OMMIO ALTAMENTE
-V06O
"J stfy, só isso?", quis saber a professora Cosworth,
algures
entre
escandalizada
e
aterrorizada.
"Eu avisei que a construção de uma bomba nuclear era simples, não avisei?", observou Rebecca, mantendo o desenho virado para o seu auditório.
"Quando duas massas subcríticas de urânio altamente enriquecido se juntam e cruzam o limiar crítico dos cinquenta quilos, dá-se a detonação. A bomba de Hiroxima era assim." Guardou o desenho.
"E vocês ainda não sabem o pior!"
"Há pior?"
"Em última instância, os terroristas podem nem sequer construir este engenho. Basta-lhes pôr vinte e cinco quilos de urânio altamente enriquecido no chão, subir a um primeiro andar e lançar das alturas os outros vinte e cinco quilos de urânio altamente enriquecido sobre o material que deixaram no chão.
Quando as duas partes subcríticas colidirem, e apesar de não estarem dentro de um engenho, podem fazer cruzar o limiar crítico e desencadear a explosão nuclear." Encolheu os ombros. "Brincadeira de crianças."
O alemão sentado à mesa voltou a pôr as mãos na cabeça, estarrecido. "Mein Gott!"
A reunião terminou meia hora mais tarde, com a distribuição de documentos e literatura para consulta posterior. Tomás folheou o material e viu esquemas e equações a multiplicarem--se na documentação. Teria talvez dificuldade em seguir aqueles raciocínios, mas sabia que, para um engenheiro, tudo aquilo era cristalino.
"Tom!", chamou uma voz.
O português levantou a cabeça e viu Frank Bellamy ao lado da loira, ambos a olharem para ele. "Sim?"
"Venha cá. Deixe-me apresentar-lhe a Rebecca Scott."
Tomás ergueu-se e estendeu-lhe a mão.
"How do you do?", cumprimentou-a Tomás no seu melhor inglês britânico.
A loira tinha uma palma da mão macia e quente.
"Hi, Tom", devolveu Rebecca no seu sotaque americano. "Mister Bellamy falou-me muito de si."
"Espero que bem."
A mulher riu-se.
"Disse-me que aqui o Palazzo Ducale de Veneza era o sítio perfeito para nos conhecermos." "Ai sim?
Porquê?"
Rebecca encolheu os ombros e olhou para o homem da CIA, endereçando-lhe a pergunta.
"Então você não sabe quem esteve aqui preso, Tomás?", perguntou Bellamy.
"Aqui neste palácio? Não faço a mínima ideia."
"Foi o seu colega italiano." Indicou um ponto para além da grande pintura de Tintoretto que adornava a parede.
"Esteve ali nas prisões e tentou fugir por um buraco no tecto."
"Não sei de quem está a falar."
"Ora, do seu colega italiano, já lhe disse." Bellamy espreitou Rebecca pelo canto do olho. "Casanova."
A loira soltou uma gargalhada, divertida com a observação e sobretudo com a cara embasbacada de Tomás. .
"Oh, lá vem você com as suas piadinhas!", observou o historiador com acidez, acusando o toque.
Bellamy manteve a atenção fixa em Rebecca.
"Tenha cuidado com este português", avisou. "Tem ar de sonso mas é um predador de fêmeas."
"Não ligue", pediu Tomás, tentando recuperar do embaraço. "Está há muito tempo a trabalhar na NEST?"
A melhor táctica era mudar de assunto.
"Há já algum tempo", confirmou ela. "Fui colocada em Madrid e coordeno as operações na Península Ibérica."
"Ah, bom! Isso explica que mister Bellamy nos tenha apresentado."
O homem da CIA aproveitou para meter a colher.
"Conto que a vossa colaboração seja profícua!"
O historiador lançou-lhe um olhar de repreensão.
"Mister Bellamy, já lhe disse que não tenho a certeza de vir trabalhar para a NEST..."
"Come on, Tom. Isto é só uma colaboração.
Pagamos-lhe bem e você nem terá grande trabalho, vai ver."
