CAPÍTULO 36


- Convidei-o para caçar, Naga-san, não para repetir opiniões que já ouvi - disse Toranaga.

- Imploro-lhe, Pai, pela última vez: pare o treinamento, proscreva as armas, destrua o bárbaro, declare a experiência um fracasso e ponha um fim a essa obscenidade.

- Não. Pela última vez. - O falcão encapuzado sobre a mão enluvada de Toranaga agitou-se, inquieto com a ameaça inabitual na voz do amo, e sibilou, irritado. Estavam no bosque, com batedores e guardas bem longe do raio de audição, o dia mormacento, úmido e nublado.

- Muito bem. Mas ainda é meu dever lembrá-lo de que está em perigo aqui, e solicitar-lhe novamente, com a devida polidez, agora pela última vez, que deixe Anjiro hoje.

- Não. Também pela última vez.

- Então tome a minha cabeça!

- Já tenho a sua cabeça!

- Então torne-a hoje, agora, ou deixe-me pôr fim à vida, já que o senhor não aceitará bons conselhos.

- Aprenda a ser paciente, jovenzinho enfatuado!

- Como posso ser paciente quando o vejo se destruindo? É meu dever chamar-lhe a atenção para isso. O senhor fica aqui caçando e desperdiçando tempo, enquanto os seus inimigos fazem o mundo inteiro desabar em cima do senhor. Os regentes reúnem-se amanhã. Quatro quintos de todos os daimios do Japão já se encontram em Osaka ou estão a caminho de lá. O senhor foi o único daimio importante a recusar. Agora será impedido. Depois nada poderá salvá-lo. Pelo menos devia estar em casa, em Yedo, rodeado pelas suas legiões. Aqui está desprotegido. Não podemos protegê-lo. Mal e mal temos mil homens, e Yabu não mobilizou Izu inteira? Tem mais de oito mil homens no raio de vinte ris, mais seis fechando as fronteiras. O senhor sabe que os espiões dizem que ele tem uma esquadra esperando ao norte para pô-lo a pique se o senhor tentar escapar de galera! É prisioneiro dele novamente, não vê? Um pombo-correio de Ishido a Yabu pode destruí-lo, no momento que quiser. Como sabe que ele não está planejando traição com Ishido?

- Tenho certeza de que ele está considerando isso. Eu estaria se fosse ele. Você não?

- Não, não estaria.

- Então você logo estaria morto, o que seria absolutamente merecido, mas o mesmo aconteceria com toda a sua família, todo o seu clã e todos os seus vassalos, o que seria absolutamente imperdoável. Você é um imbecil, estúpido e truculento! Nunca vai usar a mente, ouvir, aprender, nunca vai frear a língua ou o temperamento! Deixou-se manipular do modo mais infantil e acredita que tudo pode ser resolvido com a ponta da sua espada. A única razão por que não lhe tiro essa cabeça estúpida nem o deixo pôr fim à sua vida atual sem valor é que você é jovem, e eu costumava pensar que você tinha algumas possibilidades, seus erros não são maliciosos, não há astúcia em você e a sua lealdade é inquestionável. Mas se não aprender rapidamente paciência e autodisciplina, suprimo-lhe o status de samurai e o rebaixo, junto com todas as suas gerações, para a classe camponesa! - O punho direito de Toranaga chocou-se contra a sela e o falcão soltou um guincho penetrante, nervoso. - Compreendeu?

Naga estava em choque. Em toda a vida, nunca vira o pai gritar de raiva nem perder a calma, ou sequer ouvira falar que ele tivesse feito isso. Muitas vezes sentira a ferroada da língua dele, mas com justificação. Naga sabia que cometia muitos erros, mas o pai sempre dava um jeito de que o que ele fizera deixasse de parecer tão estúpido quanto parecera de imediato. Por exemplo, quando Toranaga mostrara como ele caíra na armadilha de Orni - ou de Yabu - com relação a Jozen, ele tivera que ser fisicamente impedido de atacar e assassinar os dois. Toranaga ordenara aos seus guardas particulares que jogassem água fria em Naga até que este voltasse à razão, e calmamente explicara que ele, Naga, o ajudara incomensuravelmente eliminando a ameaça de Jozen.

