gradiva
OBRAS DO AUTOR
ENSAIO
Comunicação, Difusão Cultural, 1992; Prefácio, 2001.
Crónicas de Guerra I— Da Crimeia a Dachau, Gradiva, 2001;
Círculo de Leitores, 2002. Crónicas de Guerra II
— De Saigão a Bagdade, Gradiva, 2002;
Círculo de Leitores, 2002. A Verdade da Guerra, Gradiva, 2002; Círculo de Leitores, 2003.
FICÇÃO
A Ilha das Trevas, Temas & Debates, 2002; Círculo de Leitores,
2003; Gradiva, 2007. A Filha do
Capitão, Gradiva, 2004. O Codex
632, Gradiva, 2005. A Fórmula de
Deus, Gradiva, 2006. O Sétimo Selo,
Gradiva, 2007. A Vida Num Sopro,
Gradiva, 2008. Fúria Divina, Gradiva,
2009.
CONTACTO COM O AUTOR
Se desejar entrar em contacto com o autor para comentar o romance Fúria Divina, escreva para o e-mail
jrsnovels@gmail.com
O autor terá o maior gosto em responder a qualquer leitor que se lhe dirija a propósito desta obra.
J O S É R O D R I G U E S D O S S A N T O S
FÚRIA DIVINA
r o m a n c e
gradiva
© José Rodrigues dos Santos/Gradiva
Publicações, S. A. Revisão de texto: Helena Ramos Capa: foto: © Corbis/VMI
design gráfico: Armando Lopes Sobrecapa: foto: ©
Time & Life Pictures/Los Alamos National Laboratory/Getty Images design gráfico: Armando Lopes Fotocomposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, L: Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva Publicações, S.A.
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Lisboa Telef. 21 393 37 60 — Fax 21 395 34 71 Dep.
comercial: Telefs. 21 397 40 67/8 — Fax 21 397 14
11 geral@gradiva.mail.pt / www.gradiva.pt 1." edição: Outubro de 2009 Depósito legal n.° 298 260/2009
ISBN: 978-989-616-338-9
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Editor: Guilherme Valente Visite-nos na Internet
www.gradiva.pt
A aquisição de armas para a defesa dos muçulmanos é um dever religioso. Se eu realmente adquiri essas armas (nucleares), então agradeço a Deus. E se eu tento adquirir essas armas limito-me a cumprir um dever. Seria pecado os muçulmanos não tentarem possuir as armas que podem impedir os infiéis de infligir sofrimento aos muçulmanos.
Osama Bin Laden, Afeganistão, 1998
A todos os crentes que amam e não odeiam Às minhas três mulheres, Florbela, Catarina e Inês Aviso
Todas as referências técnicas
e históricas e todas as citações religiosas incluídas neste romance são verdadeiras.
Este romance foi revisto por um dos primeiros operacionais da Al-Qaeda.
Prólogo
As luzes dos faróis rasgaram a noite glacial, prenunciando um fragor cavado que logo se ouviu a aproximar. O camião percorreu a Prospekt Lenina devagar, o estrépito do motor sempre em crescendo, e abrandou quando chegou perto do portão. O veículo virou lentamente, galgou a ladeira com um ronco de esforço e imobilizou-se diante das grades do portão, os travões a soltarem um guincho desafinado, o motor a bufar de exaustão.
A sentinela sonolenta abandonou a casamata, o corpo encolhido no sobretudo e a Kalasbnikov displicentemente a tiracolo, e acercou-se do condutor.
"O que se passa?", perguntou o soldado, mal-humorado por se ver forçado a largar o aconchego do abrigo e a enfrentar o agressivo frio exterior. "Que estão aqui a fazer?"
"Viemos efectuar uma entrega", disse o motorista, exalando pela janela um denso vapor de respiração.
A sentinela franziu o sobrolho, intrigada.
"A esta hora? Tchort! Já são quase duas da manhã..." O rosto do motorista chamou-lhe a atenção. Tinha a tez trigueira e os olhos negros cintilantes, a fisionomia típica de um homem do Cáucaso. "Mostrem-me os documentos."
O motorista baixou a mão direita e extraiu um objecto da sombra.
"Estão aqui", disse.
O soldado apenas teve tempo de perceber que o condutor do camião lhe apontava aos olhos um cano protegido por um silenciador.
Ploc.
Sem um gemido sequer, a sentinela tombou de costas, como um boneco articulado, o corpo a emitir apenas o som abafado de um saco a cair no chão, um esguicho de sangue a jorrar da nuca sobre a neve enlameada.
"Agora!", exclamou o motorista, voltando a cabeça para trás.
Obedecendo ao plano previamente delineado, quatro homens saltaram da carga do camião, todos eles fardados como soldados do exército russo, o número do regimento 3445 cosido ao tecido. Dois deles foram recolher o corpo do soldado e guardá-lo na carga, um outro limpou a neve ensanguentada enquanto o quarto desapareceu na casamata.
O portão abriu-se com um zumbido eléctrico e, sem recolher o homem que deixara na casamata, o camião cruzou uma placa suja a anunciar PO Mayak em caracteres cirílicos e entrou no perímetro.
O complexo era enorme, mas o motorista sabia muito bem para onde ir. Viu os edifícios de pesquisa de Chelyabinsk-60 e, conforme havia sido combinado, estacionou na berma, pegou no telemóvel e digitou os números.
"/4//of", respondeu uma voz do outro lado.
"Coronel Pryakhin?"
"Sim?"
"Estamos cá dentro, no local combinado."
"Muito bem", respondeu a voz. "Venha agora para o complexo químico e siga os procedimentos delineados."
O camião arrancou e seguiu em direcção ao eufemis-ticamente designado "complexo químico". O
veículo percorreu a estrada, passou pela Zavod 235
e aproximou-^e das instalações de armazenamento do complexo.
Um muro de cimento com arame farpado no topo apareceu à direita. A estrada desembocou numa casa da guarda, e o motorista sabia que havia mais duas noutros pontos do muro. Entre a casinha e o portão, uma tabuleta desgastada por manchas de ferrugem indicava Rossiyskoye Hranilichshe Delyascbyksya Materialov.
Sempre a seguir o plano de operações, o condutor do camião estacionou num canto discreto diante do casinhoto, desligou o motor e os faróis, voltou a digitar os números do telemóvel, deixou tocar duas vezes, desligou e ficou a aguardar.
O portão começou a dobrar-se automaticamente.
