CAPÍTULO 38


Acompanhado de Naga, Blackthorne arrastava-se desconsoladamente colina abaixo, na direção das duas figuras sentadas sobre futons no centro do anel de guardas. Para além dos guardas estavam os contrafortes das montanhas que se elevavam para um céu coberto de nuvens. O dia estava sufocante. Sua cabeça doía devido à tristeza dos últimos dias, devido à preocupação com Mariko, e devido a fazer muito tempo que só podia conversar em japonês. Agora a reconhecia e parte da sua infelicidade desapareceu.

Fora muitas vezes à casa de Omi ver Mariko ou se informar sobre ela. Os samurais o fizeram sempre dar meia-volta, polida, mas firmemente. Omi lhe dissera como tomodachi, amigo, que ela estava bem.

— Não se preocupe, Anjin-san. Compreende?

— Sim — dissera ele, compreendendo apenas que não podia vê-la.

Então fora chamado por Toranaga e quisera lhe dizer muita coisa, mas por causa da sua falta de palavras falhara em fazer outra coisa que não irritá-lo. Fujiko fora ver Mariko várias vezes. Quando voltava sempre dizia que Mariko estava bem, acrescentando o inevitável "Shinpai suruna, Anjin-san. Wakarimasu? Não se preocupe, compreende?"

Com Buntaro fora como se nada houvesse jamais acontecido. Esboçavam saudações corteses quando se encontravam durante o dia. Além de usar ocasionalmente a casa de banho, Buntaro era como qualquer outro samurai em Anjiro, nem amistoso, nem inamistoso.

Do amanhecer ao pôr-do-sol Blackthorne fora acossado pelo treinamento acelerado. Tivera que eliminar a própria frustração enquanto tentava ensinar e se esforçava por aprender a língua. Ao crepúsculo estava sempre extenuado. Acalorado, transpirando e encharcado de chuva. E sozinho. Nunca se sentira tão só, tão consciente de não pertencer àquele mundo estranho.

Então houvera o horror que começara três dias atrás. Fora um longo dia úmido. Ao pôr-do-sol ele cavalgara exausto para casa e imediatamente sentira que havia algum problema permeando pela casa. Fujiko o saudara nervosamente.

— Nan desu ka?

Ela respondera em voz baixa, longamente, de olhos baixos.

— Wakarimasen. Nan desu ka? — perguntou ele de novo, impaciente, a fadiga deixando-o irritável.

Ela o chamara com um gesto para o jardim. Apontou para os beirais do telhado, mas a armação lhe pareceu sólida o bastante. Mais palavras e sinais, e finalmente lhe ficara claro que ela estava apontando para o local onde ele pendurara o faisão.

— Oh, esqueci disso! Watashi... — Mas não conseguiu se lembrar de como dizer, então se limitou a dar de ombros, exausto. — Wakarimasu. Nan desu kiji ka? Compreendo. Que tal o faisão?

Os criados o espiavam de portas e janelas, visivelmente petrificados. Ela falou de novo. Ele se concentrou, mas as suas palavras não fizeram sentido algum.

— Wakarimasen, Fujiko-san. Não compreendo.

Ela tomou fôlego profundamente, depois, trêmula, imitou alguém removendo o faisão, levando-o embora e enterrando-o.

— Ahhhh! Wakarimasu, Fujiko-san. Wakarimasu! Estava ficando estragado? — perguntou. Como não sabia as palavras em japonês, apertou o nariz e fez como se estivesse sentindo mau cheiro.

— Hai, hai, Anjin-san. Dozo gomen nasal, gomen nasai. — Ela emitiu o som de moscas e, com as mãos, pintou o quadro de uma nuvem zumbindo.

— Ah so desu! Wakarimasu. — Em outra ocasião ele se teria desculpado e, se conhecesse as palavras, teria dito: sinto muito pelo inconveniente. Em vez disso sacudiu os ombros, aliviou a dor nas costas, e resmungou: — Shikata ga nai — querendo apenas mergulhar no êxtase do banho e da massagem, a única alegria que tornava a vida possível. — Que vá para o inferno — disse em inglês, voltando-se. — Se eu tivesse estado aqui durante o dia, teria notado isso. Que vá para o inferno!

— Dozo, Anjin-san?

