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"Um rapaz com pouco tento na língua, portanto", gracejou Tomás. "Mas porque me está a falar desses cavalheiros pouco recomendáveis?"
"Porque eles se deslocaram a Cabul para uma reunião com Bin Laden em Agosto de 2001, um mês antes dos atentados de Nova Iorque e Washington.
A notícia desse encontro chegou a Langley depois do 11 de Setembro e deixou a CIA à beira de um ataque de nervos. A coisa foi considerada tão grave que o director da CIA, George Tenet, foi direito a Islamabade para falar com o presidente Musharraf.
Mahmood e Majeed foram então detidos pelas autoridades paquistanesas e interrogados por equipas
conjuntas
paquistanesas-americanas.
Mahmood negou ter-se alguma vez encontrado com Bin Laden."
"E então, o que fizeram vocês? Mergulharam-lhe a cabeça na água, como fizeram aos fundamentalistas que meteram em Guantánamo?"
"Vontade não nos faltou", murmurou Rebecca, como quem faz um aparte. "Mas, tendo em conta as circunstâncias, não podíamos seguir de imediato para os métodos mais musculados. Em vez disso, o nosso pessoal da CIA decidiu submetê-lo ao teste do polígrafo. A máquina mostrou que o tipo estava a mentir."
"Surpreendente", ironizou Tomás.
"É, não é? Fomos então interrogar o filho. O rapaz revelou que Bin Laden tinha pedido ao pai informações sobre como fabricar uma arma nuclear.
Depois de o filho se descoser,
Mahmood lá confessou que realmente se deslocou a Cabul e se reuniu durante três dias com Bin Laden e o seu braço--direito, Ayman Al-Zawahiri. Mahmood admitiu por fim que a Al-Qaeda queria mesmo produzir armas nucleares. Os companheiros de Bin Laden ter-lhe-ão dito que o Movimento Islâmico do Usbequistão lhes tinha fornecido material nuclear e queriam saber como usá-lo. Mahmood ter-lhes-á explicado que o material que se encontrava na sua posse daria apenas para uma bomba suja, mas não poderia desencadear uma explosão nuclear.
Disse-nos ter ficado com a impressão de que a Al-Qaeda tinha falta de conhecimentos técnicos e que o seu projecto se encontrava ainda nas etapas iniciais."
"De qualquer modo, isso tira todas as dúvidas", concluiu Tomás. "A Al-Qaeda quer mesmo construir armas nucleares."
Rebecca lançou-lhe novo olhar sarcástico.
"Eu não digo que você é um génio? Claro que quer construir armas nucleares! E aliás por isso que achamos que este senhor Mahmood não nos contou toda a verdade. Se a Al-Qaeda tinha falta de conhecimentos técnicos, de certeza que ele e Majeed lhe forneceram instruções detalhadas sobre como fazer uma bomba atómica. Só que o Mahmood não nos podia confessar isso, pois não?"
"Pois, enterrava-se todo."
A americana guardou as duas fotografias na pasta e retirou uma resma de folhas agrafadas.
"Agora gostava que visse isto", disse, mostrando-lhe o documento. "Traduza-me o título."
Tomás pegou na resma e folheou-a. Tinha vinte e cinco páginas escritas em árabe, com diagramas e desenhos por toda a parte. Voltou à primeira página e fixou os olhos nos caracteres árabes que se encontravam no título.
"Superbomba.'"
Rebecca voltou a pegar no documento.
"Quando invadimos o Afeganistão, depois dos atentados do 11 de Setembro, entrámos em edifícios, abrigos, grutas e campos de treino da Al-Qaeda e descobrimos milhares de documentos e imagens com pormenores sobre as actividades e os projectos da organização de Bin Laden. A análise'desse material revelou que a Al-Qaeda andava activamente a tentar deitar a mão a armas de destruição em massa." Indicou a resma de folhas.
"Este documento, Superbomba, foi descoberto na casa de Abu Khabab em Cabul. O senhor Khabab era um destacado elemento da Al-Qaeda." Folheou o documento sem se deter em nenhuma página em particular. "Está aqui informação detalhada sobre os diversos tipos de armas nucleares existentes. Além do mais, pode encontrar nestas páginas todos os pormenores sobre a engenharia necessária para provocar uma reacção em cadeia, incluindo as propriedades dos materiais nucleares. Ou seja, isto é um verdadeiro manual para construir uma bomba atómica."
Guardou o manual em árabe na pasta e localizou mais uma fotografia, que voltou a mostrar a Tomás.
"Este senhor chama-se José Padilla e é de Chicago", disse. "Prendêmo-lo no Verão de 2002
depois de ele se ter encontrado no Paquistão com o chefe operacional da Al-Qaeda, Abu Zubaydah. O
nosso amigo Padilla propôs-se fabricar uma bomba atómica, mas o Zubaydah pediu-lhe antes que regressasse aos Estados Unidos e começasse a adquirir material radioactivo para usar com explosivos vulgares e fazer assim uma bomba suja que permitisse contaminar uma área vasta. E
interessante que a Al-Qaeda tenha recusado a proposta de Padilla, não acha? Só poderia ter feito isso se nessa altura já tivesse em marcha o seu próprio projecto de uma bomba atómica."
"A bomba do Zacarias."
"Exacto. De outro modo, o Zubaydah jamais recusaria a proposta de Padilla. Com toda a certeza, a Al-Qaeda já..."
"Senhores passageiros, vamos iniciar a nossa descida", anunciou uma voz adocicada, devia ser a hospedeira ruiva. "Por favor apertem os cintos e endireitem os assentos das vossas cadeiras.
Deveremos aterrar no aeroporto de Ierevan às 13h35 locais, ou seja, dentro de aproximadamente meia hora. Obrigado por voarem com..."
"Ainda não percebi porque raio me arrastou para a Arménia", resmungou Tomás.
"Já lhe expliquei que temos de tirar tudo isto a limpo", disse Rebecca. "O meu contacto russo opera em Ierevan e nós, se queremos falar com ele, temos de ir ao seu encontro. Afinal somos nós os interessados, não é verdade? Tenha paciência."
"Este desvio por Ierevan é por causa das inscrições em caracteres cirílicos na fotografia do Zacarias?"
"Sim, mas não só." Voltou a indicar a pasta de cartolina. "Antes de partirmos de Lahore falei com Langley e eles disseram-me que a fotografia é muito credível porque bate certo com toda a informação de que dispomos. Sabemos que, na década de 1990, houve elementos da Al-Qaeda que se deslocaram a três estados centro-asiáticos que antigamente faziam parte da União Soviética e, aproveitando o caos que se seguiu ao desmoronamento do sistema comunista, tentaram comprar uma ogiva nuclear ou material que permitisse construir uma bomba atómica."
"E conseguiram?"
"Estamos convencidos que não. Mas em 1998
soube-se que eles pagaram dois milhões de dólares a um cazaque que prometeu entregar-lhes um engenho nuclear soviético do tamanho de uma mala."
"Que mala? Uma daquelas de que falou o general Lebed, o assessor do antigo presidente Ieltsin?"
"Essas mesmo."
"Se bem me lembro da gravação que mister Bellamy nos mostrou em Veneza, o general Lebed disse numa entrevista à televisão americana que tinham desaparecido várias malas dessas. Está a dizer-me que a Al-Qaeda deitou awnão 9. uma delas?"
"E uma possibilidade. Aliás, nesse mesmo ano a revista árabe Al Watan Al Arabi noticiou que a Al-Qaeda tinha comprado vinte ogivas nucleares a mafiosos chechenos por trinta milhões de dólares e duas toneladas de ópio. Não conseguimos confirmar esta informação, mas o biógrafo de Bin Laden, Hamid Mir, revelou que Ayman Al-Zawahiri, o nú-
mero dois da Al-Qaeda, lhe disse em 2001 que a Al-Qaeda
já
possuía
engenhos
nucleares.
Al-Zawahiri ter-lhe-á contado que bastavam trinta milhões de dólares e uma viagem ao mercado negro da Ásia Central para adquirir material atómico de fabrico soviético. Segundo Al-Zawahiri, a Al-Qaeda já teria adquirido assim algumas armas nucleares em formato de pastas. Estamos a lidar com fontes diversas, mas a informação bate toda certa e parece até complementar-se. Como deve calcular, sentimo-nos mortalmente preocupados."
"Acha que a fotografia do Zacarias constitui a prova final de que isso é tudo verdade?"
Rebecca lançou um olhar pela janela do avião.
"É o que vamos saber em Ierevan."
O aparelho já havia iniciado a descida, abanando ligeiramente em função das variações do vento. A hospedeira ruiva passou ao lado de Tomás e lançou-lhe mais um sorriso encantador, mas o historiador estava de tal modo embrenhado nos seus pensamentos que nem notou.
"Quem é o tipo com quem vamos falar?", quis saber.
"Prepare-se para encontrar uma figura um pouco bizarra. Chama-se Oleg Alekseev." "Sim, mas quem é ele?"
"E um antigo coronel do Komitet Gosudarstveno Bezopasnosti." "Hã?"
Rebecca arrumou a pasta de cartolina no saco e verificou o cinto de segurança, preparando-se para a fase final da aterragem.
"KGB."
XL
As aulas de Línguas Antigas seduziram Ahmed, sobretudo porque os temas estavam relacionados com o Médio Oriente. O professor Noronha começou por ensinar os rudimentos das línguas da Mesopotâmia, a antiga Terra dos Dois Rios, o Iraque, e depois falou longamente sobre o Egipto e a descoberta de que a língua dos faraós era o copta.
A matéria era do natural interesse do estudante árabe, uma vez que abordava a história do seu próprio país. Embora fosse muçulmano, o aluno tinha-se também por bom egípcio e sentia um orgulho secreto nos seus antepassados, mesmo os do período pré-islâmico. Apesar de viverem em jabiliyya, tinham sido capazes de erguer as espantosas grandes pirâmides sobre as quais tantas vezes pousara o olhar durante a infância no Cairo.
Não eram aqueles gigantes assentes no planalto de Giza dignos de admiração?
Foi quando se preparava para ir a uma destas aulas que, ao folhear o jornal no emprego, se deparou com uma notícia
que lhe prendeu a atenção. O título era Massacre em Luxor e revelava a matança de mais de sessenta turistas kafirun pelo que o jornal apelidava de
"radicais islâmicos" e que Ahmed sabia serem verdadeiros muçulmanos.
"Allah u akbar!", exclamou, esforçando-se por conter a excitação que se apoderou dele.
Verificando que ninguém o estava a observar, murmurou uma prece. "Que a grande jibad se declare enfim e que Deus, o Todo-Poderoso, nos ajude a vencer!"
Convencido de que aquele evento iria desencadear um movimento que culminaria com o colapso do regime jahili e a tomada do poder pelos verdadeiros crentes, teve ganas de partir de imediato para o Egipto e juntar-se à jibad. Logo que chegou a casa ligou para Salim, o seu contacto da Al-Jama'a Al-Islamiyya em Londres. Salim deu-lhe a entender, nas entrelinhas, que o movimento era de facto o responsável por aquela acção gloriosa.
Ahmed quase rebentava de orgulho e de excitação.
"E uma grande jornada para a umma", declarou com entusiasmo transbordante. "Será que posso apanhar o primeiro avião para me juntar à jibad}"
"Não é o momento certo", soprou-lhe a voz do outro lado da linha. "Os acontecimentos em Tebas levaram o faraó a lançar uma grande repressão contra os crentes. A situação é muito perigosa e instável. Dá graças a Alá por te encontrares aí. E aí que deves ficar."
Ahmed sabia que, por uma questão de segurança, o seu interlocutor falava por enigmas. Tebas era o antigo nome de Luxor e o faraó era o presidente Mubarak. Claramente o regime perseguia os verdadeiros crentes, tal como fizera após a matança de Sadat.
"Mas o povo está connosco?"
Salim hesitou, procurando as melhores palavras para descrever como aquela acção havia sido acolhida pelos Egípcios.
"A informação de que disponho, meu irmão, é a de que o nosso povo está mergulhado em jabiliyya.
Temos por isso de ser mais prudentes nas nossas acções. O Profeta, que a paz esteja com ele, escolheu fazer a revelação por etapas, de modo a assegurar o triunfo da verdadeira fé. Precisajnos <àe ser pacientes e aprender com o seu belo exemplo."
Estas
palavras
judiciosamente
escolhidas
indiciavam que a jornada de glória e martírio não havia sido bem acolhida pelo cidadão comum. Era uma informação desconcertante.
Ahmed, porém, não se deixou desencorajar.
"Quando permitirão que me junte à jibad?
Quando?"
"Sê paciente e aguarda."
"Não tenho feito outra coisa, meu irmão. Mas sinto que chegou a minha hora. Quando me chamarão?"
O seu interlocutor fez uma curta pausa, talvez para ponderar o que poderia dizer ao telefone.
Respirou fundo e por fim respondeu.
"O dia aproxima-se."
O massacre de Luxor renovou o interesse de Ahmed pelo Antigo Egipto, matéria das primeiras aulas na faculdade. O problema é que, depois de abordar a civilização egípcia e os hieróglifos, o professor Noronha passou para o Antigo Testamento e o hebraico e depois para o Novo Testamento e o aramaico e o latim. A cadeira, todavia, era semestral e as aulas estavam prestes a terminar sem que o docente abordasse o maior e mais importante período da história da humanidade. O islão.
Ahmed sempre fez questão de se sentar num canto discreto da sala, de modo a manter-se longe dos olhares, mas a constatação de que o semestre se esgotava impeliu-o a procurar o professor numa das últimas aulas. Interceptou-o à saída da sala, identificou-se e lançou-lhe a pergunta.
"Senhor professor, não vai falar do islão?"
"Infelizmente, não."
"Porquê?"
"Primeiro, porque não há tempo", explicou Tomás.
"Repare que esta cadeira é semestral. Depois, porque o árabe não é exactamente uma língua antiga, como deve saber. Ora esta cadeira chama-se justamente Línguas Antigas e..."
"O árabe do Alcorão é uma língua antiga", interrompeu Ahmed. "Há muitos falantes de árabe actual que não o entendem. Além do mais, o árabe é a língua de Deus. Foi em árabe que Alá falou aos crentes."
"Os judeus dizem que foi em hebraico..."
"Os judeus são uns falsos!", vociferou Ahmed, irritado com a referência ao povo que o Alcorão amaldiçoou por ter quebrado a aliança com Deus.
"Maomé disse: «A última hora só virá depois de os muçulmanos combaterem os judeus e os muçulmanos os matarem até que os judeus se escondam atrás de uma pedra ou uma árvore e a pedra ou a árvore digam: muçulmano, servo de Alá, há um judeu atrás de mim; vem e mata-o.» Assim falou o Profeta e as suas palavras mostram o destino que daremos a esses miseráveis."
Tomás ficou um instante boquiaberto, espantado com a agressiva erupção verbal do aluno.
"Bem...", hesitou. "Isso... enfim, não é assunto para estas aulas."
Pressentindo que perturbara o professor, Ahmed baixou o tom de voz, mas não largou o assunto.
"Sim, mas como pode o senhor ignorar o islão?", insistiu. "É importante que as pessoas aqui neste país conheçam a palavra de Alá."
"Sem dúvida", concordou o professor, um tudo-nada agastado com o tom excessivamente assertivo do estudante. "Mas esta cadeira é sobre línguas antigas e o islão não consta no currículo pelos motivos que lhe indiquei e por mais um ainda: é que eu não sei árabe nem sou perito em assuntos islâmicos."
"Mas devia aprender. Não tem curiosidade?"
"Admito que sim. Aliás, para dizer a verdqde, a»do a pensar em ir estudar árabe para um país islâmico.
Interesso--me muito por criptanálise e o primeiro tratado jamais publicado sobre este assunto está escrito em árabe. Gostaria de o ler na língua original."
"Isso é uma excelente ideia", aprovou Ahmed. "O
senhor professor pode ir para um país árabe, aprender a língua e, já agora, iniciar-se no islão.
Quem sabe se não acabará por se converter?"
"Sim, quem sabe?"
Tomás começou a andar, esforçando-se por se afastar daquele aluno que começava a achar inconveniente, mas ainda lhe ouviu as frases finais.
"Lembre-se de que a história ainda não acabou", lançou Ahmed lá atrás, em jeito de aviso. "Um dia serão os historiadores muçulmanos a analisar o passado cristão da Península Ibérica."
Já a subir as escadas, o professor levantou a mão e acenou. "Adeus."
"O islão estará de volta."
