CAPÍTULO 20


- Serei um maldito espanhol, se isto não é vida!

Blackthorne estava seraficamente deitado de bruços sobre espessos f utons, parcialmente envolto num quimono de algodão, a cabeça apoiada nos braços. A garota corria-lhe as mãos pelas costas, tateando-lhe os músculos ocasionalmente, amaciando-lhe a pele e o espírito, fazendo-o quase querer ronronar de prazer. Outra garota servia saquê num minúsculo cálice de porcelana. Uma terceira esperava de reserva, segurando uma bandeja de laca com um cesto de bambu cheio de peixe frito à moda portuguesa, outro frasco de saquê, e alguns pauzinhos.

- Nam desu ka, Anjin-san? O que é isso, Honorávei Piloto? O que disse?

- Não sei dizer isso em nihon-go. - Sorriu para a garota que oferecia o saquê. Apontou para o cálice. - Como se chama isto? Namae ka?

- Sabazuki. - Ela disse a palavra três vezes, ele repetiu, depois a outra garota, Asa, ofereceu o peixe e ele balançou a cabeça. - Iyé, domo. - Não sabia como dizer "estou satisfeito agora", então tentou dizer "não fome agora".

- Ah! Iama hara hette wa oranu - explicou Asa, corrigindo-o. Ele disse a frase várias vezes e todas riram com a sua pronúncia, mas ele acabou conseguindo fazê-la soar corretamente.

Nunca aprenderei essa língua, pensou ele. Não há nada com que relacionar os sons em inglês, em latim ou em português.

- Anjin-san? - Asa oferecia a bandeja novamente.

Ele balançou a cabeça e pousou gravemente a mão sobre o estômago. Mas aceitou o saquê e o tomou. Sono, a garota que lhe massageava as costas, havia parado. Ele lhe pegou a mão, colocou-a sobre o seu pescoço e fingiu suspirar de prazer. Ela compreendeu imediatamente e continuou a massageá-lo.

Cada vez que terminava o pequeno cálice, enchiam-no de novo imediatamente. É melhor ir devagar, pensou, este é o terceiro frasco e já posso sentir o calor nos artelhos.

As três garotas - Asa, Sono e Rako - haviam chegado com o amanhecer, trazendo chá, que Frei Domingo lhe dissera que os chineses às vezes chamavam de "t'ee", e que era a bebida nacional da China e do Japão. Seu sono fora intermitente após o embate com o assassino, mas a bebida quente e picante começara a restaurá-lo. Haviam trazido pequenas toalhas quentes e enroladas, levemente perfumadas. Como ele não soubesse para que serviam, Rako, a chefe das garotas, mostrou-lhe como usá-las no rosto e nas mãos.

Depois escoltaram-no com seus quatro guardas samurais até os banhos de vapor na extremidade daquela seção do castelo e o entregaram às criadas de banho. Os quatro guardas transpiraram estoicamente enquanto ele era lavado, sua barba aparada, o cabelo ensaboado e o corpo massageado.

Após o banho ele se sentira miraculosamente revigorado. Deram-lhe outro quimono de algodão, fresco e até os joelhos, tabis limpos, e as garotas o esperaram novamente. Levaram-no a outra sala, onde se encontravam Kiri e Mariko. Mariko disse que o Senhor Toranaga decidira mandar o Anjin-san para uma de suas províncias dentro de poucos dias a fim de que se recuperasse, que o Senhor Toranaga estava muito contente com ele e que não havia necessidade de se preocupar com nada, pois estava sob os cuidados pessoais do Senhor Toranaga agora. O Anjin-san, por favor, começaria a preparar os mapas com o material que ela providenciaria? Logo haveria outros encontros com o amo, que prometera que ela em breve estaria disponível para responder a qualquer pergunta que o Anjin-san quisesse fazer. O Senhor Toranaga estava muito ansioso para que Blackthorne aprendesse japonês, assim como estava ansioso por aprender sobre o mundo exterior, e sobre navegação. Em seguida Blackthorne fora conduzido até o médico. Ao contrário dos samurais, os médicos usavam cabelo cortado rente, sem rabo.

Blackthorne odiava os médicos e temia-os. Mas aquele era diferente. Era gentil e inacreditavelmente limpo. Os médicos europeus na maioria eram tacanhos barbeiros, cobertos de piolhos e imundos como todo mundo. Aquele médico tocou-o cuidadosamente, examinou-o polidamente e segurou o pulso de Blackthorne para sentir-lhe a pulsação, olhou-lhe dentro dos olhos, da boca e dos ouvidos, e bateu-lhe suavemente nas costas, joelhos e solas dos pés. Tudo o que um médico europeu queria era olhar a sua língua e dizer: "Onde é que dói?", e fazer-lhe uma sangria para libertar a impureza do seu sangue e dar-lhe um vomitório violento para eliminar as impurezas das suas entranhas.

Blackthorne detestava ser sangrado e tomar purgantes, e cada vez era pior que a precedente. Mas aquele médico não tinha escalpelos nem a tigela de sangria, nem o repugnante cheiro de substância química que normalmente os rodeava, por isso seu coração começara a bater mais devagar e ele relaxou um pouco.

Os dedos do médico tocaram-lhe as cicatrizes na coxa de modo inquisitivo. Blackthorne fez o som de um tiro, porque uma bala de mosquete lhe havia atravessado a carne muitos anos antes. O doutor disse:

- Ah so desu -, e assentiu com um gesto de cabeça. Mais apertos, profundos mas indolores, sobre os rins e o estômago. Finalmente o médico falou a Rako, que assentiu, curvou-se e agradeceu-lhe.

- Ichi ban? - perguntara Blackthorne, querendo saber se estava bem.

- Hai, Anjin-san.

- Honto ka?

Que palavra útil, honro! "É verdade?", "Sim, é verdade", pensou Blackthorne.

- Domo, doutor-san.

- Do itashimashité - disse o médico, curvando-se. Não há de quê.

Blackthorne retribuiu a mesura. As garotas o levaram embora e foi só quando se viu deitado sobre os futons, o quimono de algodão afrouxado, Sono relaxando-lhe as costas, que ele se lembrara de que estivera nu diante do médico, na frente das garotas e dos samurais, e que não notara isso nem se sentira envergonhado.

- Nan desu ka, Anjin-san? - perguntou Rako. O que é, Honorável Piloto? Por que ri? Os dentes brancos dela cintilavam. Tinha as sobrancelhas depiladas e pintadas num crescente. Usava o cabelo escuro preso no alto e um quimono rosa florido com um obi verde-cinza.

- Porque estou feliz, Rako-san. Mas como lhe dizer isso? Como lhe dizer que rio porque estou feliz e tirei o peso de cima da cabeça pela primeira vez desde que saí de casa? Porque minhas costas estão ótimas - eu me sinto inteiro ótimo. Porque tenho a consideração de Toranaga-sama e porque descarreguei três boas canhonadas contra os malditos jesuítas e mais seis contra os portugueses sifilíticos! - Depois ele se pôs de pé com um salto, amarrou o quimono, e começou desleixadamente a dançar uma hornpipe{2} entoando uma cantiga do mar para marcar o compasso.

Rako e as outras ficaram curiosas. A shoji se abriu imediatamente e os guardas samurais apareceram, de olhos arregalados. Blackthorne dançou e cantou vigorosamente até não conseguir mais se conter, então explodiu numa gargalhada e caiu. As garotas bateram palmas. Rako tentou imitá-lo e caiu, porque a cauda do quimono inibia-lhe os movimentos. As outras se levantaram e convenceram-no a mostrar-lhes como fazê-lo, e ele tentou, as três garotas em pé e alinhadas a observá-lo, segurando os quimonos levantados. Mas não conseguiram, e logo estavam todas tagarelando, dando risadinhas e se abanando.

