço limitado e por Blackthorne, mas um pontapé de um deles apanhou Vinck no rosto e ele cambaleou.

O samurai na escada desferiu um golpe contra Blackthorne, errou, então a tripulação inteira se arremessou contra a escada.

Croocq martelou o punho contra o peito do pé do samurai o sentiu um ossinho ceder. O homem tentou atirar a espada para fora do buraco - não queria armar o inimigo - e tombou pesadamente na lama. Vinck e Pieterzoon caíram em cima dele. O samurai invasor revidou ferozmente quando os outros acorreram para cima dele. Blackthorne agarrou a adaga do japonês e começou a subir a escada, Croocq, Jan Roper e Salamon atrás dele.

Ambos os samurais recuaram e permaneceram à entrada, com as espadas assassinas perversamente a postos. Blackthorne sabia que sua adaga era inútil contra as espadas. Ainda assim atacou, os outros dando-lhe cobertura de perto. No momento em que sua cabeça surgiu acima do solo, uma das espadas passou vibrando, errando por uma fração de polegada. Um pontapé violento de um samurai que permanecera invisível até então atirou-o de novo no subterrâneo.

Ele voltou e saltou de novo, evitando a massa de homens engalfinhados que tentavam subjugar o samurai no lodo fedorento. Vinck chutou o homem na nuca e ele cedeu, molemente. Vinck martelou-o mais e mais, até que Blackthorne o puxasse para trás.

- Não o mate, podemos usá-lo como refém! - gritou, e torceu desesperadamente a escada, tentando puxá-la para dentro da cela. Mas era comprida demais. Lá em cima, à entrada do alçapão, os outros samurais de Omi esperavam impassíveis.

- Pelo amor de Deus, piloto. Pare com isso! - ofegou Spillbergen. - Vão nos matar a todos, você nos matará a todos! Alguém o detenha!

Omi estava gritando mais ordens, e mãos fortes lá em cima impediram Blackthorne de bloquear a entrada com a escada.

- Cuidado! - gritou.

Três samurais, de faca na mão e usando apenas tangas, saltaram agilmente para dentro da cela. Os dois primeiros, esquecidos do próprio risco, deliberadamente estatelaram-se sobre Blackthorne, atirando-o indefeso ao chão, depois atacaram-no ferozmente.

Blackthorne foi esmagado pela força dos homens. Não podia usar a faca, sentia sua vontade de lutar diminuir e desejou ter a habilidade de Mura na luta desarmada. Desamparado, sabia que não poderia sobreviver muito tempo mais, mas fez um esforço final e conseguiu libertar um braço. A pancada violenta de uma mão dura como rocha ribombou-lhe na cabeça e outra explodiu-lhe cores no cérebro, mas ele ainda conseguiu revidar.

Vinck estava prestes a arrancar os olhos de um dos samurais quando o terceiro saltou-lhe em cima. Maetsukker gritou quando uma adaga lhe fez um talho no braço. Van Nekk investia às cegas e Pieterzoon dizia:

- Pelo amor de Cristo, bata neles, não em mim -, mas o mercador não ouvia, pois estava devorado pelo terror.

Blackthorne agarrou um dos samurais pela garganta, as mãos escorregadias devido ao suor e ao lodo, e estava quase de pé como um touro enlouquecido, tentando livrar-se deles, quando houve um último golpe e ele mergulhou na escuridão. Os três samurais abriram caminho a pontapés e a tripulação, agora sem líder, recuou do círculo perfurante das três adagas. Os samurais agora dominavam a cela com suas adagas rodopiantes, não tentando matar ou mutilar, mas apenas forçar os homens ofegantes e assustados contra as paredes, para longe da escada onde Blackthorne e o primeiro samurai jaziam inertes.

Omi desceu arrogantemente para o buraco e agarrou o homem mais próximo, que era Pieterzoon. Deu-lhe um tranco na direção da escada. Pieterzoon gritou e tentou desvencilhar-se do aperto de Omi, mas uma faca retalhou-lhe o pulso e outra abriu-lhe o braço. Implacavelmente, o marujo aos berros foi impelido para a escada.

