PRÓLOGO


A ventania atingiu-o com violência, ele sentiu-lhe fundo a vergastada e soube que se não atracassem dentro de três dias, morreriam todos. Mortes demais nesta viagem, pensou, sou piloto-mor de uma frota morta. De cinco navios sobrou um — vinte e oito homens de uma tripulação de cento e sete -, e agora apenas dez podem andar e o resto está às portas da morte, o capitão-mor entre eles. Não há comida, quase não há água e a que há é salobra e lodosa.

O nome dele era John Blackthorne. Estava sozinho no convés, à exceção do vigia no gurupês - Salamon, o mudo -, que se encolhia a sotavento, perscrutando o mar à sua frente.

O navio adernou com uma rajada repentina e Blackthorne agarrou-se ao braço da cadeira de convés amarrada perto do timão, no tombadilho, até que ele se aprumasse, os costados rangendo. Ele era o Erasmus, de duzentas e sessenta toneladas, uma belonave mercante de três mastros, proveniente de Rotterdam, armado com vinte canhões e único sobrevivente da primeira frota expedicionária enviada da Neerlândia para devastar o inimigo no Novo Mundo. Os primeiros navios holandeses a violar os segredos do estreito de Magalhães. Quatrocentos e noventa e seis homens, todos voluntários. Todos holandeses, com exceção de três ingleses - dois pilotos, um oficial. Suas ordens: saquêar as possessões espanholas e portuguesas no Novo Mundo e incendiá-las; estabelecer concessões de comércio permanentes; descobrir novas ilhas no oceano Pacífico que pudessem servir como bases permanentes e reivindicar o território para a Neerlândia; e, dentro de três anos, voltar para casa.

A Neerlândia protestante estava em guerra com a Espanha católica há mais de quatro décadas, combatendo para se livrar do julgo de seus odiados senhores espanhóis. A Neerlândia, às vezes chamada de Holanda, Terra dos Holandeses ou Países Baixos, ainda era legalmente parte do império espanhol. A Inglaterra, sua única aliada, o primeiro país da cristandade a romper com a corte papal em Roma e a tornar-se protestante uns setenta e tantos anos antes, também estava em guerra com a Espanha nos últimos vinte anos, e se aliara abertamente aos holandeses há uma década.

O vento avivou-se ainda mais e o navio balançou. Estava navegando sem velas, exceto pelo joanete, para tempestades. Ainda assim, a maré e a tempestade impeliam-no com força rumo ao horizonte enegrecido. Há mais tempestade lá, disse Blackthorne a si mesmo, e mais recifes e mais bancos de areia. E mar desconhecido. Bom. Enfrentei o mar a vida toda e sempre venci. Vencerei sempre.

Primeiro piloto inglês a atravessar o estreito de Magalhães.

Sim, o primeiro — e o primeiro a singrar aquelas águas asiáticas -, não considerando alguns bastardos portugueses ou espanhóis sem mãe, que ainda pensam que são os donos do mundo.

Primeiro inglês naqueles mares...

Tantos primeiros. Sim. E tantas mortes para derrotá-los.

Provou o vento novamente, cheirou-o, mas não havia indício de terra. Sondou o oceano, mas estava de um cinza sombrio e ameaçador. Nem um punhado de algas ou alguma mancha parda para dar sinal de algum banco de areia. Viu a crista de outro recife, longe, a estibordo, mas isso não lhe disse nada. Fazia um mês agora que esses afloramentos o ameaçavam, mas nem um vislumbre de terra. Esse infinito do oceano, pensou. Bom. É para isso que você foi treinado - navegar em mar desconhecido, fazer mapas dele e voltar para casa. A quantos dias de casa? Um ano, onze meses e dois dias. O último desembarque, no Chile, cento e trinta e três dias à popa, do outro lado do oceano que Magalhães cruzou pela primeira vez oitenta anos atrás, chamado Pacífico.

Blackthorne estava faminto, e tinha a boca e o corpo doídos por causa do escorbuto. Forçou os olhos para examinar a bússola, e o cérebro para calcular uma posição aproximada. Uma vez que a situação estivesse registrada no seu portulano - seu manual de mar -, ele estaria salvo nessa mancha de oceano. E se estivesse a salvo, seu navio também o estaria, e então, juntos, poderiam encontrar o Japão, ou mesmo o rei cristão Prestes João e seu império dourado que, segundo a lenda, se estendia ao norte de Catai, fosse onde fosse que Catai ficasse.

E com a minha parte das riquezas, velejarei de novo, rumo oeste, para casa, primeiro piloto inglês a jamais circunavegar o globo, e nunca abandonarei o lar novamente. Nunca. Pela cabeça do meu filho!