— Shikata ga nai — repetiu mais alto.

— Ah so desu, arigato goziemashita.

— Dare toru desu ka? Quem o pegou?

— Ueki-ya.

— Oh, aquele velho sodomita! — Ueki-ya, o jardineiro, o velho gentil e sem dentes que cuidava das plantas com as mãos amorosas e embelezava o jardim.

— Yoi. Motte kuru Ueki-ya. Ótimo, vá buscá-lo.

Fujiko meneou a cabeça. Seu rosto se tornara branco como giz.

— Ueki-ya shinda desu, shinda desu! — sussurrou ela.

— Ueki-ya ga shindato? Donoyoni? Doshité? Doshité shindanoda? Como? Por quê? Como ele morreu?

A mão dela apontou para o lugar onde o faisão estivera e falou muitas palavras gentis e incompreensíveis. Depois imitou o corte de uma espada.

— Jesus Cristo! Deus! Você condenou aquele velho à morte por causa de um maldito faisão fedorento?

Imediatamente todos os criados se precipitaram para o jardim e caíram de joelhos. Colocaram a cabeça no pó e se imobilizaram, até os filhos do cozinheiro.

— Que diabos está acontecendo? — Blackthorne estava quase encolerizado.

Fujiko esperou estoicamente até que estivessem todos lá, então também se ajoelhou e se curvou, como samurai, não como camponesa. — Gomen nasai, doto gomen na...

— Sífilis nos seus gomen nasai! Que direito tinha você de fazer isso? Hein? — e começou a cobri-la de impropérios, odiosamente. — Por que, em nome de Cristo, não me perguntou antes? Hein?

Ele lutou para recobrar o controle, cônscio de que todos os seus criados sabiam que legalmente ele podia retalhar Fujiko e todos eles em pedaços ali no jardim por terem lhe causado tanto dissabor, ou por nenhuma razão em absoluto, e que nem o próprio Toranaga poderia interferir no modo como ele conduzia a sua casa.

Viu que uma das crianças tremia de terror e pânico.

— Jesus Cristo do paraíso, dê-me forças... — Agarrou-se a um dos pilares para se firmar. — A culpa não é sua — exclamou, a voz estrangulada, sem perceber que não estava falando japonês. — É dela! É você! Sua cadela assassina!

Fujiko levantou os olhos lentamente. Viu o dedo acusador e o ódio no rosto dele. Sussurrou uma ordem à criada, Nigatsu.

Nigatsu balançou a cabeça e começou a suplicar.

— Ima!

A criada saiu correndo. Voltou com a espada mortífera, lágrimas escorrendo-lhe pela face. Fujiko pegou a espada e estendeu-a a Blackthorne com as duas mãos. Falou e, embora ele não conhecesse todas as palavras, sabia o que ela estava dizendo. — Sou responsável, por favor, tire-me a vida porque eu o desagradei.

— IYÉ! — Ele agarrou a espada e atirou-a longe. — Acha que isso vai trazer Ueki-ya de volta à vida?

Então, de repente, percebeu o que tinha feito e o que estava fazendo agora. — Oh, Jesus...

Foi embora. Em desespero dirigiu-se para o penhasco acima da aldeia, perto do santuário que ficava ao lado do velho cipreste, chorou.

Chorou porque um homem morrera desnecessariamente e porque sabia agora que fora ele quem o assassinara. — Senhor Deus, perdoe-me. Sou o responsável, não Fujiko. Eu o matei. Ordenei que ninguém tocasse no faisão além de mim. Perguntei-lhe se todos haviam compreendido e ela disse que sim. Dei a ordem com seriedade zombeteira, mas isso não importa agora. Eu dei as ordens, conhecendo a lei deles e sabendo qual era o costume. O velho desrespeitou a minha ordem estúpida, então o que mais Fujiko-san podia fazer? Sou eu quem deve ser acusado.

Com o tempo as lágrimas foram se esgotando. Era noite alta quando ele retornou à casa.

Fujiko o esperava como sempre, mas sozinha. A espada estava atravessada no colo dela. Ofereceu-a a ele.

— Dozo... dozo, Anjin-san.