- Que Cristo me ajude, não sou eu quem vai, não sou eu, não sou eu... - Pieterzoon tinha os dois pés no degrau e recuava para cima e para longe do sofrimento das facas, depois gritou: - Ajudem-me, pelo amor de Deus! - uma última vez, virou-se e precipitou-se alucinado para fora.

Omi seguiu-o sem se apressar.

Um samurai retirou-se. Depois outro. O terceiro apanhou a faca que Blackthorne usara. Voltou as costas desdenhosamente, passou por cima do corpo prostrado do companheiro inconsciente, e subiu.

A escada foi puxada para cima. Ar, céu e luz desapareceram.

Os ferrolhos foram passados com estrépito. Agora havia apenas escuridão, e nela peitos arquejantes, corações disparados, suor correndo e o mau cheiro. As moscas voltaram.

Por um momento ninguém se moveu. Jan Roper tinha um pequeno corte na face, Maetsukker sangrava muito, os outros se encontravam em estado de choque. Exceto Salamon. Abriu caminho às apalpadelas até Blackthorne, puxou-o para longe do samurai inconsciente. Moveu a boca, emitindo sons guturais, e apontou para a água. Croocq foi buscar um pouco numa cuia, ajudou-o a apoiar Blackthorne, ainda inanimado, contra a parede.

Juntos começaram a limpar a sujeira do rosto dele.

- Quando aqueles bastardos... quando lhe saltaram em cima, pensei ouvir o pescoço ou o ombro dele ceder - disse o rapaz, arfando. - Ele parece um cadáver, Jesus!

Sonk forçou-se a se levantar e aproximou-se deles. Cuidadosamente moveu a cabeça de Blackthorne de um lado para o outro, apalpou-lhe os ombros.

- Parece em ordem. Temos que esperar até que ele volte a si para dizer.

- Oh, Deus - começou Vinck a se lamuriar. - Pobre Pieterzoon... estou condenado... estou condenado ...

- Você estava indo. O piloto o deteve. Você estava indo como prometeu, eu vi, por Deus. - Sonk sacudiu Vinck, mas ele não prestou atenção. - Eu vi você, Vinck. - Voltou-se para Spillbergen, afastando as moscas. - Não foi isso mesmo que aconteceu?

- Sim, ele estava indo. Vinck, pare de se lamentar! A culpa foi do piloto. Dêem-me água.

Jan Roper apanhou água com a cuia, bebeu-a e passou um pouco no corte do rosto.

- Vinck devia ter ido. Era o cordeiro de Deus. Recebeu o sacramento. Agora a alma dele está perdida. Oh, Deus tenha piedade, ele arderá por toda a eternidade.

- Dêem-me água - choramingou o capitão-mor.

Van Nekk pegou a cuia de Jan Roper e passou-a a Spillbergen.

- Não foi culpa de Vinck - disse, cansado. - Ele não conseguia se levantar, você não se lembra? Pediu que alguém o ajudasse. Eu estava com tanto medo que também não conseguia me mexer, e não era eu quem tinha que ir.

- A culpa não foi de Vinck - disse Spillbergen. - Não. Foi dele.

Todos olharam para Blackthorne.

- Ele está louco.

- Todos os ingleses são loucos - disse Sonk. - Já conheceram algum que não fosse? Arranhe a superfície e você encontrará um maníaco... e um pirata.

- Bastardos, todos eles! - disse Ginsel.

- Não, não todos eles - disse Van Nekk. - O piloto estava só fazendo o que achava certo. Ele nos protegeu e nos trouxe por dez mil léguas.

- Protegeu-nos! Éramos quinhentos quando começamos, e cinco navios. Agora há nove de nós!

- Não foi por culpa dele que a esquadra se separou. Não foi culpa dele que as tempestades nos jogassem...

