CAPÍTULO 3


Yabu deitou-se no banho quente, mais contente e confiante do que jamais estivera na vida. O navio pusera à mostra sua riqueza e essa riqueza dava-lhe um poder que ele nunca sonhara possível.

- Quero que tudo seja levado para terra amanhã - dissera.

- Recoloquem os mosquetes nos engradados. Camuflem tudo com redes ou sacos de aniagem.

Quinhentos mosquetes, pensou exultante. Com mais pólvora e balas do que Toranaga tem em todas as Oito Províncias. E vinte canhões. Cinco mil balas de canhão, uma abundância de munição. Tudo da melhor qualidade européia.

- Mura, você providenciará carregadores. Igurashi-san, quero todo este armamento, inclusive os canhões, no meu castelo de Mishima o mais breve possível e em segredo. Você será responsável.

- Sim, senhor. - Estavam no porão principal do navio, e todos o fitavam boquiabertos: Igurashi, um homem alto, flexível, de um olho só, seu principal assistente, Zukimoto, seu mestre quarteleiro, junto com dez aldeães cobertos de suor que haviam aberto os engradados sob a supervisão de Mura, e sua guarda pessoal de quatro samurais. Sabia que eles não compreendiam a sua alegria ou a necessidade de agirem às ocultas. Bom, pensou.

Quando os portugueses chegaram pela primeira vez ao Japão, em 1542, introduziram os mosquetes e a pólvora. Dezoito meses depois os japoneses os estavam fabricando. A qualidade não era tão boa quanto a do equivalente europeu, mas isso não tinha importância, porque as armas foram consideradas meramente como uma novidade e, por um longo tempo, usadas apenas para a caça - e mesmo para isso os arcos eram muito mais precisos. Além disso, o mais importante, a arte bélica japonesa era quase ritual: combate individual corpo a corpo, sendo a espada a arma mais honrosa. O uso de armas de fogo foi considerado covarde e desonroso, e completamente contra o código dos samurais, o bushido, o Caminho do Guerreiro, que compelia os samurais a lutar com honra, viver com honra, e morrer com honra; a ter uma eterna e inquestionável lealdade ao seu senhor feudal; a não temer a morte - procurá-la, mesmo, em seu serviço; e a ter orgulho do próprio nome e mantê-lo imaculado.

Durante anos Yabu tivera uma teoria secreta. Finalmente, pensou exultante, você pode desenvolvê-la e pô-la em prática.

Quinhentos samurais escolhidos, armados com mosquetes, mas treinados como uma unidade, atuando como ponta de lança para os seus doze mil soldados convencionais, apoiados por vinte canhões usados de um modo especial por homens especiais, igualmente treinados como uma unidade. Uma nova estratégia para uma nova era! Na guerra que se aproxima, as armas de fogo talvez sejam decisivas!

E o bushido? perguntavam-lhe sempre os espíritos de seus ancestrais.

E o bushido? perguntava-lhes ele sempre de volta.

Nunca lhe responderam.

Nunca, nem em seus sonhos mais extravagantes, pensara que jamais teria recursos para conseguir quinhentas armas. Mas agora as tinha de graça e só ele sabia como usá-las. Mas a favor de que lado? O de Toranaga ou de Ishido? Ou deveria esperar, e talvez ser o eventual vencedor?

- Igurashi-san, você viajará à noite e manterá segurança estrita.

- Sim, senhor.

- Isto deve permanecer em segredo, Mura, ou a aldeia será eliminada.

- Não se dirá nada, senhor. Posso falar pela minha aldeia. Não posso falar pela viagem ou por outras aldeias. Quem pode saber onde há espiões? Mas por nós nada será dito.

Depois Yabu fora até a sala-forte. Continha o que presumiu que fosse pilhagem pirata: placas de ouro e prata, cálices, candelabros e ornamentos, algumas pinturas religiosas em molduras ornamentadas. Um baú continha roupas de mulher, elaboradamente bordadas a fio de ouro e pedras coloridas.

- Fundirei a prata e o ouro em lingotes e os porei no tesouro - dissera Zukimoto. Era um homem hábil, pedante, na casa dos quarenta anos, que não era samurai. Anos antes fora um sacerdote-guerreiro budista, mas o taicum, o Senhor Protetor, havia aniquilado o seu mosteiro numa campanha para expurgar a terra de certos mosteiros e seitas budistas de guerreiros militantes, que não aprovavam sua soberania absoluta. Por meio de suborno Zukimoto conseguira escapar daquela morte prematura e se tornara mascate, em seguida um pequeno mercador de arroz. Há dez anos juntara-se ao comissariado de Yabu e agora era indispensável.

- Quanto às roupas, talvez o fio de ouro e as gemas tenham valor. Com a sua permissão, vou mandar empacotá-las e enviá-las a Nagasaki, com alguma coisa mais que eu possa aproveitar. - O porto de Nagasaki, na costa extremo-meridional da ilha de Kyushu, ao sul, era o entreposto e mercado legal dos portugueses. - Os bárbaros talvez paguem bem por essas bugigangas.

- Bom. E quanto aos fardos no outro porão?

- Todos contém um tecido pesado. Praticamente inútil para nós, senhor, sem nenhum valor comercial em absoluto. Mas isto deve agradar-lhe. - Zukimoto abrira a caixa-forte. A caixa continha vinte mil moedas de prata cunhadas. Dobrões espanhóis. Da melhor qualidade.