Triiimmm.
Ahmed encontrava-se estendido na cama a reler os ahadith compilados no Sabih Bukhari, a forma que encontrara de se descontrair após mais um dia de trabalho, e resmungou ao escutar a campainha da porta, mas não se mexeu.
"Adara!" chamou. "Vai ver quem é!"
Os textos islâmicos eram a sua única companhia nos tempos livres e não lhe apetecia levantar-se. Já tinha entrado na casa dos trinta anos e andava havia algum tempo a pensar em arranjar mais uma mulher.
Adara infernizava-lhe a vida; ainda por cima por enquanto não lhe dera nenhum filho. Já pensara em dizer-lhe em voz alta por três vezes "eu renego--te!" e assim divorciar-se, mas ia protelando.
Se calhar a melhor solução era arranjar uma segunda mulher, uma rapariga que fosse respeitadora, obediente e boa parideira. Ali em Portugal achava as moças muçulmanas demasiado desviantes, fruto da influência licenciosa dos kafirun, pelo que teria de pedir à família que lhe encontrasse uma virgem no Egipto.
Reconsiderou. Não podia ser. Vivia em Portugal e casar-se com uma segunda mulher poderia arranjar-lhe problemas com os malditos kafirun.
Talvez a solução fosse mesmo divorciar-se.
Triiimmm.
Ao ouvir pela segunda vez o toque, Ahmed revirou os olhos e respirou fundo; lembrou-se de que Adara tinha saído para as compras. Com uma interjeição impaciente, pousou o volume na mesa-de-cabeceira e levantou-se para abrir a porta.
"Faz favor?", perguntou em português.
No corredor do prédio estava um homem de barba farta e vestes brancas islâmicas.
"Ahmed ibn Barakah?", quis saber o desconhecido, evidentemente um muçulmano.
"Sou eu", respondeu em árabe. "Em que posso ajudá-lo?"
"Chamo-me Ibrahim Sakhr", identificou-se o homem. "Venho da parte de Ayman bin Qatada."
Ao ouvir o nome do seu antigo professor, Ahmed abriu-se num sorriso deferente e convidou o desconhecido a entrar no apartamento. Deu-lhe o melhor sofá e ofereceu-lhe chá e biscoitos. Depois das habituais delicadezas preliminares, o anfitrião lançou a pergunta que abriu caminho a que o visitante lhe explicasse o propósito da sua presença.
"Como vai Ayman?"
"Está agora no Iémen."
"A sério?", admirou-se Ahmed. "A fazer o quê?"
m "A servir o islão."
O anfitrião lançou um olhar sonhador pela janela, procurando o espaço para além do horizonte lisboeta.
"Ah, o Iémen!", exclamou. "Que sorte! Ele ainda trabalha para a Al-Jama'a?"
"Claro. Ayman é um bom muçulmano." Ibrahim bebeu um trago de chá. "E tu? Ainda és um bom muçulmano?"
"Eu? Claro que sim."
"Não foste corrompido pela jahiliyya que impera por esta terra de kafirun?" "Nunca!"
"Sabemos que não tens feito em público afirmações de um verdadeiro crente..."
Ahmed quase ficou ofendido com a observação.
"O que queres dizer com isso, meu irmão? Estás a insinuar alguma coisa?"
"Estou apenas a repetir o que ouvi."
"E verdade que tenho evitado fazer declarações que mostrem que estou no caminho da virtude. Mas essas foram as instruções que a Al-Jama'a me deu!
Ayman pediu-me que não me fizesse notado e evitasse que me catalogassem como um verdadeiro crente! Como podes tu agora vir aqui com essas insinuações ofensivas? Por que razão me..."
O visitante pôs-lhe a mão no ombro.
"Acalma-te, meu irmão", disse, a voz serena, o tom pausado. "Estava apenas a testar-te."
"Nem sabes como me custa permanecer calado com as coisas que vejo à minha volta! Há nesta terra gente que se diz crente e bebe vinho e deixa as mulheres exporem-se aos olhares impudicos! Pensas que não tenho todos os dias vontade de os repreender? Mas as ordens da Al-Jama'a foram claras e, com a ajuda de Deus, esforço-me por cumpri-las."
"Eu sei, meu irmão", insistiu Ibrahim. "Quis apenas ter a certeza de que o teu silêncio significava obediência às nossas ordens e que não te tinhas deixado corromper por estes kafirun"
"Espero que nem uma sombra de dúvida tenha restado no teu espírito."
"Fica descansado", assegurou o visitante. "Agora estou certo do que Ayman dizia a teu respeito."
Ahmed pegou no bule fumegante e, esforçando-se por se acalmar, despejou mais chá na chávena do visitante.
"Ainda bem. Às vezes fico com a impressão de que a Al-Jama'a me esqueceu..."
"Não te esqueceu."
"Mas parece! Mandaram-me há mais de quinze anos para aqui e daqui ainda não saí. Para que me querem os irmãos nesta terra de kafirun? Que utilidade tenho eu aqui?"
Ibrahim pegou num biscoito e mergulhou-o na chávena, amolecendo-o no calor do chá.
"Na verdade, temos uma missão para ti."
O anfitrião arregalou os olhos, a esperança súbita a afogar-lhe o ressentimento. Desde que soubera do massacre de Luxor que aguardava este dia.
"A sério?" Olhou para cima, numa prece. "Deus é grande! Ele é Al-Karim, o Benévolo, e As-Samad, o Eternol" Encarou o visitante. "Como é bom saber que não fui esquecido!"
Ibrahim trincou a bolacha amolecida.
"Não foste."
"Que missão é essa que me está destinada, meu irmão?"
"Queremos que te treines para ser um mud\ahedin."
Ahmed nem queria acreditar no que estava a ouvir.
Treinar para ser um mudjahedin?
"Mas... mas isso é o meu sonho! Por Alá, isso é maravilhoso! Não desejo outra coisa na vida!"
"Ainda bem", sorriu Ibrahim, satisfeito por verificar*todo aquele entusiasmo. "Es um verdadeiro crente, não há dúvida." Soergueu o sobrolho. "Tens o passaporte em dia?"
"Está tudo em ordem."
O homem da Al-Jama'a retirou um envelope do bolso do casaco e estendeu-o na direcção de Ahmed.
O anfitrião abriu-o com uma expressão intrigada e viu um maço de dólares e uma lista de contactos, com números de telefone e moradas. Levantou os olhos e fitou interrogadoramente Ibrahim.
"O que é isto?"
"São as pessoas com quem vais ter de falar quando chegares lá."
"Lá onde? Ao campo de treinos?"
O visitante apontou com o dedo rude para um dos endereços mencionados na lista e o seu olhar cintilou. "Ao Afeganistão."
XLI
"Está um tipo a seguir-nos."
Tomás espreitava pelos reflexos da vitrina de uma das lojas da Rua Abovyan, uma das principais artérias do centro de Ierevan, a atenção disfarçadamente presa no vulto que parecia vigiá-los.
"Eu sei", devolveu Rebecca, despreocupada. "Topei-o logo na recepção do hotel." "O que fazemos?" A americana encolheu os ombros. "Nada."
Esta resposta deixou Tomás desconcertado. "Mas...
mas... deixamos o tipo seguir-nos? Não fazemos nada?"
"Tem alguma sugestão? Quer desatar a correr por aí fora? Ou prefere que eu tire a pistola e dispare sobre ele?"
"Bem, não sei... vocês é que estão habituados a lidar com estas situações."
Rebecca puxou Tomás pelo braço, fazendo-lhe sinal de que seguisse em frente.
"Deixe estar, não ligue. Vamos prosseguir o nosso passeio e ver o que acontece."
Tinham saído dez minutos antes do hotel, situado em plena Abovyan, e andavam a deambular diante de um pequeno largo dominado pelo datado Kino Moskva, um- grarrtlioso complexo de cinemas com a assinatura inconfundível do estilo arquitectónico soviético. Aos pés deste monumento da vanguarda comunista encontrava-se uma esplanada com os toldos cobertos por anúncios à Coca-Cola, uma ironia que não escapou a Tomás.
Atravessaram a rua e desceram a Abovyan. Era uma elegante via cheia de lojas e passeios espaçosos.
Por toda a parte se publicitavam os principais produtos da Arménia, com destaque para as carpetes e os brandies, e as pessoas tinham um certo ar de Médio Oriente, embora de cultura marcadamente
ocidental
nas
roupas
e
comportamentos. Não admirava; afinal aquele era o mais antigo país cristão.
Ierevan revelou-se-lhes uma cidade de aspecto globalmente desarranjado, dava a impressão de um grande bazar, embora o Centro tivesse um toque mais ordenado. Sobretudo ali, na Abovyan, a mais elegante das ruas. O passeio que calcorreavam alargou-se consideravelmente, abrindo espaço para uma enorme esplanada dominada por um restaurante chamado Square One.
O português girou a cabeça em redor, como se estivesse a apreciar o local, e pelo canto do olho procurou o vulto que os seguia desde o hotel.
"Ele ainda não nos largou", constatou.
"Deixe-o estar", disse Rebecca, quase indiferente.
"Goze mas é o passeio."
"Mas eu não vim aqui para fazer turismo", argumentou Tomás, num tom entre o protesto e o queixume. "Quando é que nos encontramos com o seu russo?"
"Não sei. Estou à espera que o coronel entre em contacto connosco."
"Ele sabe que estamos aqui?"
"Claro que sabe." Fez um gesto com a cabeça em direcção ao indivíduo que os seguia. "Aliás, suspeito que este tipo faça parte da pandilha."
Num gesto quase reflexo, Tomás virou a cabeça e olhou directamente para o homem.
"Parece-lhe?", murmurou para Rebecca.
"Vamos ver."
A Abovyan desaguou na surpreendente Praça da República, o centro de Ierevan e o coração da cidade. A praça tinha um formato oval e estava cercada por edifícios graciosos, as fachadas de um tijolo amarelo e vermelho e com grandes arcadas; dava a impressão que aquele era o ponto de encontro do imponente estilo arquitectónico soviético com as linhas tradicionais arménias. O centro da praça era dominado por grandiosas fontes de água, para onde os dois visitantes se voltaram, admirando os bailados coreografados dos jactos líquidos.
Pelo canto do olho, Tomás manteve a atenção presa na sombra que os acompanhava. Aquilo poderia ser normal para Rebecca, mas o facto é que ele não estava habituado a que o seguissem na rua, pelo que a situação o punha algo nervoso. Apercebeu-se de que o homem estava a atender um telefonema e, instantes depois, viu-o a guardar o telemóvel e a dirigir--se directamente a eles.
"Atenção!", disse Tomás, tocando no ombro de Rebecca. "O tipo vem para aqui."
A americana voltou-se e encarou frontalmente o homem, que de facto se aproximava de forma ostensiva, sem o mínimo esforço de ocultar a sua presença. Agora que estavam mais perto e o observavam melhor, constataram que parecia arménio, com um nariz proeminente e a cara chupada.
"Quem é Scott?", perguntou o homem num inglês rudimentar.
,. *
"Sou eu", disse ela. "Rebecca Scott."
"Tenho uma mensagem do coronel Alekseev. Ele quer conversar consigo esta noite no CCCP."
Era o acrónimo em russo de URSS, a antiga União Soviética, o que surpreendeu os dois visitantes.
"CCCP?", admirou-se Rebecca. "Não percebo."
"É um estabelecimento na Nalbandyan, ao lado da Praça Sakharov." Apontou na direcção do outro lado da Praça da República. "É aquela rua ali. Esteja no CCCP às dez da noite em ponto." Colou a palma da mão à testa e fez continência. "Boa tarde."
O homem afastou-se, dando claramente por finalizada a sua missão. Tomás ficou a vê-lo ir-se embora, subindo pela Abovyan, até que sentiu o olhar azul de Rebecca colado nele.
"Está a ver?", disse ela. "O coronel não falha."
XLII
Peshawar.
Aquele nome era uma lenda e o inconfundível travo exótico da aventura percorria a grande cidade.
Quantas vezes não lera nos jornais egípcios referências àquele lugar mágico nos relatos da gloriosa epopeia que fora a jibad contra os kafirun soviéticos? Com uma mão na mala e a outra a agarrar um puxador, Ahmed esforçava-se por se equilibrar junto à porta do pitoresco autocarro que dançava pelas ruas de Peshawar, ziguezagueando apinhado de gente por entre o tráfego intenso; ia de tal modo a abarrotar que até tinha passageiros montados no tejadilho. O autocarro faiscava num colorido desconcertante, a chapa tapada por placas douradas ou de alumínio barrocamente pintado, os faróis decorados por pestanas metálicas; parecia um palacete ambulante.
Passaram
por
um
grandioso
edifício
vermelho-acastanhado com cúpulas redondas no topo, ao melhor estilo neomogul, e
Ahmed lançou um olhar inquisitivo ao paquistanês que se espremia ao seu lado.
"E o museu", identificou o homem em inglês.
O autocarro desembocou numa rua incrivelmente caótica e imobilizou-se com um estremeção; havia automóveis por toda a parte a buzinar quase sem cessar, os escapes a libertar nuvens de fumo cinzento, e as pessoas misturayam-s^ por entre as viaturas como formigas. Enervado com a confusão em redor, Ahmed voltou a encarar o seu anónimo companheiro de viagem.
"A mesquita de Mehmet Khan ainda é longe?", perguntou, a impaciência a roer-lhe o estômago. O
homem apontou para diante.
"E mesmo ali, no Bazar Khyber", indicou. "Quando lá chegar, vire à esquerda e meta-se na Rua dos Ourives. A mesquita é a meio da rua."
Ahmed saltou do autocarro e atravessou o mar de viaturas e carroças até chegar ao passeio esquerdo e meter em direcção ao fundo da artéria congestionada. A via pública estava entregue aos homens, todos com vestes tradicionais, e não se viam mulheres em parte alguma.
A rua desaguou no bazar, em pleno coração da cidade velha, onde a confusão era ainda maior, como se tal fosse possível. Havia lojas de óculos, de malas, de panelas, de roupas, de tudo e de nada, e pelos passeios estendiam-se bancadas ambulantes com miswak, os limpa-dentes feitos a partir de nogueira, mas também guloseimas como os tooth e os frutos secos, sobretudo tâmaras.
Lembrando-se das instruções que recebera ainda em Lisboa, o visitante egípcio parou diante de uma loja de roupas e apontou para uma túnica tradicional branca pendurada num cabide.
"Como se chama isso?"
O vendedor olhou para a túnica.
"Shalwar kameez"
Ahmed sorriu, achando graça à inesperada semelhança entre a palavra paquistanesa kameez e a portuguesa camisa. Ou Vasco da Gama trouxera a palavra portuguesa para o sub-continente indiano, pensou, ou então levara a palavra urdu para Portugal.
"Dê-me essa."
O comerciante mediu-lhe a estatura com o olhar e tirou uma shalwar kameez embrulhada num plástico, entregando-a ao cliente. Ahmed apontou de seguida para os chapéus tradicionais afegãos pousados uns em cima dos outros numa prateleira.
"E isso? O que é?"
"São pakolr
"Dê-me também um."
Pagou, pediu direcções para a Rua dos Ourives e seguiu o seu caminho com as compras embrulhadas num saco de plástico e a mala pendurada na outra mão. Aqui e ali irrompia o aroma das especiarias, visíveis
em
montinhos
multicoloridos
que
espreitavam de sacos de serapilheira ou se erguiam em vasilhas de plástico. Por estas ruelas já não se viam carros, apenas motos e bicicletas e burros e carroças, e sobretudo muitos transeuntes, todos de shalwar kameez.
Do meio do bazar abriu-se uma rua estreita repleta de vitrinas com artigos de ouro e Ahmed percebeu que era aquela a Rua dos Ourives.
Tratava-se quase apenas de um corredor, é certo que movimentado e rico, mas uma mera passagem estreita entre lojas.
O visitante viu ali algumas mulheres. Eram as primeiras que identificava no espaço público de Peshawar, e verificou, com satisfação, que vinham totalmente tapadas por hurkas negras e os olhos e o nariz ocultos por uma rede. Por ali se via que estava numa terra de gente pia, pensou aprovadoramente; não era como a pouca-vergonha que se via em Portugal ou até, embora em muito menor escala, no Egipto!
Palmilhou a rua em passo rápido e depressa deu com o minarete que se erguia à esquerda.
Contemplou a estrutura e aproximou-se de um ourives que aguardava os cliçntes à» porta da loja.
"E esta a mesquita de Mehmet Khan?", perguntou.