— Iyé — disse ele, pegando a espada do modo como se devia pegar uma espada. — Iyé, Fujiko-san. Shikata ga nai, neh? Karma, neh? — Tocou-a com a mão como desculpas. Sabia que ela tivera que suportar o pior pela estupidez dele.

As lágrimas dela jorraram.

— Arigato, arigato go-gozaimashita, Anjin-san — disse ela entrecortadamente. — Gomen nasai...

O coração dele enterneceu-se.

Sim, pensou Blackthorne com grande tristeza, sim, mas isso não o desculpa nem elimina a humilhação dela, ou traz Ueki-ya de volta à vida. Você deve ser acusado. Devia ter pensado melhor...

— Anjin-san! — disse Naga.

— Sim? Sim, Naga-san? — Ele se arrancou do seu remorso, olhou para o jovem que caminhava ao seu lado. — Desculpe, que disse?

— Eu disse que esperava ser seu amigo.

— Ah, obrigado.

— Sim, e talvez o senhor... — Houve uma confusão de palavras que Blackthorne não compreendeu.

— Por favor?

— Ensinar, neh? Compreende "ensinar"? Ensinar sobre o mundo?

— Ah, sim, desculpe. Ensinar o quê, por favor?

— Sobre terras estrangeiras... terras lá de fora. O mundo, neh?

— Ah, compreendo agora. Sim, tentar.

Estavam perto dos guardas agora.

— Começar amanhã, Anjin-san. Amigos, neh?

— Sim, Naga-san. Tentar.

— Ótimo. — Muito satisfeito, Naga assentiu. Quando chegaram junto aos samurais, Naga ordenou-lhes que saíssem do caminho, fazendo sinal a Blackthorne que prosseguisse sozinho. Ele obedeceu, sentindo-se muito só no círculo de homens.

— Ohayo, Toranaga-sama.

— Ohayo, Mariko-san — disse, juntando-se a eles.

— Ohayo, Anjin-san. Dozo suwatte. Bom dia, Anjin-san, por favor, sente-se.

Mariko sorriu-lhe.

— Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka?

— Yoi, domo. — Blackthorne retribuiu-lhe o olhar, muito contente de que ela estivesse ali. — A sua presença enche-me de alegria, de grande alegria — disse em latim.

— E a sua a mim... é muito bom vê-lo. Mas há uma sombra no senhor. Por quê?

— Nan ja? — perguntou Toranaga.

Ela lhe contou o que fora dito. Toranaga grunhiu, depois falou.

— Meu amo diz que o senhor parece preocupado, Anjin-san. Devo concordar com ele. Ele pergunta o que o está perturbando.

— Não é nada. Domo, Toranaga-sama. Nani-mo. Não é nada.

— Nan ja? — perguntou Toranaga diretamente. — Nan ja?

Obedientemente Blackthorne respondeu de imediato:

— Ueki-ya — disse. — Hai, Ueki-ya.

— Ah so desu! — Toranaga falou longamente a Mariko.

— Meu amo diz que não há necessidade de se preocupar com o Velho Jardineiro. Ele me pede que lhe diga que oficialmente está tudo resolvido. O Velho Jardineiro compreendeu perfeitamente o que estava fazendo.

— Eu não compreendo.

— Sim, seria muito difícil para o senhor, mas, veja, Anjin-san, o faisão estava apodrecendo ao sol. As moscas estavam enxameando terrivelmente. A sua saúde, a saúde da sua consorte e a de toda a sua casa estavam sendo ameaçadas. Além disso, sinto muito, tinha havido algumas queixas muito cautelosas e particulares do criado-chefe de Omi-san, e de outros. Uma das nossas regras mais importantes é que o indivíduo não pode nunca perturbar a wa, a harmonia, do grupo, lembra-se? Por isso alguma coisa tinha que ser feita. Veja, a decomposição, o mau cheiro da decomposição, é revoltante para nós. É o pior odor do mundo para nós, sinto muito. Tentei lhe dizer, mas... bem, é uma das coisas que nos deixam a todos um pouco malucos. O seu criado chefe...

— Por que alguém não me procurou imediatamente? Por que alguém simplesmente não me disse? — perguntou Blackthorne. — O faisão não tinha importância alguma para mim.