Yabu mexeu-se na água. Enxugou o suor do rosto e do pescoço com a toalhinha branca e mergulhou mais fundo no banho quente perfumado. Se há três dias, disse ele a si mesmo, um adivinho tivesse antecipado que tudo isto aconteceria, você lhe teria comido a língua por dizer mentiras impossíveis.

Três dias atrás ele estava em Yedo, a capital de Toranaga. A mensagem de Omi chegara ao pôr-do-sol. Evidentemente o navio tinha que ser investigado de imediato. Mas Toranaga ainda se encontrava em Osaka para a confrontação final com o Senhor General Ishido e, na sua ausência, convidara Yabu e todos os daimios amigos da vizinhança a esperar até que retornasse. Um convite assim não podia ser recusado sem sinistros resultados.

Yabu sabia que ele e os outros daimios independentes e respectivas famílias eram meramente proteção adicional à segurança de Toranaga e, embora naturalmente a palavra jamais devesse ser usada, eram reféns contra o regresso de Toranaga da inexpugnável fortaleza do inimigo em Osaka, onde o encontro estava se realizando. Toranaga era presidente do conselho de regentes que o taicum designara no seu leito de morte para governar o império durante a minoridade de seu filho Yaemon, agora com sete anos de idade. Havia cinco regentes, todos eminentes daimios, mas apenas Toranaga e Ishido tinham poder efetivo.

Yabu considerara cuidadosamente todas as razões para ir a Anjiro, os riscos envolvidos, e as razões para ficar. Depois mandara chamar a esposa e a consorte favorita. Uma consorte era uma amante formal, legal. Um homem podia ter tantas quantas quisesse, mas apenas uma esposa de cada vez.

- Meu sobrinho Omi acaba de me enviar uma mensagem secreta falando que um navio bárbaro aportou em Anjiro.

- Um dos Navios Negros? - perguntara a esposa, excitada.

Referia-se aos imensos e incrivelmente ricos navios mercantes que, levados pelas monções, cobriam anualmente o percurso entre Nagasaki e a colônia portuguesa de Macau, que ficava a quase mil milhas ao sul, na China continental.

- Não. Mas talvez seja rico também. Vou partir imediatamente. Você deve dizer que fiquei doente e não posso ser perturbado por motivo algum. Estarei de volta dentro de cinco dias.

- Isso é incrivelmente perigoso - advertiu-o a esposa. - O Senhor Toranaga deu ordens específicas para que ficássemos. Estou certa de que ele fará outro acordo com Ishido e é poderoso demais para ser insultado. Senhor, nunca poderíamos ter certeza de que ninguém suspeitaria da verdade, há espiões por toda parte. Se Toranaga regressasse e descobrisse que o senhor partiu, sua ausência seria mal interpretada. Seus inimigos lhe envenenariam a mente contra o senhor.

- Sim - acrescentara a consorte. - Por favor, desculpe-me, mas o Senhor Toranaga nunca acreditaria que o senhor lhe desobedeceu apenas para examinar um navio bárbaro. Por favor, mande outra pessoa.

- Mas não se trata de um navio bárbaro comum. Não é português. Ouçam-me. Omi diz que é de um país diferente. Os homens falam entre si uma língua de som diferente, e têm olhos azuis e cabelos dourados.

- Omi-san ficou louco. Ou tomou saquê demais - dissera a esposa.

- Isto é importante demais para brincadeiras, tanto dele quanto suas.

A esposa se curvara, pedira desculpas e dissera que ele estava absolutamente certo em corrigi-la, mas que a observação não visava à troça. Ela era uma mulher pequena, magra, dez anos mais velha do que ele, que lhe dera um filho por ano durante oito anos até que seu útero murchasse, e dos filhos, cinco foram homens. Três haviam-se tornado guerreiros e morrido bravamente na guerra contra a China. Outro se tornara sacerdote budista e o último, agora com dezenove anos, era desprezado pelo pai.

A esposa, Senhora Yuriko, era a única mulher que ele jamais temera, a única a que jamais dera valor - com exceção da mãe, já falecida -, e que governava a casa com açoite de seda.

- Desculpe-me novamente, por favor - disse ela. – Omi-san entrou em pormenores sobre a carga?

- Não. Não a examinou, Yuriko-san. Diz que, como o navio era tão incomum, lacrou-o imediatamente. Nunca houve um navio não português, neh? Diz também que é um navio de guerra. Com vinte canhões nos conveses.

- Ah! Então alguém deve ir imediatamente.

- Vou eu mesmo.

- Por favor, reconsidere. Mande Mizuno. Seu irmão é inteligente e prudente. Imploro-lhe que não vá.

- Mizuno é fraco e não merece confiança.

- Então ordene-lhe que cometa seppuku e dê um jeito nele - disse ela asperamente. Seppuku, às vezes chamado de haraquiri, o suicídio ritual por estripamento, era o único modo de um samurai expiar com honra uma vergonha, um pecado, ou uma falta, e era prerrogativa exclusiva da casta dos samurais. Todos eles - tanto homens quanto mulheres - eram preparados desde a infância, tanto para o ato mesmo quanto para participar da cerimônia como auxiliar. As mulheres cometiam seppuku somente com uma faca na garganta.

- Mais tarde, não agora - disse Yabu à esposa.

- Então mande Zukimoto. Ele, com certeza, merece confiança.