Logo a seguir foi a vez de se abrir a porta do casinhoto, deixando a luz do interior recortada como um fio, e um homem saiu para a rua. Pelo boné percebia-se que se tratava de um oficial do exército. O militar olhou em redor, como se procurasse alguma coisa, e o motorista fez uma piscadela com os faróis para se fazer notar.
O oficial viu as luzes ligarem e desligarem e, acto contínuo, dirigiu-se ao camião em passo apressado.
"Komsomolskaya", exclamou o oficial, dando a senha.
"Pravda", respondeu o motorista com a contra-senha.
O militar saltou para o lugar ao lado do condutor, que o cumprimentou com um aceno de cabeça.
"Privet, coronel. Está tudo bem?"
"Normalno, meu caro Ruslan", assentiu Pryakhin com uma voz tensa, fazendo um gesto impaciente.
"Vamos. Não há tempo a perder."
Ruslan encaixou as mudanças e o camião arrancou em direcção ao portão aberto. O veículo passou lentamente a casa da guarda e franqueou o portão, entrando no perímetro do complexo químico.
"E agora?"
O coronel russo apontou para uma porta à esquerda.
"Estacione frente àquela porta de serviço."
O camião posicionou-se diante da porta e, sem desligar o motor para impedir que ele congelasse, Ruslan gritou uma ordem para a carga. De imediato cinco homens saltaram do veículo. O motorista apeou-se também e deu novas ordens; claramente, era ele quem estava no comando. Da carga foram retiradas duas pequenas arcas metálicas.
"Davai, davaü", grunhiu nervosamente o coronel Pryakhin, tentando apressá-los. "Mexam-se!"
Com as duas arcas na sua posse, e deixando para trás apenas um homem de guarda ao camião, os cinco acompanharam o oficial russo em direcção à entrada de serviço e penetraram no edifício.
A temperatura lá dentro era acolhedora e os intrusos tiraram as luvas, mas mantiveram os sobretudos. Ruslan olhou em redor, avaliando as instalações. O interior era iluminado por uma luz amarelada e as paredes de betão pareciam incrivelmente grossas.
"Têm oito metros de espessura", disse o coronel ao ver Ruslan a contemplar as paredes. Apontou para cima. "E o tecto está coberto por cimento, alcatrão e cascalho."
O oficial russo conduziu os intrusos pelos corredores desertos, virando consecutivamente à direita e à esquerda, até que se imobilizou numa esquina e olhou para trás, encarando Ruslan.
"Daqui para a frente já não vou", sussurrou. "No próximo corredor situa-se a sala de monitorização vídeo, que vigia o acesso e também todo o interior do cofre. Comojá vos^expli-quei, estão lá dois homens.
Mais à frente, ao fundo do corredor, há umas escadas e lá em cima fica a antecâmara com a entrada do cofre. Lembrem-se de que os dois funcionários que lá se encontram são imprescindíveis para aceder ao cofre. Um tem uma parte do código, o outro tem a outra. Se vocês apenas controlarem um deles, só terão acesso a metade do código. E por isso que..."
"Eu sei", cortou Ruslan com súbita rispidez, como quem ordena silêncio.
O coronel calou-se por um momento e fitou intensamente o chefe do comando, a avaliá-lo. Estava habituado a dar ordens àquele tipo de gente, não a recebê-las.
"Boa sorte", resmungou enfim.
Ruslan voltou-se para trás e cravou os olhos em dois dos seus homens.
"Malik. Aslan." Fez um movimento curto com a cabeça. "Vão."
Os dois homens empunharam as pistolas com silenciadores, cruzaram a esquina e avançaram em surdina pelo corredor. No lado direito abria-se uma porta e lá dentro havia luz. Mergulharam ambos nessa sala e, de imediato, houve uma breve agitação, que culminou em quatro plocs surdos das armas a serem disparadas.
Sem esperar pelos companheiros, Ruslan e os outros dois homens avançaram pelo corredor com as duas arcas que tinham trazido do camião e só pararam quando se lhes depararam as escadas.
Escalaram-nas com cautela e deram com a antecâmara; era uma sala protegida por grades, parecia uma jaula.
"Quem vem aí?", perguntou uma voz. Um quarentão barrigudo ergueu-se de uma secretária e aproximou-se das grades para encarar os desconhecidos. "Quem são vocês?"
"Sou o tenente Ruslan Markov", identificou-se o desconhecido do outro lado das grades, fazendo continência. Apontou para as duas arcas que os seus companheiros traziam. "Viemos da fábrica química de Novossibirsk com material para armazenar."
"A esta hora?", estranhou o barrigudo. "Isto não é regulamentar. Qual é o protocolo que vocês estão a seguir?"
Depois de passar os olhos pela placa com o nome que o barrigudo ostentava ao peito, Ruslan extraiu o telemóvel e digitou um número. Ao segundo toque, uma voz atendeu do outro lado e Ruslan estendeu o telemóvel por entre as grades.
"É para si."
O barrigudo olhou o telemóvel com surpresa e, as sobrancelhas cerrando-se num ar intrigado, pegou no aparelho e encostou-o ao ouvido.
"A//of"
"Vitaly Abrosimov?", perguntou uma voz do outro lado da linha.
"Sim, sou eu. Quem fala?" "Vou-lhe passar a sua filha Irina."
Ouviu-se um som embrulhado no outro lado e um fio trémulo e medroso de voz percorreu a linha.
"Está? Pai?" "Irisha?"
"Paizinho." A filha soluçou, a voz molhada pelas lágrimas. "Eles dizem que me matam. Matam-me a mim e à mãezinha." "O quê?"
"Têm armas, paizinho." Mais um soluço. "Dizem que nos
matam. Por favor, vem..."
^ m
A frase foi interrompida por um clic e seguiu-se o som contínuo característico de linha desligada.
"Irisha!"
Os olhares de Vitaly e de Ruslan cruzaram-se entre as grades, um de receio e interrogação, o outro de autoridade e afirmação.
"Abre a porta!", ordenou Ruslan.
Vitaly recuou um passo, sem saber o que fazer, o medo estampado no rosto.
"Quem são vocês? O que desejam?"
"Queres ver a tua família viva?", perguntou o intruso, retirando do bolso uma máquina fotográfica digital. Ligou a câmara e exibiu o pequeno ecrã na direcção de Vitaly. "Olha esta fotografia. Foi tirada há uma hora em Ozersk."
O barrigudo viu no ecrã a imagem da filha e da mulher, ambas a chorar, cada uma com os cabelos agarrados por uma mão masculina e a lâmina serrada de uma faca militar colada ao pescoço.