A chicotada do vento interrompeu seu devaneio e manteve-o desperto. Dormir agora seria tolice. Você nunca acordará desse sono, pensou, e esticou os braços para relaxar os músculos das costas com cãibras e estreitou mais a capa junto ao corpo. Viu que as velas estavam ajustadas e o timão amarrado com segurança.

O vigia do gurupês estava acordado. Então, pacientemente, afundou na cadeira e rezou por terra.

- Vá para baixo. Fico com este turno de vigia, se lhe agrada. - O terceiro imediato, Hendrik Specz, estava se içando para o passadiço, o rosto acinzentado de cansaço, os olhos encovados, a pele amarelada e com pústulas. Encostou-se pesadamente contra a bitácula para se firmar, sentindo um pouco de ânsia de vômito.

- Cristo abençoado, mijo no dia em que saí da Holanda!

- Onde está o imediato, Hendrik?

- No beliche dele. Não pode sair do beliche de scheit vull. E não sairá, pelo menos antes do Dia do Juízo.

- E o capitão-mor?

- Gemendo por comida e água. - Hendrik cuspiu. - Disse-lhe que vou assar um capão para ele e lhe levar numa bandeja de prata, com uma garrafa de conhaque para ajudar o frango a descer. Scheit-huist! Coot!

- Cale a boca!

- Vou calar, piloto. Mas ele é um imbecil roído de vermes, e morreremos por causa dele. - O jovem teve ânsias e cuspiu um catarro mosqueado. - Que Cristo abençoado me ajude!

- Vá para baixo. Volte ao amanhecer.

Hendrik arriou pesadamente sobre a outra cadeira de convés.

- Há o fedor da morte lá embaixo. Fico de vigia, se lhe agrada. Qual é a rota?

- Qualquer lugar para onde o vento nos leve.

- Onde está a terra que você nos prometeu? Onde está o Japão, onde está, pergunto eu?

- Em frente.

- Sempre em frente! Gottinhimmel, não fazia parte das nossas ordens navegar para o desconhecido. Devíamos estar de volta a casa nesta altura, a salvo, de barriga cheia, não à caça de fogo-de-santelmo.

- Vá para baixo ou cale essa boca!

Sombriamente, Hendrik desviou o olhar do homem alto e barbado. Onde estamos agora? queria perguntar. Por que não posso ver o portulano secreto? Mas sabia que não se fazem essas perguntas a um piloto, particularmente a este. Ainda assim, pensou, gostaria de estar tão forte e saudável como quando parti da Holanda. Então não esperaria. Esmagaria seus olhos cinza-azulados agora e arrebentaria esse meio sorriso de enlouquecer no rosto dele e o mandaria para o inferno, que é o que você merece. Aí eu seria capitão-piloto e teríamos um neerlandês comandando o navio — não um estrangeiro -, e os segredos estariam seguros para nós. Porque logo estaremos em guerra contra você, inglês. Queremos a mesma coisa: dominar o mar, controlar todas as rotas de comércio, dominar o Novo Mundo, e estrangular a Espanha.

- Talvez o Japão não exista - resmungou Hendrik. - É uma lenda Gottbewonden.

- Existe. Entre as latitudes trinta e quarenta norte. Agora cale a boca ou vá para baixo.

- Há morte lá embaixo, piloto - resmungou Hendrik, e olhou para a frente, como que devaneando. Blackthorne mudou de posição na sua cadeira de convés, o corpo doendo mais hoje. Você tem mais sorte do que a maioria, pensou, mais sorte do que Hendrik. Não, não mais sorte. Você é mais cuidadoso. Guardou suas frutas, enquanto os outros consumiram as deles despreocupadamente. Contra as suas advertências. Portanto agora o seu escorbuto ainda está brando, enquanto os outros têm hemorragias constantes, diarréia, os olhos injetados e lacrimejantes, e os dentes perdidos ou soltos na cabeça. Por que será que os homens nunca aprendem?

Sabia que todos o temiam, até o capitão-mor, e que a maioria o odiava. Mas isso era normal, pois era o piloto quem comandava no mar; era ele quem determinava a rota e dirigia o navio, ele quem os trazia de porto em porto.

Qualquer viagem, hoje, era perigosa, porque as poucas cartas de navegação que existiam eram tão vagas que se tornavam praticamente inúteis. E não havia absolutamente nenhum modo de determinar a longitude.