- Se Toranaga não tivesse ordenado que todas as esposas e consortes também permanecessem aqui, eu mandaria você. Mas isso também seria muito arriscado. Tenho que ir. Não tenho opção. Yuriko-san, você me diz que meu tesouro está vazio. Diz que não tenho mais crédito com os imundos usurários. Zukimoto diz que estamos cobrando o imposto máximo dos meus camponeses. Preciso ter mais cavalos, equipamentos, armas, e mais samurais. Talvez o navio forneça os meios.

- As ordens do Senhor Toranaga foram absolutamente claras, senhor. Se ele voltar e descobrir...

- Sim. Se ele voltar, senhora. Ainda acho que ele se colocou numa armadilha. O Senhor Ishido tem oitenta mil samurais apenas no Castelo de Osaka e em torno dele. Toranaga ir até lá com umas poucas centenas de homens foi atitude de um louco.

- Ele é muito astuto para se arriscar desnecessariamente - disse ela confiante.

- Se eu fosse Ishido e o tivesse no meu laço, eu o mataria imediatamente.

- Sim - disse Yuriko -, mas a mãe do herdeiro ainda está como refém em Yedo até que Toranaga regresse. O Senhor General Ishido não vai ousar tocar em Toranaga até que ela esteja de volta, em segurança, a Osaka.

- Eu o mataria. Não faz diferença que a Senhora Ochiba viva ou morra. O herdeiro está a salvo em Osaka. Com Toranaga morto, a sucessão é certa. Toranaga é a única ameaça real ao herdeiro, o único com a possibilidade de usar o conselho de regentes, usurpar o poder do taicum e matar o menino.

- Por favor, desculpe-me, senhor, mas talvez o Senhor General Ishido consiga o apoio dos outros três regentes e desacredite Toranaga, e esse é o fim de Toranaga, neh? - disse a consorte.

- Sim, senhora, se Ishido pudesse ele o faria, mas não acho que possa. Ainda. Nem Toranaga. O taicum escolheu os cinco regentes de modo muito inteligente. Desprezaram-se tanto, uns aos outros, que é quase impossível se porem de acordo em qualquer coisa. - Antes de tomar o poder, os cinco grandes daimios haviam publicamente jurado fidelidade eterna ao taicum moribundo, ao seu filho e aos seus desígnios. Haviam prestado juramentos públicos, sagrados, de concordar quanto a um critério de unanimidade no conselho, e feito o voto de entregar o reino intacto a Yaemon quando este atingisse o décimo quinto aniversário. - Critério de unanimidade significa que nada pode ser realmente mudado até que Yaemon herde.

- Mas algum dia, senhor, quatro regentes se unirão contra um, por ciúme, medo ou ambição, neh? Os quatro vão distorcer as ordens do taicum o suficiente para conseguirem a guerra, neh?

- Sim. Mas será uma guerra curta, senhora, e esse um sempre será esmagado e suas terras divididas pelos vencedores, que terão, então, que designar um quinto regente e, com o tempo, serão quatro contra um e novamente um será esmagado e suas terras confiscadas, tudo conforme o que o taicum planejou. Meu único problema é decidir quem será o um desta vez, Ishido ou Toranaga.

- É Toranaga quem vai ficar isolado.

- Por quê?

- Os outros o temem demais porque todos sabem que ele, secretamente, quer ser shogun, por mais que proteste o contrário.

Shogun era o último posto que um mortal podia atingir no Japão. "Shogun" significava supremo ditador militar. Apenas um daimio de cada vez podia possuir o título. E apenas Sua Alteza Imperial, o imperador reinante, o Divino Filho do Céu, que vivia segregado com as famílias imperiais em Kyoto, podia outorgar o título.

Com a atribuição do título de shogun, vinha o poder absoluto - o selo e o mandato do imperador. O shogun governava em nome do imperador. Todo poder derivava do imperador, porque ele descendia diretamente dos deuses. Portanto, todo daimio que se opusesse ao shogun estava automaticamente em revolta contra o trono, era imediatamente banido e todas as suas terras confiscadas.

O imperador reinante era adorado como divindade porque era descendente em linha direta da deusa do Sol, Amaterasu Omikami, um dos filhos dos deuses Izanagi e Izanami, que, do firmamento, haviam formado as ilhas do Japão. Por direito divino, o imperador reinante possuía toda a terra, reinava e era obedecido sem contestação. Mas na prática há mais de seis séculos o poder efetivo provinha de trás do trono.

Seis séculos atrás houvera um cisma quando duas das três grandes famílias samurais rivais, semi-reais - Minowara, Fujimoto e Takashima -, apoiaram pretendentes rivais ao trono e mergulharam o reino numa guerra civil. Depois de sessenta anos os Minowara prevaleceram sobre os Takashima, e os Fujimoto, a família que permanecera neutra, esperaram sua vez.

A partir daí, ciosamente preservando o próprio poder, os shoguns Minowara dominaram o reino, decretaram a hereditariedade do seu shogunato e começaram a casar algumas filhas com a linhagem imperial. O imperador e toda a corte imperial eram mantidos completamente isolados em palácios e jardins murados no pequeno enclave de Kyoto, muitas vezes na penúria, com as atividades perpetuamente limitadas a observar os rituais de xinto, a antiga religião animista do Japão, e a ocupações intelectuais, tais como caligrafia, pintura, filosofia e poesia.