"Não sei, não. Tenho de pensar nisso."
"Não me diga que não quer trabalhar para mim...", disse Rebecca, fazendo beicinho e pestanejando muito.
O português soltou uma gargalhada.
"Caramba, vocês usam todos os argumentos!"
"Vamos lá, Tom", incitou Bellamy. "Precisamos de uma decisão! Como é? Junta-se a nós ou não?"
Os olhos do historiador dançaram entre Bellamy e Rebecca, hesitantes.
"Garante-me que isto não me ocupará muito tempo?"
"Claro que não! O que queremos de si não é quantidade de trabalho, é qualidade. Como já lhe expliquei, há um e-mail da Al-Qaeda que precisa de ser decifrado e estamos convencidos que só você o pode fazer."
Realmente, pensou Tomás, o que tinha a perder?
Iria fazer trabalho de consultoria e ser bem pago.
Qual era a dúvida? A decisão estava tomada.
"Muito bem! Contem comigo."
Os dois americanos sorriram e apertaram-lhe as mãos.
"Atta boy!", exclamou Bellamy. Consultou o relógio pela enésima vez e olhou de seguida para Rebecca.
"Oiça, eu agora tenho de sair para uma outra reunião. Uma vez que vocês vão trabalhar juntos, presumo que tenham muito que falar..."
"Sim, mister Bellamy", assentiu ela. "Preciso mesmo de conversar aqui com o Tom. Vou só ali ao quarto de banho e já volto."
A americana afastou-se, deixando os dois homens atrás dela a apreciarem-lhe as formas femininas.
"Uma pin-up, hem?", observou o homem da CIA.
"Conhe-cendo-o como conheço, aposto que ela foi o argumento crucial na sua decisão de se juntar a nós."
Sem tirar os olhos da mulher que dobrava a esquina, Tomás riu-se.
"O que o faz pensar isso?"
Rebecca saiu da sala e Frank Bellamy suspirou.
Voltou-se para o português, os olhos azuis a chisparem de frieza. "Você é um fucking tarado!"
XII
A salinha era pequena e escura, de tal modo despojada de decoração que quase tinha um aspecto ascético, à semelhança do seu circunspecto ocupante. As paredes sustentavam posters com fotografias de santuários sagrados; num lado via-se uma imensa multidão em torno da Caaba de Meca durante o Hadj, no outro uma imagem da mesquita de Al-Aqsa no topo da colina de Al-Quds.
O professor Ayman trancou a porta à chave e convidou o aluno a sentar-se diante dele.
"Então?", perguntou. "O que se passa? Que dúvidas são essas que te põem a seguir os meus passos como uma sombra?"
Agora que ali estava, Ahmed quase se envergonhou por ter confessado que tinha dúvidas. Como era possível alimentar dúvidas sobre o que Alá dizia? As interrogações varreram-se--lhe por momentos da mente e fez um esforço para se lembrar da conversa que tivera semanas antes com o xeque Saad.
"O mullah da minha mesquita, senhor professor, diz que temos de perdoar e contemporizar com os kafirun Adeptos do Livro, como está na sura 2, e que os cristãos são os mais próximos dos muçulmanos, como está na sura 5."
O rapaz calou-se um instante, à espera da reacção do professor.
"E tu? O que achas?"
"É verdade que Alá diz isso no Livro Sagrado", reconheceu Ahmed. "Mas Alá também diz outras coisas. Estou um pouco confuso."
"Como se chama esse mullah}"
"É o xeque Saad."
O professor Ayman pegou num bloco de notas e escrevinhou o nome. A seguir guardou o bloco e encarou de novo o aluno, desta feita para assumir as rédeas da conversa.
"Diz-me, rapaz, onde está escrita a lei islâmica?"
"No Alcorão, senhor professor."
"E o que fazemos quando aparece uma situação nova que não foi prevista pelo Santo Alcorão?"
O pupilo hesitou; nunca havia pensado em tal possibilidade.
"Há situações que não estão previstas no Livro Sagrado?", admirou-se, uma expressão interrogativa na face.