- Descubra como determinar a longitude e você será o homem mais rico do mundo - dissera-lhe seu velho professor, Alban Caradoc. — A rainha, que Deus a abençoe, lhe dará dez mil libras e um ducado pela resposta ao enigma. Os portugueses comedores de bosta lhe darão mais: um galeão de ouro. E os espanhóis sem mãe lhe darão vinte! Se não tem terra à vista, você está sempre perdido, mocinho. - Caradoc fizera uma pausa e meneara lentamente a cabeça, como sempre.

- Você está perdido, mocinho. A menos que...

- A menos que tenha um portulano! - exclamara Blackthorne alegremente, sabendo que aprendera bem a lição. Estava com treze anos naquela altura e já fazia um ano que era aprendiz de Alban Caradoc, piloto e construtor naval, que se transformara no pai que ele perdera, e que nunca lhe batera, mas ensinara, a ele e aos outros rapazes, os segredos da construção naval e da intimidade com o mar.

Um portulano era um livrinho que continha a observação detalhada de um piloto que estivera lá antes. Registrava percursos por bússolas magnéticas entre portos e cabos, promontórios e canais. Assentava a sondagem, profundidades e cor da água, e a natureza do leito do mar. Continha o como-chegamos-lá-e-como-voltamos: o tempo das tempestades e o de ventos propícios; onde querenar o navio e onde abastecer de água; onde havia amigos e onde inimigos; bancos de areia, recifes, marés, céus; numa palavra, todo o necessário para uma viagem segura.

Os ingleses, holandeses e franceses tinham portulanos para suas próprias águas, mas as águas do resto do mundo tinham sido navegadas apenas por capitães de Portugal e Espanha, e esses dois países consideravam todos os portulanos secretos. Portulanos que revelavam os caminhos marítimos do Novo Mundo ou elucidavam os mistérios do estreito de Magalhães e do cabo da Boa Esperança - ambos descobertas portuguesas -, e desse modo os caminhos marítimos para a Ásia, eram guardados como tesouros nacionais pelos portugueses e espanhóis, e procurados com igual ferocidade pelos inimigos holandeses e ingleses.

Mas um portulano era apenas tão bom quanto o piloto que o escrevera, o escriba que o copiara a mão, o raríssimo impressor que o imprimira, ou o acadêmico que o traduzira. Um portulano podia, por isso, conter erros. Até erros intencionais. Um piloto nunca sabia com certeza até que tivesse estado lá pessoalmente.

Pelo menos uma vez.

Ao mar o piloto era o líder, o único guia, o árbitro final do navio e da tripulação. Sozinho, comandava do tombadilho.

Isso é vinho forte, disse Blackthorne a si mesmo. E uma vez provado, era para não ser esquecido nunca, ser procurado sempre, o sempre necessário. É uma das coisas que mantêm a gente viva, enquanto outros morrem.

Levantou-se e satisfez suas necessidades nos embornais. Mais tarde a areia esgotou na ampulheta ao lado da bitácula, ele virou-a o tocou o sino do navio.

- Pode ficar acordado, Hendrik?

- Sim. Sim, acho que sim.

- Mandarei alguém para substituir o vigia do gurupês. Veja que ele fique ao vento e não a sotavento. Isso o manterá atento e desperto. — Por um momento perguntou a si mesmo se não deveria virar o navio contra o vento e seguir para a noite, mas decidiu em contrário, desceu para a gaiúta e abriu a porta do castelo de proa. A cabina se estendia por toda a largura do navio, e tinha beliches e espaços de redes para cento e vinte homens. O calor envolveu-o, ele se sentiu grato por isso e ignorou o mau cheiro sempre presente, vindo dos porões abaixo. Nenhum dos vinte e tantos homens moveu-se do seu beliche.

- Vá para cima, Maetsukker - disse em holandês, a língua franca dos Países Baixos, que ele falava perfeitamente, assim como o português, o espanhol e o latim.

- Estou às portas da morte - disse o homenzinho de feições astutas, encolhendo-se mais fundo no beliche. - Estou doente. Olhe, o escorbuto levou todos os meus dentes. Que Jesus nos ajude, vamos todos morrer! Não fosse por você, estaríamos todos em casa agora, a salvo! Sou um mercador. Não sou um marujo.

Não faço parte da tripulação... Pegue algum outro. Johann está... — Deu um berro quando Blackthorne o arrancou para fora do beliche e o arremessou contra a porta. Sua boca ficou salpicada de sangue e ele, completamente atordoado. Um pontapé brutal no lado fê-lo sair da letargia.

- Ponha a cara lá em cima e fique lá até morrer ou até que desembarquemos.

O homem escancarou a porta com um puxão e fugiu agoniado.

Blackthorne olhou os outros. Sustentaram-lhe o olhar fixamente.