A corte do Filho do Céu era fácil de dominar porque, embora possuísse toda a terra, não tinha rendimento. Somente os daimios, samurais, possuíam rendimentos e o direito a cobrar impostos.

Era por isso então que, embora todos os membros da corte imperial estivessem acima de todos os samurais em posição, viviam de um estipêndio atribuído à corte conforme o capricho do shogun, do kwampaku — o conselheiro-chefe civil — ou da junta militar governante no momento. Poucos eram generosos. Alguns imperadores tiveram até que negociar as próprias assinaturas por comida.

Muitas vezes não havia dinheiro suficiente para uma coroação. Os shoguns Minowara acabaram perdendo o poder para outros, os descendentes dos Takashima ou dos Fujimoto. E como as guerras civis continuassem ferrenhas através dos séculos, o imperador tornou-se cada vez mais um instrumento do daimio que fosse forte o bastante para tomar posse física de Kyoto. No momento em que o novo conquistador de Kyoto massacrava o shogun reinante e sua linhagem, devia - desde que fosse Minowara, Takashima ou Fujimoto -, com humildade, jurar fidelidade ao trono e, submisso, convidar o impotente imperador a lhe conceder o agora vago posto de shogun. Depois, como seus antecessores, tentaria estender o próprio poder para fora de Kyoto até ser, por sua vez engolido por outro. Imperadores casavam-se, abdicavam ou ascendiam ao trono conforme o capricho do shogun. Mas sempre a estirpe do imperador reinante permanecia inviolada e contínua.

De modo que o shogun era todo-poderoso. Até ser derrubado. Muitos foram depostos através dos séculos, enquanto o império se fragmentava em várias facções menores. Nos últimos cem anos, nenhum daimio isolado tivera poder suficiente para se tornar shogun. Doze anos antes o General Nakamura, camponês, tivera o poder e obtivera o mandato do atual imperador, Go Nijo.

Mas Nakamura não pôde ocupar o cargo de shogun, apesar do muito que o desejara, porque nascera camponês. Tivera que se contentar com o título civil, muito inferior, de kwampaku, conselheiro-chefe, e mais tarde, quando renunciara a esse título em favor do filho menor de idade, Yaemon - embora conservando o poder, como era de hábito -, tivera que se contentar com o de taicum. Por costume histórico, somente os descendentes das prolíferas, antigas e semidivinas famílias Minowara, Takashima e Fujimoto tinham direito ao posto de shogun.

Toranaga descendia dos Minowara. Yabu podia traçar a própria linhagem até um vago ramo secundário da família Takashima, o suficiente para uma conexão, se ele algum dia pudesse se tornar supremo.

- , senhora - disse Yabu -, claro que Toranaga quer ser shogun, mas nunca conseguirá. Os outros regentes o desprezam e temem. Neutralizam-no, conforme planejou o taicum. - Inclinou-se para frente e estudou a esposa atentamente. - Você diz que Toranaga vai perder para Ishido?

- Ficará isolado, sim. Mas no final não acho que perderá, senhor. Imploro-lhe que não desobedeça ao Senhor Toranaga, e não saia de Yedo apenas para examinar o navio bárbaro, não importa quão incomum Omi diga que ele é. Por favor, mande Zukimoto a Anjiro.

- E se o navio contiver um tesouro? Prata ou ouro? Você confiaria em Zukimoto ou em qualquer um dos nossos oficiais?

- Não - dissera a esposa.

Então, naquela noite, ele se insinuara para fora de Yedo secretamente, com apenas quinze homens, e agora tinha riqueza e poder para além de todos os seus sonhos, e cativos inigualáveis, um dos quais ia morrer naquela noite. Providenciara para que uma cortesã e um menino estivessem prontos para mais tarde.

Ao amanhecer, no dia seguinte, retornaria a Yedo. Ao pôr-do-sol, no dia seguinte, as armas e o tesouro iniciariam sua viagem secreta.

As armas! pensou ele, exultante. As armas e o plano, juntos, me darão poder para fazer Ishido vencer, ou Toranaga, seja quem for que eu escolha. Então me tornarei um regente, no lugar do perdedor, neh? Depois o regente mais poderoso. Por que não até shogun? Sim. Tudo é possível agora.

Deixou-se devanear agradavelmente. Como usar as vinte mil moedas de prata? Posso reconstruir o calabouço do castelo. E comprar cavalos especiais -para os canhões. E expandir a nossa rede de espionagem. E quanto a Ikawa Jikkyu? Será que mil moedas seriam suficientes para subornar os cozinheiros de Ikawa Jikkyu para envenená-lo? Mais que suficientes! Quinhentas, talvez até cem moedas, nas mãos certas, fosse muito. Nas mãos de quem?

O sol vespertino infiltrava-se obliquamente pela pequena janela aberta na parede de pedra. A água do banho estava muito quente, aquecida por uma lareira a lenha construída na parede interna. A casa era de Omi e se erguia numa pequena colina que dominava a aldeia e a enseada. O jardim dentro de seus muros era esmerado, sereno e suficiente.

A porta da sala de banho se abriu. O homem cego inclinou-se.

- Kasigi Omi-san me mandou, senhor. Sou Suwo, o massagista dele. - Era alto, muito magro e velho, com o rosto enrugado.