O homem assentiu. "É ela mesmo."
Ahmed olhou em redor e, como se não descortinasse o que procurava, pousou a mala no chão e tirou um papel do bolso. "Onde é o mercado Shanwarie?" O
ourives apontou para um pátio à direita. "Aqui ao lado."
O pátio era um espaço fechado, totalmente cercado por varandas de apartamentos, algumas com roupas coloridas a secar em cordas. Ouviam-se pássaros a chilrear, provavelmente em gaiolas deixadas nas varandas, o pipilar alegre a ecoar melodioso pelo espaço fechado. Todo o rés-do-chão do pátio estava ocupado por pequenas lojas, com os comerciantes sentados no degrau da entrada a conversar num murmúrio. Não havia dúvidas, aquele era o mercado que Ahmed procurava, embora fosse bem mais discreto do que imaginara.
Sem perder tempo, consultou o papel que trazia no bolso e olhou em redor, para identificar a morada que buscava. Localizou-a, mergulhou numa entrada discreta e trepou a escadaria escura até ao segundo andar, imobilizando-se diante de uma porta de grades. Viu um botão ao lado da porta e carregou.
Dling-dlong.
Um homem calvo de shalwar kameez e longas barbas brancas abriu a porta e encarou-o.
"As salaam alekum", saudou o homem com um sotaque argelino. "Em que posso ajudá-lo?"
"Wa alekum salema", devolveu Ahmed. "Venho em nome da sura 9, versículo 5."
"«Matai os idólatras onde os encontrardes»", devolveu o homem, dando assim a contra-senha em árabe. "«Apanhai-os! Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»" Terminada a recitação do versículo, o homem abriu os braços e abraçou-o.
"Bem-vindo irmão! Fui informado da tua chegada!"
O dono da casa acolheu Ahmed e levou-o para um quarto onde havia dois pares de camas, cada par com um beliche em cima do outro, como uma camarata. As duas camas do topo já estavam ocupadas, embora os ocupantes não se encontrassem presentes, e o anfitrião atribuiu ao visitante a cama de baixo do lado esquerdo.
"Vais dormir aqui", disse, ajeitando os lençóis.
"Amanhã de madrugada vem um irmão buscar-te e, com a graça de Deus, levar-te para os mukbayyam:''
Os olhos de Ahmed cintilaram ao ouvir a palavra mágica. Mukbayyam. Iam levá-lo para os mukbayyam!
Seria possível? Sentiu ganas de dar pulos de alegria.
Mukbayyam, todos o sabiam, era o nome que se dava aos campos de treino no Afeganistão. Estaria o seu sonho à beira de se concretizar? Por Alá, esperara tanto tempo por aquele momento!
"Amanhã?", perguntou o recém-chegado, incapaz de conter a excitação, quase com medo de ter entendido mal. "Vou... vou já amanhã para os mukbayaam'f
"lncb'Allab! Tens de estar pronto às seis da manhã."
Era verdade! Por Alá, era verdade! O seu rosto iluminou-se de alegria, mas fez um esforço para se conter.
"E... e qual o mukhayyam para onde vou?" Evitando divagar sobre o assunto, o anfitrião voltou-se para sair do quarto e deixar o convidado à vontade. "Se Deus quiser, a seu tempo saberás."
Ahmed repousava estirado na cama quando, uma hora depois, o dono da casa reapareceu. O homem queria saber se estava tudo bem e inspeccionou o seu convidado dos pés à cabeça, observando-lhe a jalabiyya egípcia com uma expressão reprovadora.
"Tens alguma sbalwar kameez?"
O recém-chegado foi buscar o saco e abriu-o, deixando o anfitrião espreitar o tecido imaculadamente branco das vestes tradicionais que acabara de adquirir no bazar.
"Está aqui." Exibiu com entusiasmo o chapéu tradicional afegão. "Comprei um pakol e tudo."
O homem abanou a cabeça com um esgar de censura e virou-se para um armário do quarto. Abriu uma gaveta e extraiu uma sbalwar kameez velha e esfarrapada.
"Amanhã vestes isto."
Ahmed pegou na túnica branco-suja, uma faísca de decepção a perpassar-lhe pelo olhar. "Isto, meu irmão?"
"Sim", confirmou ele, estendendo-lhe a mão. "Dá-me todos os teus documentos, incluindo o teu passaporte." "Porquê?"
"Eles ficam cá, juntamente com a tua mala.
Ser-te-ão devolvidos quando regressares."
O visitante tirou os documentos do bolso e entregou-os ao anfitrião. O homem meteu-os num envelope sem sequer olhar Para eles e pegou numa caneta para os identificar.
"Como te chamas?"
"Ahmed", retorquiu o recém-chegado, ainda desgostado com o aspecto esfarrapado da sbalwar kameez que lhe fora entregue; pelos vistos queriam que ele fosse para os mukhayyam com ar andrajoso, como um pedinte a implorar por zakat. "Ahmed ibn Barakah. Venho do..."
Com um gesto rápido, o homem tapou-lhe a boca e impediu-o de prosseguir.
"Não quero saber", repreendeu-o. "Aqui ninguém diz de onde vem nem qual o seu verdadeiro nome, meu irmão. Tens de arranjar um nome pelo qual queiras ser conhecido e que fique aqui registado."
Ahmed olhou-o, hesitante.
"Bem... confesso que não pensei nisso."
"Pois tens de pensar, meu irmão. Quem chega aqui deixa tudo para trás, incluindo a família e a sua própria identidade. Deixamos de ser pessoas normais e, com a graça de Deus, tornamo-nos mudjabedin"
A palavra tinha uma conotação simbólica tão forte que Ahmed sentiu o coração disparar. Era a primeira vez que alguém lhe chamava mudjabedin! Primeiro ouvira a palavra mukhayyam e agora mudjahedin! Por Alá, a jihad estava mesmo próxima!
"Todos os mudjahedin mudam de nome?", perguntou Ahmed.
"Todos."
"Tu também?"
"Claro."
"Como te chamas aqui?"
"Aqui eu sou Abu Bakr", identificou-se o homem.
Claramente, usava um nome de guerra inspirado no primeiro califa. Abu Bakr acenou com o sobrescrito que continha os documentos que lhe haviam sido entregues. "Agora tens tu de me dizer qual o teu nome porque preciso de identificar este envelope."
Ahmed vidrou os olhos, mergulhando a memória na história do islão, mas não precisou de pensar muito porque depressa identificou a figura histórica que queria reencarnar.
"Já sei!", exclamou. "Já tenho um nome."
"Diz lá."
„
"Omar ibn Al-Khattab!", anunciou com satisfação.
"Adopto o nome do conquistador do Egipto e de Al-Quds."
Abu Bakr abanou a cabeça.
"Não pode ser, já temos um Omar. Aliás, a maior parte dos irmãos escolheu os nomes dos grandes califas ou dos grandes guerreiros, como Saladino e outros. Tens de ser mais original."
Ahmed mordiscou o lábio inferior enquanto reflectia, a mente em busca de alguém cujo espírito gostasse de encarnar. Não teve de pensar muito.
"Acho que encontrei."
"Quem?"
O visitante inspirou com serenidade e sentiu o espírito do passado glorioso do islão tocar-lhe a alma quando pronunciou o nome que mais admirava, aquele pelo qual iria doravante ser conhecido enquanto mudjabedin.
"Ibn Taymiyyah."
O homem que daí em diante seria chamado Ibn Taymiyyah havia terminado a oração da madrugada três minutos antes quando a porta do quarto se abriu com suavidade e a barba branca de Abu Bakr espreitou pela frincha.
"Está na hora, meu irmão."
Ibn Taymiyyah arrumou a mala debaixo da cama, pegou no saco de viagem e saiu de imediato do quarto.
"Ele já chegou?", quis saber.
"Sim, o teu guia está aqui", confirmou. "Deves evitar falar com ele. Se o guia te mandar fazer alguma coisa, obedeces sem questionar. Nunca lhe faças perguntas. Percebeste?"
"Sim."
Percorreram o corredor e Ibn Taymiyyah viu um rapazinho de tez muito morena e cabelo negro gorduroso, obviamente um afegão, parado no hall de entrada do apartamento. Abu Bakr apresentou-os e o guia fez ao visitante sinal de que o seguisse.
Depois de se despedir de Abu Bakr, Ibn Taymiyyah saiu para as escadas, sentiu a porta do apartamento fechar-se atrás dele e, numa questão de minutos, já circulava no encalço do guia pelo Bazar Khyber, ainda sossegado àquela hora matinal.
Junto ao passeio estava estacionada uma pickup com homens, mulheres e galinhas na carga. O guia fez a Ibn Taymiyyah sinal de que entrasse. O
visitante saltou para a parte de trás, a carrinha arrancou com um rugido e, aproveitando o facto de as ruas da cidade ainda estarem semidesertas, abandonou Peshawar em dez minutos.
A pickup meteu pela estrada da lendária Passagem do Khyber, parando apenas nos sucessivos checkpoints erguidos pelas diferentes milícias tribais. A viagem prolongou-se por algumas horas, incómoda e aos solavancos, até que, perto de Sadda, a carrinha abandonou a estrada principal e meteu por um atalho. Parecia que tinham entrado num caminho de burros.
Foram assim a saltitar durante vários quilómetros no meio da poeira. Com a pickup sempre em marcha, ao fim de algumas horas o guia apontou para uns montes áridos à direita e anunciou:
"Afghanistan!"
Ibn Taymiyyah colou os olhos aos montes, fascinado. Depois do que os mudjahedin haviam feito aos kafirun russos, considerava aquela terra sagrada. Havia anos que ouvia falar do Afeganistão, os relatos das grandes batalhas vitoriosas enchiam-lhe a imaginação, e por fim ali estava ele à beira de abraçar aquela terra abençoada!
Alguns minutos volvidos, a estrada confluiu para um largo com uma grande árvore e várias carrinhas estacionadas. A pickup imobilizou-se ao lado das outras e toda a gente saltou lá para fora. Sem perceber bem o que se estava a passar, mas vendo que o guia também se apeara, Ibn Taymiyyah seguiu--lhe o exemplo. As costas doíam-lhe e sentia as pernas doridas, pelo que fez exercícios para distender os músculos.
"Onde estamos?", perguntou Ibn Taymiyyah em árabe enquanto exercitava o tronco.
O guia afegão fez sinal de que não entendia. Ibn Taymiyyah repetiu a pergunta em inglês, mas obteve a mesma resposta. O visitante percebeu que teria de tentar de outra maneira.
"Afghanistan?", perguntou.
O guia apontou para umas viaturas estacionadas num outro largo, para lá das árvores, e disse qualquer coisa em pasto. Havia pessoas a cruzarem-se num caminho entre os dois largos e todas elas passavam por baixo da grande árvore. Ibn Taymiyyah olhou melhor e detectou dois vultos à sombra da árvore. Estavam vestidos com shalwar kameez negras, a farda da polícia paquistanesa.
Foi nesse instante que percebeu.
"A fronteira!", exclamou. "Isto é a fronteira!"
Seguiu o guia e os outros elementos da sua pickup em direcção à árvore. Apercebeu-se de que os dois polícias paquistaneses inspeccionavam as pessoas que passavam nas
duas direcções carregadas com sacos e que todas vinham
com
shalwar
kameez
andrajosas.
Compreendeu nesse instante por que razão Abu Bakr não aceitara os trajes que ele havia adquirido no bazar; se tivesse ido para ali com uma shalwar kameez novinha em folha, sem dúvida teria sido notado.
O guia olhou para ele e, com dois dedos a simular pernas que andavam, deu-lhe a entender que deveria caminhar sem parar. Ibn Taymiyyah obedeceu e integrou a fila sem olhar para os polícias. Viu o guia aproximar-se dos paquistaneses, entregar-lhes uma mão-cheia de rupias para que não fizessem perguntas e retomar a marcha, aparentemente despreocupado.
Lá à frente, do outro lado, estavam mais pickups; pareciam táxis à espera dos clientes. Caminharam na sua direcção, mas Ibn Taymiyyah percebeu que havia homens de turbante branco armados com AK-47 que o estavam a vigiar. Olhou melhor e apercebeu-se de que não eram homens, mas rapazes. Pareciam muito novos, nenhum deles tinha mais de quinze anos, e exibiam uma expressão desconfiada no rosto.
Também o guia parecia incomodado com a presença daqueles rapazes armados. Baixou a cabeça e, dirigindo-se discretamente a Ibn Taymiyyah, pronunciou a palavra que de imediato tudo esclareceu.
"Taliban."
Estavam no Afeganistão.
XLIII
A noite caiu quente e uma estátua de Andrei Sakharov no meio da pequena praça mostrou-lhes que se encontravam no sítio certo. Tomás olhou para a estátua e considerou-a adequada para aquele momento. Afinal Sakharov era o pai da bomba atómica soviética, o homem na origem remota dos caracteres cirílicos que se encontravam na caixa que Zacarias havia fotografado no Paquistão.
"Procure a Nalbandyan", pediu Rebecca, olhando em todas as direcções.
Tomás apontou para a direita.
"E aquela, está a ver? Vai paralela à Abovyan."
Meteram pela Rua Nalbandyan e desceram em direcção à Praça da República. Apesar de continuarem em pleno centro de Ierevan, esta artéria era consideravelmente mais tranquila que a Abovyan, onde estavam hospedados e haviam jantado.
"E aqui", disse a americana.
Tomás olhou para a direita e viu quatro enormes letras vermelhas a assinalarem o local. CCCP.
Junto do acrónimo russo da antiga União Soviética via-se uma foice e um martelo gigantes e, ao lado, umas escadas cavadas na rua afundavam-se para o que parecia ser uma cave. Tomás e Rebecca desceram as escadas e deram com uma porta a ostentar a efígie de Lenine. Havia um botão à direita e o historiador carregou nele.
Ding-dong.
Acto contínuo, a porta abriu-se, revelando um homem corpulento, obviamente um segurança.
Rebecca meteu a mão no bolso e tirou um cartão da NEST que mostrou ao homem.
"Viemos falar com o coronel Oleg Alekseev."
O segurança inspeccionou o cartão e, com cara de poucos amigos, fez-lhes sinal com a cabeça de que passassem. Entraram num pequeno hall, dominado por um mapa gigantesco da antiga União Soviética que preenchia a parede à direita, e sentiram uma batida forte de música na sala ao lado.
"Venham comigo."
O homem assumiu a dianteira e entrou numa sala cheia de luzes avermelhadas em movimento rotativo.
A música estava tão alta que quase fazia vibrar as paredes, mas o que de imediato atraiu a atenção de Tomás não foi a música estridente nem as luzes psicadélicas, mas o que se passava no meio da sala.
Uma mulher nua dançava de costas para a entrada, exibindo os seios gordos a vários homens sentados em cadeiras de bar com copos nas mãos. A luz vermelha dos holofotes bailava sobre o corpo transpirado e bamboleante da mulher, emprestando à cena um toque surreal. Alguns homens lambiam lascivamente os lábios e esfregavam o ventre enquanto observavam a stripper, claramente estimulados pelos peitos saltitantes, mas outros pareciam indiferentes, talvez a aguardar a atracção seguinte.
"Isto é típico do coronel", observou Rebecca aos berros, tentando fazer a sua voz ouvir-se acima da música.
"O quê?", perguntou Tomás, também aos gritos.
"Marcar um encontro num strip club. Só ele!"
O segurança fez-lhes sinal de que aguardassem p desapareceu por uma porta no canto, deixando os dois parados no meio da sala. Tomás levou a americana para um lugar encostado à parede e, como a música enchia o ar e não dava para conversarem, ficaram ambos a olhar para a stripper. Era uma mulher grande e morena, com cabelos negros encaracolados e um ar ordinário de rua. Balouçava as ancas largas ao ritmo das batidas da música e começava já a desfazer o laço que ainda mantinha as calcinhas presas ao corpo.
"Privei, Rebecca!"
Tomás voltou-se e viu um homem grande, já na casa dos sessenta, com cabelo branco, sobrancelhas negras e enormes arcadas supracilares; dava ares do actor americano Anthony Quinn.
Rebecca levantou-se e cumprimentou o homem com três beijos na face. Fez sinal a Tomás e apresentou-o ao russo. O coronel Alekseev apertou-lhe a mão com excessivo vigor e entusiasmo e convidou-os a passarem à sala ao lado.
"Venham", disse. "Aqui está demasiado barulho!"