- Como está se sentindo, Johann?

- Razoavelmente, piloto. Talvez eu viva.

Johann Vinck tinha quarenta e três anos, era o chefe de artilharia e imediato do contramestre, o homem mais velho a bordo. Estava sem cabelos e sem dentes, da cor de um carvalho velho o igualmente forte. Seis anos antes navegara com Blackthorne na malfadada busca da passagem nordeste, e cada um conhecia a capacidade do outro.

- Na sua idade a maioria dos homens já morreu, de modo que você está à frente de todos nós. - Blackthorne tinha trinta e seis.

Vinck sorriu melancolicamente.

- É o conhaque, piloto, isso mais a fornicação e a vida santa que levei.

Ninguém riu. Então alguém apontou para um beliche.

- Piloto, o contramestre morreu.

- Então levem o corpo para cima! Lavem-no e fechem-lhe os olhos! Você, você e você!

Os homens desta vez saíram rapidamente dos beliches e, juntos, meio arrastaram, meio carregaram o cadáver para fora da cabina.

- Pegue o quarto do amanhecer, Vinck. E Ginsel, você é vigia da proa.

- Sim, senhor.

Blackthorne voltou ao convés.

Viu que Hendrik ainda estava acordado, que o navio estava em ordem. O vigia substituído, Salamon, cambaleou à sua frente, mais morto do que vivo, os olhos inchados e vermelhos por causa do vento. Blackthorne atravessou o convés até a outra porta e desceu. O passadiço levava à grande cabina na popa, que era alojamento e paiol do capitão-mor. Essa cabina ficava a estibordo, e a outra, a bombordo, geralmente se destinava aos três imediatos.

Agora era compartilhada por Baccus van Nekk, o chefe dos mercadores, Hendrik, o terceiro imediato, e o rapaz, Croocq. Estavam todos muito doentes.

Dirigiu-se para a cabina grande. O capitão-mor, Paulus Spillbergen, estava deitado semiconsciente no beliche. Era um homem pequeno, corado, normalmente muito gordo, mas agora muito magro, a pele da barriga pendendo frouxamente em dobras. Blackthorne pegou um frasco de água de uma gaveta secreta e ajudou-o a tomar um pouco.

- Obrigado - disse Spillbergen fracamente. - Onde está a terra? Onde está a terra?

- À frente - replicou o outro, já sem acreditar nisso, depois guardou o frasco de água, fez-se surdo aos lamentos e partiu, sentindo renovar-se o ódio pelo capitão.

Há quase um ano, exatamente, haviam atingido a Terra do Fogo, com ventos favoráveis à travessia do desconhecido no estreito de Magalhães. Mas o capitão-mor ordenara um desembarque para procurar ouro e riquezas.

- Jesus Cristo, olhe para terra, capitão-mor! Não há riqueza alguma nesses ermos.

- A lenda diz que é rica em ouro e podemos reivindicar a terra para a gloriosa Neerlândia.

- Os espanhóis têm soldados aqui há cinqüenta anos.

Talvez. Mas talvez não tão ao sul, piloto-mor.

- Neste sul remoto, as estações são invertidas. Maio, junho, julho e agosto são de inverno rigoroso. O portulano diz que a época é crítica para atravessar o estreito. Os ventos mudam dentro de poucas semanas, depois teremos que ficar aqui e o inverno aqui dura meses.

- Quantas semanas, piloto?

- O portulano fala em oito. Mas as estações não são sempre iguais...

- Então exploraremos por umas duas semanas. Isso nos dá muito tempo, e depois, se necessário, iremos para o norte novamente e saquêaremos mais algumas cidades, hein, cavalheiros?

Temos que tentar agora, capitão-mor. Os espanhóis têm muito poucos navios de guerra no Pacífico. Digo que temos que ir em frente agora.

Mas o capitão-mor o ignorara e colocara o assunto à votação dos outros capitães não dos outros pilotos, um inglês e três holandeses -, e conduzira inúteis incursões de pilhagem a terra.

Os ventos mudaram cedo naquele ano e eles tiveram que passar o inverno lá, o capitão-mor com medo de seguir para o norte por causa das frotas espanholas. Passaram-se quatro meses até que pudessem velejar. Nessa altura, cento e cinqüenta e seis homens haviam morrido de inanição, frio e defluxo, e os outros estavam comendo as peles de bezerro que cobriam os cordames.

As terríveis tempestades dentro do estreito dispersaram a esquadra. O Erasmus foi o único navio que apareceu no local de encontro, ao largo do Chile. Esperaram um mês pelos outros e depois, com os espanhóis se aproximando, zarparam rumo ao desconhecido. O portulano secreto se detinha no Chile.