- Mas teria sido melhor se você soubesse que estava sendo manipulado para agir. Seja paciente, meu filho, tudo vem com a paciência - aconselhara Toranaga. - Logo você será capaz de manipulá-los. O que você fez foi muito bom. Mas deve aprender a raciocinar sobre o que está na mente de um homem se pretende ser de valia para si mesmo, ou para o seu senhor. Preciso de líderes. Tenho fanáticos suficientes.

O pai sempre fora razoável e pronto a perdoar, mas hoje...

Naga pulou do cavalo e ajoelhou-se abjetamente:

- Por favor, perdoe-me, Pai. Nunca pretendi deixá-lo zangado... é só porque estou desesperado de preocupação pela sua segurança. Por favor, desculpe-me por perturbar-lhe a harmonia...

- Cale a boca! - vociferou Toranaga, assustando o cavalo.

Furiosamente Toranaga firmou-se com os joelhos e puxou os freios com a mão direita, o cavalo escorregando. Desequilibrado, o falcão começou a se debater - saltando do punho, as asas adejando descontroladamente, guinchando o seu hic-lc-lc-lc-lc de rebentar os tímpanos - enfurecido pela agitação inabitual e inconveniente ao seu redor.

- Pronto, minha belezinha, pronto... - Desesperadamente Toranaga tentava fazê-lo pousar e recuperar o controle sobre a montaria, quando Naga saltou para a cabeça do cavalo. Agarrou a rédea e conseguiu impedir o animal de disparar. O falcão guinchava furiosamente. Afinal, relutante, pousou de novo sobre a luva de Toranaga, presa firmemente pelos pioses. Mas as asas pulsavam nervosamente, os sinos nos seus pés soando estridentemente.

- Hic-lc-lc-lc-lc-liiiiicc! - guinchou a ave uma última vez.

- Pronto, pronto, minha belezinha. Pronto, está tudo bem - disse Toranaga, apaziguador, o rosto ainda avermelhado de cólera, depois voltou-se para Naga, tentando não deixar a animosidade transparecer na voz por causa do falcão. - Se você tiver arruinado o estado dele hoje, eu... eu...

Nesse instante um dos batedores chamou. Imediatamente Toranaga tirou o capuz do falcão com a mão direita, deu-lhe um momento para se adaptar aos seus arredores, e soltou-o.

Era um falcão de asas longas, um peregrinus. Seu nome era Tetsuko - Senhora de Aço. A ave disparou para o céu, circulando seiscentos pés acima de Toranaga, esperando que a presa fosse afugentada, esquecida do nervosismo. Então, viu os cães atiçados contra o bando de faisões, que dispersaram numa confusão frenética de batidas de asas. Marcou a presa, girou sobre si mesma e se atirou - fechou as asas e mergulhou implacável -, as garras prontas para dilacerar.

Desceu zunindo, mas o velho faisão, com duas vezes o tamanho do falcão, derrapou e, em pânico, arremeteu como uma flecha para a segurança de um conjunto de árvores, a duzentos passos de distância. Tetsu-ko retomou a posição inicial, abriu as asas, investindo de cabeça atrás da caça. Ganhou altitude, colocouse mais uma vez verticalmente acima do faisão, novamente investiu, e novamente falhou. Toranaga excitadamente gritava encorajamentos, prevenindo do perigo à frente, esquecido de Naga.

Com um frenético bater de asas, o faisão movia-se velozmente para a proteção das árvores. O peregrinos, novamente girando bem acima, mergulhou e veio cortando o ar. Mas era tarde demais. O manhoso faisão desapareceu. Sem se preocupar com a própria segurança, o falcão colidiu com folhas e galhos, ferozmente procurando a vítima, depois retomou posição e disparou para o vazio mais uma vez, guinchando de raiva, impelindo-se para bem acima do matagal.

Nesse momento um bando de perdizes foi localizado e espantado, pondo-se alvoroçadas à procura de segurança, lançando-se de um lado para o outro, astuciosamente seguindo os contornos da terra. Tetsu-ko marcou uma, dobrou as asas, e caiu como uma pedra. Desta vez não errou. Um golpe malévolo de suas garras posteriores quebrou o pescoço da perdiz. O pássaro estatelou-se no chão numa nuvem de penas. Mas ao invés de seguir a presa até o solo e pousar com ela, o falcão ganhou altura guinchando, subindo mais e mais.