A nova sala era pequena, mas tinha a enorme vantagem de estar protegida da cacofonia vibrante que animava o centro do strip club. Havia nas paredes uns posters com mulheres nuas, quatro sofás em torno de uma pequena mesa de vidro, um divã longo vermelho berrante e um pequeno bar ao canto, para onde o coronel se dirigiu.
"O que querem tomar?", quis saber, pegando nos copos. "Whisky, gin, vodka?"
Rebecca ficou-se por uma água com gás, mas Tomás hesitou, os olhos a dançarem por entre as várias garrafas.
"O que me aconselha?"
"Está na Arménia, beba a bebida nacional da Arménia!" O russo pegou numa garrafa com um líquido brilhante cor de caramelo. "Brandy! O Ararat é o mais famoso!"
"Vamos a isso!"
O coronel serviu as bebidas e acomodaram-se os três no sofá. O russo despachou de uma assentada um copo de vodka e suspirou longamente quando acabou.
"Aaah! Isto é o sabor da Santa Rússia!" Com os olhos subitamente congestionados, sem dúvida por causa do ardor do álcool, virou-se para Tomás. "E
então, esse brandy?"
O português viu-se forçado a provar a bebida.
Tinha um sabor ardente e adocicado.
"Não é mau."
O russo soltou uma gargalhada.
"Não é mau!? Não é mau!?" Nova gargalhada. "O
brandy arménio é do melhor que há!" Inclinou-se na direcção de Tomás e piscou-lhe o olho. "E a devushka? Hã? E a devushkaV
"Quem?"
"A miúda, blin! A miúda que está lá fora! Homem, você não a viu? E maricas ou quê?" "Ah, sim! A... a dançarina." Nova gargalhada sonora.
"Dançarina! Dançarina!" Mais uma gargalhada e voltou--se para Rebecca. "Onde foi você desencantar este melro?", perguntou, referindo-se ostensivamente ao português. Sem esperar pela resposta, voltou-se de novo para Tomás. "E a primeira vez que oiço chamar dançarina a uma puta!"
Voltou a baixar a voz, como se assumisse a postura de um confidente. "A Galina é boa, mas a melhor é a Natalya, que vem a seguir. Quer prová-la?"
A pergunta deixou Tomás embasbacado, sem saber o que responder.
"Eu?"
"Sim, você! Quer provar a Natalya ou não?"
Estreitou os olhos, numa expressão desconfiada. "Ou querem lá ver que é mesmo maricôncio?"
"Coronel!", cortou Rebecca, indo em socorro do historiador. "O professor Noronha não veio cá para conviver com... com prostitutas. Foi ele que descobriu a fotografia que lhe enviámos. O
professor Noronha tem um papel muito importante nesta operação. Ele é um perito de criptanálise e, além disso..."
"Eu sei muito bem quem ele é", atalhou o coronel russo com uma sobriedade que parecia impossível ainda cinco segundos antes. "Estive a ler a documentação do FSB."
O acrónimo deixou Tomás intrigado.
"FSB?", admirou-se. "O que é isso?"
"Federalnaya Sluzhba Bezopasnosti", disse o coronel, como se as suas palavras esclarecessem tudo.
O historiador manteve no rosto uma expressão interrogativa. "Sim, mas o que é isso?"
"O FSB é o sucessor do KGB", explicou Rebecca.
"O coronel Alekseev é o nosso contacto informal no FSB." Voltou-se para o russo. "Oiça, presumo que vocês tenham analisado em pormenor a fotografia que vos enviámos do Paquistão. Será que já tem resposta para nos dar?"
O coronel pousou o seu copo vazio na mesa de vidro, agarrou na garrafa de vodka e despejou mais um pouco de aguardente russa no copo.
"Eu tenho tudo o que vocês precisam de saber", prometeu. "Mas primeiro têm de me fazer um favor." "O que quiser."
"Quero que vejam uma das maravilhas da natureza."
"Ai sim?", espantou-se Rebecca. "O quê?" O coronel deu um berro. A porta da salinha abriu-se e a cabeça do segurança espreitou para saber o que era.
"Sasha", disse Alekseev. "Vai-me buscar a Natalya."
XLIV
"Biçmillab Irrahman Irrahim!", recitou uma voz longínqua.
Ao ouvir as primeiras palavras do Alcorão, Ibn Taymiyyah deu um salto no saco-cama. Estava escuro e estranhou o sítio onde acordara. Num primeiro reflexo interrogou-se sobre que lugar seria aquele, para logo responder num murmúrio entusiasmado:
"Estou num mukbayyam! Estou no Afeganistão!
Allab u akbarr
O segundo pensamento foi quase de terror. O salat da madrugada já tinha começado e ele não estava a orar com os seus novos companheiros! Por Alá, o que iriam pensar dele os tnudjahedin? Que não era pio?
Que lhe faltava zelo? Que não cumpria os seus deveres de crente?
Ainda meio grogue, saiu do saco-cama estendido no chão, fez rapidamente as abluções e foi a correr para a mesquita. O Sol ainda não tinha despontado e fazia um frio incrível, mas o
desconforto físico não era nada diante das recriminações com que se martirizava por quase ter falhado o primeiro salat. Como era possível que não tivesse acordado a horas?
O facto, percebeu de imediato, é que não se adaptara ainda ao horário solar da Ásia Central.
Além do mais, com toda a excitação de ir para os campos de treino do Afeganistão, estava agora a pagar por ter dormido muito pouco durante quatro noites consecutivas, a começar pela sua última noite em Lisboa, passando depois pela noite no avião para Islamabade, seguindo-se a noite que passara em Peshawar e pela última noite ali em Khaldan.
Khaldan.
Como era belo e misterioso este nome! Khaldan.
Era então ali que os mudjakedin se preparavam para a jihad! Era então aquele um dos vários mukbayyam que os irmãos tinham espalhado pelo Afeganistão!
Parecia-lhe incrível estar ali, mas o facto é que estava. Chegara na véspera ao campo e começava nesse dia o treino para se tornar mudjahedin. Allah u akbarl Deus era sem dúvida grande!
Depois da oração, o chefe do campo, Abu Omar, mandou--os a todos para a grande praça diante dos edifícios. Omar era um jordano baixo e musculado; olhando para ele percebia-se que devia ser um guerreiro temível, talvez quase tanto como a figura histórica em cujo nome ele se inspirara, o califa Omar ibn Al-Khattab que sucedera a Abu Bakr, o homem que conquistara o Cairo e Damasco e Al-Quds.
Omar mandou-os correr à volta da praça e em seguida fazer exercícios para alongar os músculos.
Enquanto se exercitava com os companheiros, Ibn Taymiyyah contemplou o campo quase em adoração.
No centro do complexo estava a mesquita, um edifício de tijolo com telhado de zinco; à entrada do perímetro encontrava-se a cantina, construída em pedra e com um telhado de folhas secas, e, do outro lado, perto de um declive que ia dar a um riacho, estendia-se um cacho de pequenos edifícios rústicos construídos de uma forma de tal modo rudimentar que o chão era a própria terra. Tratava-se da zona residencial, onde estava o barracão que o abrigara durante a noite.
*■ *
Depois dos exercícios de aquecimento, Abu Omar conduziu os instruendos em fila indiana para fora do campo, levando-os para as montanhas em redor. Nas primeiras centenas de metros, Ibn Taymiyyah reagiu bem, mas, após o entusiasmo das primeiras passadas, começou a sentir os músculos doe-rem-lhe e as pernas pesarem como chumbo.
A arfar, ergueu a cabeça e tentou localizar o resto do grupo. Iam todos bem lá à frente e pareciam fazer um pequeno compasso de espera, aguardando que o novato se lhes juntasse. Quase desanimou, mas num assomo de orgulho continuou a escalar a montanha até chegar finalmente junto dos companheiros, o coração aos saltos, os pulmões exangues, a força a faltar-lhe nas pernas.
"Maskaallah, meu irmão", acolheu-o Omar com um sorriso, fazendo sinal para o grupo retomar a escalada. "Yallah! Yallahr
Ibn Taymiyyah arregalou os olhos, horrorizado.
"Omar, espera!", conseguiu dizer por entre duas golfadas de ar. "Deixa-me ao menos repousar um pouquinho..."
"A jihad não espera", retorquiu Omar. "Um verdadeiro rnudjahedin transforma as fraquezas em forças." Voltou-se de novo para o grupo e deu ordem de que recomeçassem a correr. "Yallah! Yallahr O instrutor e os instruendos retomaram a escalada. Sem °pções, Ibn Taymiyyah esforçou-se por ir atrás deles, rastejando pelo caminho de pedregulhos e tentando descansar nas descidas. Por Alá, já não era nenhum miúdo!, pensou. Tinha trinta e dois anos. Além disso nunca treinara a sério e, embora não fosse gordo, ganhara alguma barriga com os pratos de Adara e sem dúvida que precisava de perder uns quilos para ficar em forma.
Mas Abu Omar, para além de algumas gargalhadas e ocasionais palavras de incitamento, parecia indiferente às dificuldades do novo recruta e continuava a levar o grupo para cima e para baixo pelas montanhas. Ibn Taymiyyah arrastava-se como um farrapo alguns quilómetros atrás. Por vezes via os companheiros lá à frente, outras vezes perdia-os de todo.
A corrida tornara-se para ele um exercício penoso que só terminou uma eternidade mais tarde, quando Abu Omar os conduziu de regresso ao campo.
Deitado na praça dos exercícios a recuperar o fôlego e a energia, o novo instruendo ainda teve forças para erguer o braço e consultar o relógio de modo a calcular o tempo que tinha durado todo aquele sofrimento.
Cinco horas.
A vida no campo de Khaldan era mais dura do que, na fantasia da distância, havia imaginado. A comida tinha um aspecto realmente duvidoso; não passava de um prato de feijões que os deixava sempre com fome. Os alimentos escasseavam, pelo que achavam uma delícia os poucos que tinham; às sextas-feiras a dieta forçada era compensada com a matança de um carneiro. Como sabiam bem a Ibn Taymiyyah aquelas sextas-feiras! Parecia que vivia para elas...
Os exercícios físicos revelavam-se de grande dureza. Umas vezes corriam pelas montanhas, outras ao longo de rios de água rápida e gelada, que tinham de cruzar com sacos de pedras às costas. Volta e meia Abu Omar dava ordens para que corressem descalços, o que invariavelmente levava Ibn Taymiyyah a terminar os exercícios com os pés ensanguentados; e noutras ocasiões corriam com armas, como Kalasbnikov ou morteiros.
"É duro o Omar, hem?", observou um argelino com um sorriso compreensivo durante uma das pausas para » descanso.
Ibn Taymiyyah encolheu os ombros.
"Se é o emir do campo, tem de ser duro, não é verdade?", observou. "Caso contrário não poderia comandar mudjahedin." "O Omar não é o emir do campo." A notícia surpreendeu Ibn Taymiyyah. "Ai não? Então quem é o emir?" "E o xeque." "Qual xeque?"
"O xeque, que Alá o proteja. Anda por cá desde a jihad contra os kafirun soviéticos." Fez um gesto para nordeste. "Vive numas montanhas para aquele lado e raramente passa por estas bandas. Mas é ele o emir deste mukhayyan. Deste e doutros que por aí existem. O Omar é apenas o seu lugar--tenente aqui em Khaldan."
Toda a umma parecia representada no campo.
Havia sauditas, marroquinos, argelinos, iemenitas, chechenos, tadji-ques, usbeques, somalis, indonésios, caxemires, palestinianos e outros crentes; alguns eram até provenientes de países kafirun, como a Grã-Bretanha, a Espanha ou a França.
Depressa constatou que o mukbayyam, tal como a cadeia muitos anos antes, vivia ao ritmo de uma rotina própria. Depois do primeiro salat e da corrida da madrugada vinha o pequeno-almoço, feito apenas de pão e chá, que Ibn Taymiyyah devorava com uma sofreguidão quase animal.
Sentia permanentemente a fome a roer-lhe o estômago e ao fim de algumas semanas verificou, com um misto de orgulho e preocupação, que a pequena barriguinha de trintão já lhe desaparecera, substituída
por
costelas
cada
vez
mais
protuberantes. Nada disso o deixou admirado; o emagrecimento acelerado era afinal o fruto lógico da dieta forçada e da pesada carga de exercícios a que se submetera desde que ali chegara.
Após o pequeno-almoço, todavia, as coisas acalmavam um pouco no campo. Seguia-se uma lição militar num pequeno edifício perto da cantina, onde o instrutor de armas, um eritreu chamado Abu Nasiri, lhes apresentava o diferente armamento em geral utilizado pelos mudjahedin e expunha as suas especificações, incluindo pormenores sobre as respectivas munições.
Logo na primeira lição, Abu Nasiri exibiu uma pistola com um formato característico que todos se habituaram a ver nas mãos de oficiais alemães nos filmes americanos da Segunda Guerra Mundial.
"Sabem o que isto é?", perguntou ele.
"Uma Luger", respondeu de imediato um instruendo checheno, obviamente fascinado por aquela arma.
Abu Nasiri rodopiou a pistola na mão.
"Na verdade chama-se Parabellum", explicou.
"Escolhi-a para esta primeira aula, não só porque é muito famosa, mas sobretudo por causa do nome, Parabellum. Sabem o que significa?"
Ninguém sabia.
"E latim", disse. "A empresa que inventou a Luger tinha como motto a frase em latim Si vis pacem, para bellum. O que quer isto dizer?"
"Qualquer coisa sobre a guerra", arriscou um recruta de aspecto argelino, embora proveniente de França. "Bellum em latim, bélique em francês."
"Isso mesmo, tem a ver com a guerra", assentiu Abu Nasiri. "Mas qual a tradução exacta do mottoV
Como era previsível, não obteve resposta.
"Si vis pacem, para bellum significa: se queres, a pa*, prepara-te para a guerra." Acenou com a pistola. "E um motto muito apropriado para um mudjabedin, não acham? Embora deva ser reformulado, claro. Um guerreiro do islão diria: Si vis islam, para jibad; ou: se queres o islão, prepara-te para a jibad."
Depois da Parabellum, Ibn Taymiyyah aprendeu a manejar outra pistola alemã, a Walther PPK, seguindo-se as russas Tokarev TT e Makarov PM.
Das pistolas, Abu Nasiri passou de seguida para a mais famosa arma de assalto do mundo, a Kalasbnikov
AK-47;
depois
para
as
pistolas-metralhadoras, como a Uzi, e as metralhadoras ligeiras, designadamente a Degtyarev DP; as pesadas PK e PKM, alimentadas por cintos de munições; e as ultrapesadas Dusbkas, tão potentes que tinham de ser transportadas por carrinhos.
Para além das aulas teóricas havia exercícios para testar cada uma das armas. O grupo ia para um vale das redondezas praticar exercícios de fogo real e as tardes eram assim preenchidas com estampidos sucessivos. Da primeira vez que ouviu uma Dusbka ser disparada, Ibn Taymiyyah pensou que ensur-decia; a detonação reverberou pelas montanhas e os recrutas quase fugiram da arma. Também testaram róquetes antitanque de fabrico soviético, em particular as sucessivas versões da RPG.
Nos exercícios de tiro, Ibn Taymiyyah aprendeu a montar e desmontar as armas de olhos fechados, a respirar quando fazia pontaria e a efectuar cálculos de trajectória de balas e de granadas em função da distância e do vento. Na verdade, e apesar das suas limitações na parte dos exercícios físicos, revelou-se um instruendo de topo na precisão de tiro e na manutenção das armas; era capaz de montar e desmontar uma Kalasbnikou em setenta segundos, quando a maioria dos companheiros o fazia em dois minutos.
"Masha'allah, Ibn Taymiyyah", ronronou Abu Omar aprovadoramente quando lhe detectou o talento.
"Mashaallah"
Como bom engenheiro, Ibn Taymiyyah gostava de toda a parte da instrução que envolvia o cálculo de tiro e de manejo das armas. Mesmo os sons das detonações a ecoar pelas montanhas e pelos vales, que antes o impressionavam, se haviam tornado familiares.
No campo desenvolveu-se um espírito de camaradagem entre os recrutas, como se todos fossem realmente irmãos, unidos pela fé e por aqueles laços invisíveis que aproximam os homens quando o mundo os ameaça. Para eles só o presente contava e o sentimento de irmandade era o aço que consolidava o grupo. O problema é que estavam proibidos de falar sobre a sua verdadeira identidade e as causas regionais em que se encontravam envolvidos. Era uma medida de segurança sensata, claro, mas deixava Ibn Taymiyyah algo frustrado; queria saber mais sobre os homens pelos quais se sentia disposto a dar a vida.