— O que havia a dizer? O senhor tinha dado ordens. É o cabeça da sua casa. Eles não conheciam os seus costumes nem o que fazer, senão isso, procure entender o dilema de acordo com os nossos costumes. — Ela falou um instante a Toranaga, explicando o que Blackthorne dissera, depois voltou-se para ele de novo. — Isso o está afligindo? Quer que eu continue?

— Sim, por favor, Mariko-san.

— Tem certeza?

— Sim.

— Bem, então, o seu criado-chefe, o Pequeno Cozinheiro Dentuço, convocou uma reunião dos seus criados, Anjin-san. Mura, o chefe da aldeia, foi convidado a participar oficialmente. Decidiu-se que os etas da aldeia não podiam ser solicitados a levá-lo embora. Tratava-se apenas de um problema doméstico. Um dos criados tinha que pegá-lo e enterrá-lo, apesar de o senhor ter dado ordens absolutas de não mexerem no faisão. Obviamente a sua consorte era forçada pelo dever a providenciar que suas ordens fossem obedecidas. O Velho Jardineiro pediu para ter permissão de levá-lo embora. Ultimamente ele vinha vivendo e dormindo com grande sofrimento por causa do abdome, e achava muito fatigante ajoelhar-se, carpir e plantar, e não conseguia fazer esse trabalho de modo satisfatório para si mesmo. O Terceiro Cozinheiro Assistente também se ofereceu, dizendo que era muito jovem e estúpido, e que tinha certeza de que a vida não contava nada diante de um assunto tão grave. Finalmente, e o Velho Jardineiro recebeu a honra. Realmente foi uma grande honra, Anjin-san. Com grande solenidade, todos se curvaram para ele, que retribuiu a reverência, e alegremente levou a coisa embora e enterrou-a para grande alívio de todos.

"Quando voltou, dirigiu-se diretamente a Fujiko-san e disse-lhe o que fizera, que desobedecera à sua lei, neh? Ela lhe agradeceu por remover o perigo, depois disse-lhe que esperasse. Procurou-me para pedir conselho e perguntou-me o que devia fazer. O assunto fora resolvido formalmente, portanto teria que ser tratado formalmente. Eu lhe disse que não sabia, Anjin-san. Perguntei a Buntaro-san, mas ele também não sabia. Era complicado, por sua causa. Então ele perguntou ao Senhor Toranaga. O Senhor Toranaga viu a sua consorte pessoalmente."

Mariko voltou-se para Toranaga e contou-lhe em que ponto da história se encontrava, conforme ele solicitara. Toranaga falou rapidamente. Blackthorne observava-os, a mulher tão pequena, amável e atenta, o homem compacto, pétreo, o sash apertado em torno da grande cintura. Toranaga não falava com as mãos como muitos faziam, mas mantinha-as imóveis, a esquerda apoiada na coxa, a outra sempre no punho da espada.

— Hai, Toranaga-sarna. Hai. — Mariko olhou para Blackthorne e continuou. — Nosso amo pede-me que lhe explique, sinto muito, que se o senhor fosse japonês não teria havido dificuldade, Anjin-san. O Velho Jardineiro simplesmente teria se dirigido ao cemitério para receber sua libertação. Mas, por favor, perdoe-me, o senhor é um estrangeiro, embora o Senhor Toranaga o tenha feito hatamoto, um dos seus vassalos pessoais, e era uma questão de decidir se o senhor era legalmente samurai ou não. Fico honrada em lhe dizer que ele estabeleceu que o senhor é samurai e tem direitos de samurai. Portanto foi tudo resolvido imediatamente e simplificado. Um crime tinha sido cometido. Suas ordens tinham sido deliberadamente desobedecidas. A lei é clara. Não há opção. — Ela estava séria agora. — Mas o Senhor Toranaga conhece a sua suscetibilidade a matanças, então, para poupar-lhe o sofrimento, ordenou pessoalmente a um de seus samurais que enviasse o Velho Jardineiro para o Vazio.

— Por que alguém não me perguntou antes? Aquele faisão não significava nada para mim.

— O faisão não tem nada a ver, Anjin-san — explicou ela. — O senhor é o cabeça da casa. A lei diz que nenhum membro da sua casa pode desobedecer-lhe. O Velho Jardineiro deliberadamente infringiu a lei. O mundo todo cairia em pedaços se as pessoas fossem autorizadas a desconsiderar a lei. O seu...