- Bom. - Yabu sempre tivera horror a ficar cego. Pelo que podia se lembrar, sempre tivera sonhos em que acordava na escuridão, sabendo que era dia, abrindo a boca para gritar, sabendo que era desonroso gritar, mas gritando assim mesmo. Depois o despertar verdadeiro e o suor escorrendo. Mas esse horror à cegueira pareceu aumentar-lhe o prazer de ser massageado pelo cego.

Viu a cicatriz de corte na têmpora direita do homem e a fenda profunda no crânio, logo abaixo dela. É um corte de espada, disse a si mesmo. Será que foi isso que causou a cegueira? Será que ele já foi samurai um dia? De quem? Será que é um espião?

Yabu sabia que o homem fora revistado muito cuidadosamente pelos seus guardas antes de ser autorizado a entrar, portanto não temia uma arma oculta. Sua estimada espada comprida estava ao seu alcance, uma lâmina antiga feita pelo mestre espadeiro Murasama. Observou o velho tirar o quimono de algodão e pendurá-lo sem procurar o suporte. Tinha mais cicatrizes de espada no peito. Sua tanga estava muito limpa. Ajoelhou-se, esperando pacientemente.

Yabu saiu do banho quando o outro ficou pronto e deitou-se no banco de pedra. O velho enxugou Yabu cuidadosamente, passou óleo perfumado nas mãos e começou a massagear os músculos do pescoço e das costas do daimio.

A tensão começou a desaparecer à medida que os dedos muito fortes se moviam sobre Yabu, esquadrinhando em profundidade com surpreendente habilidade.

- Isso é bom. Muito bom - disse um momento depois.

- Obrigado, Yabu-sama - disse Suwo. "Suma", que significava "senhor", era uma cortesia obrigatória quando alguém se dirigia a um superior.

- Você serve Omi-san há muito tempo?

- Há três anos, senhor. Ele é muito gentil com um homem velho.

- E antes disso?

- Vaguei de aldeia em aldeia. Alguns dias aqui, meio ano ali, como uma borboleta na brisa de verão. - A voz de Suwo era tão calmante quanto suas mãos. Decidira que o daimio queria conversar e esperou pacientemente pela próxima pergunta. Parte da sua arte era saber o que lhe era exigido e quando. Às vezes seus ouvidos lhe diziam isso, mas na maior parte delas eram os dedos que pareciam destrancar o segredo da mente do homem ou da mulher. Seus dedos estavam lhe dizendo que se acautelasse contra aquele homem, que ele era perigoso e inconstante, por volta dos quarenta anos, bom cavaleiro e excelente espadachim. Além disso que seu fígado estava mal e ele morreria dentro de dois anos. O saquê, e provavelmente os afrodisíacos, o matariam. - O senhor é forte para a sua idade, Yabu-sama.

- Você também. Quantos anos tem, Suwo?

O velho riu, mas seus dedos não paravam nunca.

- Sou o homem mais velho do mundo, do meu mundo. Todas as pessoas que conheci estão mortas há muito tempo. Devo ter mais de oitenta anos, não estou certo. Servi o Senhor Yoshi Chikitada, avô do Senhor Toranaga, quando o feudo do clã não era maior do que esta aldeia. Até me encontrava no acampamento no dia em que foi assassinado.

Yabu deliberadamente manteve o corpo relaxado com um esforço de vontade, mas sua mente se aguçou e ele começou a ouvir atentamente.

- Aquele foi um dia horrível, Yabu-sama. Não sei qual era a minha idade, mas minha voz ainda era firme. O assassino foi Obata Hiro, um filho do aliado mais poderoso dele. Talvez o senhor conheça a história, como o jovem decepou a cabeça do Senhor Chikitada com um único golpe de espada. Era uma lâmina Murasama, e foi isso o que deu início à superstição de que todas as lâminas Murasama trazem azar para o clã Yoshi.

Será que ele está me contando isso por causa da minha espada Murasama? - perguntou Yabu a si mesmo. Muita gente sabe que eu tenho uma. Ou é apenas um velho, lembrando-se de um dia especial na sua longa vida?

- Como era o avô de Toranaga? - perguntou, simulando falta de interesse, testando Suwo.

- Alto, Yabu-sama. Mais alto do que o senhor e muito mais magro quando o conheci. Tinha vinte e cinco anos no dia em que morreu. - A voz de Suwo animou-se. - Yabu-sama, ele aos doze anos já era um guerreiro, e nosso suserano aos quinze, quando seu pai foi morto numa escaramuça. Naquela época o Senhor Chikitada era casado e já havia gerado um filho. Foi uma pena que ele tivesse que morrer. Obata Hiro era amigo dele, assim como vassalo, tinha dezessete anos, mas alguém lhe envenenou a mente, dizendo que Chikitada planejara matar-lhe o pai traiçoeiramente. Claro que eram tudo mentiras, mas isso não trouxe Chikitada de volta para nos guiar. O jovem Obata ajoelhou-se diante do corpo e inclinou-se três vezes. Disse que fizera aquilo por respeito filial ao pai e agora desejava reparar o insulto a nós e ao nosso clã cometendo seppuku. Deram-lhe permissão. Primeiro lavou a cabeça de Chikitada com as próprias mãos e colocou-a em posição de reverência. Depois se rasgou de lado a lado e morreu bravamente com grande cerimônia, um dos nossos homens agindo como auxiliar e removendo-lhe a cabeça com um único golpe. Mais tarde o pai veio buscar a cabeça do filho e a espada Murasama. As coisas ficaram ruins para nós. O único filho do Senhor Chikitada foi levado como refém para algum lugar e sobre nossa parte do clã se abateram tempos de desgraça. Isso foi...