Havia, porém, coisas que transpareciam em pequenos gestos ou palavras soltas. Observando com atenção o comportamento de cada mudjahedin, percebeu que os chechenos e os tadjiques tinham abundante experiência de combate, enquanto os sauditas se revelavam os mais preguiçosos. Havia até uns que eram gordos e indolentes, mas com quem os instrutores mostravam uma especial deferência; tratava-se decerto de importantes financiadores da jibad.
As lições tácticas eram, para além das corridas, o ponto fraco de Ibn Taymiyyah. Para compensar, revelou grande destreza no manejo de explosivos, mais uma vez graças à sua formação de engenheiro.
Mexia em dinamite como se o fizesse desde criança, embora o seu interesse residisse, sobretudo nos explosivos plásticos, em particular o Semtex, que se distinguia dos outros por ser quase completamente indetectável. Aprendeu a armar e desarmar minas e a armadilhar objectos.
Com os seus conhecimentos de engenharia chegou até a entrar em debate com o instrutor, Abu Nasiri, sobre a parte química e física dos explosivos, incluindo a composição e reacção química característica de cada um deles. Esta matéria apaixonava tanto Ibn Taymiyyah que ele passou noites com o instrutor a produzir nitroglicerina, pólvora negra, RDX, Semtex, TNT e outros explosivos com base em produtos facilmente adquiríveis em lojas, como café, açúcar, fósforos, limões, fertilizantes, lápis, produtos de limpeza, areia, baterias, óleo de milho e tinta, todos bens que continham componentes essenciais para a produção dos diferentes explosivos.
A coroa de glória do instruendo de Lisboa ocorreu no dia em que conseguiu fabricar uma bomba a partir da sua própria urina.
"E raro ver um mudjahedin tão habilidoso com os explosivos", observou Abu Nasiri, verdadeiramente impressionado. "És um fenómeno, meu irmão!"
Ibn Taymiyyah destacou-se tanto nesta área que passou a ter autorização de frequentar as grutas onde era guardado o arsenal para ir buscar munições ou explosivos. Tratava-se de cavernas cavadas na encosta da montanha sobranceira ao campo. As entradas eram estreitas, só tinham um metro de largura, e era preciso rastejar para entrar; mas, uma vez lá dentro, as grutas abriam-se em enormes galerias.
A primeira caverna estava pejada de munições, eram milhares e milhares de balas e granadas armazenadas em caixas de madeira empilhadas até ao tecto; muitas delas tinham estampados na madeira números e caracteres cirílicos. A segunda caverna, aquela que Ibn Taymiyyah mais visitava, guardava milhares de explosivos igualmente armazenados no mesmo tipo de caixa; só que, em vez de inscrições em caracteres cirílicos, apresentavam também rótulos que as identificavam como sendo oriundas de Itália e do Paquistão.
"E a terceira caverna?", perguntou ao fim de dois meses no campo, sentindo já confiança suficiente para interpelar o responsável de Khaldan. "O que se guarda lá?"
Abu Omar, sempre cioso da sua responsabilidade em gerir o mukbayyam, fez um ar grave.
"Não podes ir aí."
"Porquê?"
Omar abanou a cabeça.
"Porque não podes."
O conteúdo da terceira caverna deixou Ibn Taymiyyah a morder-se de curiosidade e a proibição aguçou-lhe o interesse. O que raio estaria lá de tão importante que merecesse tanto secretismo?
Depois dos exercícios com armas, os instruendos recolhiam ao campo para o salat do crepúsculo e juntavam-se na cantina para o jantar, o inevitável prato de arroz cozinhado por dois afegãos. Ao fim de algum tempo, Ibn Taymiyyah cansou-se daquele prato repetitivo e decidiu ir à cozinha protestar junto dos cozinheiros, sobretudo porque já tinha visto galinhas a correrem à solta pelo campo.
Ao ver o recruta interpelar os homens da cozinha, Abu Nasiri foi buscá-lo e puxou-o para o refeitório deserto. "Não podes falar com eles", disse. "Qual é o problema?"
"São afegãos. Uma das regras dos mukhayyam é que os mudjahedin não podem falar com os afegãos." Ibn Taymiyyah continuou sem entender. "Mas porquê?"
Abu Nasiri baixou a voz.
"Ninguém pode confiar neles, são traiçoeiros", sussurrou sem mexer os lábios. "Acredita em mim, é melhor não falares com os afegãos."
A seguir ao jantar vinha a instrução religiosa, que os instrutores consideravam a parte mais importante da formação de um mudjahedin. Juntavam-se na cantina à luz dos archotes, uma vez que não havia electricidade no campo, e umas vezes recitavam o Alcorão enquanto outras discutiam diferentes aspectos do islão.
Nessas situações revelou-se interessante ver as hierarquias no campo tornarem-se difusas. Depressa se tornou claro que a autoridade de Abu Omar e dos outros instrutores só era válida para questões de ordem prática; em tudo o resto sentiam-se todos irmãos. Podiam exprimir as suas diferentes opiniões e desafiar as palavras dos instrutores, sem quaisquer sentimentos de sujeição. A maior parte da matéria teológica já era aliás conhecida por Ibn Taymiyyah, que a aprendera com Ayman quando jovem, mas aqui e ali apareciam coisas novas.
"O que distingue um mudjahedin de um guerreiro kafir é a sua preparação moral e a sua pureza diante de Deus", explicou Omar. "Um mudjahedin é um soldado de Alá, pelo que, uma vez em combate, as regras que tem de respeitar são muito rigorosas.
Deve evitar as matanças indiscriminadas, em particular de mulheres e crianças, e também a destruição de santuários religiosos, como igrejas ou sinagogas."
"E se as mulheres e crianças estiverem envolvidas no esforço de guerra dos kafirun?", perguntou um checheno, claramente a pensar numa situação que havia
vivido.
"Como
se
procede
nessas
circunstâncias?"
O instrutor tinha a resposta na ponta da língua.
"Nesse caso devem ser mortas", sentenciou. "As leis da jihad são muito claras nisso. Um hadith conta que uma vez perguntaram ao Profeta se era errado matar as mulheres e crianças dos kafirun. Ele respondeu: «Considero-os como se fossem os seus pais.» Ou seja, se os pais forem kafirun, em certas circunstâncias é permitido matar-lhes os filhos. Por exemplo, quem de alguma forma apoiar o inimigo, mesmo fornecendo apenas água ou até somente apoio moral, é também um inimigo e pode ser morto."
O grupo assentiu com um movimento sincronizado das cabeças.
"Imagina, meu irmão, que uma mulher kafir reza para que o marido mate um crente", insistiu o checheno. "Ou imagina que uma criança kafir reza para que o pai mate um mudjabedin.'"
"Devem ambos ser mortos", sentenciou Abu Omar sem hesitações. "Basta um kafir desejar a morte de um crente para poder ser morto, mesmo que se trate de uma criança. De qualquer modo, é importante sublinhar que o recurso à força deve ser evitado enquanto possível. No entanto, no momento em que a jihad for necessária, ninguém deve fugir às suas responsabilidades. Disse o Profeta: «Aquele que se encontrar com Alá sem alguma vez se ter envolvido em jihad encontrará Alá com um defeito»."
Ergueu o dedo para sublinhar um ponto crucial. "A jihad ocupa muitas páginas do Santo Alcorão. São mais de cento e cinquenta versículos nos quais Alá Al-Hakam, o Juiz, enuncia as regras da guerra, tornando claro que a verdade tem de ter uma força física que a proteja e a propague. A maior parte das guerras decretadas por Maomé foram ofensivas, como toda a gente sabe. Ora como Alá nos manda no Alcorão seguir o exemplo do Seu mensageiro, também nós temos de lançar guerras ofensivas. Há até um ffadith que cita assim o Profeta: «Fui educado com a espada nas mãos da Hora até que apenas Alá seja venerado. Ele ofereceu--nos sustento por baixo da sombra das lâminas e decretou a humilhação de todos os que se me opõem.» Por aqui se vê que o apóstolo de Deus valorizava a espada e a necessidade de a usar até que todos os seres humanos se submetam a Alá. Num outro hadith, o Profeta é assim citado: «Eu ordeno por Alá que se faça guerra a toda a gente até que todos digam que Alá é o único Deus e que eu sou o Seu Profeta». Ou seja, o objectivo do islão é governar todo o mundo e submeter toda a humanidade ao islão. Há pessoas que se dizem muçulmanas mas que preferem fingir que estas palavras do Profeta não foram proferidas.
Mas, meus irmãos, as ordens de Maomé são claras: enquanto houver kafirun há jihad para os converter ou para os obrigar a pagar jizyah."
"Mas quem decreta a jihad ofensiva, meu irmão?", perguntou
um
instruendo
proveniente
da
Grã-Bretanha. "Há quem diga que só o califa o pode fazer..."
"Esse é um ponto em discussão", admitiu Omar.
"Muitos dos nossos irmãos entendem que a jihad ofensiva está já decretada no Alcorão e na sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele. Para perceber isso basta ver os ahadith que acabei de citar ou ler a ordem de Alá na sura 2, versículo 216 do Alcorão:
«Prescreve-se-vos o combate, ainda que vos seja odioso»." Ergueu o dedo e repetiu as palavras que considerava cruciais: "Ainda que vos seja odioso!
Mas há outros irmãos que entendem que a jihad ofensiva, sendo de facto uma obrigação dos crentes, só pode ser decretada pelo califa. Existe, como sabem, tradição nesse sentido. O califa tem o dever de reunir um exército e atacar os kafirun uma ou duas vezes por ano, como fizeram no passado Abu Bakr e Omar ibn Al-Khattab e tantos outros. O
califa que não o fizer estará a violar a vontade de Alá, expressa no Alcorão ou na sunnab. A jihad é obrigatória para os crentes e deve existir até que todos os seres humanos sejam crentes ou paguem a jizyab."
"Mas o último califado já foi abolido", observou o mesmo instruendo. "Como se faz agora que não há califa?"
"Na minha opinião aplicam-se as ordens de Alá dadas no Alcorão ou através do exemplo do Profeta", respondeu o instrutor. "Mas parece haver acordo no sentido de que, aconteça o que acontecer, é preciso reinstalar o califado para pôr fim a esse ponto de discórdia e, por consenso, podermos lançar guerras anuais contra os kafirun. Disse o Profeta num badith: «Se receberes a ordem de marchar contra o inimigo, então marcha.» Foi justamente porque negligenciámos a ordem divina de atacar os kafirun que Alá nos abandonou. Ignorámos as Suas regras e Ele ignorou-nos a nós. Foi porque deixámos de fazer a jihad ofensiva, conforme ordenado por Alá no Alcorão ou através da sunnah do Profeta, que nos vemos agora na contingência de fazer a jihad defensiva. Urge, consequentemente, reinstalar o califado e pôr fim à humilhação da umma, espalhando o islão por todo o planeta."
"E como se faz isso? Como se pode reinstalar o califado?" Abu Omar pegou na Kalashnikov que o acompanhava sempre e ergueu-a com veemência no ar. "Com a guerra!"
XLV
"Natalya!"
A loira oxigenada que assomou à porta apresentou-se roliça e vaporosa, com tantas curvas que a carne quase lhe transbordava pelo vestido, uma peça única em vermelho-vivo e muito justa no peito e no tronco, alargando-se em baixo numa saia rendilhada que lhe dava pelas coxas. Era o tipo de corpo que as mulheres odiavam ter, achavam-no gordo, mas gordura era a última coisa que os homens viam naquelas formas opulentas.
"Chamou, meu coronel?"
"Anda cá, devushkal"
"Mas o meu espectáculo está quase a começar..." "Ê
só um minutinho, vá lá."
Natalya aproximou-se, muito consciente do efeito animal que o seu corpo lúbrico produzia nos homens.
"O que é, meu coronel?", ronronou, passando a mão pelo peito do russo. "Porque precisa da sua Natalya?"
Alekseev apontou para Tomás.
"E para te mostrar aqui a este senhor", disse. "Vai lá dar--lhe um beijinho..."
A loira de vermelho sorriu com malícia e aproximou-se do português, que trocou um olhar alarmado com Rebecca. A americana fez-lhe sinal de que estava tudo bem, o que Tomás entendeu como uma indicação de que não deveria contrariar o russo.
Natalya inclinou-se sobre ele e aproximou a cara; o português começou a cheirar-lhe o perfume barato e sentiu-lhe os lábios quentes e carnais colarem-se aos seus. Quis resistir, embaraçado por a americana estar ali ao lado a ver tudo, mas aquela boca húmida e ardente era mesmo deliciosa. Atrás dos lábios de Natalya veio a língua, que penetrou molhada na boca entreaberta do historiador, explorando-a com gula.
O beijo durou quase um minuto e terminou abruptamente. No instante em que a mulher lhe largou os lábios, Tomás sentiu as mãos dela apalparem-no entre as pernas, a testá-lo.
"Então?", perguntou o coronel.
Natalya voltou a cabeça para trás e piscou o olho garço, como quem diz que a missão fora cumprida.
"Está duro."
O coronel soltou mais uma das suas gargalhadas ruidosas e deu uma palmada no traseiro farto de Natalya.
"Eu sabia!", exclamou. "Eu sabia! Ninguém resiste aqui à minha Natalya! Está para nascer o homem que fique indiferente a este pedaço de mulher!"
Natalya lançou um olhar para a porta.
"Posso ir, meu coronel? É que chegou a hora do meu espectáculo..."
"Vai lá, devushka. Arrasa com eles!"
A mulher lançou um olhar de despedida a Tomás, cheia de promessas, e voltou as costas, saracoteando o corpo para a porta e para além dela.
Quando saiu, o coronel voltou-se para o português.
"Então? O que achou?"
Tomás trocou um novo olhar com Rebecca, como se pedisse novas instruções. A americana encolheu os ombros; çjepois do que vira parecia já estar por tudo.
"E... é bonita", disse o português.
"Quer prová-la? Olhe que é caro, mas vale a pena!"
"Eu... fica para uma outra oportunidade."
"Ah, vai-se arrepender! Esta rapariga faz um tratamento que nos põe de molho. Aqui há tempos tive uma sessão com a Natalya que me ia deixando a soro. Sabe, com aquela boca ela é capaz de..."
Rebecca pigarreou, já um pouco cansada daquele jogo e daquela conversa.
"Coronel, se me dá licença, nós temos um assunto que precisamos de tratar com uma certa urgência."
Alekseev ergueu as sobrancelhas espessas e respirou fundo, resignando-se à inevitabilidade da conversa que precisavam de ter.
"Ah, sim! A fotografia, não é?"
"Isso mesmo."
"Então diga lá, o que querem saber?" "Nós enviámo-vos a fotografia. Explique-nos o que aquilo é."
O russo inclinou-se no sofá e pegou no copo de vodka que deixara sobre a mesa.
"Blin, aquilo é a Rússia no seu pior!", exclamou, bebendo um trago. "Oiça, tem de perceber que, quando a União Soviética se desintegrou, em 1991, a Rússia herdou a maior indústria nuclear do planeta, incluindo o maior arsenal de armas atómicas e as maiores quantidades de urânio enriquecido e plutónio militar do mundo. Tudo isto se encontrava em dezenas de complexos tão escondidos que nem constavam em mapas. Tínhamos dez cidades secretas que albergavam quase um milhão de pessoas e onde se concentrava toda a indústria nuclear soviética. Com o colapso da economia e com a quebra da disciplina, toda esta indústria ficou ao deus-dará.
A inflação disparou para os dois mil por cento, as pessoas começaram a ser mal pagas e a ficar com os salários atrasados vários meses, os edifícios deterioraram-se, o material nuclear passou a ser negligenciado, até as vedações eléctricas foram desactivadas porque não havia dinheiro para pagar a electricidade. Para que tenha uma ideia, havia armazéns com toneladas de urânio enriquecido cujas portas estavam apenas protegidas por cadeados! E
os guardas que vigiavam esses armazéns, sabe o que eles faziam? Ausentavam-se para ir buscar comida ou bebidas... ou ir ver uma devusbkaV
"Isso estava mesmo mau..."
"Imagine!"
"No meio de toda essa anarquia, qual foi o material que, na sua opinião, ficou mais vulnerável ao tráfico?"