"Claro que há. Como fazes para as resolver?"
O olhar de Ahmed tornou-se opaco; não tinha resposta para esta pergunta.
"Julguei que estava tudo previsto no Alcorão, senhor professor."
"Pois não está", replicou Ayman.
A questão deixou Ahmed baralhado. A palavra de Alá estava gravada no Alcorão. Seria possível encontrá-la em qualquer outra parte?
"Então... então está onde?"
"Recuemos ao tempo do Profeta para percebermos como nasceu a sbaria", convidou o professor, indicando o poster da Caaba de Meca como se a fotografia os transportasse para aquela época remota. "Sempre que os crentes tinham uma disputa e não sabiam qual a vontade de Deus, a solução era perguntar a Maomé, que a paz esteja com ele. O
apóstolo de Deus recebia então uma revelação de Alá e dava a resposta. Mas às vezes Alá não se pronunciava. Quando isso acontecia, o Profeta decidia por ele próprio. Na sura 3, versículo 32, Alá diz: «Obedecei a Deus e ao Enviado.» A mesma exortação vem noutros pontos do Santo Alcorão, ou não vem?"
"Vem, senhor professor. E preciso obedecer sempre a Deus e ao Profeta."
"Pois é assim que se conhece a lei de Alá: através do Santo Alcorão. E se por acaso aparecer uma situação para a qual o Livro Sagrado não tem resposta, teremos de perguntar ao Profeta."
Ahmed ficou um instante a ponderar o que o professor acabava de lhe dizer. As leis estão no Alcorão ou nas palavras do Profeta. Quando há dúvidas, pergunta-se a Maomé. Remexeu-se, mais por perplexidade do que por desconforto.
"Mas, senhor professor, o Profeta já morreu!", argumentou, abrindo os braços como quem exibe uma evidência. "O que fazemos agora quando aparece alguma coisa que não está esclarecida no Livro Sagrado?"
"Ah!", exclamou Ayman, erguendo o dedo peremptório. "Boa pergunta! Esse foi justamente o problema que os primeiros crentes enfrentaram quando o apóstolo de Deus foi para o Paraíso, que Alá o tenha para sempre consigo."
"O que fizeram eles para o resolver?"
"Como sabes, a autoridade passou para o sucessor do Profeta, não é verdade? Quem ficou a mandar foi o primeiro califa, Abu Bakr. Sempre que havia uma disputa, as pessoas recorriam a Abu Bakr ou a alguns dos outros companheiros de Maomé, todos eles testemunhas de anteriores decisões do apóstolo de Deus, como a sua segunda mulher, Aisha, e ainda Ma'az ibn Jabel, Abu Hurairah, Abu Obayda ou Omar ibn Al-Khattab. Os companheiros do Profeta actuavam como juízes e consultavam o Santo Alcorão. Quando o Livro Sagrado não dava resposta, aplicava-se o que Alá estabelece na sura 33, versículo 21: «No Enviado tendes um formoso exemplo», e na sura 4, versículo 80: «Quem obedece ao Enviado obedece a Deus.» Ou seja, o Profeta, que a paz esteja com ele, é um exemplo para ser seguido.
Daí que procurassem orientação em episódios da vida de Maomé, que a paz esteja com ele."
"São os hadith!", exclamou Ahmed, os olhos iluminando--se. "São os hadith! E por isso que os mullahs nas mesquitas estão sempre a falar nos hadith e na sunnah..."
"Nem mais!", confirmou o professor. "Mas não se diz os hadith. E um hadith e vários ahadith. Plural é ahadith, singular é hadith.'"
"Desculpe."
"Os ahadith relatam histórias de Maomé, que a paz esteja com ele, estabelecendo desse modo a sua sunnah, ou exemplo. Os episódios da vida do Profeta, que a paz esteja com ele, servem assim de fonte legal, só suplantados pelo Santo Alcorão." Alterou o tom da voz, como se fizesse um aparte. "Aliás, muitos versículos do Livro Sagrado só se entendem se conhecermos as circunstâncias em que apareceram. Essas circunstâncias estão relatadas justamente nos ahadith."