- Não fosse por ele, teríamos ficado no Novo Mundo, por Deus. Foi ele quem disse que podíamos chegar ao Japão. E pelo amor de Jesus, olhem onde estamos agora.

- Concordamos em tentar atingir o Japão. Todos concordamos - disse Van Nekk, exausto. - Todos votamos.

- Sim. Mas foi ele quem nos convenceu.

- Cuidado! - Ginsel apontou para o samurai, que estava se mexendo e gemendo. Sonk rapidamente deslizou para cima dele, esmagando-lhe o punho no maxilar. O homem apagou-se de novo.

- Pela morte de Cristo! Para que os bastardos o deixaram aqui? Poderiam tê-lo carregado para fora facilmente. Não podíamos fazer nada.

- Acha que pensaram que ele estivesse morto?

- Não sei! Devem tê-lo visto. Por Jesus, eu tomaria uma cerveja gelada! - disse Sonk.

- Não bata nele de novo, Sonk, não o mate. É um refém.

- Croocq olhou para Vinck, que se apertara contra a parede, trancado no seu lamuriento ódio por si mesmo. - Deus nos ajude a todos. O que farão com Pieterzoon? O que farão conosco?

- A culpa é do piloto - disse Jan Roper. - Só dele.

Van Nekk, compassivo, observou Blackthorne atentamente.

- Agora não importa. Importa? De quem é ou de quem foi a culpa?

Maetsukker cambaleava, o sangue ainda correndo pelo antebraço.

- Estou ferido, alguém me ajude.

Salamon fez um torniquete com um pedaço da camisa e estancou o sangue. O corte no bíceps de Maetsukker era profundo, mas nenhuma veia ou artéria fora cortada. As moscas começaram a importunar o ferido.

- Malditas moscas! E Deus amaldiçoe o piloto com o inferno - disse Maetsukker. - Estava combinado. Mas, oh, não, ele tinha que salvar Vinck! Agora o sangue de Pieterzoon está nas mãos dele e nós todos sofreremos por causa dele.

- Cale a boca! Ele disse que nenhum homem da tripulação ...

Houve passos em cima. O alçapão abriu-se. Aldeães começaram a esvaziar barris de peixe podre e água do mar na cela. Quando o chão ficou inundado até seis polegadas de altura, pararam.


Os gritos começaram quando a lua ia alta.

Yabu estava ajoelhado no jardim interno da casa de Omi.

Imóvel. Observava o luar batendo na árvore florida, os ramos de azeviche contra o céu mais claro, as flores em cachos, agora ligeiramente matizadas. Uma pétala caiu em espiral e ele pensou:


"Beleza

Não é menor

Por cair

Na brisa".


Outra pétala pousou. O vento suspirou e levou outra. A árvore tinha mal e mal a altura de um homem, enfiada entre rochas cobertas de musgo que pareciam ter crescido da terra, tão inteligentemente haviam sido colocadas.

Yabu precisou de toda a sua vontade para se concentrar na árvore, no céu e na noite, para sentir o toque suave do vento, aspirar-lhe o perfume do mar, para pensar em poemas e, ao mesmo tempo, manter os ouvidos atentos ao sofrimento. Sua coluna parecia flexível. Apenas a vontade o fazia esculpido como as rochas. Essa lucidez dava-lhe um nível de sensualidade indizível.

E esta noite era mais forte e mais violenta do que jamais fora.

- Omi-san, quanto tempo nosso senhor ficará lá? - perguntou a mãe de Omi num sussurro assustado, dentro da casa.

- Não sei.

- Os gritos são terríveis. Quando vão parar?

- Não sei - disse Omi.

Estavam sentados atrás de uma tela, no segundo melhor quarto. O melhor quarto, o da mãe, fora cedido a Yabu, e estes dois quartos davam para o jardim que ele construíra com tanto esforço. Podiam ver Yabu através da gelosia, a árvore traçando-lhe desenhos rígidos no rosto, o luar reluzindo nos punhos de suas espadas.