- Você está mentindo, velho. Você nunca esteve lá. - Yabu se voltara e estava encarando o homem, que ficara paralisado instantaneamente. - A espada foi quebrada e destruída depois da morte de Obata.

- Não, Yabu-sama. Essa é a lenda. Eu vi o pai chegar e pegar a cabeça e a espada. Quem quereria destruir uma obra de arte como aquela? Teria sido sacrilégio. O pai dele a recuperou.

- O que fez com ela?

- Ninguém sabe. Alguns dizem que a atirou no mar porque gostava do nosso Senhor Chikitada e o honrava como a um irmão. Outros dizem que a enterrou e que está à espera do neto, Yoshi Toranaga.

- O que você acha que ele fez com ela?

- Atirou-a no mar.

- Você viu?

- Não.

Yabu deitou-se novamente e os dedos recomeçaram o trabalho. O pensamento de que mais alguém sabia que a espada não fora quebrada excitou-o estranhamente. Você devia matar Suwo, disse a si mesmo. Por quê? Como poderia um cego reconhecer a lâmina? É parecida com qualquer outra lâmina Murasama, e o punho e a bainha foram trocados muitas vezes, ao longo dos anos. Ninguém pode saber que a sua espada é a espada, que passou de mão em mão com sigilo crescente à medida que o poder de Toranaga foi aumentando. Por que matar Suwo? O fato de ele estar vivo acrescenta um atrativo a mais, estimula você. Deixe-o vivo, você pode matá-lo a qualquer momento. Com a espada.

Esse pensamento agradou a Yabu enquanto se deixava devanear mais uma vez, muito confortavelmente. Um dia, breve, prometeu a si mesmo, serei poderoso o bastante para usar minha lâmina Murasama na presença de Toranaga. Um dia, talvez, contarei a ele a história da minha espada.

- O que aconteceu depois? - perguntou, querendo ser embalado pela voz do velho.

- Simplesmente caímos num período de desgraça. Aquele foi o ano da grande carestia, e com a morte do meu amo, fiquei ronin. - Os ronins eram samurais ou camponeses-soldados, sem terra ou sem amo, que, devido a desonra ou perda do amo, eram forçados a perambular pela terra até que algum outro senhor aceitasse seus serviços. Era difícil para um ronin encontrar novo trabalho. A comida era escassa, quase todos os homens eram soldados, e os estrangeiros raramente mereciam confiança. A maioria dos bandos de salteadores e corsários que infestavam a terra e a costa eram ronins. - Aquele ano foi muito ruim, assim como o ano seguinte. Combati para todo mundo, uma batalha aqui, uma escaramuça ali. Comida era a minha paga. Então ouvi dizer que havia comida em abundância em Kyushu e comecei a me dirigir para oeste. Naquele inverno encontrei um santuário. Dei um jeito para ser contratado por um mosteiro budista como guarda. Combati por eles durante meio ano, protegendo o mosteiro e seus campos de arroz contra os bandidos. O mosteiro ficava perto de Osaka e, naquela época, muito tempo antes de o taicum destruir a maior parte deles, os bandidos eram tão numerosos quanto mosquitos de brejo. Um dia caímos numa emboscada e fui abandonado como morto. Uns monges me acharam e curaram meu ferimento. Mas não puderam me devolver a vista. - Seus dedos se aprofundavam cada vez mais. - Colocaram-me junto de um monge cego, que me ensinou a fazer massagem e a ver de novo com os dedos. Agora meus dedos me dizem mais do que meus olhos diziam, acho.

"A última coisa que me lembro de ter visto com os olhos foi a boca escancarada do bandido e seus dedos macerados, a espada como um arco resplandecente e depois, depois do golpe, o aroma de flores. Vi o perfume em todas as suas cores, Yabu-sama. Isso tudo foi há muito tempo, muito antes de os bárbaros chegarem à nossa terra, cinqüenta, sessenta anos atrás, mas eu vi as cores do perfume. Vi o nirvana, acho, e num momento fugacíssimo, o rosto de Buda. A cegueira é um preço baixo para uma dádiva assim, neh?"

Não houve resposta. Suwo não esperava que houvesse. Yabu estava dormindo, conforme o planejado. Gostou da minha história, Yabu-sama? - perguntou Suwo silenciosamente, divertido como um velho devia estar. Foi tudo verdade, menos uma coisa. O mosteiro não ficava perto de Osaka, mas do outro lado da sua fronteira ocidental. O nome do monge? Su, tio do seu inimigo, Ikawa Jikkyu.

Eu poderia quebrar-lhe o pescoço com tanta facilidade, pensou. Seria um favor para Omi-san. Seria uma bênção para a aldeia. E retribuiria, em minúscula medida, a dádiva do meu benfeitor. Devo fazê-lo agora? Ou mais tarde?


Spillbergen estendeu as hastes de palha de milho, enfeixadas, o rosto retesado.

- Quem quer pegar primeiro?

Ninguém respondeu. Blackthorne parecia estar cochilando, encostado ao canto de onde não se movera. Era quase crepúsculo.

- Alguém tem que pegar primeiro - irritou-se Spillbergen.

- Vamos, não há muito tempo.