"Mas, senhor professor, como sabemos se esses episódios narrados nos ahadith ocorreram mesmo? O
meu mullah disse-me que há muitos ahadith falsificados..."
"E disse bem", confirmou Ayman. "Há imensos relatos fraudulentos de episódios da vida de Maomé, que a paz esteja com ele. Foi por isso que, duzentos anos depois da morte do Profeta, que a paz esteja com ele, alguns estudiosos se puseram a coleccionar ahadith e a verificar a forma como foram transmitidos ao longo do tempo, de modo a garantir a sua fiabilidade. A colecção mais importante é a do imã Al-Bakhari, que analisou trezentos mil ahadith e determinou que dois mil eram autênticos, uma vez que conseguiu seguir-lhes a pista até ao próprio mensageiro de Alá. Esses ahadith estão publicados numa colecção chamada Sahih Bukhari. Também o imã Muslim fez uma colecção muito credível, conhecida por Sahih Muslim.'"
"Portanto, qualquer hadith que esteja nessas colecções é considerado verdadeiro?"
"Sem dúvida", assegurou o professor. "Mas deixa-me voltar à questão de como se formam as leis islâmicas, porque isso é importante. Imagina agora que era preciso pronunciar uma decisão legal... uma fatwa. O que se fazia? Se o Santo Alcorão era omisso quanto ao assunto em apreço, ia-se ter com Aisha e ela lembrava-se de uma sunnah, um exemplo da vida de Maomé, que a paz esteja com ele, que se adaptava à circunstância em questão. Mas imagina que não lhe ocorria nenhum episódio, não encontrava nenhum hadith adequado. O que fazia ela? Dizia para a pessoa ir falar com Abu Obayda, por exemplo.
Talvez ele se lembrasse de algum hadith apropriado.
Se Obayda não se lembrasse, remetia a pessoa para Abu Bakr."
"E se o califa também não tivesse resposta?"
"Bom, nesse caso reunia um conselho e apresentava a questão, perguntando se alguém se lembrava de alguma coisa na vida de Maomé, que a paz esteja com ele, que resolvesse o problema. Se ninguém se lembrasse, então o conselho pronunciava uma nova decisão, mas sempre inspirada no espírito do Santo Alcorão ou da sunnah." "Isso não é uma ijma'ah?"
"Sim, essas decisões são as ijma'ah. Portanto, a fonte superior do islão é o Santo Alcorão. Quando o Livro Sagrado não tem resposta, vamos aos ahadith que contam episódios da vida do Profeta, que a paz esteja com ele, e extraímos uma sunnah, um exemplo apropriado ao problema. Quando os ahadith não têm resposta, os sábios emitem uma ijma'ah inspirada no Santo Alcorão ou na sunnah."
"Mas isso era no tempo em que ainda viviam pessoas que conheceram o Profeta. Como se fazem hoje as ijma'ah?"
"Da mesma maneira, com um conselho de sábios", retorquiu Ayman. "Grande parte das ijma'ah é actualmente pronunciada pelo Conselho Islâmico para a Pesquisa, que se reúne aqui no Cairo, na Universidade Al-Azhar."
"A nossa universidade?"
"Sim, a nossa. Al-Azhar é a mais prestigiada universidade do islão, não sabias?"
"Então não havia de saber?", exclamou Ahmed, subitamente orgulhoso. "E nós pertencemos a ela..."
"A nossa madrassa pertence a Al-Azhar, sim."
O aluno manteve por momentos um sorriso desenhado no rosto, mas logo uma interrogação o assaltou.
"Tenho uma dúvida, senhor professor: como podemos ter a certeza de que as decisões desses sábios são todas acertadas?"
"Pois, esse é um problema", reconheceu o professor Ayman, o olhar de repente toldado. "O
Conselho Islâmico para a Pesquisa está sob influência do governo e as suas ijma'ah tendem a ser feitas para agradar ao governo, não a Alá." Abanou a cabeça. "Isso não pode ser. Eu acho que a umma não pode confiar nestes sábios que só dizem o que é conveniente, não o que é verdadeiro. Há outros sábios cujas ijma'ah são mais fiéis ao Santo Alcorão ou à sunnah." "Quem?"