Ansiosamente Toranaga sacou a isca, um pequeno pássaro morto amarrado a uma cordinha, e fê-la zunir em torno da cabeça. Mas Tetsu-ko não ficou tentado a voltar. Agora era uma minúscula mancha no firmamento, e Toranaga teve certeza de que o perdera, de que a ave resolvera deixá-lo, voltar às matas, matar conforme o próprio capricho e não conforme o capricho dele, comer quando quisesse e não quando ele decidisse, e voar para onde os ventos ou a fantasia a levassem, sem amo e livre para sempre.

Toranaga observou-o, não triste, mas só um pouco solitário. Tratava-se de uma criatura selvagem e Toranaga, como todos os falcoeiros, sabia que era um dono terrestre apenas temporário. Sozinho subira ao ninho do falcão nas montanhas Hakoné, tirara-o do ninho filhote, treinara-o, criara-o e dera-lhe a primeira matança. Agora mal conseguia vê-lo circulando lá em cima, cavalgando as nuvens gloriosamente, e desejou, ansiosamente, também poder flutuar no empíreo, longe das iniqüidades da terra.

Então o velho faisão casualmente surgiu de sob as árvores para se alimentar mais uma vez. No mesmo momento Tetsuko mergulhou, atirando-se dos céus, uma minúscula arma mortífera, as garras prontas para o coup de grâce.

O faisão morreu instantaneamente, o impacto causando uma explosão de penas, mas o falcão continuou, as asas cortando o ar, para frear violentamente no último segundo. Então fechou as asas e pousou sobre a presa.

Segurou-o nas garras e começou a depená-lo com o bico antes de comer. Mas antes que pudesse comer, Toranaga se aproximou a cavalo. A ave parou, distraída. Seus inclementes olhos castanhos, contornados de amarelo, observaram quando ele desmontou, seus ouvidos escutando o elogio murmurado suavemente pela sua habilidade e bravura, e depois, porque estava com fome e era ele quem dava comida e também porque foi paciente e não fez movimento súbito, mas ajoelhou-se suavemente, o falcão permitiulhe chegar mais perto.

Toranaga elogiou-o docemente. Puxou a faca de caça e cortou a cabeça do faisão, para permitir a Tetsuko alimentar-se com o cérebro da presa. Quando a ave começou a se regalar com o petisco, ele decepou a cabeça e ela veio facilmente para o seu punho, onde estava acostumada a se alimentar.

O tempo todo Toranaga a elogiou e, quando ela terminou o bocado, acariciou-a gentilmente e cumprimentou-a prodigamente. A ave balançou-se e sibilou o seu contentamento, alegre por estar de volta em segurança ao punho mais uma vez, onde podia comer, pois, naturalmente, desde que fora tirada do ninho, o punho era o único lugar onde jamais fora autorizada a comer, e a comida fora sempre dada por Toranaga pessoalmente. Começou a se alisar com o bico, pronta para outra morte.

Como Tetsuko voara tão bem, Toranaga resolveu não a deixar empanturrar-se nem voar mais naquele dia. Deu-lhe um pequeno pássaro que já havia depenado e aberto para ela. Quando sua refeição ia a meio caminho, ele lhe enfiou o capuz. A ave continuou a se alimentar satisfeita, através do capuz. Quando terminou de comer e começou a se alisar de novo, ele pegou o faisão, enfiou-o na sacola e chamou seu falcoeiro, que esperara com os batedores. Joviais, comentaram a glória da matança e contaram o conteúdo da sacola. Havia uma lebre, um par de codornizes e o faisão. Toranaga dispensou o falcoeiro e os batedores, mandou-os de volta ao acampamento com todos os falcões. Seus guardas esperavam.

Então voltou a atenção para Naga.

- E então?

Naga ajoelhou-se ao lado do cavalo dele, curvou-se.

- O senhor está completamente correto... no que disse a meu respeito. Peço desculpas por tê-lo ofendido.

- Mas não por me dar mau conselho?

- Eu... eu lhe imploro que me ponha com alguém que possa me ensinar, de modo que eu nunca faça isso. Não quero nunca dar-lhe mau conselho, nunca.

- Ótimo. Você passará uma parte do dia, todos os dias, com o Anjin-san, aprendendo o que ele sabe. Ele pode ser um dos seus professores.

- Ele?

- Sim. Isso pode ensinar-lhe um pouco de disciplina. E se conseguir enfiá-la nessa rocha que tem entre as orelhas para ouvir, certamente aprenderá coisas de valor para si mesmo. Poderia até aprender alguma coisa de valor para mim.

Naga fitava o chão sombriamente.