Estava usando um haori escuro, um gibão, sobre o quimono escuro.

- Quero ir dormir - disse a mulher, tremendo. - Mas não posso dormir com todo esse barulho. Quando vai terminar?

- Não sei. Seja paciente, mãe - disse Omi suavemente.

- O barulho, cessará logo. Amanhã o Senhor Yabu voltará para Yedo. Por favor, seja paciente. - Mas Omi sabia que a tortura continuaria até o amanhecer. Fora planejada assim.

Tentou se concentrar. Como seu senhor feudal meditava em meio aos gritos, tentou novamente seguir-lhe o exemplo. Mas o berro seguinte o trouxe de volta e ele pensou: Não posso, não posso, ainda não. Não tenho o controle dele, ou o poder.

Isso é poder? perguntou a si mesmo.

Podia ver claramente o rosto de Yabu. Tentou ler a estranha expressão na face do daimio: o leve retorcer dos lábios cheios com um salpico de saliva nos cantos, olhos transformados em fendas escuras, movendo-se apenas com as pétalas. É quase como se ele estivesse a ponto de atingir um orgasmo, sem se tocar. Isso é possível? Era a primeira vez que Omi se via em contato íntimo com o tio, pois era um elo muito secundário na cadeia do clã, e seu feudo de Anjiro, bem como a área circundante, pobre e sem importância. Omi era o mais novo de três filhos, e o pai, Mizuno, tinha seis irmãos. Yabu era o mais velho, o chefe do clã Kasigi; Mizuno era o segundo filho. Omi estava com vinte e um anos e tinha um filho bebê.

- Onde está a sua miserável esposa? - sussurrou a velha, queixosa. - Quero que ela me esfregue as costas e os ombros.

- Ela teve que ir visitar o pai, não se lembra? Ele está muito doente, mãe. Deixe-me fazê-lo para a senhora.

- Não. Você pode mandar chamar uma empregada daqui a pouco. Sua esposa não tem consideração. Poderia ter esperado alguns dias. Faço todo esse trajeto desde Yedo para visitá-los. Levei duas semanas fazendo uma viagem terrível, e o que acontece? Estou aqui há apenas uma semana e ela parte. Devia ter esperado! Boa para nada, isso é o que ela é. Seu pai cometeu um péssimo engano arranjando o seu casamento com ela. Você deveria dizer a ela que ficasse longe definitivamente. Divorcie-se dessa boa-para-nada de uma vez por todas. Não sabe nem me fazer uma massagem nas costas de modo adequado. Esses gritos medonhos! Por que não param?

- Vão parar. Muito brevemente.

- Você devia lhe dar uma boa surra.

- Sim. - Omi pensou na esposa, Midori, e o coração deu um pulo no peito. Era tão bonita, agradável, gentil e inteligente, tinha uma voz tão clara e sua música era tão boa quanto a de qualquer cortesã de Izu.

- Midori-san, você deve partir imediatamente - dissera-lhe ele em particular.

- Omi-san, meu pai não está tão doente assim, e meu lugar é aqui, servindo sua mãe, neh? - respondera ela. - Se nosso daimio vai chegar, esta casa tem que ser preparada. Oh, Omi-san, isto é tão importante, o momento mais importante de toda a sua vida de devoção, neh? Se o Senhor Yabu ficar impressionado, talvez lhe dê um feudo melhor, você merece tanto! Se qualquer coisa acontecesse enquanto eu estivesse longe, eu nunca me perdoaria, e esta é a primeira vez que você tem uma oportunidade de se superar e ela deve ser bem sucedida. Ele tem que vir. Por favor, há tanta coisa para fazer!

- Sim, mas eu gostaria que você partisse imediatamente, Midori-san. Fique só dois dias, depois volte correndo para casa.