"O grande mufti da Arábia Saudita, por exemplo.
Ou a Escola de Lei Islâmica do Qatar."
Fez-se silêncio. O eterno zunir das moscas, ;até aí» mero ruído de fundo, tornou-se dominante, acompanhado pelo som abafado de vozes e passos no corredor, para além da porta trancada.
Ahmed remexeu-se no seu lugar.
"Senhor professor, ainda não percebi bem.
Permite-me que lhe faça uma pergunta?" "Claro."
O rapaz calou-se um instante, considerando a melhor maneira de reformular a questão.
"Não entendo o que tem isto a ver com o problema dos kafirun", disse, retomando a questão que ali o levara. "O mullah da minha mesquita diz que os cristãos são os mais próximos de nós e que devemos perdoar e contemporizar. Isso está de facto dito por Alá no Alcorão. Mas, ao mesmo tempo, Alá diz outras coisas no Livro Sagrado. Diz que não podemos ser amigos dos kafirun judeus e cristãos. Diz que devemos matar os kafirun até que a perseguição pare e eles se convertam e deixem de ser kafirun.
Diz que devemos preparar todas as espécies de emboscadas aos idólatras e matá-los. Afinal onde está a verdade?"
"Está em tudo o que te disse."
O aluno sacudiu a cabeça, inconformado.
"Desculpe, mas continuo a não entender. O que têm estas coisas de que o senhor professor falou a ver com o problema dos kafirun?"
"Têm tudo. Tudo. O Santo Alcorão e os ahadith contêm uma resposta clara para o problema dos kafirun." "Qual resposta? Qual?"
O professor acariciou distraidamente o queixo, passando os dedos devagar por entre os pelos negros e levemente encaracolados da barba farfalhuda.
"Já ouviste falar na nasikh?"
"Sim, claro. O meu mullab mencionou isso numa lição, aí há um ano. Porquê?" "O que é a nasikh?"
"Bem... é a revelação progressiva do Alcorão."
"Sim, mas o que quer isso dizer?"
Ahmed mordeu o lábio. O xeque Saad já tinha de facto abordado aquele assunto, mas fora uma coisa de tal modo breve que o significado do conceito não ficara firme na sua mente.
"Não sei."
O professor sorriu.
"Nasikh é a chave para as aparentes contradições do Alcorão. Na verdade não há contradições nenhumas. O Livro Sagrado é perfeito. Nasikh significa que Alá decidiu, na Sua imensa sabedoria, revelar progressivamente o Santo Alcorão. Podia ter revelado tudo de uma vez, mas Deus, que tudo sabe e tudo planeia, optou por fazê-lo por fases, através do sistema de revelação progressiva, ou nasikh. Isso quer dizer que as novas revelações cancelam as anteriores. Compreendeste?"
O rapaz fez um ar intrigado.
"Hmm... sim."
Pelo tom hesitante da resposta, o professor Ayman percebeu que aquele "sim" significava na realidade um "não" encapotado.
"Já vi que não compreendeste nada", observou.
"Mas eu explico-te melhor. Antes de Meca, para que direcção o Santo Alcorão mandava os crentes rezarem?"
"Al-Quds."
"Exactamente! Primeiro foi mandado aos crentes que rezassem na direcção de Al-Quds e depois na direcção de Meca. Parece haver aqui uma contradição. Afinal, qual-a ordeTn que é válida?"
"Ora, a segunda."
"Isso é nasikh, ou ab-rogação. Através do Santo Alcorão, Alá mandou primeiro rezar na direcção de Al-Quds e depois na de Meca. Quando há contradição aparente, aplica-se o princípio da revelação progressiva. As novas revelações cancelam as anteriores. A ordem de rezar na direcção de Meca cancelou a anterior. O mesmo acontece com o álcool, por exemplo. Primeiro o álcool era permitido em todas as circunstâncias, depois passou a ser proibido só durante a oração e mais tarde foi proibido em qualquer circunstância. Qual a ordem que é válida?"