Haviam lhes dado comida e um barril de água, e outro barril como latrina. Mas nada com que lavar o lixo fedorento ou com que se limparem. E as moscas apareceram. O ar estava fétido, a terra lamacenta. A maioria dos homens se despira até a cintura, suando de calor. E de medo.

Spillbergen olhou de rosto em rosto. Voltou a Blackthorne.

- Por que você foi eliminado? Hein? Por quê?

Os olhos se abriram, estavam gelados.

- Pela última vez: eu ... não ... sei ...

- Não é justo. Não é justo.

Blackthorne voltou ao devaneio. Deve haver um meio de dar o fora daqui. Deve haver um meio de recuperar o navio. Aquele bastardo vai nos matar a todos no final, isso é tão certo como haver uma estrela do norte. Não há muito tempo, e fui eliminado porque eles têm algum fétido plano especial para mim.

Quando o alçapão se fechara, haviam todos olhado para ele, o alguém dissera:

- O que vamos fazer?

- Não sei - respondera ele.

- Por que você não deve ser escolhido?

- Não sei.

- Que o Senhor Jesus nos ajude - choramingara alguém.

- Tratem de dar um jeito nessa sujeira - ordenara ele.

- Empilhem a imundície ali!

- Não temos esfregões ou...

- Usem as mãos!

Fizeram como lhes ordenou, com ele os ajudando, e limparam o capitão-mor da melhor maneira que puderam.

- Você se sentirá bem agora.

- Como... como vamos escolher alguém? - perguntou Spillbergen.

- Não vamos. Vamos lutar com eles.

- Com quê?

- Iremos como ovelhas para o açougueiro? Você irá?

- Não seja ridículo, eles não me querem, não seria certo que eu fosse o escolhido.

- Por quê? - perguntou Vinck.

- Sou o capitão-mor.

- Com todo o respeito, senhor - disse Vinck ironicamente -, talvez devesse se oferecer como voluntário. Faz parte da sua posição.

- Ótima sugestão - disse Pieterzoon. - Apóio a proposta, por Deus!

Houve um assentimento geral e todos pensaram: Senhor Jesus, qualquer um, menos eu.Spillbergen começara a gritar e a dar ordens, mas viu os olhos impiedosos. Então parou e olhou firme para o chão, nauseado. Depois disse:

- Não. Não... não seria justo que alguém se oferecesse como voluntário. Vamos... nós... vamos tirar à sorte. Palhas, a que for mais curta do que as outras. Poremos nossas mãos... nos poremos nas mãos de Deus. Piloto, você segura as palhas.

- Não. Não quero ter nada a ver com isso. Digo que devemos combater.

- Eles nos matarão a todos. Você ouviu o que o samurai disse: nossas vidas serão poupadas, menos uma. - Spillbergen enxugou o suor do rosto e uma nuvem de moscas se levantou, para pousar de novo.

- Dêem-me água. É melhor que morra um do que todos nós.

Van Nekk encheu a cuia no barril e deu-a a Spillbergen.

- Somos dez. Incluindo você, Paulus - disse ele. - As possibilidades são boas.

- Muito bom, a menos que você seja o escolhido. - Vinck deu uma olhada em Blackthorne. - Podemos enfrentar aquelas espadas?

- Você consegue ir mansinho para o torturador se for o escolhido?

- Não sei.

- Vamos tirar à sorte - disse Van Nekk. - Deixemos que Deus decida.

- Pobre Deus! - disse Blackthorne. - As imbecilidades pelas quais é responsabilizado!

- De que outro modo escolher, então? - gritou alguém.

- Não escolhemos.

- Faremos como Paulus diz. Ele é o capitão-mor - disse Van Nekk. - Tiraremos à sorte. É melhor para a maioria. Vamos votar. Somos todos a favor?

Todos disseram que sim. Menos Vinck.

- Estou com o piloto. Para o inferno com essas palhas imundas!

Vinck acabara sendo persuadido. Jan Roper, o calvinista, conduzira as preces. Spillbergen quebrou os dez pedaços de palha com exatidão. Depois partiu um deles ao meio. Van Nekk, Pieterzoon, Sonk, Maetsukker, Ginsel, Jan Roper, Salamon, Maximillian Croocq e Vinck.

- Quem quer pegar o primeiro? - repetiu ele.

- Como vamos saber se... se aquele que pegar a palha errada, a curta, irá? Como vamos saber? - A voz de Maetsukker estava inflamada de terror.

- Não vamos saber. Não com certeza. Devíamos saber com certeza - disse Croocq, o rapaz.

- Isso é fácil - disse Jan Roper. - Juremos que o faremos em nome de Deus. Em nome dele. Mo... morrer pelos outros em nome dele. Então não há motivo de preocupação. O ungido como cordeiro de Deus irá diretamente para a glória eterna.

Todos concordaram.

- Vamos, Vinck. Faça como Roper diz.

- Muito bem. - Os lábios de Vinck estavam ressecados.

- Se... se... for eu... juro por Deus que irei com eles se... se eu pegar a palha errada. Em nome de Deus.

Todos o imitaram. Maetsukker estava tão assustado, que teve que ser instigado antes de afundar de volta no pântano do pesadelo que estava vivendo.

Sonk escolheu primeiro. Pieterzoon foi o segundo. Depois Jan Roper, em seguida Salamon e Croocq. Spillbergen sentiu-se morrer, porque haviam combinado que ele não escolheria e ficaria com a última palha, e agora as probabilidades estavam se tornando terríveis.