"Meu Deus!"
"Abre a porta imediatamente!", ladrou Ruslan, guardando a máquina.
Com as mãos a tremer, Vitaly tirou a chave do bolso das calças e apressou-se a destrancar a porta.
Os três homens entraram de rompante na antecâmara, as Kalashnikov apontadas para o guardião do cofre.
"Por favor, deixem-nas em paz", implorou Vitaly, recuando e com as mãos coladas numa prece. "Elas não fizeram nada, deixem-nas em paz."
Ruslan fixou os olhos negros na grande porta de aço ao fundo da antecâmara, o símbolo nuclear colado ao centro.
"Abre o cofre!"
"Não lhes façam mal."
O intruso pegou em Vitaly pelos colarinhos e puxou-o para si.
"Ouve-me bem, pedaço de esterco", rosnou. "Se abrires este cofre e os alarmes soarem, garanto-te que as tuas meninas serão cortadas aos bocadinhos, percebeste?"
"Mas não sou só eu quem tem o código..."
"Eu sei", assentiu Ruslan. "Chama o teu amiguinho.
Mas sem levantar suspeitas, hã?"
Sempre a tremer e com gotas de transpiração a escorrerem--lhe da testa, Vitaly sentou-se na secretária, respirou fundo, pegou no telefone e digitou o número.
"Misha, vem cá." Pausa. "Sim, agora. Preciso de ti."
Mais uma pausa. "Eu sei que é tarde, mas preciso de ti imediatamente." Ainda outra pausa. "Blin, vem cá, já te disse! Despacha-te, anda."
Desligou o telefone.
"Onde está ele?", quis saber Ruslan.
Vitaly olhou de esguelha para uma porta lateral.
"No quarto, a dormir. Não se esqueçam de que são duas da manhã."
Ruslan olhou para os dois homens que o acompanhavam e fez um gesto na direcção da porta.
Sem uma palavra, os elementos do seu comando foram imediatamente pôr-se em posição, ambos encostados à parede, um de cada lado da passagem.
A porta abriu-se e o rapaz que entrou foi imediatamente agarrado por trás.
"O que é isto?", protestou.
Ruslan ergueu a pistola, colou aos lábios o cano com o silenciador e arregalou os olhos. "Caluda!"
Sentindo-se imobilizado por dois homens e vendo um militar armado diante dele na antecâmara, o rapaz achou melhor obedecer.
"Tu e o Vitaly vão abrir o cofre."
O rapaz olhou para a porta de aço, incrédulo.
"O quê?"
Ruslan deu um passo em frente e fitou-o com intensidade.
"Presta atenção a isto que te vou dizer", murmurou, as palavras impregnadas de um tom de agressão latente. "Eu sei que existe um código secreto que abre o cofre e que ao mesmo tempo activa o alarme. Não é esse código que vais accionar.
Eu quero o verdadeiro código, percebeste?"
"Sim."
Ruslan sorriu sem humor e retirou a máquina fotográfica do bolso.
"Eu sei no que estás a pensar", disse, enquanto voltava a ligar a câmara. "Dizes-me que não activas alarme nenhum, metes o código de alarme e, cinco minutos depois, catra-pumba!, isto está cheio de homens do 3445." Colou o dedo às têmporas do rapaz. "Péssima ideia, Mikhail Andreev. Péssima ideia." Voltou o pequeno ecrã da máquina digital na direcção do seu prisioneiro. "Esta fotografia foi tirada há uma hora. Reconheces alguém?"
Mikhail fixou o ecrã e arregalou os olhos de horror.
"lulia!"
O ecrã mostrava o rosto choroso da mulher, com o bebé ao colo e os canos de duas Kalashnikov apontados às cabeças.
"Oh, que bonitos que eles estão!", exclamou Ruslan num tom carregado de ironia. "A linda Iulia e o pequeno Sasha!" Guardou a câmara no bolso. "Se por acaso aparecer por aqui algum rapaz do 3445 depois de vocês abrirem o cofre, juro-te por Deus que os meus homens que estão no teu apartamento, em Ozersk, de imediato enviarão a tua família para o Inferno. Está claro?"
"Não lhes façam mal, por favor."
"A segurança das vossas famílias depende de vós, não de nós. Se vocês se portarem bem, irá correr tudo às mil maravilhas. Se se portarem mal, isto vai acabar num banho de sangue. Entendido?"
Mikhail e Vitaly assentiram com as cabeças, a capacidade de resistência reduzida a nada.
Satisfeito, Ruslan deu um passo atrás e fez sinal aos seus homens de que largassem Mikhail.
"Juizinho, hem?"
Nesse instante chegaram à antecâmara os dois homens que haviam ficado para trás, a "limpar" a sala de monitorização vídeo. Um deles acenou com uma cassete, como se exibisse um troféu.
"Tudo tratado."
"Bom trabalho", disse Ruslan num registo monocórdico. Dirigiu-se para a porta do cofre e olhou para os dois prisioneiros. "Metam o código."
Trémulos, em estado de choque, os dois aproximaram-se, inclinaram-se sobre a caixa que controlava o ferrolho da porta de aço e, à vez, digitaram os números que lhes competiam. A grande porta emitiu um clac, fez o barulho expirado de descompressão e destrancou.
Com cuidado, Ruslan rodou o manípulo e a porta do cofre soltou-se.
"Abre-te sésamo!", exclamou com um sorriso.
Chamar cofre ao que os intrusos viram abrir-se diante deles depressa lhes pareceu demasiado redutor. A porta de aço deu-lhes acesso a um enorme armazém ch#io de contentores com símbolos de radioactividade expostos em cada um dos lados. Os contentores estavam amontoados uns em cima dos outros, mas com corredores entre eles, como ruas a separar blocos de apartamentos.
Ruslan virou-se para Vitaly.
"Como está isto organizado?"
O russo barrigudo apontou para o interior do grande armazém.
"O plutónio encontra-se ali à esquerda. O urânio do outro lado."
Ruslan fez um sinal e os homens desceram as escadas e mergulharam no labirinto de contentores.
Movimentavam-se com rapidez; ninguém queria permanecer naquele lugar mais tempo que o necessário. Era verdade que os contentores se encontravam todos selados, mas a radioactividade tinha o condão de os deixar nervosos.
O comando palmilhou o labirinto e só parou quando Ruslan ergueu a mão.
"E aqui!", exclamou ao ler as inscrições em caracteres cirílicos no novo grupo de contentores.