Ela rogara, mas ele insistira, e ela partira. Quisera-a longe de Anjiro antes que Yabu chegasse e enquanto o homem fosse um hóspede em sua casa. Não que o daimio fosse se atrever a tocá-la sem permissão — isso era impensável, porque ele, Omi, teria então o direito, a honra e o dever, por lei, de destruir o daimio. Mas notara Yabu a observá-la logo depois de se casarem, em Yedo, e quisera afastar uma possível fonte de irritação, tudo o que pudesse perturbar ou estorvar seu senhor enquanto estivesse ali. Era tão importante impressionar Yabu-sama com sua lealdade filial, sua precaução e sua opinião. E por enquanto tudo tivera um êxito que ultrapassava a possibilidade. O navio fora um achado, a tripulação, outro. Tudo era perfeito.

- Pedi ao kami da nossa casa que zele por você - dissera Midori antes de se ir, referindo-se ao espírito xintó particular que tinha a casa deles a seu cuidado -, e mandei uma oferenda ao templo budista, para preces. Disse a Suwo que se exceda em perfeição, e mandei um recado a Kiku-san. Oh, Omi-san, por favor, deixe-me ficar.

Ele sorrira e a pusera a caminho, com lágrimas a borrar-lhe a maquilagem.

Omi sentia-se triste por estar sem ela, mas contente de que tivesse partido. Os gritos a teriam feito sofrer muitíssimo.

Sua mãe estremeceu com o tormento que o vento trazia, moveu-se ligeiramente para minorar a dor nos ombros, sentindo as juntas péssimas. É a brisa marítima do oeste, pensou. No entanto, aqui é melhor do que em Yedo. Pantanoso demais lá, e mosquitos demais também.

Podia apenas ver o suave contorno de Yabu no jardim. Secretamente ela o odiava e queria vê-lo morto. Uma vez que Yabu estivesse morto, Mizuno, seu marido, seria daimio de Izu e chefiaria o clã. Isso seria excelente, pensou ela. Então todos os outros irmãos, esposas e filhos seriam subservientes a ela e, naturalmente, Mizuno-san faria de Omi o herdeiro, quando Yabu morresse e se fosse. Outra dor no pescoço a fez mover-se ligeiramente.

- Vou chamar Kiku-san - disse Omi, referindo-se à cortesã que esperava pacientemente por Yabu no quarto ao lado, com o menino. - Ela é muito, muito hábil.

- Estou bem, apenas cansada, neh? Oh, muito bem. Ela pode me fazer uma massagem.

Omi dirigiu-se ao quarto ao lado. A cama estava pronta. Consistia em cobertores de cima e de baixo chamados futons, colocados sobre o chão de esteiras. Kiku curvou-se, tentou sorrir e murmurou que ficaria honrada em tentar usar sua modesta habilidade na muito honorável mãe da casa. Estava até mais pálida do que de costume e Omi podia ver que os gritos também a estavam desgastando. O menino estava tentando não demonstrar o próprio medo.

Quando os gritos começaram, Omi tivera que usar a sua habilidade para persuadi-la a ficar.

- Oh, Omi-san, não posso suportar, é terrível. Sinto muito, por favor, deixe-me ir. Quero tapar os ouvidos, mas o som me passa pelas mãos. Pobre homem, é terrível - dissera ela.

- Por favor, Kiku-san, por favor, seja paciente. Yabu-sama ordenou isso, neh? Não há nada que se possa fazer. Vai parar logo.

- É demais, Omi-san. Não posso suportar.

Por um costume inviolado, dinheiro em si não podia comprar uma garota se ela, ou seu patrão, quisesse se recusar ao cliente, fosse ele quem fosse. Kiku era uma cortesã de primeira classe, a mais famosa de Izu, e embora Omi estivesse convencido de que ela sequer se comparava a uma cortesã de segunda classe de Yedo, Osaka ou Kyoto, ali estava no auge, devidamente orgulhosa e exclusiva. E ainda que ele tivesse combinado com a patroa dela, a Mama-san Gyoko, pagar cinco vezes o preço habitual, ainda não tinha certeza de que Kiku ficaria.

Agora observava-lhe os dedos ligeiros no pescoço de sua mãe.