Toranaga interrompeu e falou com ela. Ela ouviu, respondeu a algumas perguntas, depois ele lhe fez sinal que continuasse.

— Hai. O Senhor Toranaga quer que eu lhe assegure que providenciou pessoalmente para que o Velho Jardineiro tivesse a morte rápida, indolor e honrada que merecia. Até emprestou ao samurai a sua própria espada, que é muito afiada. E devo dizer-lhe que o Velho Jardineiro ficou muito orgulhoso de, em seus dias de outono, ser capaz de ajudar a sua casa, Anjin-san, orgulhoso por ter ajudado a estabelecer o seu status de samurai diante de todos. Acima de tudo ficou orgulhoso com a honra que lhe foi prestada. Os executores públicos não foram utilizados, Anjin-san. O Senhor Toranaga quer que eu deixe isso bem claro para o senhor.

— Obrigado, Mariko-san. Obrigado por deixar claro. — Blackthorne voltou-se para Toranaga, curvou-se muito corretamente. — Domo, Toranaga-sama, domo arigato. Wakarimasu. Domo.

Toranaga retribuiu a mesura adequadamente.

— Yoi, Anjin-san. Shinpai suru mono wa nai, neh? Shikata ga nai, neh? Ótimo. Agora não se preocupe, hein? O que poderia fazer, hein?

— Nannimo. Nada.

Blackthorne respondeu às perguntas que Toranaga lhe fez sobre o treinamento dos mosquetes, mas nada do que disseram o atingiu. Sua mente vacilava sob o impacto do que lhe haviam informado. Ele insultara Fujiko diante de todos os criados e ofendera a confiança da criadagem, quando Fujiko fizera apenas o que era certo e o mesmo fizeram os criados.

Fujiko era irrepreensível. São todos irrepreensíveis. Menos eu.

Não posso desfazer o que foi feito. Nem a Ueki-ya nem a ela. Ou a eles.

Como posso viver com essa vergonha?

Sentou-se de pernas cruzadas diante de Toranaga, a leve brisa do mar batendo-lhe no quimono, espadas ao sash. Entorpecido, ouvia e respondia e nada tinha importância. A guerra se aproxima, dizia ela. Quando? Perguntava ele. Muito em breve, dizia ela, portanto o senhor deve partir comigo imediatamente, deve acompanhar-me parte do trajeto, Anjin-san, porque vou para Osaka, mas o senhor vai seguir para Yedo, por terra, a fim de preparar o seu navio para a guerra.

Repentinamente o silêncio foi colossal. Então a terra começou a tremer.

Blackthorne sentiu os pulmões prestes a explodir, e cada fibra do seu ser gritando em pânico. Tentou se levantar, mas não conseguiu, e viu que todos os guardas estavam igualmente indefesos. Toranaga e Mariko desesperadamente se agarravam ao chão com as mãos e pés. O estrondo retumbante, catastrófico, vinha da terra e do céu. Rodeou-os, crescendo sempre mais, até seus tímpanos estarem prestes a se fender. Eles se tornaram parte do delírio. Por um instante o troar cessou, o abalo continuando.

Ele sentiu o vômito elevando-se, sua mente incrédula guinchando que aquilo era terra, onde era firme e seguro, não o mar, onde o mundo balançava a cada momento. Cuspiu para limpar o gosto repugnante na boca, agarrando-se à terra trêmula, com ânsias de vômitos cada vez mais fortes.

Uma avalanche de rocha começou a despencar da montanha ao norte, inundando o vale com o estrondo e aumentando o tumulto. Parte do acampamento dos samurais desapareceu. Blackthorne tateou o chão com as mãos e joelhos, Toranaga e Mariko fazendo o mesmo. Ouviu a si mesmo gritando, mas nenhum som pareceu sair dos seus lábios ou dos deles.

O tremor parou.

A terra estava firme de novo, firme como sempre estivera, firme como sempre deveria estar. As mãos e joelhos dele, e o corpo, tremiam descontroladamente. Ele tentou imobilizá-los e recuperar o fôlego.