- Quero que você saiba tudo o que ele sabe sobre armas, canhões e a arte da guerra. Você se tornará o meu especialista. Sim. E quero que seja um bom especialista.

Naga não disse nada.

- E quero que se torne amigo dele.

- Como posso fazer isso, senhor?

- Por que você não pensa num modo? Por que não usa a sua cabeça?

- Tentarei. Juro que tentarei.

- Quero que faça melhor do que isso. Ordeno-lhe que seja bem sucedido. Use um pouco de "caridade cristã". Deve ter aprendido o suficiente para fazer isso. Neh?

Naga carregou o sobrolho.

- Isso é impossível de aprender, por mais que eu tenha tentado. É verdade! Tudo o que Tsukkusan falou foi dogma e absurdos que fariam qualquer homem vomitar. Cristianismo é para camponeses, não para samurais. Não mate, não tome mais de uma mulher, e cinqüenta outras tolices! Obedeci ao senhor então e obedecerei agora. Eu sempre obedeço! Por que não me deixar fazer as coisas que eu posso, senhor? Torno-me cristão se é isso o que o senhor deseja, mas não posso acreditar nisso... é tudo um monte de... peço desculpas. Vou me tornar amigo do Anjin-san.

- Ótimo. E lembre-se de que ele vale vinte mil vezes o próprio peso em seda crua, e tem mais conhecimento do que você jamais terá em vinte vidas.

Naga se mantinha sob controle e assentiu respeitoso, aquiescendo.

- Ótimo. Você comandará dois batalhões, Omi-san mais dois, e um ficará de reserva, com Buntaro.

- E os outros quatro, senhor?

- Não temos armas suficientes para eles. Foi um estratagema para confundir o faro de Yabu - disse Toranaga, atirando um bocado ao filho.

- Senhor?

- Foi só uma desculpa para trazer mais mil homens para cá. Não vão chegar amanhã? Com dois mil homens, posso defender Anjiro e escapar, se for necessário. Neh?

- Mas Yabu-san ainda pode... - Naga engoliu o comentário, sabendo que mais uma vez ia fazer um julgamento errado.

- Por que é que sou, tão estúpido? - perguntou amargurado.

- Por que não consigo ver as coisas como o senhor? Ou como Sudara-san? Quero ajudar, ser de valor. Não quero provocá-lo o tempo todo.

- Então aprenda paciência, meu filho, e refreie o seu temperamento. O seu tempo virá logo.

- Senhor?

Toranaga ficou subitamente cansado de ser paciente. Olhou para o céu.

- Acho que vou dormir um pouco.

Imediatamente Naga tirou a sela e a manta do cavalo, e estendeu-as no chão como cama de samurai. Toranaga agradeceulhe e observou suas sentinelas. Quando se certificou de que estava tudo correto e seguro, deitou-se e fechou os olhos.

Mas não queria dormir, apenas pensar. Sabia que era um sinal extremamente mau ele ter perdido a calma. Você tem sorte de ter sido apenas diante de Naga, que não entende nada de nada, disse a si mesmo. Se isso tivesse acontecido perto de Omi, ou de Yabu, eles teriam percebido imediatamente que você está quase louco de preocupação. E tal conhecimento poderia facilmente induzi-los à traição. Você teve sorte desta vez. Tetsu-ko ajudou a colocar tudo nas devidas proporções. Não fosse ela, você poderia ter deixado outros presenciarem a sua cólera e isso teria sido insanidade.

Que belo vôo! Aprenda com ela. Naga tem que ser tratado como um falcão. Ele não guincha e se debate como o melhor dos falcões? O único problema de Naga é que está sendo lançado contra a caça errada. Sua caça é o combate e a morte repentina, o ele terá isso dentro de muito breve.

A ansiedade de Toranaga começou a voltar. O que estará acontecendo em Osaka? Calculei pessimamente o comportamento dos daimios - quem aceitaria e quem rejeitaria a convocação. Por que não fui informado? Estou sendo traído? Tantos perigos ao meu redor...

E o Anjin-san? É um falcão também. Mas ainda não está domado, como alegam Yabu e Mariko. Qual é a presa dele? É o Navio Negro, o anjin Rodrigues, o feio e arrogante capitãozinho-mor que não vai durar muito tempo, todos os padres de hábito preto, todos os padres peludos e fedorentos, todos os portugueses, espanhóis e turcos, sejam estes quem forem, e islamitas, sejam quem forem, não esquecendo Omi, Yabu, Buntaro, Ishido e eu.