"Olhe, o país tem dezenas de milhares de ogivas nucleares guardadas em mais de cem locais. O maior risco, a meu ver, diz respeito às armas nucleares tácticas portáteis, as RA-155 do Exército e as RA-115-01 da Marinha. São pequenas, pesam uns meros trinta quilos, podem ser detonadas por um único soldado em apenas dez minutos e estão guardadas em posições avançadas, onde a segurança é relativamente fraca. Muitos oficiais encarregados da sua protecção já se reformaram, mas continuam a viver nos complexos onde essas armas
tácticas nucleares se encontram armazenadas. Esses homens sabem onde esse material está, têm acesso fácil a ele e recebem reformas baixas. É uma mistura explosiva. Quem me garante a mim que, se alguém lhes oferecer uma quantia generosa de rublos que os tire da miséria, eles recusarão?
"E evidente", concordou Rebecca. "Mas já houve algum
roubo confirmado?"
^_ »
"De armas nucleares tácticas? Não lhe posso dizer."
"O general Lebed, assessor do antigo presidente Ieltsin, revelou em público que algumas dessas armas desapareceram..."
"Não posso falar sobre isso."
Rebecca retirou da sua pasta a fotografia de Zacarias.
"Bem, para todos os efeitos o que está aqui em causa não são as armas nucleares tácticas, pois não?", disse ela, exibindo a imagem da caixa com caracteres cirílicos e o símbolo nuclear. "É o urânio enriquecido. De onde veio este material? O que nos pode dizer sobre isto?"
O coronel tirou uns óculos do bolso, encavalitou-os sobre o nariz e inclinou-se para a imagem, examinando-a com cuidado.
"Então esta é que é a famosa fotografia?"
"Não a tinha visto ainda?"
"Minha cara, vocês enviaram-na para Moscovo."
Afastou os olhos da imagem e cravou-os em Rebecca.
"Eu estou em Ierevan, não estou?"
A americana fitou-o interrogadoramente, uma expressão de alarme a cintilar-lhe nos olhos.
"O que quer dizer com isso? Não me diga que não tem respostas para me dar..."
Alekseev guardou os óculos, sorriu e rodou o corpo no sofá, voltando-se de novo para a porta.
"Sasha!"
A porta reabriu-se e o segurança voltou a espreitar.
"Sim, meu coronel?"
"O Vladimir já chegou?"
"Vem a caminho, meu coronel."
"Logo que ele chegue traga-o para aqui."
"Sim, meu coronel."
Assim que a porta se fechou, Alekseev pôs-se de novo confortável e voltou a encarar os dois visitantes.
"O homem do FSB que está a investigar este caso é da minha inteira confiança", disse. "Mandei-o vir cá de propósito para nos contar o que descobriu."
Rebbeca respirou de alívio.
"Ufa!", exclamou, o corpo esvaziando-se como um saco. "Cheguei a ficar preocupada."
O coronel agarrou no copo que havia deixado sobre a mesa e engoliu os últimos vestígios de vodka.
"Vocês têm de perceber uma coisa", disse o oficial russo, logo que recuperou do ardor do álcool. "Com a inflação a dois mil por cento, a palavra de ordem na Rússia passou a ser está tudo à venda! Naquele tempo vendia-se tudo! Kalashnikov, minas, tanques, aviões.... tudo! Houve até um almirante que vendeu sessenta e quatro navios, incluindo dois porta-aviões, da Esquadra do Pacífico!" Soltou uma gargalhada.
"Já viu ao ponto a que as coisas chegaram? O homem vendeu uma esquadra russa!"
"Fale-me do urânio enriquecido."
O russo recostou-se no sofá e bufou, como se tivesse relutância em entrar nesse tema.
"Ah, pois. O urânio enriquecido!" Voltou a inclinar-se para a frente e encheu mais uma vez o copo com vodka. "Sabe qual a quantidade de urânio enriquecido que a Rússia tem? Novecentas toneladas."
"E bastam cinquenta quilos para fazer uma bomba atómica", observou Rebecca.
"Pois é", suspirou Alekseev. "O pior é que a maior parte desse urânio enriquecido está guardada em locais pouco seguros. Fizemos um levantamento e foram identificados mais de duzentos armazéns com graves problemas de segurança, incluindo vedações rebentadas e janelas de vidrov facilmente acessíveis a ladrões."
"Eu sei", disse a americana. "O nosso governo gastou milhões de dólares a ajudar-vos a recuperar essas instalações. Mal o nosso dinheiro deixou de fluir, a deterioração da segurança recomeçou.
Roubar um complexo nuclear russo é, pelos vistos, mais fácil do que assaltar um banco."
"Isto é muito complicado", reconheceu o coronel, limpando as gotas de suor que lhe rolavam pela testa.
"O problema é agravado pelo facto de o urânio enriquecido a oitenta por cento ou mais não ser apenas usado em instalações militares, mas igualmente noutros locais. Nós recorremos a urânio enriquecido em quarenta reactores de pesquisa científica, em reactores de navios e submarinos e em instalações de fabrico de combustíveis. Muito desse material físsil é guardado em simples depósitos, facilmente acessíveis."
"Acessíveis a que ponto? De que está a falar?"
"Olhe, vou dar-lhe um exemplo. Em Novembro de 1993, um capitão da nossa Marinha entrou nos estaleiros de Sevmorput, perto de Murmansk, por uma porta sem guarda e penetrou no edifício onde era guardado o combustível dos submarinos nucleares. Uma vez lá dentro, pegou em três peças do núcleo de um reactor com cinco quilos de urânio enriquecido, pôs esse material físsil num saco e saiu dos estaleiros da mesma maneira que tinha entrado.
Ninguém soube de nada. Só viemos a tomar conhecimento do caso muitos
meses mais tarde, quando o capitão foi apanhado a vender o urânio enriquecido."
"Isso é muito preocupante!", observou Rebecca.
O oficial russo encolheu os ombros.
"Acha?", perguntou. "O que é realmente preocupante é que esta história não tem nada de extraordinário, ela é semelhante a muitas outras. O
que sucedeu em Sevmorput também já aconteceu na base naval de Andreeva Guba ou na base de submarinos de Vilyuchinsk-3, para citar só alguns exemplos. E os casos com civis também são frequentes, como ocorreu em Luch, em Sarov ou em Glazov. Um homem que foi apanhado com urânio altamente enriquecido roubado de Podolsk foi apenas condenado a três anos com pena suspensa porque o juiz teve pena dele. O ladrão só queria arranjar dinheiro para comprar um novo fogão e um novo frigorífico."
"Quantos incidentes desse género já ocorreram na Rússia?"
"Alguns, como vê."
"Quantos?"
Alekseev suspirou, agastado por estar a ser assim pressionado.
"Só a Agência Internacional de Energia Atómica identificou dezoito incidentes na Rússia entre 1993
e 2002."
"Isso é o que diz a agência. Qual é o verdadeiro número?" "E superior."
Rebecca inclinou-se na direcção do seu interlocutor, os olhos cravados nele com muita firmeza, como uma fera que não larga a presa.
"Qual é o número?"
O russo pegou na garrafa de vodka e voltou a encher o copo.
"Não lhe posso dizer", murmurou. "Essa informação é confidencial. Mas posso revelar-lhe que, só na transição da
União Soviética para a Rússia, perdemos material nuclear em quantidade suficiente para construir vinte bombas atómicas."
A americana arregalou os olhos, incrédula.
"Quantas?"
"Vinte bombas."
"Jesus!"
XLVI
Os instruendos de Khaldan estavam nessa manhã a estudar a técnica e os princípios por detrás dos itisbadi, os atentados suicidas. Abu Omar, que dava a aula, começou por se centrar nos princípios teológicos que legitimavam as acções levadas a cabo pelos shabid, os mártires, uma vez que o suicídio era absolutamente proibido pelo Alcorão.
"A excepção são justamente os itisbadi", sublinhou o instrutor, referindo-se aos suicidas em acções de combate. "O martírio em jibad é até a única forma de garantir o acesso ao Paraíso. Alguém sabe qual o versículo do Alcorão onde isso é esclarecido?"
Ao lado de Ibn Taymiyyah encontrava-se um palestiniano de Gaza, decerto ligado ao Hamas. O
rapaz levantou a mão.
"E na sura 3, versículo 169", exclamou de pronto.
"«Não tenhais por mortos aqueles que morreram pela causa de Deus. Não! Estão vivos juntos do seu Senhor, estão alimentados»."
"Muito bem", aprovou Abu Omar. "Esse versículo torna claro que a morte em jihad nos leva para junto de Alá, nos jardins eternos onde há muita água e comida. Existe até um hadith que esclarece que o shahid tem à sua espera setenta e duas virgens. Isso é..."
Um burburinho alegre percorreu a aula.
"O que é?", perguntou o instrutor com um sorriso,
"Já estão a pensar nas setenta e duas virgens?"
O burburinho transformou-se em risada geral.
"Lá em Gaza muitos irmãos só pensam em tornar-se shahid por causa das virgens", observou o palestiniano com um sorriso traquina.
Nova gargalhada geral.
"Realmente, como não desejar morrer se o shahid é o único dos crentes que tem assegurado um lugar no Paraíso?", perguntou Omar logo que o clamor acalmou. "Com a paz do Senhor e as virgens à nossa espera, qual é a dúvida? O que são as agruras desta vida quando comparadas com as recompensas que nos esperam? Há outros versículos do Alcorão e outros ahadith que falam sobre o Paraíso à espera dos shahid. Por exemplo, vejam o que Alá diz no..."
Roendo-se de curiosidade com a experiência do seu vizinho de carteira, Ibn Taymiyyah inclinou-se para o lado.
"Conheceste muitos shahid?", sussurrou.
"Sim", confirmou o palestiniano. "Eu próprio quero ser shahid."
"A sério?"
"Não vês o que nos espera, meu irmão? O Paraíso! O
rio com jardins! O vinho sem álcool! A graça de Deus!" "E as virgens..." O palestiniano sorriu de novo.
"Sabes o que fazem muitos irmãos no momento de se tornarem shahid? Como não conseguem deixar de pensar nas virgens, protegem o ventre com cartão para garantir que, depois de se fazerem explodir, os órgãos genitais chegam intactos ao Paraíso!"
Ibn Taymiyyah riu-se.
"Não acredito!"
"Juro por Alá! Antes de partirem em missão, muitos shahid protegem os genitais. Diz-se que é muito eficaz para..." De repente, irrompeu um brutal tiroteio lá fora. Tac-tac-tac-tac-tac. "O que é isto?"
Tac-tac-tac-tac-tac.
O fogo cerrado lançou o caos na sala de aula, com os recrutas a atirarem-se para baixo das mesas.
"O campo está a ser atacado!", gritou Abu Omar, agarrando de imediato na sua Kalashnikov e saltando lá para fora.
Após o primeiro momento de confusão, Ibn Taymiyyah e os companheiros seguiram o exemplo do instrutor e foram também buscar as suas armas.
Com as mãos já treinadas a lidar com a Kalashnikov, desligaram a cavilha de segurança e saíram do edifício em corrida, os corpos curvados, os dedos colados aos gatilhos, os olhos a dardejar na direcção dos tiros para localizar a ameaça e neutralizá-la.
Com os companheiros a assumirem posição de tiro ao seu lado, Ibn Taymiyyah viu três vultos a disparar, ajoelhou-se e apontou igualmente a arma para eles.
"Alto!", ordenou Abu Omar, antes que os recrutas abrissem fogo. "Não disparem! São os nossos irmãos!"
Foi nesse instante que Ibn Taymiyyah se apercebeu de que o inimigo era Abu Nasiri e outros dois
instrutores.
Os
três
disparavam
freneticamente para o ar, pareciam crianças, e o grupo que interrompera a aula ficou a observá-los sem saber o que pensar.
"O que se passa?", perguntou Abu Omar na direcção de Abu Nasiri, tentando sobrepor as suas palavras ao som das rajadas sucessivas. "Aconteceu alguma coisa?"
"Mash^allahr, gritavam os instrutores.
"Masha'allab!"
Mais tiros.
"O que se passa?"
Abu Nasiri parou momentaneamente de disparar.
„ "Liguem a rádio!", gritou, parecia histérico. "Oiçam o que os kafirun estão a noticiar!" "O quê?"
"Ajoelhámos a América! Ajoelhámos a América!
Ma-sba'allab!"
Os instrutores retomaram os disparos de celebração, numa euforia sem limites. Intrigados, Abu Omar e os recrutas abandonaram a praça e precipitaram-se para a cantina; havia no refeitório um receptor de ondas curtas que por vezes escuta-vam à noite.
Ibn Taymiyyah sabia de cor a frequência da BBC
em árabe, que desde pequeno se habituara a ver os pais sintonizarem, e procurou-a. O rádio emitiu os assobios habituais das ondas curtas e passou por várias estações até que se fixou na frequência pretendida.
Uma voz em árabe irrompeu então pela cantina.
"... não sabemos agora o que vai acontecer ao outro edifício", disse a voz, claramente a improvisar. "Foi danificado pelo primeiro avião e permanece em pé, enquanto a torre atingida pelo segundo aparelho já se desmoronou. Será que a primeira torre também vai cair?" Uma segunda voz, aparentemente ao telefone, respondeu à primeira. "Bom... nem quero pensar nisso! Isto é uma tragédia sem... sem precedentes. O facto é que está instalado o caos aqui no centro de Nova Iorque. Toda a gente se interroga sobre quem lançou este brutal ataque contra as torres gémeas do World Trade Center. O
presidente Bush, que recebeu a notícia quando se encontrava numa..."
"Masha'allah!", gritou Abu Nasiri lá fora, louco de alegria.
O grupo que se juntara na cantina em torno do rádio desatou a correr para a praça, aos tiros e aos pulos, esfusiante, gritando em coro a resposta que lhes enchia o coração.
"Allah u akbarr
"Masha'allah!"
"Allah u akbarr
As celebrações só acabaram noite dentro.
A moto saltitava na terra, levantando uma nuvem de poeira avermelhada, e Ibn Taymiyyah agarrou-se com força ao tronco do condutor para não cair.
Sentiu a moto abrandar e espreitou para a frente.
Lá estava a figura humana sentada a uma mesa, na esplanada, a tomar um café.
Ibn Taymiyyah ajeitou a Waltber PPK na mão direita e preparou-se para actuar no instante em que recebesse a ordem.
"Agora!", disse o condutor.
Ibn Taymiyyah saltou da moto em andamento, destravou a Waltber enquanto dava uns passos rápidos, viu-se diante da figura sentada à mesa da esplanada, apontou-lhe a pistola à testa e carregou três vezes sucessivas no gatilho.
Pah. Pah. Pab.
A figura tombou desamparada para trás e o assassino desatou a correr, saltou para a parte traseira da moto e o veículo arrancou com grande fragor, desaparecendo rapidamente do local do atentado.
"Muito bem!", aplaudiu Abu Nasiri, irrompendo na esplanada. "Estás um assassino perfeito, meu irmão!
Este teu exercício foi ainda melhor do que a simulação de sequestro."
A moto deu meia volta e regressou ao local. Ibn Taymiyyah apeou-se e foi verificar a precisão dos seus disparos na cabeça do boneco tombado no chão.
"Falhei um tiro", constatou.
"Não faz mal", consolou-o o instrutor. "Duas balas na cabeça chegam para arruinar o dia a qualquer hafir"
Ainda pouco convencido, Ibn Taymiyyah olhou para a moto, cujo motor continuava a ronronar.
"Posso tentar outra vez?"
"Claro. Mas desta feita destranca a pistola quando a moto começar a abrandar, não quando estiveres já a andar. E arriscado o que fizeste. Imagina que tinhas saltado mesmo em cima do alvo, o que fazias?
Precisavas ainda de destravar a pistola e o kafir dispunha de tempo suficiente para se aperceber da ameaça e reagir, percebeste?"
"Sim, meu irmão."
Sem perder tempo, Abu Nasiri foi recolher o boneco e posicioná-lo outra vez à mesa. "Então vamos lá repetir isto."
Ibn Taymiyyah permaneceu parado a olhar para o boneco. "E se em vez de lhe disparar para a cabeça eu o matar da forma estipulada por Alá?"
"O que queres dizer com isso?"
"Diz Alá na sura 47, versículo 4 do Alcorão:
«Quando encontrardes os que não crêem, golpeai-os no pescoço até os deixardes inertes»."
O instrutor cravou igualmente os olhos no boneco.
"Queres decapitá-lo?"
"Sim, é essa a ordem de Alá."
"E muito complicado, não tens tempo de o fazer em meio urbano", observou Abu Nasiri, abanando a cabeça. "Exercita o assassínio com a pistola. Os exercícios de decapitação ficam para outro dia."