Abruptamente os guardas ficaram solenes e fizeram uma profunda reverência. Toranaga apareceu na soleira, ladeado por Mariko, Kiri e seus sempre presentes guardas samurais. As garotas todas se ajoelharam, estenderam as mãos no chão e se curvaram, mas a risada não lhes abandonou o rosto, tampouco sentiram qualquer receio. Blackthorne curvou-se polidamente também, não tão baixo quanto as mulheres.

- Konnichi wa, Toranaga-sama - disse ele.

- Konnichi wa, Anjin-san - respondeu Toranaga. E fez uma pergunta.

- Meu amo pergunta o que está fazendo, senhor - disse Mariko.

- Era apenas uma dança, Mariko-san - disse Blackthorne, sentindo-se imbecil. - Chama-se hornpipe. É uma dança de marinheiros, que executamos, cantando cantigas simultaneamente. Eu só estava feliz... talvez tenha sido o saquê. Sinto muito, espero não ter perturbado Toranaga-sama.

Ela traduziu.

- Meu amo diz que gostaria de assistir à dança e ouvir a canção.

- Agora?

- Agora, naturalmente.

Imediatamente Toranaga sentou-se de pernas cruzadas e sua pequena corte se espalhou pela sala, olhando todos para Blackthorne, expectantes.

Aí está, seu imbecil, disse Blackthorne a si mesmo. É nisso que dá não se vigiar melhor. Agora tem que dançar e você sabe que sua voz é desafinada e dança de modo desajeitado.

Ainda assim, ele amarrou o quimono bem apertado e se atirou à dança com prazer, rodopiando, chutando, girando; pulando, sua voz rugindo vigorosamente.

Mais silêncio.

- Meu amo diz que nunca viu nada parecido em toda a sua vida.

- Arigato goziemashita! - disse Blackthorne, suando em parte pelo esforço, em parte pelo constrangimento. Então Toranaga pôs as espadas de lado, arregaçou o quimono até a cintura, e se postou ao lado dele.

- O Senhor Toranaga dançará a sua dança - disse Mariko.

- Hem?

- Por favor, ensine-lhe, diz ele.

Blackthorne começou. Demonstrou o passo básico, depois repetiu-o várias vezes. Toranaga aprendeu depressa. Blackthorne não ficou nem um pouco impressionado com a agilidade do velho barrigudo e senhor de um amplo traseiro.

Blackthorne começou a cantar e a dançar, e Toranaga imitou-o, tentativamente no começo, para alegria dos assistentes. Depois Toranaga atirou longe o quimono, cruzou os braços e começou a dançar com entusiasmo ao lado de Blackthorne, que também se livrou do quimono e cantou mais alto, marcando o tempo, quase dominado pelo grotesco do que estavam fazendo, mas contagiado agora pelo humor da situação. Finalmente Blackthorne deu uma espécie de salto, girou, pulou e estacou. Bateu palmas e curvou-se para Toranaga. Todos aplaudiram o amo, que estava muito contente.

Toranaga sentou-se no centro da sala, respirando com facilidade. Imediatamente Rako avançou para abaná-lo e as outras correram a buscar-lhe o quimono. Mas Toranaga empurrou o seu quimono na direção de Blackthorne e pegou o quimono simples do outro.

- Meu amo diz que teria muito prazer em que o senhor aceitasse isso como presente - disse Mariko. - Aqui se considera uma grande honra receber um quimono muito velho de um suserano.

- Arigato goziemashita, Toranaga-sama. - Blackthorne curvou-se profundamente, depois disse a Mariko: - Sim, compreendo a honra que ele me faz, Mariko-san. Por favor, agradeça ao Senhor Toranaga com as palavras formais corretas, que eu infelizmente ainda não sei, e diga-lhe que vou guardá-lo como um tesouro, e mais ainda à honra que ele me fez dançando a minha dança comigo.

Toranaga demonstrou uma satisfação ainda maior.

Reverentemente, Kiri e as criadas ajudaram Blackthorne a vestir o quimono do amo e mostraram-lhe como amarrar o sash. O quimono era de seda marrom, com cinco elmos escarlates, e o sash, de seda branca.

- O Senhor Toranaga diz que apreciou a dança. Um dia talvez lhe mostre algumas das nossas. Ele gostaria que o senhor aprendesse a falar.japonês tão rápido quanto possível.

- Eu também gostaria. - Mas gostaria ainda mais, pensou Blackthorne, de estar dentro das minhas próprias roupas, comendo minha comida, na minha cabina, no meu navio, com meus canhões armados, pistolas na cintura e o tombadilho coberto por uma infinidade de velas. - Quer perguntar ao Senhor Toranaga quando é que posso ter meu navio de volta?

- Senhor?

- Meu navio, senhora. Por favor, pergunte-lhe quando posso reaver meu navio. Minha tripulação, também. Toda a carga foi removida - havia vinte mil moedas na caixa-forte. Estou certo de que ele compreenderá que somos mercadores, e embora apreciemos sua hospitalidade, gostaríamos de comerciar - com as mercadorias que trouxemos conosco - e partir para casa. Precisaremos de quase dezoito meses para voltar para casa.

- Meu amo diz que o senhor não precisa se preocupar. Tudo será feito tão logo seja possível. Primeiro deve ficar forte e saudável. O senhor partirá ao crepúsculo.

- Senhora?

- O Senhor Toranaga disse que o senhor partirá ao pôr-do-sol. Falei erradamente?

- Não, não, em absoluto, Mariko-san. Mas há uma hora e pouco, a senhora me disse que eu partiria dentro de alguns dias.

- Sim, mas agora ele diz que o senhor partirá esta noite.

- Ela traduziu tudo isso para Toranaga, que falou mais alguma coisa.

- Meu amo diz que é melhor e mais conveniente para o senhor partir esta noite. Não há por que se preocupar, Anjin-san, o senhor está sob o cuidado pessoal dele. A Senhora Kiritsubo vai para Yedo, a fim de esperar o regresso dele. O senhor irá com ela.

- Por favor, agradeça a ele por mim. É possível... posso perguntar se seria possível libertar Frei Domingo? O homem tem um vasto conhecimento.

Ela traduziu.

- Meu amo diz que sente muito, mas o homem morreu. Mandou buscá-lo assim que o senhor pediu, ontem, mas ele já estava morto.

Blackthorne acabrunhou-se.

- Como morreu?

- Meu amo diz que morreu quando seu nome foi chamado.

- Oh! Pobre homem!

- Meu amo diz que a morte e a vida são a mesma coisa. A alma do padre esperará até o décimo quarto dia e então renascerá. Por que se entristecer? É a lei imutável da natureza. - Ela começou a dizer alguma coisa, mas mudou de idéia, limitando-se a acrescentar: - Os budistas crêem que temos muitos nascimentos ou renascimentos, Anjin-san. Até que finalmente nos tornemos perfeitos e atinjamos o nirvana, o paraíso.

Blackthorne afastou a própria tristeza e se concentrou em Toranaga e no presente.

- Posso, por favor, perguntar a ele se a minha tripulação... - Parou quando Toranaga desviou o olhar.

Um jovem samurai entrou às pressas na sala, curvou-se para Toranaga e esperou.

- Nan ja? - disse Toranaga.

Blackthorne não compreendeu nada do que foi dito. Só teve a impressão de apreender o apelido do Padre Alvito, Tsukku. Viu os olhos de Toranaga esvoaçarem na sua direção e notou o vislumbre do sorriso. Perguntou a si mesmo se Toranaga mandara buscar o padre por causa do que ele lhe dissera. Espero que sim, pensou, e espero que Alvito esteja afundado no estrume até as narinas.

Está ou não está? Blackthorne resolveu não perguntar a Toranaga, embora se sentisse enormemente tentado.

- Kare ni matsu yoni - disse Toranaga bruscamente.