Toranaga virou-se para se pôr mais confortável e sorriu consigo mesmo. Mas o Anjin-san não é um falcão de asas longas, um gavião de engodo, que você faz voar acima de você para mergulhar sobre uma presa particular. É mais como um gavião de asas curtas, um gavião de punho, que você faz voar diretamente do punho para matar qualquer coisa que se mova, digamos um milhafre que pegará uma perdiz ou uma lebre com três vezes o próprio peso, ratos, gatos, cães, galinholas, estorninhos, gralhas-calvas, alcançando-os com pequenas arremetidas de uma velocidade fantástica para matar com uma única compressão das garras; o gavião que detesta o capuz e não o aceita; apenas se senta sobre o pulso, arrogante, perigoso, auto-suficiente, impiedoso, de olhos amarelos, um excelente amigo ou de um traiçoeiro mau humor, dependendo do momento.

Sim, o Anjin-san é um asas-curtas. Contra quem eu o lanço?

Omi? Ainda não.

Yabu? Ainda não.

Buntaro?

Por que será, na realidade, que o Anjin-san foi atrás de Buntaro com pistolas? Por causa de Mariko, claro. Mas será que "travesseiraram"? Tiveram muitas oportunidades. Acho que sim. "Pródigo", disse ela naquele dia. Nada de errado no "travesseiro" deles - Buntaro era tido como morto -, desde que seja um segredo perpétuo. Mas o Anjin-san foi estúpido de se arriscar tanto pela mulher de outro homem. Não há sempre mil outras, livres e intocadas, igualmente bonitas, igualmente pequenas ou grandes, excelentes ou raras, ou bem-nascidas ou seja o que for, sem o risco de pertencerem a mais alguém? Agiu como um bárbaro estúpido e ciumento. Lembra-se do anjin Rodrigues? Não duelou e matou outro bárbaro, de acordo com o costume deles, só para tomar a filha de um mercador de classe baixa, com quem depois se casou em Nagasaki? O taicum não deixou esse assassinato impune, contra o meu conselho, porque era apenas a morte de um bárbaro e não de um dos nossos? Estupidez ter duas leis, uma para nós, outra para eles. Devia haver apenas uma. Tem que haver apenas uma lei.

Não, não vou lançar o Anjin-san contra Buntaro. Preciso desse imbecil. Mas tenham aqueles dois "travesseirado" ou não, espero que o pensamento nunca ocorra a Buntaro. Caso ocorresse eu teria que eliminá-lo rapidamente, pois força alguma na terra o impediria de matar o Anjin-san e Mariko-san, e eu preciso deles mais do que de Buntaro. Devo eliminar Buntaro agora?

No momento em que Buntaro ficara sóbrio, Toranaga mandara chamá-lo.

- Como se atreve a colocar o seu interesse diante do meu? Quanto tempo Mariko-san permanecerá incapaz de interpretar?

- O médico disse alguns dias, senhor. Peço desculpas por todo o incômodo!

- Deixei bem claro que precisava dos serviços dela por mais vinte dias. Não se lembra?

- Sim. Sinto muito.

- Se ela lhe desagradou, alguns tapas nas nádegas seriam mais que suficientes. Toda mulher precisa disso de vez em quando, mas mais do que isso é grosseria. Egoisticamente você pos em perigo o treinamento e comportou-se como um camponês bovino.

Sem ela não posso conversar com o Anjin-san.

- Sim. Eu sei, senhor. Desculpe. Foi a primeira vez que bati nela. É só que... às vezes ela me põe louco, tanto que... que parece que não consigo enxergar.

- Por que não se divorcia, então? Ou a manda embora? Ou a mata, ou lhe ordena que corte a garganta quando eu não tiver mais uso para ela?