Era linda, pequenina, a pele quase translúcida e muito macia.

Normalmente ela estaria fervilhando de interesse pela vida. Mas como poderia um tal brinquedo estar feliz sob a opressão dos gritos, perguntou ele a si mesmo. Ficou a apreciá-la, saboreando-lhe o corpo, a tepidez...

Abruptamente os gritos pararam.

Omi escutou, a boca meio aberta, esforçando-se por apreender o mais leve ruído, esperando. Notou que os dedos de Kiku pararam, a mãe não reclamou, escutando com a mesma atenção.

Olhou pela gelosia para Yabu. O daimio permanecia imóvel como uma estátua.

- Omi-san! - chamou Yabu finalmente.

Omi levantou-se, foi até a varanda encerada e curvou-se.

- Sim, senhor.

- Vá ver o que aconteceu.

Omi inclinou-se novamente e atravessou o jardim, saindo para o caminho calçado com seixos minúsculos que descia a colina até a aldeia e levava à praia. A distância podia ver o fogo de um dos desembarcadouros e os homens ao lado dele. E, na praça que dava para o mar, o alçapão do buraco e quatro guardas.

Andando em direção à aldeia, viu que o navio dos bárbaros estava seguro nas âncoras, com lâmpadas de óleo nos conveses e nos botes. Aldeães - homens, mulheres e crianças - ainda estavam desembarcando a carga, e barcos de pesca e botes iam e vinham como muitos pirilampos. Fardos e engradados empilhavam-se em ordem na praia. Sete canhões já se encontravam lá e outro estava sendo rebocado por cordas de um bote para uma rampa, depois para a areia. Ele estremeceu, embora o vento não estivesse nada frio. Normalmente os aldeães estariam cantando enquanto trabalhavam, tanto de felicidade quanto para ajudá-los a puxar em uníssono. Mas naquela noite a aldeia estava inusitadamente silenciosa, embora todas as casas estivessem acordadas e cada mão estivesse sendo utilizada, mesmo a mais doente. Pessoas se apressavam de um lado para o outro, faziam mesuras e rapidamente seguiam em frente de novo. Silêncio. Até os cães estavam quietos.

Isto nunca foi assim, pensou ele, com a mão desnecessariamente apertada sobre a espada. É quase como se o kami da nossa aldeia nos tivesse abandonado.

Mura veio da praia ao seu encontro, prevenido desde o momento em que Omi abrira o portão do jardim. Fez uma reverência.

- Boa noite, Omi-sama. O navio estará descarregado por volta do meio-dia.

- O bárbaro morreu?

- Não sei, Omi-sama. Vou até lá e descubro imediatamente.

- Pode vir comigo.

Obedientemente, Mura o seguiu, meio passo atrás. Omi ficou curiosamente contente com a sua companhia.

- Pelo meio-dia, você disse? - perguntou Omi, não gostando do silêncio.

- Sim. Está tudo correndo bem.

- E a camuflagem?

Mura apontou para grupos de velhas e crianças que estavam tecendo esteiras rústicas, Suwo com elas.

- Podemos desmontar os canhões e cobri-los. Precisaremos de no mínimo dez homens para carregar cada um. Igurashi-san mandou chamar mais carregadores na aldeia vizinha. Bom. Estou me empenhando para que o sigilo seja mantido, senhor. Igurashi-san vai convencê-los da necessidade disso, neh?

- Omi-sama, teremos que gastar todos os nossos sacos de arroz, toda a nossa linha, todas as nossas redes, e toda a nossa palha para esteiras.

- E daí?

- Como vamos pescar ou enfardar a nossa colheita, depois?

- Encontrarão um jeito - A voz de Omi endureceu. - O imposto de vocês foi aumentado em metade para esta estação. Yabu-san ordenou isso esta noite.

- Já pagamos o imposto deste ano, e o próximo.

- Isso é privilégio de camponês, Mura. Pescar, arar, colher e pagar impostos. Não é?