O instruendo dirigiu-se de novo à moto, acomodou-se na traseira, travou a Walther e a moto arrancou para assumir a sua posição. Foi quando estava a postos para reiniciar o exercício de assassínio em meio urbano que Ibn Taymiyyah se apercebeu de um vulto a aproximar-se e a gesticular freneticamente na sua direcção.
"Quem é aquele?", perguntou ao condutor da moto.
"É o Omar", devolveu o companheiro. "Parece que nos está a chamar."
A moto arrancou e levou-os para junto do responsável pelo campo para ver o que ele queria.
"Ibn Taymiyyah, meu irmão", disse Abu Omar, pousando a mão no ombro do recruta. "Vai buscar as tuas coisas imediatamente."
"Quais coisas?"
"As que trouxeste para o campo."
"Porquê?"
"Tens de partir dentro de cinco minutos."
A informação deixou Ibn Taymiyyah embasbacado.
"Partir? Partir para onde?"
"O xeque quer falar contigo. Mandou que te levássemos ao seu refúgio o mais depressa possível."
"Mas porquê?"
Abu Omar esganiçou a voz e caricaturou Ibn Taymiyyah.
"Porquê, porquê... ai tanta pergunta!" Apontou na direcção dos barracões residenciais. "Por Alá, vai mas é buscar as tuas coisas e cala-te! Pareces uma alcoviteira, assim com tantas perguntas! Um bom mudjahedin não fala. Faz."
Ibn Taymiyyah mordeu o lábio, repreendendo-se pela sua falta de disciplina, e obedeceu.
"Sim, meu irmão."
Ao observar o recruta a afastar-se, Abu Omar fez um gesto rápido com a mão, como se o enxotasse.
"Yallah! Yallah! Despacha-te!"
Vendo o seu instruendo a ir-se embora, Abu Nasiri correu atrás dele para lhe dar os últimos conselhos.
"Leva um casaco", recomendou quando o alcançou.
"Faz frio lá nas montanhas. E que Alá te acompanhe, porque vais precisar da Sua ajuda, meu irmão."
Esta observação fez Ibn Taymiyyah parar para encartar o seu instrutor.
"O que queres dizer com isso?"
"Quero dizer que te espera uma missão muito importante." "Que missão?"
Abu Nasiri abanou a cabeça e olhou em redor, como se receasse já ter falado de mais.
"Não te posso revelar. Só o xeque."
"Ah, o xeque, a figura mistério aqui do campo!", exclamou. "Mas afinal quem é ele?"
O instrutor arregalou os olhos, admirado com a pergunta.
"Não há mistério nenhum, ele é o emir do nosso campo", disse. "Por Alá, não sabes quem é o xeque?"
"Não."
"Olha lá, tu não tens lido os jornais que chegam aqui ao mukhayyam?"
"Claro que sim. Porquê?"
"O xeque é o herói da umma, meu irmão. O xeque é o homem que vergou a América!"
Ibn Taymiyyah não estava a perceber nada. De quem estaria o seu instrutor a falar?
"O quê?"
Abu Nasiri cravou os olhos no seu instruendo. "O
xeque é Bin Laden."
XLVII
Um homem minúsculo de cabelo loiro, escasso e fino, entrou obsequioso na salinha de estar do strip club. O coronel Alekseev rodou a cabeça e, ao vê-lo, ergueu-se de um salto e abriu os braços para um acolhimento efusivo.
"Vlad!"
Os dois homens abraçaram-se e o coronel levou o recém--chegado para o sofá, apresentando-o a Rebecca e Tomás.
"Este é Vladimir Tarasov, um camarada meu do FSB", anunciou. "Bom rapaz!"
"Muito prazer", respondeu Rebecca, apertando-lhe a mão.
"Como está?", disse Tomás quando chegou a sua vez de cumprimentar o recém-chegado. "Já vi que vocês os dois se conhecem há muito tempo..."
Alekseev olhou para Vladimir e soltou uma gargalhada cúmplice.
"Oh, desde os tempos da guerra no Afeganistão!"
Agarrou em Vladimir pelo ombro e puxou-o para si.
"Aqui o
Vlad
trabalhava
comigo
na
unidade
de
contra-informação do KGB em Cabul." Uma gargalhada sonora. "Grandes tempos, hem?"
"Se foram!...", concordou Vladimir com um sorriso acabrunhado. "Connosco aquela canalhada não brincava!"
Acomodaram-se no sofá, trocando palavras de ocasião. O coronel encheu mais um copo de vodka enquanto o r«cém--chegado se queixava do atraso no voo da Aeroflot que o havia impedido de chegar a horas a Ierevan.
Cumpridas as formalidades de cortesia, Rebecca voltou a pegar na fotografia de Zacarias e mostrou-a a Vladimir.
"Presumo que já tenha visto isto."
O russo assentiu.
"O FSB distribuiu essa foto por todos os escritórios espalhados pelo país", confirmou.
"Recebi-a em Ozersk e passei os dois últimos dias a investigar esse assunto."
"E... descobriu alguma coisa?"
Vladimir aproximou a imagem dos olhos e analisou-a com cuidado.
"Dizem vocês que este material está na posse da Al-Qaeda?" "Sim."
Vladimir manteve a atenção fixada na fotografia por alguns instantes, como se quisesse confirmar uma vez mais o que já sabia, e depois devolveu-a à americana.
"Tenho uma má notícia para lhe dar."
"Diga lá."
"Este material é genuíno."
Fez-se um súbito silêncio na sala. Apenas se ouviam as batidas surdas da música no salão do strip club, do outro lado da porta.
"De certeza?"
"Sem sombra de dúvida."
Rebecca ficou com a fotografía nas mãos; parecia alimentar ainda a esperança de que ela fosse capaz de revelar mais algum segredo.
"E onde foram eles adquirir isto?"
"Supomos que tenha sido no complexo de Mayak."
"Mayak? O sitio do grande desastre nuclear de 1957?"
"Esse mesmo."
"Como é que a Al-Qaeda arranjou isto em Mayak?
Houve aí algum incidente que vocês não nos tenham comunicado?" Vladimir riu-se nervosamente.
"Não temos tido outra coisa que não sejam incidentes naquele maldito complexo", exclamou.
"Mayak está adstrita a Ozersk, pelo que infelizmente se encontra sob a minha jurisdição.
Posso garantir-lhe que me tem dado enormes dores de cabeça. Em 1997 descobrimos por mero acaso que um grupo de trabalhadores da Fábrica de Radioisótopos Número 45, em Mayak, andava há dois anos a vender irídio radioactivo com documentos falsificados. O próprio director da fábrica estava envolvido no tráfico. No ano seguinte, o FSB
desmantelou um plano arquitectado por funcionários de outra das unidades de Mayak, chamada Chelyabinsk-70, para roubar mais de dezoito quilos de urânio altamente enriquecido."
"Gee!", admirou-se Rebecca. "Isso é quase metade da quantidade necessária para fabricar uma bomba atómica."
"Pois é. Mais um ano volvido foi encontrada uma tonelada de aço radioactivo abandonada nos arredores de Ozersk. Uma investigação revelou que o material havia sido roubado de Mayak. Se o aço radioactivo não tivesse sido encontrado, ou se algumas pequenas coisas acidentais não tivessem permitido identificar os roubos de irídio e urânio altamente enriquecido, nada saberíamos. E se com amadores, que cometem erros parvos, foi difícil detectar estes roubos, imagine a quantidade de material nuclear que pode ter sido roubada de Mayak por profissionais sem que nós saibamos."
"Eu julgava que a segurança em Mayak havia sido reforçada", argumentou a americana. "Nós metemos lá muito dinheiro."
"Sim, agora está melhor. Mas não há dúvidas de que temos ali problemas. Basta dizer que até já detectámps redes de tráfico de droga envolvendo os soldados destacados para Mayak. Isso diz tudo sobre as debilidades do sistema de segurança ali instalado."
Rebecca voltou a exibir a fotografia.
"O que vos leva a pensar que esta caixa de urânio enriquecido veio mesmo de Mayak?"
"Os números de série que se encontram registados na caixa. Batem certo com o inventário de Mayak."
"E quando foi isto roubado?"
"Não temos a certeza", disse Vladimir. "Mas em 1997 apareceram num descampado de Ozersk os corpos de uns soldados e de vários funcionários que supostamente estariam na noite anterior de serviço no complexo de Mayak. Num outro local da cidade foram encontrados os cadáveres de familiares dos funcionários. Fizemos umas averiguações que não deram em nada e o caso foi encerrado. Mas agora, ao ver essa fotografia, comecei a interrogar-me sobre o que realmente se teria passado e decidi reabrir o caso."
"Descobriu alguma coisa nova?"
"Ainda estamos a fazer o inventário do material dentro do cofre de Mayak." Hesitou. "Mas já tropeçámos em duas coisas que nos chamaram a atenção."
"O quê?"
"Tentámos ver as gravações referentes aos vídeos internos nos locais e na noite em que os guardas e os funcionários mortos supostamente se encontravam de serviço. Por estranha coincidência, pelos vistos ocorreu uma avaria no sistema de videosegurança no edifício onde deveriam estar dois funcionários.
Também fomos verificar as passagens assinaladas nos postos fronteiriços russos naquele período, para ver se foi registada alguma anomalia na altura em que os corpos foram descobertos." "E então?"
"A fronteira mais próxima de Mayak é a do Cazaquistão, situada a apenas quatro horas de distância para quem for a conduzir. Acontece que o nosso posto fronteiriço localizado na estrada entre Ozersk e o Cazaquistão registou a passagem de um grupo de homens umas horas antes de os corpos dos guardas, dos funcionários e dos seus familiares terem sido encontrados."
"O que tinham esses homens de especial?"
"A sua nacionalidade."
"Não me diga que eram árabes..."
"Chechenos." O homem do FSB levou a mão ao bolso e tirou uma fotografia de um homem moreno com aspecto de ser da região do Cáucaso. "Um deles chama-se Ruslan Markov e era muito activo na guerrilha. Temos até uma pasta sobre ele."
Rebecca e Tomás debruçaram-se sobre a fotografia, como se o rosto que ela mostrava lhes pudesse dar respostas.
"Acha que foi este tipo?"
"O que lhe parece?", perguntou Vladimir. "Os Chechenos são muçulmanos e muitos deles são fundamentalistas, com ligações a outros movimentos islâmicos. O Markov é checheno, tinha contactos com grupos fundamentalistas e sabemos que esteve envolvido na execução de reféns na Chechénia e no Sul da Rússia. Os nossos registos indicam que ele passou com um bando de chechenos pela fronteira mais próxima de Mayak
horas antes de serem encontrados os corpos dos soldados, dos funcionários e dos seus familiares.
Considerando toda esta informação, o que conclui?"
Rebecca nem retorquiu, tão óbvia era a resposta.
Em vez disso, indicou a fotografia que mantinha na mão.
"Onde está este Markov?"
"A informação que temos é que ele já morreu^
Parens que os nossos homens o abateram num combate nos arredores de Grozny."
"Damn!", praguejou ela.
"Por ele já nada saberemos, mas não é difícil adivinhar o que terá acontecido depois do roubo de urânio enriquecido em Mayak. Os chechenos largaram os corpos dos guardas, dos funcionários e dos seus familiares, estes provavelmente usados para fazer chantagem, fugiram para o Cazaquistão e desapareceram do mapa. Ali ou em qualquer outro ponto, naquele mesmo dia ou algum tempo mais tarde, acabaram por vender o urânio enriquecido à Al-Qaeda. Nada mais simples."
A americana girou a fotografia entre os dedos nervosos, indecisa quanto ao que fazer a seguir. "E
agora?", perguntou ela.
Percebendo que o briefing do homem do FSB em Ozersk havia terminado, Tomás ergueu-se e puxou por Rebecca.
"Agora só há uma coisa a fazer", disse o português, rompendo o seu longo silêncio. "Temos de localizar essa caixa."
XLVIII
O jipe de fabrico russo saltitava sem parar pelos caminhos poeirentos e montanhosos do Sul do Afeganistão, a terra amarela e castanha recortada pelo céu azul e branco de nuvens. Ao volante ia um mudjabedin com gosto pela aceleração e atrás, ao lado de Ibn Taymiyyah, seguia um segundo mudjakedin armado com uma Kalashnikov. O jipe dava solavancos incríveis nos buracos da estrada, mas isso não impedia o condutor de continuar a carregar no acelerador a fundo.
Ao fim de duas horas, o jipe deparou-se com uma barreira na estrada e os mudjahedin pegaram de imediato nas armas, preparados para a emboscada, mas logo reconheceram os rapazes em shalwar kameez e turbantes brancos que operavam o posto de controlo. Embora tensos, os ocupantes do jipe voltaram a pousar as armas.
"Taliban", disse o motorista, a voz um tudo-nada irritada.
Os rapazes do posto de controlo inspeccionaram os documentos muito devagar e leram cada papel com enorme aten
ção, revirando as folhas como se elas ocultassem segredos. Quando se deram por satisfeitos, um deles extraiu do bolso uma pequena cassete áudio e disse algo de imperceptível em pasto ao motorista. O
mudjabedin suspirou, enchendo-se de paciência, e pôs a cassete no gravador do carro.
Seria música?, interrogou-se Ibn Taymiyyah. De imediato teve a resposta. Dos altifalantes do jipe começou,a sai» uma voz cavada a recitar versículos em árabe antigo. Prestou atenção e percebeu que era a primeira sura do Alcorão.
Os talibãs sorriram em aprovação e, com um gesto, mandaram-nos avançar.
"Por Alá, são mesmo crentes", observou Ibn Taymiyyah quando se afastavam já do posto de controlo, voltando a cabeça para observar os vultos que iam desaparecendo por entre a nuvem de poeira levantada pelo jipe.
O mudjabedin que estava com ele assentiu.
"Às vezes até exageram", observou com acidez.
"Exigem coisas que Alá não ordenou no Santo Alcorão ou através da sunnab do Profeta."
"Tais como...?"
O mudjabedin apontou para o leitor de cassetes de onde continuavam a jorrar versículos coránicos.
"Olha, a obrigatoriedade de ouvirmos o Santo Alcorão em viagem, por exemplo. Onde está exigida tal coisa no Livro Sagrado? Em que hadith está o Profeta, que a paz esteja com ele, a determinar tal preceito?"
Ibn Taymiyyah conhecia o Alcorão de cor e a maior parte dos ahaditb credíveis e sabia que o mudjabedin tinha razão. Em ponto algum se exigia tal coisa dos crentes. Aqueles talibãs eram mesmo uns exagerados!, concluiu; estavam em desvio. Mas sabia que não era boa política dizer mal dos anfitriões; os mudjabedin precisavam deles para poderem continuar a preparar a jihad nos mukhayyam e por isso tinham sempre o cuidado de evitar tecer observações críticas em voz alta.
Isto não impediu o motorista de, ao assegurar-se de que os afegãos já haviam ficado bem lá para trás, se inclinar sobre o rádio e desligar a cassete. No momento em que a recitação foi interrompida, os três homens do jipe riram-se, divertidos com aquela pequena revolta contra os talibãs, como se aquele gesto reproduzisse a vontade comum.
O incidente criou uma afinidade indefinida entre Ibn Taymiyyah e os mudjahedin que o levavam. Era um sentimento tão volátil como uma pena ao vento, mas o facto é que perdurou durante alguns momentos. Aproveitando a atmosfera benigna que se instalara no jipe, o recruta arriscou uma pergunta.
"Para onde vamos?"
"Para o Ninho da Águia", explicou o mudjahedin que seguia ao lado dele. "O que é isso?"
"E a nossa base nas montanhas." Deixou passar uns instantes e depois acrescentou, como se adicionasse um post scriptum: "E lá que está o xeque."
Ah, Bin Laden!, pensou o recruta, de repente excitado outra vez com a perspectiva do encontro.
"O que me quer ele?"
"Desconheço", devolveu o mudjahedin. "A seu tempo o saberás, inch'Allah!"
Ibn Taymiyyah ficou a ver a estrada, os olhos perdidos no pensamento.
"Vocês conhecem o xeque há muito tempo?"
"Desde a guerra contra os Russos."
"E como é ele?"
"Um dos melhores homens do mundo, que Alá o proteja e
o guie. Um crente muito pio. Se todos fossem como ele, meu
irmão, podes estar certo de que o islão já mandaria no mundo
e os kafirun encontrar-se-iam todos submetidos à vontade de
Alá. O xeque é o emir de vários mukhayyam que temos
espalhados aqui pelo Afeganistão, incluindo Khaldan, onde te
fomos buscar."