Olhou para um dos seus homens. "Beslan, mostra o que vales."
Um homem que transportava uma das arcas provenientes do camião pousou-a no chão e extraiu instrumentos do interior, que usou no acesso a um contentor. O contentor foi aberto em alguns segundos e o homem ligou uma lanterna e acedeu ao interior. Encontravam-se lá dentro várias caixas com caracteres cirílicos e o símbolo do nuclear. Beslan pegou numa delas e meteu-a na arca que trouxera consigo. Instantes depois repetiu a operação com a outra arca.
"O que estão vocês a fazer?", perguntou Vitaly, já suficientemente alarmado para perder a prudência.
"Isto é urânio enriquecido a mais de noventa por cento!"
"Cala-te."
"Mas você não está a perceber", insistiu, quase num tom de súplica. "Cada uma destas caixas contém uma quantidade subcrítica de urânio. Se vocês as juntarem, as duas massas ultrapassam o valor crítico e pode haver uma explosão nuclear. Isto é uma coisa muito..."
Paf.
"Cala-te, já disse!"
A estalada ressoou com fragor pelo armazém e Vitaly, a face incendiada pela bofetada, nem se atreveu a emitir um gemido.
Ruslan voltou a atenção para os seus homens.
"Malik e Aslan, mantenham as arcas sempre a mais de dois metros uma da outra." Apontou para o homem que abrira o contentor. "Beslan, sela-me isto.
Quero que deixes o contentor exactamente como o encontrámos."
Beslan fechou o contentor e iniciou o trabalho de selagem, enquanto os companheiros se afastavam com as duas pequenas arcas. Reuniram-se minutos mais tarde na antecámara e fecharam a porta de aço do cofre.
"Vocês vêm connosco", ordenou Ruslan, apontando para os prisioneiros russos.
O grupo percorreu o caminho de volta em fila indiana, Ruslan sempre a liderar, Malik atrás dele com uma arca, Aslan a fechar a fila com a segunda arca, os outros dois homens e os dois prisioneiros no meio. Passaram pela sala de monitorização vídeo e o chefe do comando inspeccionou rapidamente o interior. Estava arrumada e limpa, não se vislum-bravam quaisquer sinais do tiroteio. "Muito bem."
Retomaram a marcha pelos corredores e, duas esquinas à
frente, depararam-se com o coronel Pryakhin. *
"Então? Correu tudo bem?" "Sim, net problema
O ar gelado acolheu-os quando saíram do edifício.
Calçaram as luvas e dirigiram-se ao camião. O veículo mantinha ainda o motor a trabalhar e o homem que o vigiava aguardava ao volante. Ao ver os companheiros regressarem, saltou para fora e foi abrir a porta traseira.
Pularam para a carga e arrumaram as duas arcas em contentores especiais, separados um do outro.
Uma vez o material radioactivo em segurança, Ruslan apontou para os três cadáveres estendidos num canto, um da sentinela que havia sido eliminada no portão de entrada, os outros dois dos homens abatidos na sala de monitorização vídeo e transportados para ali.
"Cubram-me estes corpos e mandem entrar os presos."
Os homens atiraram uma tela para cima dos três cadáveres, enquanto Ruslan e Aslan preparavam as respectivas pistolas. Uma vez concluídos os preparativos, Malik fez um sinal lá para fora e os dois prisioneiros russos subiram para a carga do camião. Ruslan e Aslan deixaram-nos passar, apontaram--lhes o cano das armas às nucas e dispararam quase em simultâneo.
Ploc.
Ploc.
Enquanto os seus homens limpavam o sangue espalhado pela carga e arrumavam estes novos cadáveres em cima dos outros, Ruslan saltou para fora e foi instalar-se no lugar do condutor. Ao lado acomodava-se já o coronel Pryakhin. O camião arrancou e cruzou o portão, abandonando o perímetro do complexo químico.
"O senhor coronel tem a certeza de que quer sair connosco?", perguntou o chefe do comando ao oficial russo.
"Você deve estar a brincar", retorquiu Pryakhin com uma gargalhada nervosa. "Claro que tenho.
Oficialmente não estou em Mayak. Não se esqueça de que entrei com uma credencial anónima e não há nenhum registo da minha presença aqui. Não posso ser agora visto cá dentro. Se não sair convosco, saio com quem?"
Ruslan indicou com o polegar a casa da guarda que ia ficando lá para trás, o portão já fechado.
"Podemos mesmo estar tranquilos com os tipos da casa da guarda?"
"Já lhe disse que são homens da minha confiança.
Comandei-os na Chechénia e respondo por eles."
O camião percorreu o perímetro de PO Mayak no sentido inverso ao de meia hora antes e regressou ao portão de entrada. O homem que ficara de guarda à casamata saltou para a carga e o veículo retomou a marcha, metendo pela Prospekt Lenina e fundindo-se na neblina com a escuridão da noite gelada.
Na carga levava o novo pesadelo da humanidade.
I
Foi a meio da estreita ponte baixa, entre a lagoa Azul e a lagoa Verde, que Tomás reparou no homem.
Era loiro e tinha o cabelo cortado muito curto, quase eriçado, óculos escuros a ocultarem-lhe os olhos e uma pose ambígua. Estava sentado ao volante do seu pequeno automóvel negro e contemplava a paisagem com a postura de alguém que passeava e ao mesmo tempo esperava.
"Deve ser um turista", murmurou Tomás.
"O quê?", perguntou a mãe.
"Aquele homem. Vinha atrás de nós desde Ponta Delgada, não reparou?" "Não. Porquê?"
Após um longo instante a fitar o desconhecido estacionado à entrada da ponte, Tomás abanou a cabeça e sorriu, tranquilizador.
"Não é nada", disse. "Sou eu com as minhas manias, só isso."
Dona Graça passeou o olhar pela paisagem, deixando-se inebriar pela harmonia serena do panorama que a abraçava. O vale verde e viçoso espraiava-se até uma longínqua parede circular, a verdura apenas interrompida pelos dois grandes espelhos de água que se estendiam em ambos os lados da ponte baixa. Uma floresta de pinheiros bordejava terrenos de pastagem, com hortênsias e fúcsias a colorirem as encostas.
"Que bonito!", exclamou ela. "E lindo, lindo."
O filho aquiesceu com a cabeça.
"E uma das mais belas paisagens do mundo, não há dúvida."
"Ah, lá isso é! Um espectáculo!"
"A mãe sabe como foi isto tudo formado?"
"Não faço a mínima ideia."