Ginsel estava salvo. Restavam quatro.

Maetsukker chorava abertamente, mas empurrou Vinck para o lado e pegou uma palha. Não conseguiu acreditar que não era ele o escolhido.

O pulso de Spillbergen tremia e Croocq ajudou-o a firmar o braço. Fezes escorriam-lhe despercebidas pelas pernas abaixo.

- Qual eu pego? - perguntava Van Nekk a si mesmo, desesperado. Oh, Deus me ajude! Mal podia ver as palhas através da névoa da sua miopia. Se ao menos pudesse ver, talvez tivesse uma pista para escolher. Qual?

Pegou a palha e trouxe-a bem junto aos olhos, para ver sua condenação com clareza. Mas a palha não era curta.

Vinck observou os próprios dedos escolhendo a penúltima palha, ela caiu no chão, mas todos viram que era a mais curta.

Spillbergen abriu a mão apertada e todos viram que a última palha era comprida. O capitão-mor desmaiou.

Ficaram todos olhando fixamente para Vinck. Desamparado, ele os olhou, sem os ver. Meio que sacudiu os ombros, meio que sorriu, afastou as moscas, distraído. E caiu. Abriram espaço para ele, mantendo-se a distância como se fosse um leproso.

Blackthorne ajoelhou-se no lodo, ao lado de Spillbergen.

- Está morto? - perguntou Van Nekk, numa voz quase inaudível.

Vinck soltou uma gargalhada estrepitosa, que os acabrunhou a todos, e parou, tão violentamente quanto começara.

- Sou eu quem... quem está morto - disse. - Estou morto!

- Não tenha medo. Você é o ungido de Deus. Está nas mãos de Deus - disse Jan Roper, a voz confiante.

- Sim - disse Van Nekk. - Não tenha medo.

- É fácil agora, não é? - Os olhos de Vinck foram de rosto em rosto, mas nenhum conseguiu sustentar-lhes a fixidez. Somente Blackthorne não desviou o olhar.

- Traga água, Vinck - disse tranqüilamente. - Vá até o barril e traga água. Vá.

Vinck encarou-o. Depois pegou a cuia, encheu-a de água e deu-a a ele.

- Senhor Jesus Deus, piloto - murmurou -, o que vou fazer?

- Primeiro me ajude com Paulus, Vinck! Faça o que eu digo! Ele vai ficar bom?

Vinck pôs de lado a própria aflição, ajudado pela calma de Blackthorne. O pulso de Spillbergen estava fraco. Vinck ouviu-lhe o coração, separou as pálpebras e observou um momento.

- Não sei, piloto. Jesus, não consigo pensar adequadamente. O coração dele está bem, acho eu. Precisa de uma sangria, mas... mas não tenho como... eu... eu ... não posso me concentrar... Dê-me... - Parou, exausto, sentou-se contra a parede. Um tremor começou a torturá-lo.

O alçapão se abriu.

Omi erguia-se cáustico contra o céu, seu quimono avermelhado pelo sol morrendo.

Vinck tentou mover as pernas, mas não conseguiu. Havia encarado a morte muitas vezes na vida, mas nunca como desta vez, passivamente. Fora decretada pelas palhas. Por que eu? urrava o seu cérebro. Não sou pior do que os outros e sou melhor do que muitos. Amado Deus do paraíso, por que eu?

Haviam baixado uma escada. Omi fez sinal para que o escolhido subisse, e rápido.

- Isogi! Vamos!

Van.Nekk e Jan Roper rezavam em silêncio, de olhos fechados. Pieterzoon não conseguia olhar. Blackthorne olhava fixamente para Omi e seus homens.

- Isogi! - vociferou Omi novamente.

Mais uma vez Vinck tentou se levantar.

- Ajude-me, alguém. Ajudem-me a me levantar!

Pieterzoon, que estava mais perto, curvou-se e passou a mão sob o braço de Vinck, ajudando-o a se erguer. Então Blackthorne foi para o pé da escada, os dois pés plantados firmemente na lama.

- Kinjiru! - berrou, usando a palavra do navio. Um arquejo precipitou-se pela cela. A mão de Omi apertou o punho da espada e ele se aproximou da escada. Imediatamente Blackthorne a girou, desafiando Omi a pôr um pé ali. - Kinjiru! - disse de novo.

Omi parou.

- O que está acontecendo? - perguntou Spillbergen, assustado, assim como todos os demais.

- Disse-lhe que é proibido! Nenhum homem da minha tripulação vai caminhar para a morte sem uma luta.

- Mas... mas nós combinamos!

- Eu não.

- Você ficou louco!

- Está certo, piloto - sussurrou Vinck. - Eu... nós combinamos e era justo. É a vontade de Deus. Eu vou... é... - Encaminhou-se às apalpadelas para o pé da escada mas Blackthorne permaneceu implacavelmente no caminho, encarando Omi.

- Você não vai sem uma luta. Ninguém vai.

- Afaste-se da escada, piloto! Estou lhe ordenando! - Spillbergen ficou tremulamente no seu canto, tão longe da abertura quanto possível. Sua voz soou estridente:

- Piloto!

Mas Blackthorne não estava ouvindo.

- Preparem-se!

Omi recuou um passo e gritou ordens ríspidas a seus homens.


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