- Sim, Omi-sama - disse Mura calmamente.

- Um chefe de aldeia que não consegue controlar sua aldeia é um objeto inútil, neh?

- Sim, Omi-sama.

- Aquele aldeão. Era um louco e um insultante. Há outros como ele?

- Nenhum, Omi-sama.

- Espero que não. Maus modos são imperdoáveis. A família dele fica multada no valor de um koku de arroz. Em peixe, arroz, cereais ou outra coisa. A ser pago dentro de três luas.

- Sim, Omi-sama.

Tanto Mura quanto Omi, o samurai, sabiam que a soma estava totalmente além dos meios da família. Havia apenas o barco de pesca e o meio hectare de arroz que os três irmãos Tamazaki — agora dois — compartilhavam com as esposas, quatro filhos e três filhas, e a viúva de Tamazaki e três filhos. Um koku de arroz era uma medida que se aproximava à quantidade de arroz necessária para manter viva uma família durante um ano. Cerca de cinco alqueires. Talvez trezentas e cinqüenta libras de arroz. Todos os pagamentos no reino eram medidos por kokus. E todos os impostos.

- Onde é que esta Terra dos deuses vai parar se nos esquecermos dos bons modos? - perguntou Omi. - Tanto para com os que estão abaixo de nós quanto para com os que estão acima?

- Sim, Omi-sama. - Mura estava calculando onde conseguir aquele koku, porque a aldeia teria que pagá-lo se a família não pudesse. E onde obter sacos de arroz, linha e redes. Alguns poderiam ser aproveitados da viagem. Teriam que pedir dinheiro emprestado. O chefe da aldeia vizinha devia-lhe um favor. Ah! A filha mais velha de Tamazaki não é uma belezinha de seis anos, e seis anos não é uma idade perfeita para uma menina ser vendida? E o melhor mercador de crianças em toda Izu não é o terceiro primo da irmã de minha mãe, o avarento e detestável bruxo velho? Mura suspirou, sabendo que agora tinha uma série de furiosas sessões de ajustes pela frente. Não importa, pensou. Talvez a criança traga até dois kokus. Com certeza vale muito mais.

- Peço desculpas pela conduta inconveniente de Tamazaki e peço-lhe perdão - disse.

- Foi inconveniência dele, não sua - replicou Omi, de modo igualmente polido.

Mas ambos sabiam que era responsabilidade de Mura e seria melhor que não houvesse outros Tamazaki. No entanto, ficaram ambos satisfeitos. Um pedido de desculpas fora oferecido, aceito, mas recusado. Assim a honra dos dois homens estava satisfeita.

Dobraram a esquina do desembarcadouro e pararam. Omi hesitou, depois afastou Mura com um gesto. O chefe da aldeia curvou-se e partiu, agradecido.

- Ele está morto, Zukimoto?

- Não, Omi-san. Só desmaiou de novo.

Omi dirigiu-se ao grande caldeirão de ferro que a aldeia usava para derreter a gordura das baleias que às vezes apanhavam em alto-mar, nos meses de inverno, ou para derreter cola de peixe, uma atividade da aldeia.

O bárbaro estava mergulhado até os ombros na água fervendo. Tinha o rosto púrpura, os lábios repuxados para trás sobre os dentes estragados.

Ao pôr-do-sol Omi observara Zukimoto, arrotando vaidade, supervisionar enquanto o bárbaro era amarrado como uma galinha, os braços em torno dos joelhos, as mãos frouxamente junto dos pés, e colocado em água gelada. O tempo todo o bárbaro baixinho de cabelo vermelho com que Yabu quisera começar havia balbuciado, rido e chorado, o padre cristão lá, no começo, sussurrando suas malditas orações. Depois o fogo começara a ser atiçado. Yabu não estivera na praia, mas suas ordens tinham sido específicas e foram seguidas diligentemente. O bárbaro começara a gritar e delirar, depois tentara bater a cabeça contra a beirada de ferro do caldeirão, coisa que o impediram de fazer. Depois veio mais oração, choro, desmaio, despertar, guinchos de pânico, antes que a dor realmente começasse. Omi tentara assistir como assistiria à imolação de uma mosca, tentando não ver o homem. Mas não conseguira e fora embora o mais depressa possível. Descobrira que não apreciava a tortura. Não havia dignidade nela, concluíra, contente pela oportunidade de saber a verdade, já que nunca presenciara torturas antes. Não havia dignidade nem para o torturado nem para o torturador. Removia a dignidade, e sem essa dignidade qual era a finalidade última da vida? perguntou a si mesmo.