Tomás esticou o braço direito e indicou com o dedo a longa muralha que rodeava o horizonte como um anel.
"Esta é a caldeira de um vulcão, já reparou?"
O alarme incendiou o olhar de dona Graça, subitamente assustada.
"Estás a brincar!"
"A sério", insistiu o filho. "Não vê que aquela muralha ali ao fundo cerca todo o vale? Aquilo são as paredes da cratera, têm mais de quinhentos metros de altura. Nós estamos mesmo no meio da caldeira."
"Ai Jesus! Isto é a caldeira de um vulcão? E... e não é perigoso permanecermos aqui, filho?"
Tomás sorriu e puxou-a pelo ombro, terno.
"Não se assuste, mãe. Não vai haver nenhuma erupção, pode ficar descansada."
"Como podes ter tu a certeza disso, valha-me Deus? Se isto é um vulcão pode... pode rebentar tudo! Não viste aquele programa na televisão sobre o Vesúvio?"
O filho apontou para a encosta ocidental da cratera.
"A última vez que houve aqui actividade vulcânica ocorreu ali ao fundo, no pico das Camarinhas. Foi há trezentos anos."
"E então? Isto pode explodir outra vez!"
"Claro que pode. Mas quando isso acontecer haverá sinais. Um vulcão não entra assim em erupção máximaxle um momento para o outro. Primeiro aparece alguma actividade que serve de alarme."
Indicou umas casas que bordejavam a lagoa Azul.
"Olhe, isto é tão seguro que até vive ali gente, está a ver?"
A mãe espreitou o casario, uma expressão pasmada no olhar.
"Ah, ora esta! Há aqui uma povoação?" "Chama-se Sete Cidades. Vivem aqui mil pessoas." Dona Graça levou as mãos à cabeça.
"Credo, eles são malucos! Como é possível viver na cratera de um vulcão, Virgem santíssima?"
Benzeu-se. "Valha-me Deus! E se isto rebenta tudo?"
"Já lhe disse que, se o vulcão recomeçar a actividade, primeiro haverá sinais."
"Quais sinais?"
Tomás indicou os dois lagos que os cercavam, um azulado como o céu e o outro esverdeado como a floresta em redor.
"A água punha-se a fervilhar, por exemplo. Ou então começava a erguer-se fumo do chão e haveria tremores de terra de origem vulcânica. Sei lá, há muitos sinais que servem de aviso. Mas, como vê, está tudo tranquilo, não vai acontecer nada."
Uma aragem fresca descia pelas paredes da enorme cratera e percorria a superfície plácida dos lagos. Dona Graça ajeitou o colarinho do casaco de modo a proteger melhor o pescoço e puxou o filho pelo braço. "Está frio."
"Tem razão. Se calhar é melhor sairmos daqui."
Entraram no carro encostado à berma da ponte e logo se sentiram mais aquecidos, refugiados do vento que soprava, desagradável.
"Onde vamos agora?", perguntou a mãe.
"Não sei. Onde quer ir? Lá à frente está Mosteiros..."
"Não", disse ela, indicando as casas na margem da lagoa Azul. "Vamos antes ali à vila."
Tomás ligou a ignição e o motor começou a funcionar. Arrancou, fez meia volta e passou pelo carro negro do homem loiro, seguindo em direcção à povoação. Uma placidez aprazível espreguiçava-se naquele recanto verde da ilha de São Miguel; ali era tudo tão sereno que dava a impressão de que o tempo parara.
Uma tabuleta indicava as Sete Cidades. Mais por hábito do que por desconfiança, ao fazer a curva para a direita Tomás espreitou pelo retrovisor.
O carro negro do homem loiro vinha atrás.
O automóvel que Tomás alugara em Ponta Delgada percorreu devagar a pequena localidade das Sete Cidades, que parecia adormecida àquela hora da manhã. As casas, mimosas e bem arranjadas, tinham as janelas abertas e roupas estendidas ao sol, mas não se via vivalma nas ruas.
"Isto é tão engraçado", observou dona Graça.
"Devíamos ter trazido o teu pai."
Tomás, que mantinha a atenção fixa no espelho retrovisor, desviou o olhar para a mãe. Uns dias eram piores e outros melhores, mas não havia dúvidas de que o
Alzheimer estava lá. Aquele parecia ser um dos dias melhores; a mãe reconhecia-o e conversava quase normalmente com ele, com tanta naturalidade que Tomás por momentos se esquecia da senilidade prematura que tomara conta dela. A observação relativa ao pai, porém, servira para lhe lembrar que aquela lucidez era enganadora e que havia acontecimentos relativamente recentes que a mãe já
,apaga*a da memória. Um deles era, obviamente, a morte do marido. Dona Graça falava dele como se ainda vivesse e Tomás já desistira de estar sempre a contar-lhe uma verdade que ela de imediato iria esquecer. E quem sabe se não era melhor assim? Se achava que o marido ainda estava vivo, talvez fosse sensato deixá-la acreditar nisso; a ilusão parecia inofensiva e mantinha-a feliz.
"Olha ali! Olha ali!"
"O quê?"
A mãe indicou uma elegante fachada branca com uma torre ao meio, coroada por uma cruz. "A igreja!
Anda, filho, vamos ver."
Sabendo que a mãe tinha a mania das coisas religiosas, Tomás não hesitou; estacionou o carro na berma da rua e saiu. Olhou para trás e viu o pequeno automóvel negro dobrar a esquina e parar junto ao passeio, a uns cem metros de distância.
"Mas que raio!", exclamou, intrigado, com a mão a segurar a porta do carro ainda aberta. "O que é, filho?"
"E aquele carro", disse. "Não nos larga." A mãe lançou o olhar na direcção do automóvel. "Anda a passear, como nós. Deixa-o." "Mas ele vai para onde vamos e pára onde nós paramos. Não é normal!"
Dona Graça sorriu.
"Achas que nos está a seguir?"
"Se não está, parece!"
"Ai que disparate! Vê-se mesmo que andas a ver muitos filmes, Tomás. Quando chegarmos a casa vou falar com o teu pai, acho-te com a imaginação muito fértil. Esta semana não vai haver O Santo. A televisão anda a fazer-te muito mal à cabeça!"
Tomás fechou a porta do carro com estrondo e começou a caminhar na direcção do automóvel negro, disposto a tirar aquilo a limpo.
"Espere aí, eu já venho."
"Tomás! Onde vais tu, rapaz? Vem aqui à mãe!
Imediatamente!"