- Gyoi. - O samurai inclinou-se e saiu apressado. Toranaga voltou-se para Blackthorne: - Nan ja, Anjin-san?

- O senhor estava dizendo, capitão? - disse Mariko. - Sobre a sua tripulação?

- Sim. Toranaga-sama poderia tomá-los sob a sua proteção também? Providenciar para que sejam todos bem tratados? Eles também serão enviados para Yedo?

Ela perguntou. Toranaga enfiou as espadas na cintura do quimono curto.

- Meu amo diz que naturalmente os arranjos já foram feitos. O senhor não precisa se inquietar quanto a eles. Ou quanto ao seu navio.

- Meu navio está em ordem?

- Sim. Ele diz que o navio já está em Yedo.

Toranaga levantou-se. Começaram todos a se curvar, mas Blackthorne interrompeu inesperadamente:

- Uma última coisa... - Parou e se amaldiçoou, percebendo que estava sendo descortês. Era óbvio que Toranaga encerrara a entrevista e já haviam todos começado a se curvar, mas foram detidos pelas palavras de Blackthorne e agora estavam todos embaraçados sem saber se completavam a reverência, se esperavam, ou se começavam novamente.

- Nan ja, Anjin-san? - A voz de Toranaga soou irritadiça e inamistosa, pois também ele ficara momentaneamente perturbado.

- Gomen nasai, sinto muito, Toranaga-sama. Não pretendi ser descortês. Sá queria perguntar se a Senhora Mariko teria a permissão de conversar comigo por alguns momentos antes que eu parta. Isso me ajudaria.

Ela perguntou.

Toranaga meramente grunhiu uma afirmativa imperiosa e saiu da sala, seguido de Kiri e da sua guarda pessoal.

Bastardos suscetíveis, todos vocês, disse Blackthorne a si mesmo.

Jesus, como se tem que ser cuidadoso aqui! Ele enxugou a testa com a manga e viu a aflição imediata no rosto de Mariko. Rako ofereceu-lhe às pressas um pequeno lenço que eles sempre pareciam ter pronto num sortimento aparentemente inexaurível, guardado secretamente em algum lugar nas costas do obi. Ele então percebeu que estava usando o quimono do "amo" e que não se enxuga, por distração, o suor da testa com a manga do "amo", por Deus, portanto havia cometido outro sacrilégio! Nunca aprenderei, nunca, Jesus do paraíso, nunca!

- Anjin-san? - Rako estava oferecendo saquê.

Ele aceitou, agradeceu e bebeu. Imediatamente ela tornou a encher o cálice. Ele notou um brilho de perspiração na testa de todos.

- Gomen nasai - disse ele a todos, desculpando-se. Pegou o cálice e ofereceu-o a Mariko, bem-humorado. - Não sei se é costume polido ou não, mas a senhora aceitaria um pouco de saquê? Isso é permitido? Ou devo bater a cabeça no chão?

Ela riu.

- Oh, sim, é muito polido, e não, por favor, não machuque a cabeça. Não há necessidade de se desculpar comigo, capitão. Homens não pedem desculpas a mulheres. Tudo o que fazem é correto. Pelo menos é o que nós, senhoras, achamos.

- Ela explicou às garotas o que dissera e elas assentiram de modo igualmente sério, mas tinham os olhos dançando nas órbitas. - O senhor não tinha como saber, Anjin-san - continuou Mariko, depois sorveu um minúsculo gole de saquê e devolveu-lhe o cálice. - Obrigada, mas não vou tomar mais saquê, obrigada. O saquê me vai direto para a cabeça e para os joelhos. Mas o senhor aprende rapidamente, deve lhe ser muito difícil. Não se preocupe, Anjin-san, o Senhor Toranaga disse que acha sua aptidão excepcional. Nunca lhe teria dado o quimono se não estivesse muito satisfeito.

- Ele mandou buscar Tsukku-san?

- O Padre Alvito?

- Sim.

- Deveria ter perguntado a ele, capitão. A mim não disse nada. E foi muito sábio nisso, pois as mulheres não têm sabedoria nem conhecimento em assuntos políticos.

- Ah, so desu ka? Gostaria que todas as mulheres fossem igualmente. .. sábias.

Mariko abanou-se, confortavelmente ajoelhada, as pernas dobradas sob o corpo. - Sua dança esteve excelente. As senhoras no seu país dançam do mesmo modo?

- Não. Apenas os homens. Era uma dança de homens, de marinheiros.

- Já que o senhor quer me fazer perguntas, posso lhe fazer algumas primeiro?

- Certamente.

- Como é a senhora sua esposa?

- Tem vinte e nove anos. E alta, comparada com a senhora. Pelas nossas medidas, tenho seis pés e duas polegadas de altura, e ela tem mais ou menos cinco pés e oito polegadas. A senhora tem cerca de cinco pés, portanto ela é uma cabeça mais alta e igualmente maior... igualmente proporcionada. O cabelo dela é da cor de. .. - Apontou as vigas de cedro polido e sem manchas e todos os olhos se dirigiram para lá, depois voltaram a se fixar nele. - Mais ou menos daquela cor. Loiro com um toque de vermelho. Os olhos são azuis, muito mais do que os meus, azul-esverdeados. Tem o cabelo comprido e o usa solto na maioria das vezes.

Mariko traduziu para as outras, que olharam para as vigas de cedro e para ele mais uma vez. Os guardas samurais também ouviam atentamente. Uma pergunta de Rako.

- Rako-san perguntou se ela é como nós, de corpo?

- Sim. Mas os quadris são mais largos e mais curvos, o peito é mais proporcionado e... bem, geralmente nossas mulheres são mais arredondadas e têm seios muito mais cheios.

- Todas as mulheres, e os homens, são tão mais altos do que nós?

- Geralmente sim. Mas alguns são tão baixos quanto os daqui. Acho a sua pequenez encantadora. Muito agradável.

Asa perguntou alguma coisa e o interesse de todos se avivou.

- Asa perguntou como o senhor compararia as suas mulheres com as nossas em matéria de "travesseiro".

- Desculpe, não compreendi.

- Oh, por favor, desculpe-me. O "travesseiro'... assuntos íntimos. É como nos referimos à união física de homem e mulher. É mais polido que "fornicação", neh?

Blackthorne conteve o embaraço e disse:

- Eu só... hum... só tive um... hum... uma experiência de "travesseiro" aqui... foi, hum, na aldeia... e não me lembro com muita clareza porque, hum, estava tão exausto da viagem que estava meio dormindo, meio desperto. Mas, hum, pareceu-me satisfatória.

Mariko franziu a testa.

- O senhor "travesseirou" só uma vez desde que chegou?

- Sim.

- Deve estar se sentindo muito incomodado, neh? Uma destas senhoras ficaria encantada em "travesseiras" com o senhor, Anjin-san. Ou todas elas, se o senhor quisesse.

- Hem?

- Certamente. Se não quiser nenhuma delas, não é preciso se preocupar, elas não se ofenderão. Simplesmente me diga o tipo de mulher de que gostaria e tomaremos todas as providências.

- Obrigado - disse Blackthorne -, mas não agora.

- Tem certeza? Por favor, desculpe-me, mas Kiritsubo-san tem instruções específicas para que a sua saúde seja protegida e melhorada. Como pode se sentir saudável sem "travesseiro"? É muito importante para um homem, neh? Oh, sim, muito.

- Obrigado, mas eu. .. talvez mais tarde.

- O senhor teria muito tempo. Eu ficaria contente em voltar mais tarde. Haverá muito tempo para conversar, se o senhor quiser. O senhor teria no mínimo quatro bastões de tempo - disse ela, solícita. - Não vai partir antes do pôr-do-sol.

- Obrigado. Mas não agora - disse Blackthorne, contrariado pela rudeza e falta de delicadeza da sugestão.