Zukimoto calmamente cutucou a carne parcialmente cozida das pernas do homem com um bastão, como se faria com um peixe cozinhado em fogo brando para ver se estava pronto. — Ele voltará a si logo. Extraordinário o tempo que está durando. Não acho que sejam feitos como nós. Muito interessante, hein? — disse Zukimoto.

- Não - disse Omi, detestando-o.

Zukimoto ficou imediatamente em guarda e sua untuosidade reapareceu. - Não quis dizer nada, Omi-san - disse com uma profunda reverência. - Absolutamente nada.

- Claro. O Senhor Yabu está contente de que você tenha trabalhado tão bem. Deve exigir grande habilidade não alimentar o fogo em demasia e ao mesmo tempo alimentá-lo o suficiente.

- É muito gentil, Omi-san.

- Já tinha feito isso antes?

- Não deste modo. Mas o Senhor Yabu me honra com seus favores. Simplesmente procuro agradá-lo.

- Ele quer saber quanto tempo o homem viverá.

- Até o amanhecer. Com cuidado.

Omi estudou o caldeirão pensativamente. Depois caminhou da praia para a praça. Todos os samurais se levantaram e se curvaram.

- Está tudo tranqüilo lá embaixo, Omi-san - disse um deles com uma risada, dando uma batida no alçapão. - Primeiro houve um pouco de conversa, parecia zangada, e algumas pancadas. Depois, dois deles, talvez mais, se puseram a choramingar como crianças assustadas. Mas estão quietos há muito tempo.

Omi escutou. Ouviu a lama patinhar e um sussurro distante.

Um gemido ocasional.

- E Masijiro? - perguntou, citando o samurai que, por ordem sua, fora deixado lá embaixo.

- Não sabemos, Omi-san. Não chamou nem uma vez, isso é certo. Provavelmente está morto.

Que ousadia de Masijiro ser tão inútil, pensou Omi. Ser subjugado por homens indefesos, a maioria doente! Repugnante! Melhor que esteja morto.

- Nada de comida ou água amanhã. Ao meio-dia removam os corpos, neh? E quero que o líder seja trazido para cima. Sozinho.

- Sim, Omi-san.

Omi voltou para a fogueira e esperou até que o bárbaro abrisse os olhos. Depois regressou ao jardim e relatou o que Zukimoto dissera, a tortura mais uma vez vindo penetrante com o vento.

- Você olhou para os olhos do bárbaro?

- Sim, Yabu-sama.

Omi estava ajoelhado atrás do daimio, a dez passos. Yabu permanecera imóvel. O luar lançava sombras sobre o quimono dele e fazia um falo do punho da espada.

- O que... o que você viu?

- Loucura. A essência da loucura. Nunca vi olhos como aqueles. E terror sem limites.

Três pétalas caíram suavemente.

- Faça um poema sobre ele.

Omi tentou forçar o cérebro a trabalhar. Depois, desejando ser mais adequado, disse:


- Seus olhos

Eram simplesmente o fim

Do inferno...

Toda dor

Articulada.


Os berros vinham em lufadas, mais vagos agora, parecendo que a distância tornava essa diminuição de intensidade mais cruel.

Depois de um instante, Yabu disse:


- Se você permite

Que o calafrio penetre

No profundo, fundo âmago

Você se torna um com eles,

Inarticulado


Omi pensou sobre isso um longo instante, em meio à beleza da noite.


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