Mas Tomás continuou a caminhar. Ao vê-lo aproximar-se, o homem loiro do carro negro ligou a viatura e fez marcha atrás, repondo a distância.
Tomás parou, embasbacado com este comportamento ostensivo.
"Ora essa!", murmurou, atónito. "O gajo está mesmo a seguir-me! Querem lá ver isto?"
Recomeçou a caminhar na direcção do automóvel negro, desta vez um pouco mais depressa, e o homem loiro, mais uma vez, fez marcha atrás; pareciam ambos envolvidos no jogo do gato e do rato, embora não se percebesse bem quem era quem. Tomando consciência de que o desconhecido não queria ser interpelado, embora pelos vistos não se importasse de o seguir sem disfarçar, Tomás deu meia volta e regressou para junto da mãe.
"O que estás a fazer, Tomás? Que história é esta?"
"Se quer que lhe diga, não sei. O homem está a seguir-nos, mas pelos vistos não se quer explicar."
"Está a seguir-nos? A que propósito?"
"Sei lá!", devolveu o filho com um encolher de ombros. "É um maluco qualquer." Resignado, apontou para a fachada alva. "Vamos ver a igreja?"
Seguiram os dois para a igreja das Sete Cidades.
Tomás voltou a cabeça duas vezes para tentar perceber se continuavam a ser seguidos. O
automóvel negro mantinha-se parado lá ao fundo, mas, quando mãe e filho cruzaram a parta e desapareceram no interior do santuário, a viatura voltou a entrar em movimento.
Aproximou-se e estacionou quase ao lado da igreja.
A visita durou uns quinze minutos e, no momento em que Tomás e a mãe se dirigiram à saída para se irem embora, depararam-se com um vulto encostado à porta, o perfil recortado a negro diante do halo de luz matinal. Aproximaram-se e Tomás percebeu que era o homem loiro de cabelo curto do automóvel negro.
"Em que posso ajudá-lo?", perguntou Tomás.
"'Professor Thomas Norona?", perguntou o homem num inglês fortemente nasalado.
Era americano.
"Tomás Norona", corrigiu o português. "How can I help your
O homem tirou os óculos escuros, extraiu um cartão do bolso do casaco e esboçou um sorriso forçado.
"Eu sou o tenente Jack Anderson, da base aérea das Lajes", identificou-se enquanto exibia o cartão.
Tomás pegou no documento e inspeccionou-o. O
cartão anunciava que o seu detentor era o lieutenant Joseph H. Anderson, exibia a cores o seu rosto lácteo com boné de oficial e indicava-o como liaison officer da USAF nas Lajes AFB.
"Por que razão anda atrás de mim?"
"Desculpe os meus modos, sir. Recebi ordens para me assegurar do seu paradeiro, mas sem entrar em contacto consigo."
"Recebeu ordens para me seguir? De quem?" "Dos serviços de informações militares." "Deve estar a brincar comigo..."
"Asseguro-lhe que nada do que faço em serviço é a brincar, s/r", disse o tenente Anderson com ar muito compenetrado. "Há instantes enviaram-me novas instruções. Tenho de o levar o mais depressa possível para as Furnas."
"O quê?"
"O senhor tem um almoço marcado e o seu interlocutor já lá está." "O quê?"
O tenente consultou o relógio.
"Temos uma hora para lá chegar. Vamos agora para Ponta Delgada, onde um helicóptero da USAF nos levará até às Furnas."
"Desculpe, mas é preciso ter lata!", exclamou Tomás num tom incrédulo. "Eu estou aqui de férias com a minha mãe e não tenciono encontrar-me com quem quer que seja!"
"Mas é uma pessoa muito importante de Washington, s/r."
"Nem que seja o presidente! A minha mãe vive num lar, tirei férias para estar com ela e é com ela que vou ficar!"
"Tenho a informação de que o assunto que trouxe essa pessoa até aqui é da mais alta importância.
Seria mesmo muito conveniente que o senhor tirasse umas horas para ir às Furnas."
"Quero lá saber!"
"Oiça apenas o que temos para lhe dizer. Vai ver que não se arrependerá..."
Tomás fez uma careta de estranheza.
"Mas que raio de assunto é esse?" "E
confidencial."
"O senhor está mesmo à espera que eu interrompa as minhas férias e vá ter com não sei quem para falar sobre não sei o quê?"
"Apenas sei que se trata de matéria da mais alta importância."
Tomás olhou para o tenente americano, reflectindo no convite. Viera um big shot de Washington para lhe falar de um assunto muito importante? Em boa verdade não via como poderia tal coisa dizer-lhe respeito, mas era um facto que a sua proverbial curiosidade acabara de ser espicaçada.
"Vai lá, filho", atalhou dona Graça. "Não te apoquentes comigo."
O historiador mordeu o lábio, hesitante.
"Diz que são apenas umas horas?" "Yes, sir." "E a minha mãe?"
"Dada a natureza confidencial do encontro, receio que ela não possa ir, sir. Teremos de a deixar em Ponta Delgada." Tomás olhou para dona Graça. "O
que acha, mãe?"
"Ai filho, eu quero é ir para o hotel. Sinto-me cansada e vou dormir um bocadinho, se não te importas."
Tomás esfregou o queixo e mirou o tenente Anderson.
"Quem é esse sujeito que quer falar comigo?"
O tenente deixou escapar o fio de um sorriso vitorioso, acreditando que a partida estava ganha.
Meteu a mão no bolso das calças e retirou um telemóvel.
"Conversei com ele mas não sei o nome.
Chamamos-lhe Eagle One.'" Exibiu o telemóvel. "No entanto, ele autorizou--me a ligar-lhe para falar consigo, se fosse caso disso. Acha necessário?"
"Claro que sim."
O americano digitou um número e estabeleceu a ligação.
"Bom dia, sir. Tenente Anderson aqui. Estou neste momento com o professor Norona e ele quer falar consigo... yes, sir... right away, sir.n Anderson estendeu o telemóvel ao seu interlocutor. Tomás pegou nele com cautela, como se o aparelho pudesse estar armadilhado.
"Hello?"
Ouviu uma risada do outro lado da linha e um rugido irrompeu pelo telemóvel.
"Fucking génio! Como vai isso?"
Aquela voz baixa e rouca e aqiuela expressão eram inconfundíveis e tinham a assinatura do chefe do Directorate of Science and Technology da CIA, que conhecera anos antes.
Era Frank Bellamy.
"Olá, mister Bellamy", saudou Tomás com uma certa frieza ao reconhecer a voz. "Como vai o senhor?"