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"Sim, eu sei. É por isso que fico admirado por uma figura tão importante me querer conhecer. Eu não sou ninguém."
"Es um crente. Por isso és importante."
"Sim, mas há milhões de crentes em todo o mundo.
Por que razão quer ele falar comigo em especial?"
"O motivo exacto não sei, meu irmão. Mas, conhecendo o xeque como conheço há tantos anos, há uma coisa de que eu tenho a certeza."
"O quê?"
O mudjahedin deixou o olhar espraiar-se pela paisagem amarela e árida do Afeganistão.
"Se ele te chamou com tanta urgência é porque se vão passar grandes coisas", disse, deixando o olhar deslizar para o seu passageiro. "Espera-te uma missão muito importante."
Uma carrinha de caixa aberta irrompeu subitamente na estrada com grande aparato, pondo-se ao lado do jipe e fazendo Ibn Taymiyyah dar um salto de susto. Para além do motorista, a carrinha tinha três homens na caixa, dois a manejar um lança-róquetes e o outro agarrado aos manípulos de uma metralhadora assente numa pequena plataforma. Parecia-lhe que iam abrir fogo à queima-roupa contra o jipe.
"As salaam alekum!", saudaram os dois mudjabedin que traziam o instruendo de Khaldan.
Vendo a troca de cumprimentos, Ibn Taymiyyah acalmou--se. Eram todos conhecidos, não parecia haver problema. "Quem são estes?" "É a guarda do Ninho da Águia."
Ibn Taymiyyah inspeccionou a carrinha que os havia interceptado. Seguira durante algumas centenas de metros ao lado do jipe, aparentemente para se certificar da identidade dos seus ocupantes, mas de momento acompanhava-os pela cauda.
Voltou a cabeça para a estrada diante deles. Havia já algum tempo que o jipe escalava as montanhas nevadas e tinha a impressão de que se encontravam já bem alto. Fazia frio e o ar ali parecia mais leve.
O passageiro inclinou-se para o mudjabedin que ia ao seu lado.
"Estamos a chegar?"
O mudjabedin apontou para o topo das montanhas em frente.
"Sim", confirmou. "O Ninho da Águia é já ali."
A excitação por conhecer o homem que a América responsabilizava pela jibad nas suas cidades era muito grande, mas Ibn Taymiyyah fazia por permanecer calmo. Passara toda a viagem a pensar naquele encontro e no que lhe quereria Osama Bin Laden, e agora que estavam a chegar a curiosidade era maior do que nunca. A expectativa tornara-se enorme e obrigou-o a um esforço para distrair a mente.
"Isto é alto, hem?", observou, espreitando o vale lá em baixo.
"Estamos a três mil metros de altitude." O
mudjabedin indicou um outro pico, mais distante. "Na jibad contra os Russos, os kafirun instalaram ali uma base que nos deu muitos problemas. Tivemos de a bombardear noite e dia para os expulsar de lá."
"Lutaste contra os Russos?", quis saber Ibn Taymiyyah, a admiração e o respeito estampados na cara.
"Alá, na Sua grandeza, concedeu-me essa oportunidade." "E que tal eram eles?"
"Corajosos. Não eram como os kafirun americanos, que fugiram mal lhes demos uma tareia em Mogadíscio. Os Russos eram duros e pacientes. Foi uma jihad muito difídl, fez muitos mártires entre os crentes."
O passageiro assentiu. Como gostaria de ter participado na jihad contra os Russos, essa guerra já mítica que trouxera grande glória ao islão! Esfregou as mãos para gerar calor e olhou em volta, os olhos atraídos pela deslumbrante paisagem que se abria diante deles. Contemplou os picos nevados e escarpados; eram de tirar o fôlego, sobretudo quando recortados sob o céu azul e laranja do crepúsculo, como acontecia nesse instante. A existência de um tal lugar na Terra parecia-lhe a prova consumada de que Alá era o supremo artista.
"Que montanha é esta?"
O mudjahedin lançou um novo olhar à montanha que escalavam antes de responder com um sentimento de protecção, como se ela lhe pertencesse.
"Tora Bora."
A encosta nevada da montanha era rasgada aqui e ali pela entrada de grutas. Apesar de a luz do dia estar a diminuir rapidamente, via-se actividade humana diante das cavernas, com mudjahedin armados para cá e para lá. O jipe prosseguiu a sua escalada mais algumas centenas de metros, mas virou junto a mais uma gruta e imobilizou-se com um guincho, a nuvem de poeira a planar atrás com lentidão.
"Chegámos!", anunciou o motorista, puxando o travão de mão e desligando o motor.
A calma instalou-se naquele lugar. Ibn Taymiyyah apeou--se devagar, incerto quanto ao que deveria fazer a seguir, mas logo deu de caras com um homem de meia-idade que saíra da gruta ao seu encontro.
Depois de cumprimentar o recém--chegado, o homem fez-lhe sinal de que o seguisse. Ibn Taymiyyah despediu-se dos mudjahedin que o haviam trazido de Khaldan e acompanhou o seu novo guia.
"O xeque aguarda-te", anunciou-lhe o homem.
A gruta estava quase às escuras, apesar de um ocasional candeeiro de luz amarelada pregado às paredes. Ibn Taymiyyah percorreu os corredores com o coração aos saltos; pensava inicialmente que era de excitação, mas ficou tão ofegante que teve de parar para recuperar o fôlego.
"O que se passa?", perguntou o homem que o conduzia. "Sentes-te bem, meu irmão?"
O recém-chegado arfava e encostou-se à parede para descansar.
"Não sei", disse. "Sinto-me... fatigado." O homem observou-o com atenção e sorriu ao identificar o problema.
"Isso é normal, fica descansado", tranquilizou-o.
"Estás a sofrer do mal da altitude. Passar de repente para os três mil metros de altitude deixa qualquer pessoa sem fôlego."
Logo que o visitante recuperou, o guia conduziu-o pelo resto do corredor até uma abertura a meio da parede. Dela vinha um clarão. Os dois homens franquearam-na e Ibn Taymiyyah deu consigo numa galeria bem iluminada e ocupada por três mudjahedin sentados de pernas cruzadas em tapetes, as Kalasbnikov pousadas no regaço.
Ao aperceberem-se da chegada do convidado, os três assentaram as armas no chão, levantaram-se e um deles, o mais alto, aproximou-se com um sorriso e os braços abertos.
"As salaam alekum, meu irmão", disse ele, dando-lhe as mãos. "Bem-vindo ao Ninho da Águia!"
Ibn Taymiyyah reconheceu-o das fotografias. Já se havia
cruzado com aquele rosto antes dos atentados de Nova Iorque,
mas só se familiarizara com ele nas duas últimas semanas, ao
ler os jornais que chegavam a Khaldan com pormenores do
sucedido na América.
*
Era Osama Bin Laden.
XLIX
Rebecca desligou o telefone e olhou para Tomás.
"Vou marcar voo para Washington", disse ela.
"Também quer vir?"
O português estava de costas e contemplava a cidade iluminada e o céu estrelado sobre Ierevan.
Encontravam-se ambos no terraço do hotel, junto à piscina escura e silenciosa, e já passava da uma da manhã. Logo que saíram do CCCP, a americana insistira em ir ali para falar com Frank Bellamy pelo seu telefone-satélite, o único meio de comunicação que lhe dava garantias de não estar sujeito a escutas.
Ao ouvir a pergunta, Tomás voltou-se, coçou o queixo e estreitou os olhos, pensativo.
"Que lhe disse mister Bellamy?"
"Que o presidente decretou DEFCON 4."
"O que raio é isso?"
"Defense Readiness Condition", disse ela, traduzindo o acrónimo. "É um estado de alerta das forças armadas dos
Estados Unidos. O estado normal é o grau 5. O
alerta de grau 4 refere-se a uma ameaça ainda não muito clara e estende-se a todo o globo. Neste momento está montada a caça. Os serviços secretos de todo o mundo andam a apertar todas as suas fontes para tentar localizar a unidade da Al-Qaeda que anda a passear por aí com urânio enriquecido."
"Mas como diabo se faz uma busca dessas?" •
"Falando com muita gente e fazendo muitas perguntas. Além do mais, não se esqueça de que temos uma pista." "Qual?"
"Não foi o seu antigo aluno que disse que o terrorista da Al-Qaeda se chama Ibn Taymiyyah?
Agora toda a gente anda a ver se localiza esse tipo."
"E já apareceu alguma indicação sobre o seu paradeiro?"
A americana abanou a cabeça, um pouco apreensiva.
"Ainda não."
"Nem vai aparecer."
Rebecca levantou os olhos e fitou-o, admirada.
"Porquê? Porque diz isso?"
"Oiça, Rebecca. Sabe quem foi Ibn Taymiyyah?"
A expressão de admiração acentuou-se ainda mais.
"Não estou a perceber essa pergunta..."
"Ibn Taymiyyah foi um xeque árabe que se ergueu contra a invasão mongol de Bagdade, na Idade Média. E um dos teóricos do jihadismo. Percebe o que lhe estou a dizer?"
"Não."
"Ibn Taymiyyah é um pseudónimo!", exclamou, peremptório. "Não existe ninguém com esse nome.
Podem vasculhar todos os registos aduaneiros que quiserem, nunca o vão encontrar porque ele não existe! E, se por acaso aparecer alguém que tenha tal nome no passaporte, pode estar certa de que se trata do homem errado. Entendeu agora?"
"Acha?"
"Tenho a certeza. Além do mais, o Zacarias disse-me que o Ibn Taymiyyah andava na minha faculdade. Já liguei para a secretaria em Lisboa e pedi que me verificassem nos computadores se houve algum aluno inscrito na universidade com esse nome nos últimos dez anos. Não apareceu ninguém.
Vocês já falaram com o SIS português?"
"Claro. Pedimos-lhes que identificassem Ibn Taymiyyah."
"E então? Qual foi a resposta?"
"Ainda não deram."
"Nem vão dar porque, como lhe expliquei, não existe ninguém com esse nome."
"Então como poderemos localizar o terrorista?"
"A luz do que me disse o Zacarias, a única certeza é que o nosso homem frequentava a Mesquita Central de Lisboa e a minha faculdade.
Provavelmente até foi meu aluno, pelo menos a acreditar no Zacarias. E pois pela faculdade que devemos começar."
Rebecca ficou a brincar por alguns momentos com o fio do telefone-satélite, a mente a desenvolver a linha do raciocínio que Tomás lhe havia exposto.
"Tom, a sua universidade tem registados os nomes de todos os alunos que se inscreveram lá nos últimos dez anos?"
"Claro."
"E existem fotografias de todos eles?"
"São obrigatórias no acto de matrícula."
"Muito bem, vamos fazer o seguinte", disse com resolução. "Vou pedir a mister Bellamy que contacte o governo português no sentido de dar ordens à sua universidade para mandar tudo isso para Washington o mais depressa possível. Acha que pode ajudar-nos a identificar os nomes e os rostos dos que foram seus alunos?"
"Claro."
"Então terá de vir a Washington comigo. Outro passo que temos de dar é perceber onde vai ocorrer o atentado. Estamos já a fiscalizar todos os portos e passagens alfandegárias do mundo ocidental. Além do mais..."
"Eu sei onde vai ser."
"Como? Sabe?"
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"Se tivermos em conta que este atentado implica uma nova escalada no jihadismo e se conhecermos o tipo de raciocínio dos fundamentalistas islâmicos, não é difícil perceber qual será o alvo."
"Não me diga que vão ser os Estados Unidos..."
"Com toda a certeza."
"Porque pensa isso? Por sermos o Grande Satã?"
"Por serem os líderes do mundo ocidental", disse Tomás.
"Que disparate!", exclamou Rebecca. "Vão atacar-nos só por causa disso? Não faz sentido!"
O historiador suspirou e encheu-se de paciência.
"Oiça, você sabe de que vos acusam os fundamentalistas? Eles culpam a América por ter exterminado os índios, por ter escravizado os negros, por ter cometido crimes de guerra em Hiroxima e Nagasáqui, e ainda na Coreia, no Vietna-me, no Iraque, no Afeganistão e por aí fora, por apoiar Israel, por apoiar os tiranos árabes, por explorar o petróleo dos países árabes, por imoralidade, por prática de usura, por autorizar o consumo de álcool, por permitir a liberdade sexual, por garantir a liberdade de expressão, por defender a democracia, por deixar que as mulheres sirvam passageiros nos aviões, por..."
"Já entendi", atalhou Rebecca. "Somos culpados de tudo."
"Exactamente! Algumas destas acusações são muito estranhas, como decerto reparou. Por exemplo, esta acusação de a
América ter escravizado os negros. Vinda de quem vem, é hilariante! Não era Maomé que permitia a escravatura? Ele até tinha escravos! E a Arábia Saudita? Sabe quando foi que este país islâmico, o mais sagrado de todos, a pátria de Maomé, a terra onde se encontra Meca e Medina... sabe quando foi que a Arábia Saudita aboliu a escravatura? Em 1962!
Como é possível que os fundamentalistas islâmicos estejam tão indignados com práticas na América que eram aprovadas e exercidas pelo próprio Profeta?"
"Onde quer chegar?"
"A uma ideia muito simples: a interminável lista de queixas dos fundamentalistas islâmicos contra a América não passa de um conjunto de pretextos usados para disfarçar a verdadeira motivação.
Repare, quando o Ocidente vai de encontro a uma exigência islâmica e satisfaz uma reivindicação, o antagonismo nunca é verdadeiramente resolvido e logo outra queixa se levanta, e depois outra e outra ainda. Pior, quando os Americanos se põem ao lado de muçulmanos contra cristãos, como aconteceu na Bósnia e no Kosovo, isso é liminarmente ignorado. Os fundamentalistas e os conservadores islâmicos chegam ao cúmulo de esquecer o enorme contributo americano na guerra do Afeganistão contra a União Soviética, afirmando explicitamente que os mudjahedin venceram sozinhos os Soviéticos. Ora tudo isto mostra que existe um problema de fundo, não lhe parece?"
"Sim, mas qual é esse problema? O que têm eles especificamente contra a América? E isso que eu não percebo..."
"Quando o islão nasceu, o grande inimigo era a tribo que dominava Meca. No momento em que essa tribo foi vencida, os grandes inimigos passaram a ser todos os não muçulmanos que viviam na Arábia. Logo que eles foram convertidos, assimilados, mortos ou expulsos, o grande inimigo passou a ser a Pérsia.
Este império foi vencido e o grande inimigo seguinte tornou-se Constantinopla, que liderava o mundo cristão. Com a queda do Império Romano do Oriente, o grande inimigo transferiu-se para Viena, capital do Sacro Império Romano. Mas quando a liderança do mundo cristão se deslocou para a Grã-Bretanha e a França, estes >dois países passaram a ser o Grande Satã. E agora? Quem é o líder do mundo ocidental?"
"A América."
"Então é a América o grande inimigo", sentenciou Tomás. "A América é atacada, não necessariamente porque esteja a maltratar os muçulmanos, mas simplesmente porque é o líder do Ocidente, a principal potência mundial, e consequentemente o maior obstáculo à expansão do islão a todo o planeta.
O mais grave é que, pelo simples facto de se revelarem
económica,
cultural,
política
e
militarmente mais poderosos do que todos os países muçulmanos juntos, os Estados Unidos estão a humilhar o islão porque mostram que um país que funciona segundo leis dos homens é mais forte do que muitos países que se regem pelas leis de Deus.
Isso é insuportável para muitos muçulmanos em geral e para os fundamentalistas em particular. Daí que todos os pretextos sejam bons para demonizar o Ocidente e sobretudo o seu líder, a América. Eles constatam que os cristãos do Ocidente são a única força capaz de fazer frente ao islão e acreditam que, se fizerem cair o líder, o inimigo se desmoronará, abrindo as portas ao nascimento do grande califado que levará o islão a todo o planeta."
"Portanto, o verdadeiro crime da América é ser poderosa."
"Isso mesmo."
Rebecca revirou os olhos e abanou a
cabeça. "Jesus Christr
Tomás ajoelhou-se junto da americana e ajudou-a a desmontar o telefone-satélite, dobrando as peças até o conjunto se reduzir ao que parecia ser uma pasta de mão metálica.
"E é por isso, minha cara, que não tenho a mínima dúvida sobre qual o alvo do grande atentado que está a ser preparado."
Rebecca selou a mala e ergueu-se, rendendo-se à evidência. "A América."