- Elas realmente gostariam de obsequiá-lo, Anjin-san. Oh! Talvez... talvez o senhor preferisse um menino?

- Hem?

- Um menino. É "igualmente simples, se é isso o que o senhor deseja. - O sorriso dela era honesto, a voz sincera.

- Hem?

- Qual é o problema?

- A senhora está me oferecendo um menino? A sério?

- Ora, sim, Anjin-san. Qual é o problema? Eu só disse que mandaríamos vir um menino se o senhor desejasse.

- Eu não quero! - Blackthorne sentiu o rosto em chamas.

- Será que eu pareço um maldito sodomita?

Suas palavras açoitaram a sala ao seu redor. Todos arregalaram os olhos para ele, pasmados. Mariko curvou-se humildemente, manteve a cabeça encostada ao chão.

- Por favor, perdoe-me, cometi um engano terrível. Oh, ofendi quando só tentava agradar. Nunca conversei com um... um estrangeiro antes senão com os santos padres, por isso não tinha como saber os seus... seus costumes íntimos. Nunca me ensinaram sobre isso. Anjinsan... os padres não os discutiam. Aqui alguns homens às vezes querem meninos.., os padres gostam de meninos de tempos em tempos, dos nossos e dos deles... eu tolamente presumi que seus hábitos fossem os mesmos que os nossos.

- Não sou um padre e isso não é um costume geral nosso.

O chefe dos samurais, Kazu Oan, observava irado. Estava encarregado da segurança e da saúde do bárbaro, e vira, com os próprios olhos, o inacreditável favor que o Senhor Toranaga demonstrara ao Anjin-san, que agora estava furioso.

- O que há com ele? - perguntou, desafiador, pois era óbvio que a estúpida mulher dissera algo para ofender o seu importantíssimo prisioneiro.

Mariko explicou o que fora dito e o que o Anjin-san retrucara.

- Realmente não compreendo com que ele está irritado, Oan-san - disse ela.

Oan coçou a cabeça, incrédulo.

- Ele ficou como um boi enlouquecido só porque a senhora lhe ofereceu um menino?

- Sim.

- Desculpe, mas a senhora foi polida? Não terá usado uma palavra errada, talvez?

- Oh, não, Oan-san, tenho certeza absoluta. Sinto-me péssima. Obviamente sou responsável.

- Deve ser alguma outra coisa. O quê?

- Não, Oan-san. Foi só isso.

- Nunca entenderei esses bárbaros - disse Oan exasperado.

- Por amor a todos nós, por favor acalme-o, Mariko-san. Deve ser porque ele não "travesseira" há muito tempo. Você - ordenou a Sono -, traga mais saquê, saquê quente, e toalhas quentes! Você, Rako, esfregue a nuca do demônio. - As criadas saíram voando para obedecer. Um pensamento súbito: - Talvez seja porque ele é impotente. A história que ele contou sobre o "travesseiro" na aldeia foi bastante vaga, neh? Talvez o coitado tenha ficado furioso porque não pode "travesseiras" em absoluto e a senhora trouxe o assunto à tona?

- Desculpe, mas não penso assim. O médico disse que ele é multo bem-dotado.

- Se ele fosse impotente... isso explicaria, neh? Seria o suficiente para me fazer berrar, também. Sim! Pergunte a ele.

Mariko imediatamente fez como lhe foi ordenado e Oan ficou horrorizado quando o sangue subiu novamente ao rosto do bárbaro e uma enxurrada de repugnantes sons bárbaros encheu a sala.

- Ele... ele disse que não. - A voz de Mariko não era mais que um sussurro.

- Tudo isso significava "não"?

- Eles... eles usam muitas palavras descritivas quando ficam alterados.

Oan estava começando a transpirar de ansiedade, pois era ele o responsável.

- Acalme-o!

Um dos outros samurais, um soldado mais velho, disse solicitamente:

- Oan-san, talvez ele seja um daqueles que gostam de cães, neh? Ouvimos algumas histórias estranhas em Kyushu sobre os comedores de alho. Sim, gostam de cães e... Lembro agora, sim, cães e patos. Talvez os cabeças douradas sejam como os comedores de alho, já que fedem como eles, hem? Talvez ele queira um pato.

- Mariko-san, pergunte-lhe! - disse Oan. - Não, talvez seja melhor não. Simplesmente acalme... - Parou de repente.

Hiromatsu vinha se aproximando da esquina oposta do corredor.

- Salve - disse o samurai resolutamente, tentando evitar que a voz tremesse porque o velho Punho de Aço, na melhor das circunstâncias um disciplinador, estivera como um tigre com espinhos no traseiro por toda a semana, e naquele dia estava ainda pior. Dez homens tinham sido rebaixados por desmazelo, o turno da noite inteira tivera que desfilar em ignomínia por todo o castelo, dois samurais haviam recebido ordem de cometer seppuku porque se atrasaram para o turno, e quatro dos coletores de fezes noturnas foram atirados dos parapeitos por haverem derramado parte de um recipiente no jardim do castelo.

- Ele está se comportando, Mariko-san? - Oan ouviu Punho de Aço perguntar irritado. Estava certo de que a estúpida mulher, que causara todo o problema, iria torcer a verdade, o que certamente lhes custaria a cabeça.

Para alívio seu, ouviu-a dizer:

- Sim, senhor. Tudo está ótimo, obrigada.

- Você partirá com Kiritsubo-san.

- Sim, senhor. - Hiromatsu continuou a sua patrulha e Mariko se inquietou por estar sendo mandada para longe. Seria meramente para servir de intérprete entre Kiri e o bárbaro durante a viagem? Com certeza isso não era tão importante. As outras damas de Toranaga também iam? A Senhora Sazuko? Não será perigoso para Sazuko ir por mar agora? Devo ir sozinha com Kiri, ou meu marido também vai? Se ele ficar - e seria seu dever ficar com seu senhor - quem cuidará da casa? Por que temos que ir de navio? Com certeza a estrada Tokaido ainda é segura? Com certeza Ishido não vai nos causar dano? Sim, ele faria isso - pense no nosso valor como reféns, a Senhora Sazuko, Kiritsubo, e as outras. Será que é por isso que temos que ir por mar?

Mariko sempre odiara o mar. Mesmo a vista dele quase a punha doente. Mas se tenho que ir, tenho que ir, e ponto final. Karma. Ela desviou a atenção do inevitável para o problema imediato do desconcertante bárbaro estrangeiro, que só lhe estava causando pesar.

Quando Punho de Aço desapareceu na extremidade do corredor, Oan ergueu a cabeça e todos suspiraram. Asa surgiu apressada pelo corredor com o saquê, seguida logo atrás de Sono, com as toalhas quentes.

Todos observaram enquanto o bárbaro era servido. Viram a máscara de sarcasmo que era o seu rosto, e o modo como aceitou o saquê sem prazer e as toalhas quentes com agradecimentos frios.

- Oan-san, por que não deixar uma das mulheres ir buscar o pato? - sussurrou o velho samurai, solícito. – Simplesmente o soltamos. Se ele o quiser, estará tudo bem, senão, fingirá não tê-lo visto.

Mariko balançou a cabeça.

- Talvez não devamos correr esse risco. Parece, Oan-san, que este tipo de bárbaro tem alguma aversão a falar sobre "travesseiro", neh? É o primeiro de sua espécie a vir aqui, portanto teremos que ir às apalpadelas.

- Concordo - disse Oan. - Ele estava completamente dócil até que isso fosse mencionado. - Olhou carrancudo para Asa.

- Sinto muito, Oan-san. O senhor está absolutamente certo, a culpa foi toda minha - disse Asa imediatamente, curvando-se, a cabeça quase tocando o solo.

- Sim. Relatarei o caso a Kiritsubo-san.

- Oh!