Blackthorne voltou pelo corredor e destrancou a porta da sua cabina, trancando-a de novo atrás de si. A cabina era de vigas baixas, pequena e arrumada, e ele teve que se curvar ao cruzá-la para se sentar à sua escrivaninha. Destrancou uma gaveta e desembrulhou com todo o cuidado a última das maçãs que armazenara tão cuidadosamente por todo o caminho desde a ilha Santa Maria, ao largo do Chile. A fruta estava machucada, minúscula, com bolor na parte estragada. Ele cortou um quarto. Havia alguns vermes dentro. Comeu-os junto com a polpa, atento à velha lenda do mar de que os vermes de maçã eram exatamente tão eficazes contra o escorbuto quanto a própria fruta, e que, esfregados nas gengivas, ajudavam a impedir que os dentes caíssem. Mastigou suavemente, porque os dentes doíam e as gengivas estavam sensíveis e inflamadas, depois tomou uns goles de água do odre de vinho. Tinha um gosto salobro. Em seguida embrulhou o resto da maçã e fechou-o a chave.

Um rato correu nas sombras, delineado pela lanterna de óleo pendurada acima da cabeça de Blackthorne. Os costados rangeram agradavelmente. Algumas baratas se atropelaram pelo chão.

Estou cansado. Estou muito cansado.

Deu uma olhada no beliche. Comprido, estreito, o convidativo colchão de palha.

Estou tão cansado.

Vá dormir uma hora, disse a sua metade má. Dez minutos, que sejam, e você estará revigorado por uma semana. Faz dias que você só dorme algumas horas, e a maior parte disso lá em cima, ao frio. Você tem que dormir. Dormir. Eles contam com você...

- Não vou dormir, durmo amanhã - disse ele em voz alta, e fez força com a mão para destrancar o baú e tirar o portulano.

Viu que o outro, em português, estava seguro e intacto, e isso o deixou contente. Pegou uma pena limpa e começou a escrever:

"12 de abril de 1600. Quinta hora. Crepúsculo. 133.° dia desde a ilha Santa Maria, Chile, no grau 32 norte da linha de latitude.

Mar ainda alto, vento forte e o navio mastreado como antes. Cor do mar de um monótono cinza esverdeado e insondável. Ainda estamos correndo com o vento num curso de 270 graus, virando para nor-noroeste, avançando rapidamente, cerca de duas léguas, cada uma de três milhas, por hora. Grandes recifes em forma de triângulo foram avistados a meio grau de longitude apontando para nordeste em direção norte, a meia légua de distância.

"Três homens morreram de escorbuto à noite: Joris, veleiro, Reiss, artilheiro, e o segundo imediato, De Haan. Depois de encomendar-lhes as almas a Deus, visto que o capitão-mor ainda está doente, lancei-os ao mar sem mortalhas, pois não havia ninguém para fazê-las. Hoje o Contramestre Rijckloff morreu.

"Não pude medir o desvio do sol ao meio-dia de hoje, novamente por causa da nebulosidade. Mas calculo que ainda estejamos na rota e que o desembarque no Japão ocorra logo..."

- Mas quão logo? - perguntou à lanterna que pendia acima de sua cabeça, oscilando com o jogo do navio. Como fazer uma carta? Deve haver um modo, disse ele a si mesmo pela milionésima vez. Como determinar a longitude? Deve haver um modo. Como conservar os vegetais frescos? O que é escorbuto?...

- Dizem que é um defluxo do mar, rapaz - dissera Alban Caradoc. Era um homem generoso, de ventre avantajado, com uma encaracolada barba grisalha.

- Mas não se podem ferver as verduras e conservar o caldo?

- Estragam, mocinho. Ninguém jamais descobriu um modo de armazená-las.

- Dizem que Francis Drake vai zarpar em breve.

- Não. Você não pode ir, menino.

- Tenho quase catorze anos. Você deixou Tim e Watt se engajarem e Drake precisa de pilotos aprendizes.

- Eles têm dezesseis anos. Você só tem treze.

- Dizem que ele vai tentar atravessar o estreito de Magalhães, depois subir a costa para a região inexplorada, para as Califórnias, para encontrar os estreitos de Amian, que unem o Pacífico ao Atlântico. Das Califórnias, para a Terra Nova e para a passagem noroeste finalmente...

- A suposta passagem noroeste, mocinho. Ninguém comprovou essa lenda ainda.

- Ele fará isso. É almirante agora e seremos o primeiro navio inglês a atravessar o estreito de Magalhães, o primeiro no Pacífico, o primeiro. Nunca terei outra chance como essa.