"Mas que tom é esse?", perguntou o homem do outro lado da linha com uma nova gargalhada. "Não me diga que não está contente por falar comigo...'"
"Estou de férias, mister Bellamy", suspirou o historiador. "O que deseja a CIA de mim?"
"Precisamos de falar."
"Já lhe disse que estou de férias."
"Fuck para as suas férias! Estce assunto é da mais elevada importância!"
Tomás revirou os olhos, enchendo-se de paciência.
"Diga lá."
Frank Bellamy fez uma pausía, como se avaliasse o que poderia dizer pelo telefone, e baiixou a voz ao responder. "Segurança nacional."
"De quem? Vossa?"
"Dos Estados Unidos e da Europa. Incluindo de Portugal." O português riu-se.
"Você deve estar a gozar", disse. "Portugal não tem problemas de segurança nacional, pode ficar descansado."
"Isso diz você. Mas eu tenho outras informações."
"Que informações?"
^ ,
"Estão a passar-se coisas de grande gravidade."
Tomás cerrou as sobrancelhas, já intrigado. "O
quê?"
O americano fungou e pousou o dedo no botão vermelho para desligar, consciente de que o pássaro já não lhe escapava. "Vemo-nos ao almoço."
II
A voz de trovão rasgou o ar num tom imperativo.
"Ahmed, anda cá!"
O rapaz ergueu-se de um salto, quase com medo daquele rugido, e nem se permitiu hesitar. Saiu do quarto a correr e deu com o pai sentado no sofá da sala ao lado de um ancião de barbas brancas pontiagudas e um turbante na cabeça, uma figura que Ahmed conhecia à distância na mesquita; vira-o inúmeras vezes a conduzir as orações.
"Sim, pai?"
Ignorando a pergunta do filho, o senhor Barakah voltou-se para o visitante.
"E este o meu rapaz."
O ancião passou os olhos atentos por Ahmed, estudando-o com uma expressão de bonomia.
"Quando quer que eu comece?"
"Amanhã, se for possível", disse o senhor Barakah.
"Era bom aproveitar o início do novo ano." Voltou-se para trás e
meneou os dedos cobertos de anéis, chamando o filho. "Anda cá, Ahmed. Já cumprimentaste o xeque Saad?"
Ahmed deu dois passos em frente e baixou a cabeça, quase envergonhado.
"As salaatn alekum", murmurou num fio de voz.
"Wa alekum salema", devolveu o clérigo, inclinando também a cabeça. "Então és tu o famoso Ahmed?" »
"Sim, xeque."
"Quantos anos tens?"
"Sete."
"És um bom muçulmano?"
Ahmed balouçou a cabeça afirmativamente, com convicção. "Sou."
"Cumpres jejum no Ramadão?"
O rapaz ficou atrapalhado e olhou para o pai de esguelha, incerto quanto ao que deveria responder.
"Eu... a minha família...", gaguejou. "O meu pai... o meu pai não deixa."
O xeque Saad soltou uma gargalhada, no que foi acompanhado pelo anfitrião.
"E faz ele muito bem!", exclamou o visitante, ainda a rir--se com o embaraço do rapaz. "O Profeta, na sua imensa sabedoria, isentou as crianças do jejum."
Ajeitou o turbante, que se deslocara com a gargalhada. "Agora diz-me lá, quantas vezes rezas ao dia?"
O rapaz abriu a mão e exibiu a palma e os dedos esticados.
"Cinco."
O mullah soergueu o sobrolho com uma expressão céptica, como se duvidasse.
"De certeza?", inquiriu. "Acordas mesmo de madrugada para a primeira oração?"
"Sim", devolveu Ahmed com grande resolução.
"Não acredito!"
"Juro."
O clérigo olhou para o anfitrião, procurando confirmar o que lhe era dito.
"É verdade", garantiu o senhor Barakah. "Ainda o Sol não nasceu e já o vejo a rezar. E muito devoto."
"E faz isso todos os dias?"
O pai olhou de relance para o filho.
"Bem... todos não. Às vezes fica-se a dormir, coitado."
"Seja como for, parece-me muito bom", considerou o xeque Saad, impressionado. "Muito bem, Ahmed!
Estás de parabéns, sim senhor! Es mesmo um bom muçulmano!"
O rapaz quase rebentava de orgulho.
"Cumpro apenas o meu dever", disse, simulando modéstia.
O clérigo fez um gesto na direcção do seu anfitrião.
"O teu pai acredita que gostarias de conhecer melhor a palavra de Alá. É mesmo assim?"
Ahmed hesitou e lançou um novo olhar fugidio para o pai, como se tentasse perceber o sentido daquela pergunta.
"Já viste o xeque Saad na nossa mesquita, não viste?", interveio o senhor Barakah. "Ele é o mullah que nos guia e um profundo conhecedor do Livro Sagrado. Convidei-o para te ensinar o Alcorão e as orações e para te ajudar a aprofundar os conhecimentos em relação ao islão. Ele deu-nos a suprema honra de aceitar essa responsabilidade. O
xeque será doravante o teu mestre. Percebeste?"
"Sim, meu pai."
"Serás um bom aluno e crescerás como um muçulmano virtuoso", sentenciou o senhor Barakah.
"Viverás conforme os ensinamentos do Profeta e as leis de Alá."
"Sim, meu pai."
O anfitrião inclinou-se sobre a mesa, pegou num bule fumegante e deitou chá na chávena do visitante, que mantinha nos olhos uma expressão de bondosa afabilidade.
"Amanhã é o primeiro dia do mês de Moharram e vamos celebrar a Hégira", disse o mullab. Fez uma pausa para beber um trago do chá. "Sabes o que é?"
"E a fuga do Profeta para Medina, xeque."
*
O clérigo pousou a chávena e sorriu.
"E um excelente dia para começarmos as lições."
O xeque Saad pousou o livro com grande cerimonial e, sem o ler, começou a recitar, a voz a fluir numa melodia cadenciada, os olhos cerrados na adoração das palavras divinas, as mãos abrindo-se como se recebessem o céu.
"Biçmillab Irrahman Irrahim!", entoou. "Em nome de Deus, beneficente e misericordioso!"
Fez uma pausa, dando ao seu pupilo oportunidade para lançar o versículo seguinte.
"Al-bâmdo li' Llábi Râbbil-álamin, arrabmáni rrahim, Máliqui yâumi ddinl", devolveu Ahmed.