- Realmente penso que a ama deve ser informada, a fim de tomar cuidado quanto a discutir o assunto com este homem - disse Mariko, diplomaticamente. - O senhor é muito sábio, Oan-san. Sim. Mas talvez, de certo modo, Asa tenha sido um feliz instrumento para poupar a Senhora Kiritsubo e mesmo o Senhor Toranaga de um terrível embaraço! Pense apenas no que teria acontecido se a própria Kiritsubo-san tivesse feito a pergunta diante do Senhor Toranaga ontem! Se o bárbaro tivesse agido assim na frente dele...

Oan assustou-se.

- Teria corrido sangue! A senhora tem toda a razão, Mariko-san, devemos agradecer a Asa. Explicarei a Kiritsubo-san que ela foi feliz na pergunta que fez.

Mariko ofereceu mais saquê a Blackthorne.

- Não, obrigado.

- Peço desculpas novamente pela minha estupidez. O senhor queria me fazer algumas perguntas?

Blackthorne os observava enquanto conversavam entre si, aborrecido por não ser capaz de compreender, furioso por não poder xingá-los claramente por seus insultos ou socar a cabeça dos guardas uma contra a outra.

- Sim. A senhora disse que a sodomia é normal aqui?

- Oh, perdoe-me, não poderíamos discutir outras coisas, por favor?

- Certamente, senhora. Mas primeiro, para que eu possa compreendê-los, vamos completar esse assunto. A sodomia é normal aqui, a senhora disse?

- Tudo o que se relacione com "travesseiro" é normal - disse ela, desafiante, incitada pela falta de boas maneiras e a óbvia imbecilidade dele, lembrando-se de que Toranaga lhe dissera que informasse sobre coisas não políticas, mas que lhe relatasse mais tarde todas as perguntas feitas. Além disso, ela não devia aceitar qualquer absurdo da parte dele, pois o Anjin continuava sendo um bárbaro, um provável pirata, e sob uma sentença formal de morte, temporariamente suspensa ao bel-prazer de Toranaga. - O "travesseiro" é absolutamente normal. E se um homem vai com outro, ou com um menino, o que é que isso tem a ver com mais alguém senão com eles? Que dano causa a eles, ou aos outros... a mim ou ao senhor? Nenhum! - O que sou eu, pensou ela, uma pária inculta, sem miolos? Um negociante estúpido para ser amedrontada por um mero bárbaro? Não. Sou samurai! Sim, você é, Mariko, mas também é muito tola! E uma mulher e deve tratá-lo como a qualquer homem para controlá-lo: lisonjeie-o, concorde com ele e adoce-o. Você se esqueceu das suas armas. Por que ele a faz agir como uma criança de doze anos de idade? Deliberadamente ela amaciou o tom da voz. - Mas se o senhor acha...

- A sodomia é um pecado repugnante, um mal, uma abominação amaldiçoada por Deus, e os bastardos que a praticam são a escória do mundo! - Blackthorne ainda estava furioso com o insulto de ela acreditar que ele pudesse ser um deles. Pelo sangue de Cristo, como é que ela pôde? Controle-se, disse a si mesmo. Está falando como um puritano fanático ou um calvinista! E por que tanto acirramento contra eles? Não será porque estão sempre presentes no mar, porque a maioria dos marinheiros já tentou isso? Pois de que outra maneira podem permanecer sadios tantos meses no mar? Não será porque você se sentiu tentado e odiou a si mesmo por ter se sentido tentado? Não será porque quando jovem você teve que lutar para se proteger e uma vez foi agarrado e quase violentado, mas conseguiu se soltar e matou um dos bastardos, a faca rasgando a garganta dele, você com doze anos, a primeira morte na sua longa lista de mortes? - É um pecado amaldiçoado por Deus... e absolutamente contra as leis de Deus e do homem.

- Com certeza essas são palavras cristãs que se aplicam a outras coisas? - retrucou ela acidamente malgrado seu, provocada pela completa grosseria dele. - Pecado? Onde está o pecado disso?

- A senhora devia saber. É católica, não? Foi educada por jesuítas, não foi?

- Um padre me educou e me ensinou a falar latim e português e a escrever em latim e português. Não compreendo o sentido que o senhor dá à palavra "católica", mas sou cristã, e já faz quase dez anos que sou cristã, e não, eles não conversaram conosco sobre "travesseiro". Nunca li os seus livros sobre o assunto, apenas livros religiosos. "Travesseiro" um pecado? Como poderia ser? Como é que qualquer coisa que dê prazer a um ser humano pode ser pecado?

- Pergunte ao Padre Alvito!

Antes pudesse, pensou ela perturbada. Mas tenho ordens de não discutir nada do que é dito aqui com ninguém além de Kiri e do meu Senhor Toranaga. Pedi a Deus e à Nossa Senhora que me ajudassem, mas eles não falaram comigo. Só sei que desde que você chegou aqui, não houve nada além de problemas. Eu só tive problemas...

- Se é um pecado, como o senhor diz, por que é que tantos dos nossos padres o fazem? Algumas seitas budistas até o recomendam como uma forma de veneração. O momento das nuvens e chuva não é o mais próximo do paraíso que os mortais podem obter? Os padres não são maus homens, não todos. E é sabido que alguns dos santos padres também apreciam o "travesseiro" desse modo. Eles são maus? Claro que não! Por que deveriam se privar de um prazer comum se as mulheres lhes são proibidas? É absurdo dizer que qualquer coisa relacionada a "travesseiro" é pecado e amaldiçoada por Deus!

- Sodomia é uma abominação, contra toda a lei! Pergunte ao seu confessor!

Você é que é a abominação, você, capitão-piloto, Mariko tinha vontade de gritar. Como ousa ser tão rude e como pode ser tão imbecil! Contra Deus, você disse? Que absurdo! Contra o seu mau deus, talvez. Clama ser cristão, mas é óbvio que não é, e óbvio que é um mentiroso, um trapaceiro. Talvez você realmente saiba coisas extraordinárias e tenha estado em lugares estranhos, mas não é cristão e é um sacrílego. Foi enviado por Satã? Pecado? Que grotesco!

Você arenga contra coisas normais e age como um louco. Aborrece os santos padres, aborrece o Senhor Toranaga, causa discussão entre nós, põe em dúvida as nossas crenças, e nos atormenta com insinuações sobre o que é verdade e o que não é - sabendo que podemos provar a verdade imediatamente.

Quero dizer-lhe que desprezo a você e a todos os bárbaros. Sim, os bárbaros me atormentaram a vida toda. Não odiavam meu pai porque ele não confiava neles e abertamente rogou ao ditador Goroda que os expulsasse da nossa terra? Os bárbaros não envenenaram a mente do ditador a ponto de ele começar a odiar meu,pai, seu general mais leal, o homem que o ajudara mais até do que o General Nakamura ou o Senhor Toranaga? Os bárbaros não foram a causa de o ditador insultar meu pai, tornando-o insano, forçando-o a fazer o impensável e desse modo causar todas as minhas agonias?

Sim, fizeram tudo isso e mais. Mas também trouxeram a inigualável palavra de Deus, e nas minhas horas sombrias de necessidade, quando fui trazida de volta de um exílio hediondo para uma vida ainda mais hedionda, o padre-lnspetor mostrou-me o Caminho, abriu-me os olhos e minha alma e me batizou. E o Caminho me deu forças para suportar, encheu-me o coração com uma paz sem limites, libertou-me do meu tormento perpétuo, e abençoou-me com a promessa de salvação eterna.

Aconteça o que acontecer, estou nas mãos de Deus. Oh, minha Nossa Senhora, dê-me a sua paz e ajude esta pobre pecadora a vencer os inimigos.

- Peço desculpas pela minha rudeza - disse ela. - O senhor tem razão em estar zangado. Sou apenas uma tola mulher. Por favor, seja paciente e perdoe-me minha estupidez, Anjin-san.