- Oh, sim, terá, e ele nunca violará o segredo do caminho de Magalhães, a menos que possa roubar um portulano ou capturar um piloto português para guiá-lo. Quantas vezes eu preciso lhe dizer: um piloto tem que ter paciência. Aprenda paciência, menino. Você tem...

- Por favor?

- Não.

- Por quê?

- Porque ele ficará fora dois, três anos, talvez mais. Os fracos e os jovens ficarão com a pior comida e com o mínimo de água. E dos navios que vão, só o dele retornará. Você nunca sobreviveria, menino.

- Então vou me engajar apenas para o navio dele. Sou forte. Ele me aceitará!

- Ouça, menino, estive com Drake no Judith, seu navio de cinqüenta toneladas, em San Juan de Ulua, quando nós e o Almirante Hawkins, que estava no Minion, abrimos nosso caminho a força para fora da enseada, por entre os espanhóis comedores de bosta. Estávamos comerciando escravos da Guiné para o Spanish Main 1, mas não tínhamos licença espanhola para o comércio e eles lograram Hawkins e armaram uma cilada para a nossa esquadra. Tinham treze navios grandes, nós, seis. Afundamos três dos deles, e eles nos afundaram o Swallow, o Angel, o Caravelle e o Jesus of Lubeck. Oh, sim, Drake conseguiu nos arrancar da emboscada e nos trouxe para casa. Com onze homens a bordo para contar a história. Hawkins tinha quinze. Isso de quatrocentos e oito excelentes lobos-do-mar. Drake é inclemente, menino. Quer glória e ouro, mas só para si, e muitos homens morreram para provar isso.

- Mas eu não morrerei. Serei um dos...

- Não. Você é aprendiz por doze anos. Tem mais dez, depois está livre. Mas até lá, até 1588, vai aprender como construir navios e como comandá-los. Obedecerá a Alban Caradoc, mestre construtor naval, piloto e membro da Trinity House, ou nunca terá uma licença. E se não tiver uma licença, jamais pilotará qualquer navio em águas inglesas, nunca comandará o tombadilho de qualquer navio inglês em quaisquer águas, porque essa foi a lei do bom Rei Harry, Deus conserve a sua alma. Foi lei da grande prostituta Maria Tudor, que sua alma esteja no inferno, é lei da rainha, que ela possa reinar para sempre, é lei da Inglaterra, e é a melhor lei marítima que jamais existiu.

Blackthorne lembrou-se de como odiara seu mestre então, e odiara a Trinity House, o monopólio criado por Henrique VIII em 1514 para o treinamento e licenciamento de todos os pilotos e mestres ingleses, e odiara seus doze anos de semi-escravidão, sem os quais sabia que nunca conseguiria a única coisa no mundo que queria. E odiara Alban Caradoc ainda mais quando, para glória eterna de Drake, este e sua corveta de cem toneladas, a Golden Hind, voltaram miraculosamente à Inglaterra após desaparecerem por três anos, o primeiro navio inglês a circunavegar o globo, trazendo a bordo o saquê mais rico jamais trazido àquelas praias: um incrível milhão e meio de esterlinos em ouro, prata e especiarias.

Que quatro dos cinco navios estivessem perdidos e oito em cada dez homens estivessem perdidos, e Tim e Watt estivessem perdidos, e um piloto português capturado houvesse conduzido a expedição para Drake através de Magalhães para o Pacífico, não lhe diminuíram o ódio; que Drake tivesse enforcado um oficial, excomungado o Capelão Fletcher e fracassado na tentativa de encontrar a passagem noroeste não diminuíram a admiração nacional por ele. A rainha tomou cinqüenta por cento do tesouro e o armou cavaleiro. A pequena nobreza e os comerciantes que haviam levantado o dinheiro para a expedição receberam trezentos por cento de lucro e suplicaram para subscrever a sua próxima viagem de corsário. E todos os marujos imploraram para navegar com ele, porque ele realmente conseguia pilhagem, realmente voltava para casa, e, com a parte de cada um no butim, os poucos felizardos que sobrevivessem estariam ricos pela vida toda. Eu teria sobrevivido, disse Blackthorne a si mesmo. Teria. E minha parte do tesouro depois teria sido suficiente para.. .

- Rotz vooruiiiiiiiiiit! Recife à frente!

De imediato ele mais sentiu do que ouviu o grito. Depois, misturado à ventania, ouviu novamente o grito lamentoso.