Então novamente a terra se pôs a rugir. O segundo abalo começou. Foi mais violento. A terra rasgou-se na extremidade do altiplano. A fenda escancarou-se na direção deles a uma velocidade inacreditável, passou a cinco passos de distância, e seguiu em frente. Os olhos incrédulos de Blackthorne viram Toranaga e Mariko cambaleando à beira da fissura onde deveria haver chão sólido. Como que num pesadelo, ele viu Toranaga, mais próximo da goela, começar a perder o equilíbrio. Saiu do seu estupor, deu um pulo para a frente. Sua mão direita agarrou o sash de Toranaga, a terra tremendo como uma folha ao vento.

A fenda tinha vinte passos de profundidade e dez de largura, tresandava a morte. Lama e rochas se precipitavam para o fundo, arrastando Toranaga e ele consigo. Blackthorne lutou para se agarrar com pés e mãos, aflito por ajudar Toranaga, quase puxado para baixo, para o abismo. Ainda parcialmente atordoado, Toranaga cravou os artelhos na face da parede e, meio arrastado meio carregado por Blackthorne, arrancou-se para fora. Ambos caíram deitados ofegantes, em segurança.

Nesse momento houve outro abalo.

A terra fendeu-se de novo. Mariko gritou. Tentou se arrastar para fora do caminho, mas essa nova racha engoliu-a. Desesperado Blackthorne rastejou até a borda, os abalos subseqüentes fazendo-o perder o equilíbrio. Na beirada, olhou para baixo. Ela tiritava sobre uma saliência alguns pés abaixo enquanto o chão balançava o céu parecia vir abaixo. O abismo tinha trinta pés de profundidade, dez de largura. A borda desintegrou-se sob os pés dele.

Ele se deixou deslizar, lama e pedras quase o cegando, e agarrou Mariko, puxando-a para a segurança de outra saliência. Juntos lutaram para se equilibrar. Um novo choque. A saliência cedeu quase totalmente e eles se viram perdidos. Então a mão de ferro de Toranaga agarrou-o pelo sash, detendo-lhes o escorregão para o inferno.

— Pelo amor de Cristo... — gritou Blackthorne, os braços quase arrancados das articulações enquanto segurava Mariko e lutava com os pés e a mão livre à procura de pontos de apoio. Toranaga o manteve firme até se encontrarem numa estreita saliência de novo, depois o sash se rompeu. A pausa de um momento no tremor deu tempo a Blackthorne de trazer Mariko para a saliência, detritos chovendo sobre eles. Toranaga saltou para a segurança, gritando-lhe que se apressasse. O abismo soltou um lamento e começou a se fechar, Blackthorne e Mariko ainda no fundo de sua goela. Toranaga já não podia ajudar. O terror de Blackthorne emprestou-lhe uma força inumana e de algum modo ele conseguiu arrancar Mariko do túmulo e empurrá-la para cima. Toranaga agarrou-a pelo pulso e içou-a para a borda. Blackthorne arrastou-se atrás dela, mas cambaleou para trás quando parte de sua parede desabou. A parede oposta rangia aproximando-se. Lama e pedras despencavam dela. Por um instante ele pensou estar liquidado, mas conseguiu rastejar às apalpadelas para fora da sua sepultura. Deitou-se na borda que estremecia, os pulmões tragando ar, incapaz de rastejar para fora, as pernas dentro da fenda. A brecha estava se fechando. E parou - com uma boca de seis passos e oito de profundidade.

O ribombar cessou totalmente. A terra firmou-se. Fez-se silêncio.

De quatro, indefesos, eles esperaram que o horror recomeçasse. Blackthorne começou a se levantar, o suor pingando.

— Iyé — Toranaga fez-lhe sinal que ficasse no chão, seu rosto uma sujeira só, um corte cruel na têmpora, no ponto onde sua cabeça se chocara com uma rocha.

Estavam todos resfolegando, o peito arfando, bile na boca. Os guardas estavam se recobrando. Alguns começaram a correr na direção de Toranaga.

— Iyé! — gritou ele. — Maté! Esperem!

Obedeceram e se puseram de quatro novamente. A espera pareceu se prolongar para sempre. Então um pássaro piou numa árvore e lançou-se ao ar, guinchando. Outro pássaro o seguiu. Blackthorne sacudiu a cabeça para limpar o suor dos olhos. Viu suas unhas quebradas, as pontas dos dedos sangrando, agarrando os tufos de grama. Então, na grama, uma formiga se moveu. E outra e outra. Começaram a cata de alimento.