Imediatamente a raiva de Blackthorne começou a desvanecer-se. Como é que um homem pode ficar zangado muito tempo com uma mulher, se ela abertamente admite estar errada e ele certo?

- Também peço desculpas, Mariko-san - disse ele, um pouco abrandado -, mas conosco, sugerir que um homem é pederasta, sodomita, é o pior tipo de insulto.

Então vocês são todos infantis e imbecis, assim como infames, grosseiros e sem educação, mas o que se pode esperar de um bárbaro? disse ela a si mesma. Depois, aparentemente arrependida, disse em voz alta:

- Claro que o senhor tem razão. Não tive más intenções, Anjin-san, por favor aceite as minhas desculpas. Oh, sim - ela suspirou, sua voz tão delicadamente adocicada que mesmo o marido, num dos seus humores mais borrascosos, teria sido apaziguado -, oh, sim, o erro foi inteiramente meu. Sinto muito.


O sol já tocara o horizonte e o Padre Alvito ainda esperava na sala de audiências, os portulanos pesando-lhe nas mãos.

Maldito Blackthorne, pensou ele.

Era a primeira vez que Toranaga o fazia esperar, a primeira vez em anos que ele esperava por qualquer daimio, inclusive o taicum. Durante os últimos oito anos do governo do taicum, fora-lhe concedido o privilégio inacreditável de acesso imediato, exatamente como com Toranaga.

Mas com o taicum o privilégio fora merecido devido à sua fluência em japonês e à sua sagacidade nos negócios. Seu conhecimento das engrenagens do comércio internacional ajudara ativamente a aumentar a incrível fortuna do taicum. Embora quase inculto, o taicum tinha um vasto domínio da língua e seu conhecimento político era imenso. De modo que Alvito se sentara prazerosamente aos pés do déspota para ensinar e aprender e, se fosse a vontade de Deus, para converter. Era essa a função específica para a qual fora meticulosamente treinado por Dell'Aqua, que providenciara os melhores professores práticos entre todos os jesuítas e entre os mercadores na Asia. Alvito tornara-se o confidente do taicum, uma das quatro pessoas - e o único estrangeiro - a jamais ter visto todas as salas do tesouro pessoal do taicum.

A poucas centenas de passos estava o torreão do castelo.

Erguia-se sobranceiro a sete andares, protegido pela infinidade de muros e portas e fortificações. No quarto andar havia sete salas com portas de ferro. Cada uma estava abarrotada com lingotes de ouro e arcas com moedas douradas. No andar de cima ficavam as salas de prata, explodindo de lingotes e arcas de moedas. E no superior a esse ficavam as sedas e porcelanas raras, espadas e armaduras - o tesouro do império.

Pela nossa avaliação atual, pensou Alvito, o valor deve ser de no mínimo cinqüenta milhões de ducados, mais do que o valor da renda de um ano de todo o império espanhol, todo o império português e a Europa, juntos! A maior fortuna particular em dinheiro do globo.

Não é esse o grande prêmio? raciocinou ele. Quem quer que controle o Castelo de Osaka não controla também essa riqueza inacreditável? E essa riqueza, por conseguinte, não lhe dá poder sobre a terra? Osaka não foi feita inexpugnável apenas para proteger a riqueza? A terra não foi sangrada para construir o Castelo de Osaka, para torná-lo inviolável para proteger o ouro, a fim de mantê-lo em segurança até que Yaemon atinja a maioridade?

Com um centésimo dessa riqueza poderíamos construir uma catedral em cada capital, uma igreja em cada cidade, uma missão em cada aldeia pelo país inteiro. Se ao menos isso fosse possível, para usar o dinheiro pela glória de Deus!

O taicum amara o poder. E amara o ouro pelo poder que conferia sobre os homens. O tesouro era o fruto de dezesseis anos de poder incontestado, resultado dos presentes imensos, obrigatórios, que se esperava que todos os daimios, por costume, oferecessem anualmente, e proveniente dos seus próprios feudos. Por direito de conquista, o taicum pessoalmente possuía um quarto do país inteiro. Sua renda particular anual excedia cinco milhões de kokus. E como era senhor de todo o Japão, com o mandato do imperador, em teoria possuía a renda de todos os feudos. Não cobrava impostos de nenhum. Mas todos os daimios, todos os samurais, todos os camponeses, todos os artesãos, todos os mercadores, todos os assaltantes, todos os párias, todos os bárbaros, até os etas, contribuíam voluntariamente, e em larga medida. Pela própria segurança.

Enquanto a fortuna estiver intacta, Osaka estiver intacta e Yaemon for o curador de fato, disse Alvito a si mesmo, o herdeiro governará quando atingir a idade, apesar de Toranaga, de Ishido ou de qualquer outro.

Uma pena que o taicum tenha morrido. Com todas as suas falhas, conhecíamos o demônio com quem tínhamos que lidar. Pena, na realidade, que Goroda tenha sido assassinado, pois era um verdadeiro amigo nosso. Mas está morto, assim como o taicum, e agora temos novos idólatras para dobrar - Toranaga e Ishido.

Alvito lembrou-se da noite em que o taicum morrera. Fora convidado pelo próprio para a vigília - ele, junto com Yodokosama, a esposa do taicum, e a Senhora Ochiba, a consorte e mãe do herdeiro. Haviam observado e esperado muito tempo naquela noite de verão, perfumada mas interminável.

Então a agonia começara, e findara.

- Seu espírito partiu. Ele está nas mãos de Deus agora - dissera ele suavemente ao ter certeza. Fizera o sinal-da-cruz e abençoara o corpo.

- Que Buda leve meu senhor consigo e o faça renascer rapidamente, para que possa mais uma vez retomar o império nas mãos - dissera Yodoko em lágrimas silenciosas. Era uma mulher agradável, uma samurai patrícia que fora esposa e conselheira fiel por quarenta e quatro dos seus cinqüenta e nove anos de vida. Ela fechara os olhos e exaltara o cadáver, o que era privilégio seu. Tristemente fizera uma reverência três vezes e depois o deixara, e à Senhora Ochiba. A agonia fora fácil. Durante meses o taicum estivera doente e esperava-se o pior para aquela noite. Poucas horas antes ele abrira os olhos, sorrira para Ochiba e para Yodoko, e sussurrara, num fio de voz: - Ouçam, este é o meu poema de morte:


Como orvalho nasci

Como orvalho desapareço

O Castelo de Osaka e tudo o que jamais fiz

Não são mais que um sonho

Dentro de um sonho.


Um último sorriso, terno, do déspota para elas e para ele.

- Protejam meu filho, vocês todos. - E os olhos se tornaram opacos para sempre.

O Padre Alvito lembrou-se de como se emocionara com o último poema, tão típico do taicum. Como fora convidado, esperara que o senhor do Japão, no limiar da morte, se arrependesse e aceitasse a fé e o sacramento com que brincara tantas vezes. Mas isso não aconteceu.

- Você perdeu o reino de Deus para sempre, pobre homem - murmurara ele tristemente, pois admirara o taicum como um gênio militar e político.

- E se o seu reino de Deus estiver numa passagem de volta? - disse a Senhora Ochiba.

- O quê? - Ele não tinha certeza de ter ouvido corretamente, indignado com a inesperada malevolência sibilante dela.

Conhecia a Senhora Ochiba há quase doze anos, desde os quinze anos dela, quando o taicum a tomara por consorte, e ela sempre fora dócil, subserviente, mal e mal dizia uma palavra, sempre sorrindo docemente e feliz. Mas agora...

- Eu disse: "E se o seu reino de Deus estiver numa passagem de volta?"

- Que Deus a perdoe! Seu amo morreu apenas há alguns segundos...