- Não posso. Não posso, senhor - dissera Buntaro. - Ela é... eu a desejei desde o primeiro instante em que a vi. Quando nos casamos, a primeira vez, ela foi tudo o que um homem poderia desejar. Pensei ter sido abençoado... o senhor se lembra de como cada daimio do reino a queria! Depois... depois mandei-a embora para protegê-la, após o vil assassinato, fingindo estar desgostoso com ela pela sua segurança, e depois, quando o taicum me disse que a trouxesse de volta, anos mais tarde, ela me excitava ainda mais. A verdade é que eu esperava que ela fosse grata, e tornei-a como um homem o faz, sem me importar com essas coisinhas que uma mulher quer, como poemas e flores. Mas ela havia mudado. Estava tão fiel como sempre, mas apenas gelo, sempre pedindo a morte, que eu a matasse. Buntaro estava fora de si. - Não posso matá-la nem permitir-lhe que se mate. Ela maculou o meu filho e me fez detestar outras mulheres, mas não consigo me livrar dela. Eu... eu tentei ser gentil, mas o gelo está sempre lá e isso me enlouquece. Quando voltei da Coréia e fui informado de que ela se convertera a essa absurda religião cristã, achei graça, pois o que importa qualquer religião estúpida? Eu ia arreliá-la sobre isso, mas antes que soubesse o que estava acontecendo eu já estava com a faca na garganta dela e jurando que a cortaria se ela não renunciasse à religião. Claro que ela não renunciaria, que samurai o faria sob tal ameaça, neh? Simplesmente olhou-me com aqueles seus olhos e me disse que prosseguisse. "Por favor, corte-me, senhor", disse ela. "Pronto, deixe-me inclinar a cabeça para trás para o senhor. Rezo a Deus para sangrar até a morte." Não a degolei, senhor. Tomei-a. Mas cortei o cabelo e as orelhas de algumas das damas que a haviam encorajado a tornar-se cristã e expulsei-as do castelo. E fiz o mesmo com a mãe adotiva dela, e também cortei o nariz daquela velha bruxa repulsiva! E depois Mariko disse que, como... como eu havia punido as suas damas, na próxima vez em que fosse à sua cama sem ser convidado ela cometeria seppuku, do modo que pudesse, imediatamente... apesar do dever para com o senhor, apesar do dever para com a família, mesmo apesar do... dos mandamentos do Deus cristão dela! - Lágrimas de cólera escorriam-lhe despercebidas pelas faces. - Não posso matá-la, por mais que deseje. Não posso matar a filha de Akechi Jinsai por mais que ela o mereça...

Toranaga deixara Buntaro falar até ficar esgotado, depois dispensara-o, ordenando-lhe que ficasse totalmente longe de Mariko até que ele considerasse o que devia ser feito. Enviou o seu médico pessoal para examiná-la. O relatório foi favorável: escoriações, mas nenhum dano interno.

Pela sua própria segurança, porque esperava traição e a areia do tempo estava correndo, Toranaga resolveu aumentar a pressão sobre todos eles. Ordenou que Mariko fosse para a casa de Omi, que ficasse dentro dos limites da casa e completamente fora do caminho do Anjin-san. Depois convocara o Anjin-san e fingira irritação, quando era claro que os dois mal podiam conversar, dispensando-o peremptoriamente. O treinamento todo foi intensificado. Pelotões foram enviados em marchas forçadas. Naga recebeu ordem de levar junto o Anjin-san e fazê-lo andar até cair. Mas Naga não conseguiu derrubá-lo.

Então ele mesmo tentou. Comandou um batalhão durante onze horas pelas colinas. O Anjin-san agüentou, não com a fileira da frente, mas agüentou. De volta a Anjiro, o Anjin-san dissera na sua algaravia quase incompreensível, quase incapaz de se manter em pé:

- Toranaga-sama, eu andar posso. Eu armas treinamento posso. Sinto muito, não possível dois ao mesmo tempo, neh?

Toranaga sorria agora, deitado sob o céu nublado, esperando pela chuva, animado pelo jogo de domar Blackthorne. Ele é um asas-curtas. Mariko é igualmente vigorosa, igualmente inteligente, mas mais brilhante, e tem uma falta de piedade que ele nunca terá. Ela é como um peregrinus, como Tetsuko. O melhor. Por que será que a fêmea do falcão é sempre maior, mais veloz e mais forte do que o macho, sempre melhor do que o macho?

São todos gaviões - ela, Buntaro, Yabu, Omi, Ochiba, Naga e todos os meus filhos, filhas, mulheres e vassalos, e todos os meus inimigos -, todos gaviões, ou presa para gaviões.

Preciso pôr Naga em posição bem acima da sua presa e deixá-lo se arremessar. Quem deveria ser? Omi ou Yabu?

O que Naga disse sobre Yabu é verdade.

- Então, Yabu-san, o que decidiu? - perguntara ele no segundo dia.

- Não vou a Osaka até que o senhor vá. Ordenei que Izu inteira se mobilizasse.

- Ishido o impedirá.