Saiu da cabina, subiu a gaiúta até o tombadilho, o coração martelando, a garganta ressecada. Era noite escura agora, chovia torrencialmente, e ele momentaneamente exultou, pois sabia que os coletores de chuva, de lona, feitos há tantas semanas atrás, logo estariam transbordando. Abriu a boca à chuva quase horizontal e provou-lhe a doçura, depois voltou as costas às rajadas de água e vento.

Viu que Hendrik estava paralisado de terror. O vigia do gurupês, Maetsukker, agachado perto da proa, gritava incoerentemente, apontando para a frente. Então também olhou para além do navio.

O recife estava umas poucas duzentas jardas à frente, grandes garras negras marteladas pelo mar faminto. A linha espumante de rebentação se estendia a bombordo e estibordo, quebrada intermitentemente. O temporal levantava imensas faixas de espuma e as atirava contra a escuridão da noite. Uma adriça de vante rompeu-se e o topo do mastro mais alto e imponente foi arrebatado.

O mastro estremeceu na base, mas agüentou, e o mar continuou impelindo o navio inexoravelmente para a morte.

- Todas as mãos no convés! - berrou Blackthorne, e tocou o sino com violência.

O barulho arrancou Hendrik do seu estupor.

- Estamos perdidos! — gritou em holandês. — Oh, que Jesus nos ajude!

- Ponha a tripulação no convés, seu bastardo! Você estava dormindo! Vocês dois estavam dormindo! - Blackthorne empurrou-o na direção da gaiúta, agarrou-se ao timão, soltou-lhe a amarra de proteção dos raios, amarrou-se e girou o timão com dificuldade para bombordo.

Aplicou toda a sua força contra o leme que disparava, impelido pela torrente. O navio estremeceu inteiro, depois a proa começou a pender com rapidez cada vez maior à medida que o vento a forçava para baixo. Os joanetes de tempestade enfunaram e corajosamente tentaram carregar todo o peso do navio, e todas as cordas agüentaram o esforço, rangendo. O mar elevou-se acima deles e estavam avançando paralelamente ao recife quando Blackthorne viu o vagalhão. Berrou um aviso aos homens que estavam vindo do castelo de proa e agarrou-se para salvar a vida.

O mar se abateu sobre o navio, que adernou, e Blackthorne pensou que aquilo era o fim, mas o barco se sacudiu como um terrier molhado e voltou para fora da depressão. A água caía em cascatas através dos embornais e ele ofegava, respirando com dificuldade. Viu que o cadáver do contramestre, colocado no convés para sepultamento no dia seguinte, se fora, e que a onda seguinte se aproximava ainda mais forte. Quando os atingiu, apanhou Hendrik e o ergueu, resfolegante e lutando. Outra onda estrondeou através do convés. Blackthorne passou um braço pelos raios do timão e a água passou por ele. Hendrik estava cinqüenta jardas a bombordo. A retração da água tragou-o, depois um vagalhão gigantesco atirou-o acima do navio, manteve-o lá por um instante, gritando, depois levou-o, reduziu-o a pasta contra a crista de um rochedo e o devorou. O navio apontou para o mar, tentando avançar. Outra adriça cedeu e a roldana e o guincho giraram furiosamente, até se enroscar com o cordame.

Vinck e outro homem se arrastaram pelo tombadilho e se debruçaram sobre o timão, para ajudar. Blackthorne podia ver o recife intruso a estibordo, mais perto agora. À frente e a bombordo havia mais afloramentos, mas ele viu brechas aqui e ali.

- Suba, Vinck! Traquetes, ho!

Pé ante pé Vinck e dois marujos se arrastaram para os ovens do cordame do mastro de proa, enquanto outros, embaixo, se inclinavam sobre as cordas para lhes dar uma mão.

- Atenção à frente! - berrou Blackthorne.

O mar espumava ao longo do convés. Levou outro homem e trouxe o cadáver do contramestre novamente para bordo. A proa elevou-se fora da água e veio abaixo mais uma vez, trazendo mais água para bordo. Vinck e os outros homens amaldiçoaram a vela que escapara das cordas. Abruptamente ela enfunou, soltando um estouro como uma canhonada quando o vento a inflou, e o navio deu uma guinada.

Vinck e seus ajudantes ficaram pendurados lá, balançando sobre o mar, depois começaram sua descida.

- Recife, recife à frente! - berrou Vinck.

Blackthorne e o outro homem giraram o timão para estibordo. O navio hesitou, depois virou e soltou um guincho quando os rochedos, ligeiramente à flor da água, lhe encontraram o costado. Mas foi um golpe oblíquo e a ponta do rochedo esmigalhou-se. Os costados permaneceram ilesos e os homens a bordo começaram a respirar mais uma vez. Blackthorne viu uma brecha no recife à frente e dirigiu o navio para ela. O vento estava mais forte agora, o mar mais furioso. O navio desviou com uma rajada e o timão escapou-lhe das mãos. Juntos agarraram-no e lhe estabeleceram a rota de novo, mas ele se sacudiu e girou como bêbado. O mar inundou o convés e irrompeu contra o castelo de proa, esmagando um homem contra o tabique, o convés inteiro alagado como o de cima.