- O senhor meu amo morreu, portanto a sua influência sobre ele morreu. Neh? Ele o quis aqui, muito bem, era um direito dele. Mas agora ele se encontra no Grande Vazio e não comanda mais. Agora comando eu. Padre, você cheira mal, sempre cheirou, e a sua sujeira polui o ar. Agora suma do meu castelo e deixe-nos com a nossa dor!

A luz das velas adejou-lhe pelo rosto. Era uma das mais belas mulheres do país. Involuntariamente ele fez o sinal-da-cruz.

A risada que ouviu era de aço.

- Vá embora, padre, e não volte nunca. Seus dias estão contados!

- Não mais do que os seus. Estou nas mãos de Deus, senhora. É melhor que de ouvidos a ele, a salvação eterna pode ser sua se acreditar.

- Hem? Você está nas mãos de Deus? O Deus cristão, neh? Talvez esteja. Talvez não. O que vai fazer, padre, se, quando morrer, descobrir que não há Deus algum, que não há inferno e que a sua salvação eterna é apenas um sonho dentro de outro sonho?

- Eu acredito! Eu acredito em Deus, na ressurreição e no Espírito Santo! - dissera ele. - As promessas cristãs são verdadeiras. São verdadeiras... eu acredito!

- Nan ja, Tsukku-san?

Por um instante só ouviu o japonês e não tinha significado algum para ele.

Toranaga estava em pé na soleira da porta, rodeado por seus guardas. O Padre Alvito curvou-se, recobrando-se, com suor nas costas e no rosto.

- Sinto muito por ter vindo sem ser convidado. Eu... eu estava apenas sonhando acordado. Lembrava-me de que tive a boa fortuna de testemunhar tantas coisas aqui no Japão. arece que vivi toda a minha vida aqui e em nenhum outro lugar.

- Quem lucrou com isso fomos nós, Tsukku-san.

Toranaga caminhou cansadamente para o estrado e sentou-se sobre a almofada simples. Em silêncio, os guardas se dispuseram numa tela protetora.

- O senhor chegou aqui no terceiro ano do Tensho, não foi?

- Não, senhor, foi no quarto. O ano do Rato – respondeu ele, usando o calendário deles, que levara meses para compreender. Todos os anos eram contados a partir de um ano em particular, escolhido pelo imperador reinante. Uma catástrofe ou uma dádiva divina podiam encerrar uma era ou dar início a outra, conforme o capricho do imperador. Os sábios recebiam a ordem de selecionar um nome de presságio particularmente bom nos antigos livros da China para a nova era que podia durar um ou cinqüenta anos. "Tensho" significava "justiça celeste". O ano anterior fora o do Grande Macaréu, quando duzentas mil pessoas morreram. E cada ano recebia um número, assim como um nome - seguindo a mesma sucessão de nomes das horas do dia: Lebre, Dragão, Cobra, Cavalo, Bode, Macaco, Galo, Cão, Javali, Rato, Raposa e Tigre. O primeiro ano do Tensho caíra no ano do Galo, de onde se seguia que 1576 era o ano do Rato no quarto ano do Tensho.

- Muita coisa aconteceu nestes vinte e quatro anos, neh, amigo velho?

- Sim, senhor.

- Sim. A ascensão de Goroda e a sua morte. A ascensão do taicum e a sua morte. E agora? - As palavras ricocheteavam nas paredes.

- Isso está nas mãos do Infinito. - Alvito usou uma palavra que podia significar Deus, mas também podia significar Buda.

- Nem o Senhor Goroda nem o senhor taicum acreditavam em quaisquer deuses, ou em qualquer Infinito.

- O Senhor Buda não disse que há muitos caminhos para o nirvana, senhor?

- Ah, Tsukku-san, você é um homem sábio. Como pode alguém tão jovem ser tão sábio?

- Sinceramente gostaria de sê-lo, senhor. Então poderia ser de mais valia. O senhor queria me ver?

- Sim. Julguei importante o bastante para vir ser sem convidado.

Alvito pegou os portulanos de Blackthorne e colocou-os no chão, diante do outro, dando a explicação que Dell'Aqua sugerira. Viu o rosto de Toranaga se endurecer e ficou contente com isso.

- Prova da pirataria dele?

- Sim, senhor. Os portulanos contêm até as palavras exatas das ordens que receberam, que incluem: "se necessário, desembarcar à força e reivindicar qualquer território atingido ou descoberto". Se o senhor quiser, posso fazer uma tradução exata de todas as passagens pertinentes.

- Faça uma tradução de tudo. Rapidamente - disse Toranaga.

- Há mais uma coisa que o padre-lnspetor achou que o senhor devia saber. - Alvito contou a Toranaga tudo sobre os mapas e relatórios e o Navio Negro conforme fora combinado, e ficou encantado ao ver a reação de satisfação.

- Excelente - disse Toranaga. - Tem certeza de que o Navio Negro chegará mais cedo? Absoluta certeza?

- Sim - respondeu Alvito com firmeza. Ó Deus, deixe que aconteça conforme esperamos!

- Bom. Diga ao seu suserano que estou ansioso por ler os relatórios dele. Imagino que ele levará alguns meses obtendo os fatos corretos?

- Ele disse que prepararia os relatórios o mais depressa possível. Vamos lhe enviar os mapas como o senhor deseja. Seria possível que o capitão-mor tivesse suas autorizações logo? Isso ajudaria enormemente, se é para o Navio Negro chegar mais cedo, Senhor Toranaga.

- O senhor garante que o navio chegará antes?

- Nenhum homem pode garantir o vento, a tempestade e o mar. Mas o navio partirá de Macau mais cedo do que o previsto.

- O senhor as terá antes do pôr-do-sol. Há mais alguma coisa? Não estarei disponível por três dias, até depois da conclusão da reunião dos regentes.

- Não, senhor. Obrigado. Rezo para que o Infinito o conserve em segurança, como sempre. - Alvito curvou-se e esperou ser dispensado, mas em vez disso foram os guardas que Toranaga dispensou.

Era a primeira vez que Alvito via um daimio desacompanhado.

- Venha sentar-se aqui, Tsukku-san - Toranaga apontou para o seu lado, sobre o estrado.

Alvito nunca fora convidado para o estrado antes. Isto é um voto de confiança - ou uma sentença?

- A guerra se aproxima - disse Toranaga.

- Sim - respondeu ele, e pensou: esta guerra não vai terminar nunca.

- Os senhores cristãos, Onoshi e Kiyama, estranhamente se opõem aos meus desejos.

- Não posso responder por nenhum daimio, senhor.

- Há maus rumores, neh? Sobre eles e sobre outros daimios cristãos.

- Homens sábios terão sempre os interesses do império no coração.

- Sim. Mas enquanto isso, contra a minha vontade, o império está se dividindo em dois campos. O meu e o de Ishido. Portanto todos os interesses do império se encontram num lado ou noutro. Não há posição intermediária. Onde se situam os interesses dos cristãos?

- Do lado da paz. O cristianismo é uma religião, senhor, não uma ideologia política.

- O seu Padre Gigante é o cabeça da sua Igreja aqui. Ouvi dizer que vocês... que vocês podem falar em nome do papa.

- Estamos proibidos de nos envolver na sua política, senhor.

- Acha que Ishido vai favorecê-los? - A voz de Toranaga tornou-se mais dura. - Ele é totalmente contra a sua religião. Eu sempre lhes demonstrei o meu favor. Ishido quer pôr em execução os editos de expulsão do taicum imediatamente e fechar totalmente o país a todos os bárbaros. Eu quero um comércio em expansão.

- Nós não controlamos nenhum dos daimios cristãos.

- Como os influencio, então?

- Não sei o suficiente para tentar aconselhá-lo.

- Sabe o bastante, amigo velho, para compreender que se Kiyama e Onoshi se erguem contra mim, ao lado de Ishido e o resto da canalha, todos os outros daimios cristãos logo os seguirão, e então serão vinte homens a se erguer contra cada um dos meus.