- Ele o impedirá primeiro, senhor, e se o Kwanto cair, Izu cai. Fiz um acordo solene com o senhor. Estou do seu lado. Os Kasigi honram os seus acordos.

- Fico igualmente honrado em tê-lo como aliado - mentira ele, satisfeito de que Yabu tivesse feito, mais uma vez, o que ele planejara que fizesse.

No dia seguinte Yabu reunira uma tropa e pedira-lhe que a revistasse e então, diante de todos os seus homens, ajoelhara-se formalmente e se oferecera como vassalo.

- Reconhece-me como seu senhor feudal? - perguntara Toranaga.

- Sim. E todos os homens de Izu. E, senhor, por favor, aceite este presente como um símbolo de dever filial. - Ainda de joelhos, Yabu lhe estendera a espada Murasama. - Esta é a espada que assassinou seu avô.

- Não é possível!

Yabu contara-lhe a história da espada, como viera até ele através dos anos e como, apenas recentemente, ele soubera da sua verdadeira identidade. Toranaga mandara chamar Suwo. O velho contara-lhe o que testemunhara quando não era mais que um menino.

- É verdade, senhor - dissera com orgulho. - Nenhum homem viu o pai de Obata quebrar a espada ou atirá-la no mar. E juro, pela minha esperança de renascer samurai, que servi a seu avô, o Senhor Chikitada. Servi a ele fielmente até o dia em que morreu. Eu estava lá, juro.

Toranaga aceitara a espada. Ela pareceu estremecer com malignidade na sua mão. Ele sempre zombara da lenda de que certas espadas possuíam uma urgência própria de matar, que algumas espadas precisavam saltar da bainha para beber sangue, mas agora Toranaga acreditava nisso.

Estremeceu, lembrando-se daquele dia. Por que as lâminas Murasama nos odeiam? Uma matou meu avô. Outra quase me cortou o braço quando eu tinha seis anos, um acidente inexplicado, ninguém por perto, mas ainda assim o meu braço direito foi atingido e quase até a morte. Uma terceira decapitou meu primeiro filho.

- Senhor - dissera Yabu -, esta lâmina infame não devia poder viver, neh? Deixe-me atirá-la ao mar, a fim de que pelo menos esta não possa nunca ameaçar o senhor ou os seus descendentes.

- Sim ... sim - resmungara ele, grato por Yabu ter feito a sugestão. - Faça isso agora! - E foi só quando a espada afundou, bem profundamente, testemunhada pelos seus próprios homens, que seu coração recomeçara a bater normalmente. Agradecera a Yabu, ordenara que os impostos fossem estabilizados em sessenta partes para os camponeses, quarenta para os seus senhores, e dera-lhe Izu como feudo. Portanto, continuava tudo como antes, exceto que agora o poder todo em Izu pertencia a Toranaga, se ele desejasse torná-lo de volta.

Toranaga virou-se para abrandar a dor no braço da espada e se acomodou mais confortavelmente, saboreando o contato com a terra, ganhando forças dela, como sempre.

Aquela lâmina se foi, para nunca mais voltar. Ótimo, mas lembre-se do que o velho adivinho chinês predisse, pensou ele: que você morreria pela espada. Mas espada de quem, e seria pela minha própria mão ou pela de outro?

Saberei quando souber, disse-se ele, sem medo.

Agora durma. Karma é karma. Seja de Zen. Lembre-se, em tranqüilidade, de que o Absoluto, o Tao, está dentro de você, que nenhum padre, culto, dogma, livro, dito, ensino ou professor se ergue entre você e ele. Saiba que o Bem e o Mal são irrelevantes, e Eu e Você irrelevantes, Dentro e Fora irrelevantes, assim como a Vida e a Morte. Entre na Esfera onde não há medo da morte nem esperança de pós-vida, onde você é livre dos obstáculos da vida ou de necessidades de salvação. Você é, em si mesmo, o Tao. Seja você, agora, uma rocha contra a qual as ondas da vida se lançam em vão...

O grito débil trouxe Toranaga de volta da sua meditação e ele se pôs de pé com um salto. Naga apontava excitadamente para oeste. Todos os olhos seguiram-lhe a indicação.

O pombo-correio voava em linha reta para Anjiro, vindo do oeste. Pousou esvoaçando numa árvore distante para descansar um momento, depois levantou vôo de novo quando a chuva começou a cair.

Longe a oeste, no rastro do pombo, ficava Osaka.


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