"Louvado seja Deus, Senhor dos Mundos, Beneficente e Misericordioso, Senhor do Dia do Julgamento!"
"lyyáca nâebudo wa-lyáca naçtaín!", retomou o clérigo. "A Ti somente adoramos, de Ti somente esperamos socorro!"
"Ehdená' çeráta' Imustaquim, çeráta' ladina aneâmta âlaihim, gâiri' Imaghdubi âlaibim, wala dalinl", entoou o rapaz. "Mostra-nos o bom caminho, o caminho desses que tens favorecido, não o caminho desses que incorrem na Tua cólera nem o dos que se perdem!"
"Amin!", solfejaram ambos em simultâneo, proferindo o ámen final.
O xeque Saad abriu os olhos, acariciou a capa com ternura e olhou enfim o jovem pupilo.
"Reza assim a fatiha, a primeira sura do Alcorão", disse, referindo-se ao curto capítulo inicial. Pegou no livro com cuidado e ergueu-o diante do rosto de Ahmed, como se ostentasse nas mãos uma coroa imperial. "O que sabes tu sobre o Alcorão?"
O rapaz arregalou os olhos.
"Eu, xeque? É o Livro dos Livros, a voz de Alá a falar directamente para nós."
"E sabes quem o escreveu?"
Ahmed mirou o livro, depois o mestre, depois o livro outra vez; sentia-se surpreendido com a pergunta, tão óbvia era a resposta.
"Bem... foi Alá, Ele próprio."
O clérigo sorriu e afagou de novo o volume que tinha nas mãos.
"Esta é uma cópia perfeita do livro eterno, o Umm Al-Kittab, que Deus guarda sempre junto de si. O
Alcorão regista, de facto, as palavras de Alá a dirigir-se directamente aos crentes e a fazer a última revelação à humanidade. A voz de Deus, vibrante e poderosa, jorra destas páginas sagradas, der-ramando-se por estes versículos de beleza sem igual. Mas não te esqueças de que, para transmitir a Sua mensagem, Alá Al--Khalid, o Criador, recorreu ao serviço do Seu mensageiro, o Profeta. No último sermão antes de morrer, Maomé disse: «Deixo atrás de mim duas coisas, o Alcorão e o meu exemplo, a sunnah, e se os seguirem nunca se sentirão perdidos.» Louvado seja o Senhor!"
"Alá An-Nur", devolveu o pupilo. "Deus é a luz."
"A primeira vez que Deus se manifestou foi numa noite do mês do Ramadão, quando Maomé, como fazia habitualmente, se recolheu a uma gruta de Hira para meditar. Só que dessa feita apareceu de repente o anjo Gabriel, que lhe disse: «Lê!» Ora Maomé era analfabeto e explicou ao anjo que não sabia ler. Mas o anjo insistiu três vezes e, como por magia, o coração de Maomé abriu-se às palavras de Alá."
O xeque abriu de novo o Alcorão, foi direito às páginas
finais e localizou o capítulo 96.
*■ 0
"Esta é a sura da revelação", disse, estendendo o livro ao seu pupilo. "Lê tu os versículos revelados ao Profeta na gruta de Hira."
Ahmed pegou no volume e leu a sura 96, reproduzindo as primeiras palavras divinas escutadas por Maomé.
"«Lê, em nome do teu Senhor, que tudo criou, criou o homem de um coágulo. Lê, porque o teu Senhor é generoso, que ensinou pela pena aquilo que o homem não sabia.»"
Acabada a leitura dos versículos primordiais, o mestre estendeu as mãos e recuperou o livro.
"O Senhor ensina pela pena o que o homem não sabe. Ou seja, Alá fala directamente aos crentes através do Alcorão." Passou mais uma vez a mão pela capa ricamente trabalhada do livro. "Quando Maomé voltou para casa, em Meca, sentia-se confuso, mas acabou por perceber que Alá o havia escolhido como Seu mensageiro. Seguiram-se novas revelações, que trouxeram a essência do islamismo. O Profeta explicou-as à mulher, Cadija, que de imediato as aceitou, tornando-se a primeira muçulmana. Depois explicou-as ao primo, Ali, que também as aceitou, tornando-se o primeiro muçulmano. A seguir o Profeta começou a pregar o islamismo em público, mas não foi escutado. Andou treze anos sem que o ouvissem. Pior do que isso, como ele começou a pregar contra os ídolos de Meca, que atraíam peregrinos que faziam prosperar o comércio da cidade, a população revoltou-se contra Maomé. Foi então que um grupo de peregrinos lhe pediu que mediasse um velho conflito entre duas grandes tribos de Medina, os Aws e os Khazraj.
Como a mediação foi bem sucedida, as duas tribos aceitaram o islão e convidaram o Profeta a ir viver com eles. Uma vez que a sua própria tribo em Meca o perseguia, Maomé aceitou o convite e partiu para Medina."
"Foi hoje!", exclamou o pupilo, saltitando de excitação. "Foi hoje!"
O xeque sorriu.
"Sim, hoje é a Hégira", disse, pegando numa chávena de chá e bebericando pela borda. "Faz hoje mil trezentos e cinquenta e quatro anos que Maomé saiu de Meca para atravessar o deserto e ir para Medina." Pousou a chávena na mesa. "E por que razão é a Hégira tão importante?"
O rapaz hesitou, desconcertado. Conhecia a história da Hégira, claro, mas escapava-se-lhe a relevância do evento. A ida de Maomé para Medina era importante porque os adultos diziam que era importante e isso sempre lhe bastara. A pergunta do mestre suscitava-lhe por isso alguma perplexidade.
A Hégira era importante, ponto final. Seria precisa alguma razão?
"Bem...", hesitou, a voz submissa. "A Hégira é importante porque... porque foi o primeiro dia."
"O primeiro dia de quê?"
Ahmed quase embatucou com esta pergunta.
"Do ano?", murmurou quase a medo.
"Sim, claro, a Hégira marca o início do nosso calendário, toda a gente o sabe. Mas porquê?"
O rapaz baixou a cabeça, sem resposta. Aquela pergunta era muito difícil; por mais que pensasse nada lhe ocorria. Vendo o pupilo num beco sem saída, Saad foi em seu socorro.
"A Hégira é importante porque constituiu o primeiro dia do islão", disse, condescendente. "Foi em Medina que Maomé criou a primeira comunidade muçulmana e construiu a primeira mesquita e é por isso que este é o mais santo de todos os dias, o primeiro dos restantes, aquele que assinala o início do ano. Louvado seja o Senhor!"