Ainda assustado, ele se sentou sobre os calcanhares. Quando estará seguro?

Mariko não respondeu. Estava hipnotizada pela fenda no chão. Ele se arrastou para junto dela.

— Está se sentindo bem?

— Sim... sim — disse ela, sem fôlego. Tinha o rosto borrado de lama. O quimono estava rasgado e imundo. Perdera as duas sandálias e um tabi. E a sombrinha. Ele a ajudou a se afastar da borda, ainda aturdida.

Depois olhou para Toranaga.

— Ikaga desu ka?

Toranaga não tinha condições de falar, o peito opresso, os braços e as pernas cobertos de escoriações. Apontou. A fenda que quase o engolira agora não era mais que uma vala no solo. Ao norte a vala abria-se numa ribanceira novamente, mas não tão larga quanto fora, nem tão profunda. Blackthorne sacudiu os ombros.

— Karma.

Toranaga arrotou sonoramente, depois pigarreou, cuspiu e arrotou de novo. Isso ajudou a voz a sair e uma torrente de insultos derramou-se por sobre a vala, seus dedos ásperos apontando para ela. Embora Blackthorne não conseguisse compreender todas as palavras, Toranaga estava claramente dizendo conforme um japonês o faria:

— A sífilis no karma, a sífilis no terremoto, a sífilis na vala! Perdi as minhas espadas e a sífilis nisso!

Blackthorne explodiu numa gargalhada, consumido pelo alívio de estar vivo e pela estupidez de tudo aquilo. Um instante, e Toranaga riu também, e sua hilaridade contagiou Mariko.

Toranaga pôs-se de pé. Cautelosamente. Depois, aquecido pela alegria de viver, começou a fazer micagens para a vala, ridicularizando a si mesmo e ao abalo. Parou, fez sinal a Blackthorne que se juntasse a ele e se pôs de pernas abertas sobre a vala; abriu a tanga e, ainda dominado pelo riso, disse a Blackthorne que fizesse o mesmo. Blackthorne obedeceu e os dois homens tentaram urinar na vala. Mas não saiu nada, nem uma gota. Tentaram intensamente, o que lhes aumentou o riso e os bloqueou ainda mais. Finalmente tiveram êxito e Blackthorne sentou-se para recobrar forças, reclinando-se e apoiando-se nas mãos. Quando se recuperou um pouco, voltou-se para Mariko.

— O terremoto terminou definitivamente, Mariko-san?

— Até o próximo abalo, sim. — Ela continuou a limpar a lama das mãos e do quimono.

— É sempre assim?

— Não. Às vezes é bem leve. Às vezes há uma série de abalos após um bastão de tempo ou um dia, ou meio bastão ou meio dia. Às vezes há apenas um abalo — nunca se sabe, Anjin-san. Terminou até que comece de novo. Karma, neh?

Os guardas os observaram sem se mover, esperando pela ordem de Toranaga. Ao norte havia incêndio assolando a rústica coberta do acampamento. Samurais combatiam o fogo e escavavam as rochas da avalanche para encontrar os soterrados. Ao leste, Yabu, Omi e Buntaro encontravam-se com outros guardas ao lado da extremidade oposta da fenda, intactos com exceção de algumas contusões, também à espera de serem chamados. Igurashi desaparecera. A terra o tragara.

Blackthorne deixou-se devanear. Seu auto-desdém desaparecera e ele se sentiu totalmente sereno e inteiro. Agora sua mente demorava-se orgulhosamente no fato de ele ser samurai, e em ir para Yedo, no seu navio, na guerra, no Navio Negro, e de novo na sua condição de samurai. Deu uma olhada em Toranaga e teria gostado de lhe fazer muitas perguntas, mas notou que o daimio estava perdido em seus próprios pensamentos, e sabia que seria descortês perturbá-lo. Há muito tempo, pensou ele contente, e olhou para Mariko. Estava arrumando o cabelo e o rosto, por isso ele desviou o olhar. Deitou-se de comprido e olhou para o céu, sentindo a terra cálida às costas, esperando pacientemente.

Toranaga falou, sério agora.