- Se a guerra vier, rezarei para que o senhor vença.

- Precisarei de mais do que de orações se vinte homens se opuserem a cada um dos meus.

- Não há um meio de evitar a guerra? Uma vez começada, ela nunca terminará.

- Também acredito nisso. Então todos perderão - nós, os bárbaros, e a Igreja cristã. Mas se todos os daimios cristãos se pusessem do meu lado agora - abertamente -, não haveria guerra. As ambições de Ishido estariam permanentemente refreadas. Ainda que erguesse sua bandeira e se revoltasse, os regentes poderiam aniquilá-lo como um verme de arroz.

Alvito sentiu o laço apertar-se em torno do pescoço.

- Estamos aqui apenas para difundir a palavra de Deus. Não para interferir na sua política, senhor.

- O seu líder anterior ofereceu os serviços dos daimios cristãos de Kyushu ao taicum antes que tivéssemos dominado aquela parte do império.

- Ele errou fazendo isso. Não tinha autorização da Igreja nem dos próprios daimios.

- Ofereceu navios ao taicum, navios portugueses para transportar nossas tropas para Kyushu, ofereceu soldados portugueses com armas para nos ajudar. Mesmo contra a Coréia e contra a China.

- Novamente, senhor, ele o fez incorretamente, sem a autorização de ninguém.

- Logo todos terão que tomar posição, Tsukku-san. Sim. Muito em breve.

Alvito sentiu a ameaça fisicamente.

- Estou sempre pronto para servi-lo.

- Se eu perder, você morrerá comigo? Cometerá jenshi... seguir-me-á, ou virá comigo para a morte, como um partidário leal?

- Minha vida está nas mãos de Deus. Assim como a minha morte.

- Ah, sim. O seu Deus cristão! - Toranaga moveu as espadas ligeiramente. Depois inclinou-se para a frente. - Onoshi e Kiyama comprometidos comigo, dentro de quarenta dias, e o conselho de regentes revoga os editos do taicum.

Até onde me atrevo a ir? perguntou-se Alvito, desamparado. Até onde?

- Não podemos influenciá-los do modo como o senhor crê.

- Talvez o seu líder devesse ordenar-lhes. Ordenar-lhes! Ishido trairá a vocês e a eles. Conheço-o pelo que é. O mesmo fará a Senhora Ochiba. Ela já não está influenciando o herdeiro contra vocês?

Sim, queria gritar Alvito. Mas Onoshi e Kiyama já obtiveram secretamente o juramento de Ishido, por escrito, de deixá-los designar os preceptores do herdeiro, um dos quais será cristão. E Onoshi e Kiyama fizeram um juramento sagrado de que estão convencidos de que você trairá a Igreja, assim que tiver eliminado Ishido.

- O padre-lnspetor não pode lhes dar ordens, senhor. Seria uma interferência imperdoável na sua política.

- Onoshi e Kiyama em quarenta dias, os editos do taicum revogados, e nada de padres imundos mais. Os regentes os proibirão de vir ao Japão.

- O quê?

- Vocês e os seus padres, apenas. Nenhum dos outros, os Roupas Pretas fedorentos, pedintes, os peludos descalços! Aqueles que berram ameaças estúpidas e não fazem senão criar problemas. Eles. Vocês podem ter a cabeça de todos se quiserem. .. dos que estão aqui.

Todo o ser de Alvito gritava por cautela. Toranaga nunca fora tão aberto. Um escorregão e você o ofenderá e o fará inimigo da Igreja para sempre.

Pense no que Toranaga está oferecendo! Exclusividade no império todo!

A única coisa que garantiria a pureza da Igreja e sua segurança enquanto crescesse forte. A única coisa de preço inestimável. A única coisa que ninguém pode oferecer - nem o papa! Ninguém - exceto Toranaga. Com Kiyama e Onoshi a apoiá-lo abertamente, Toranaga poderia esmagar Ishido e dominar o conselho.

O Padre Alvito nunca teria acreditado que Toranaga seria tão abrupto. Ou oferecesse tanto. Onoshi e Kiyama poderiam ser convencidos a voltar atrás? Aqueles dois se odiavam mutuamente. Por razões que apenas eles conheciam, haviam-se unido para se opor a Toranaga. Por quê? O que os faria trair Ishido?

- Não sou qualificado para responder-lhe, senhor, ou para falar sobre um assunto assim, neh? Só posso dizer-lhe que nosso único objetivo é salvar almas.

- Ouvi dizer que meu filho Naga está interessado na sua fé cristã.

Toranaga está ameaçando ou oferecendo? perguntou-se Alvito. Está oferecendo a permissão para Naga aceitar a fé - que cartada gigantesca não seria! - ou está dizendo: "A menos que vocês cooperem, eu lhe ordenarei que pare"? - O senhor seu filho é um dos muitos nobres que têm a mente aberta sobre religião, senhor.

Subitamente Alvito entendeu a enormidade do dilema que Toranaga estava encarando. Ele está encurralado - tem que fazer um acordo conosco, pensou o padre exultante. Tem que tentar! Tem que nos dar o que quisermos - se nós quisermos fazer um acordo com ele. Finalmente ele admite abertamente que os daimios cristãos detêm o equilíbrio do poder! O que quisermos! O que mais poderíamos ter? Nada, em absoluto. Exceto.. .

Deliberadamente ele baixou os olhos para os portulanos que abrira diante de Toranaga. Viu a mão dele estender-se e pôr os portulanos em segurança na manga do quimono.

- Ah, sim, Tsukku-san - disse Toranaga, sua voz melancólica e exausta. - Depois há os novos bárbaros, os piratas. O inimigo do seu país. Logo estarão chegando aqui aos magotes, não? Podem ser desencorajados... ou encorajados. Como este pirata isolado. Neh?

O Padre Alvito sabia que agora tinham tudo. Devo pedir a cabeça de Blackthorne numa bandeja de prata como a cabeça de São João Batista, para selar o negócio? Devo pedir permissão para construir uma catedral em Yedo, ou uma dentro dos muros do Castelo de Osaka? Pela primeira vez na vida o padre se sentiu à deriva, desorientado, diante do limiar do poder.

Não queremos mais do que é oferecido! Gostaria de poder firmar o negócio agora! Se dependesse apenas de mim, eu arriscaria. Conheço Toranaga e arriscaria. Eu concordaria e faria um juramento sagrado. Sim, eu excomungaria Onoshi e Kiyama se eles não concordassem, para ganhar essas concessões para a Madre Igreja. Duas almas por dezenas de milhares, por centenas de milhares, por milhões. É justo! Eu diria sim, sim, sim, pela glória de Deus. Mas não posso firmar nada, como você bem sabe. Sou apenas um mensageiro, e parte da minha mensagem...

- Preciso de ajuda, Tsukku-san. Preciso e agora.

- Tudo o que puder fazer, eu farei, Toranaga-sama. O senhor tem a minha promessa.

Então Toranaga disse com determinação:

- Esperarei quarenta dias. Sim. Quarenta dias.

Alvito curvou-se. Notou que Toranaga retribuiu a reverência mais profunda e formalmente do que jamais fizera antes, quase como se estivesse se curvando para o próprio taicum. O padre levantou-se, trêmulo. Saiu da sala, seguindo pelo corredor. Seu passo acelerou-se. Começou a correr.

Toranaga observou o jesuíta pela seteira enquanto ele cruzava o jardim lá embaixo. A shoji abriu-se, mas ele expulsou os guardas com rudeza e ordenou-lhes, sob pena de morte, que o deixassem sozinho. Seus olhos seguiram Alvito atentamente, através do portão fortificado, no adro, até o padre se perder no labirinto de muros e fortificações. Então, no silêncio solitário, Toranaga começou a sorrir. Arregaçou o quimono e começou a dançar.

Uma hornpipe.


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