- As bombas! - gritou Blackthorne. Viu dois homens descerem.

A chuva açoitava-lhe o rosto e ele mantinha os olhos meio fechados por causa da dor. A luz da bitácula e a da popa tinham-se apagado há muito. Depois, quando outra rajada atirou o navio para mais longe de sua rota, o marujo escorregou e novamente o timão escapou do aperto. O homem guinchou quando um raio do leme lhe esmagou o lado da cabeça e o prostrou à mercê do mar.

Blackthorne puxou-o para cima e segurou-o até que o vagalhão espumante passasse. Então viu que o homem estava morto e deixou-o afundar-se na cadeira de convés, até que a onda seguinte varreu-o de lá.

O corte através do recife estava três pontos a barlavento e, por mais que tentasse, Blackthorne não conseguia alcançá-lo. Procurou desesperadamente um outro canal, mas sabia que não havia nenhum, de modo que deixou o navio virar para sotavento momentaneamente para ganhar velocidade, depois virou-o com dificuldade para barlavento novamente. A embarcação conseguiu se pôr na rota e manteve o curso.

Houve um estremecimento lamentoso, atormentado, quando a quilha raspou nas saliências aguçadas embaixo, e todos a bordo imaginaram ver os costados de carvalho rebentar em pedaços e o mar jorrar. O navio oscilou para a frente, fora de controle agora.

Blackthorne gritou por ajuda mas ninguém o ouviu, então bateu-se sozinho com o timão, contra o mar. Foi atirado para o lado uma vez, mas tateou de volta e agarrou-o novamente, perguntando na sua mente anuviada como o leme sobrevivera tanto tempo.

Na parte mais estreita do passo, o mar se transformou num redemoinho, dirigido pela borrasca e cercado pelos rochedos.

Ondas imensas se esmagavam contra o recife, depois retrocediam oscilantes para combater o intruso, até que começaram a lutar entre si e atacaram de todos os quadrantes da bússola. O navio foi sugado para o turbilhão, adernando e indefeso.

- Mijo em você, tempestade! - enfureceu-se Blackthorne.

- Tire suas mãos do meu navio!

O timão escapou de novo e atirou-o para longe. O convés balançou de modo a causar náuseas. O gurupês atingiu um rochedo e despedaçou-se, parte do cordame com ele. O navio se aprumou. O mastro de proa estava retesado como um arco e trincou com um estalo. Os homens no convés lançaram-se ao cordame com machados para cortá-lo a esmo, enquanto o navio se debatia pelo canal enraivecido. Soltaram o mastro com alguns golpes e ele caiu para o lado, levando um homem consigo, apanhado no emaranhado de cordas. O homem gritou, mas não havia nada que os outros pudessem fazer, então observaram quando ele e o mastro apareceram e desapareceram, depois não voltaram mais.

Vinck e os outros que estavam à esquerda olharam para trás, para o tombadilho, e viram Blackthorne desafiando a tempestade como um louco. Persignaram-se e redobraram suas preces, alguns chorando de medo e temerosos pela própria vida.

O estreito alargou-se por um instante e o navio diminuiu a marcha, mas à frente estreitou-se agourentamente de novo e os rochedos pareceram crescer, para se elevarem acima deles. A correnteza ricocheteou para um lado, levando o navio consigo, virou-o de través novamente e lançou-o com violência para a destruição.

Blackthorne parou de amaldiçoar a tempestade, forçou o timão para bombordo e pendurou-se nele, seus músculos contraídos ante o esforço. Mas o navio não reconhecia mais o seu leme, tampouco o mar.

- Vire, sua prostituta do inferno! - ofegou ele, sua força esgotando-se rapidamente. - Ajudem-me!

A correnteza acelerou e ele sentiu o coração prestes a estourar, mas ainda se esforçou contra a pressão do mar. Tentou manter os olhos atentos, mas sua visão vacilou, as cores erradas e fanadas. O navio estava na garganta e morto, mas exatamente nesse momento a quilha se esmagou num baixio de lama. O choque virou-lhe a proa. O leme cedeu à força do mar. E então o vento e o mar uniram-se para ajudar e, juntos, lançaram-no para a frente do vento, fazendo-o disparar através do estreito para a segurança. Para a baía à frente.


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