— Domo, Anjin-san, neh? Domo.

— Dozo, Toranaga-sama. Nani-mo. Hombun, neh? Por favor, Toranaga-sama, não foi nada. Dever.

Então, sem saber muitas palavras e querendo ser preciso, disse:

— Mariko-san, quer explicar por mim? Acho que compreendo agora o que a senhora e o Senhor Toranaga querem dizer com karma e a estupidez de se preocupar com o que é. Muita coisa parece mais clara. Não sei porquê, talvez seja porque nunca me senti tão aterrorizado, talvez isso me tenha limpado a cabeça, mas parece que estou pensando mais claro. É... bem, como o Velho Jardineiro. Sim, a culpa foi toda minha e sinto muitíssimo, realmente, mas aquilo foi um engano, não foi uma escolha deliberada de minha parte. É. Portanto nada pode ser feito a respeito. Há um momento atrás estávamos todos quase perdidos. Portanto toda aquela preocupação e mágoa foi um desperdício, não foi? Karma. Sim, sei o que é karma agora. Compreende?

— Sim. — E traduziu para Toranaga. — Ele disse: "Ótimo, Anjin-san. Karma é o começo do conhecimento. Depois é a paciência. A paciência é muito importante. Os fortes são os pacientes, Anjin-san. Paciência quer dizer conter a própria inclinação para as sete emoções: ódio, adoração, alegria, ansiedade, cólera, pesar, medo. Se você não dá passagem aos sete, você é paciente, depois você logo compreenderá todo tipo de coisas e estará em harmonia com a Eternidade".

— Acredita nisso, Mariko-san?

— Sim. Muitíssimo. Tento, também, ser paciente, mas é difícil.

— Concordo. Isso também é wa, harmonia, a sua "tranqüilidade", neh?

— Sim.

— Diga a ele que lhe agradeço realmente pelo que fez ao Velho Jardineiro. Antes eu não agradeci, não de coração. Diga-lhe isso.

— Não é preciso, Anjin-san. Ele já sabia que o senhor ia apenas ser polido.

— Como sabia?

— Eu lhe disse que ele é o homem mais sábio do mundo.

Ele sorriu.

— Aí está — disse ela — a sua idade desapareceu de novo. — E acrescentou em latim: — O senhor é o senhor mesmo de novo, e melhor do que antes!

— Mas a senhora é linda, como sempre.

Os olhos dela animaram-se e ela os desviou de Toranaga. Blackthorne viu isso e notou-lhe a cautela. Pôs-se de pé e olhou dentro da fenda recortada. Cuidadosamente saltou dentro dela e desapareceu.

Mariko levantou-se com dificuldade, momentaneamente temerosa, mas Blackthorne logo voltou à superfície. Nas mãos trazia a espada de Fujiko. Estava embainhada, embora coberta de lama e arranhada. A espada curta desaparecera.

Ajoelhou-se diante de Toranaga e ofereceu a espada do modo como uma espada devia ser oferecida.

— Dozo, Toranaga-sama — disse simplesmente. — Samurai kara samurai he, neh? Por favor, Senhor Toranaga, de um samurai para o outro, hein?

— Domo, Anjin-san. — O senhor do Kwanto aceitou a espada e enfiou-a no sash. Depois sorriu, inclinou-se para a frente, e deu um tapinha no ombro de Blackthorne. — Tomo, neh? Amigo, hein?

— Domo. — Blackthorne olhou a distância. Seu sorriso extinguiu-se. Uma nuvem de fumaça erguia-se por sobre a elevação, acima de onde a aldeia devia estar. Imediatamente perguntou a Toranaga se podia partir, para se certificar de que Fujiko estava bem.

— Ele diz que sim, Anjin-san. E devemos vê-lo ao pôr-do-sol na fortaleza, para a refeição noturna. Há algumas coisas que ele deseja discutir com o senhor.

Blackthorne voltou à aldeia. Estava devastada, o curso da estrada estava irreconhecível, a superfície despedaçada. Mas os botes estavam ilesos. Muitos incêndios ainda ardiam. Aldeãos carregavam baldes de areia e de água. Ele dobrou a esquina. A casa de Omi oscilava como bêbada no seu lado da colina. A sua era uma ruína fumegante.


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