"A última, claro."
"Nasikb! As revelações anteriores são canceladas pelas novas. É isso a ab-rogação. Podemos continuar a ler os versículos cancelados no Santo Alcorão, claro, mas já não são válidos. Compreendeste?"
"Sim", retorquiu o aluno com a convicção de quem finalmente entendera.
"Agora é preciso que percebas mais outra coisa", disse. "A revelação progressiva divide-se em dois períodos fundamentais: o de Meca e o de Medina. O
primeiro período é o de Meca, altura em que o Profeta, que a paz esteja com ele, nunca falou em guerras e defendeu a tolerância e o perdão para com os Adeptos do Livro. Neste primeiro período de treze anos, ele limitou-se a pregar e a rezar e a meditar. O único conflito que teve foi com a adoração dos ídolos. Mas depois o Profeta, que a paz esteja com ele, fugiu para Medina e tudo mudou.
Neste segundo período ele quase só falou em guerras e passou a pregar o islão com a espada na mão. Comandou pessoalmente os crentes em vinte e seis batalhas, ordenou a morte de pessoas, regozijou-se quando lhe mostraram as cabeças decapitadas dos seus inimigos e combateu os Adeptos do Livro. Agora repara: quando começou a era islâmica?" "Foi com a Hégira."
"Que foi justamente a fuga do Profeta, que a paz esteja com ele, para Medina. Isso quer dizer que a fase de Medina é que é a do verdadeiro islão, não a fase de Meca. Se fosse a de Meca, a era islâmica teria começado com a primeira revelação. Mas não. A era islâmica só começou quando Maomé, que a paz esteja com ele, foi para Medina; só se iniciou quando o Enviado de Deus, que a paz esteja com ele, come-
çou a pregar a guerra e a intolerância para com os Adeptos do Livro. Percebeste?"
"Sim."
"E eu pergunto-te agora: em que fase da revelação progressiva do islão está dito por Alá no Santo Alcorão que, em relação aos judeus e aos cristãos, devemos perdoar e contemporizar?"
"Na fase de Meca."
"E em que fase está dito que devemos emboscar e matar os idólatras?"
"Na de Medina, claro."
"À luz do princípio de nasikh, o que se deve concluir quanto a essa aparente contradição?"
"A fase de Medina é posterior à fase de Meca", constatou Ahmed. "Logo, a revelação que está na sura 9 cancelou a da
sura 2. É essa a ordem de Alá que permanece válida.
A que se encontra na sura 9, versículo 5."
Ayman abriu os braços, fechou os olhos, levantou o rosto e, com a expressão mística de um asceta em transe, entoou o versículo que a revelação progressiva autenticara.
"«Matai os idólatras onde os encontrardes.
Apanhai-os! Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»'^. »
XIII
O sino da basílica tocou compassadamente, como se marcasse o ritmo de Veneza, o som a reverberar com melancolia pela enorme praça, pontuando o farfalhar surdo das revoadas de pombos que saltitavam por entre a multidão.
"Já são sete horas", constatou Rebecca, lançando um olhar sobre a discreta Torre dell'Orologio situada em frente. "Quer ir tomar qualquer coisa?"
"Sim, porque não?", concordou Tomás. "Vamos comer um gelado?"
"Está bem. Mas depois damos um salto ao Harry's, pode ser?"
"Combinado."
Atravessaram a Piazzeta e passaram entre o Campanile e a basílica. As cúpulas brancas e arredondadas
do
santuário
reflectiam
os
derradeiros raios de Sol e o lusco-fusco semeava sombras nas colunas sujas das velhas galerias que cercavam a Piazza San Marco. Toda a praça se abria num bulício nervo
so; era um verdadeiro mar de pessoas, com os turistas a encherem as esplanadas e a fotografarem-se diante dos edifícios, ignorando os pombos que esvoaçavam de ponto em ponto, à cata das migalhas que lhes eram lançadas às mãos--cheias pelos venezianos.
Tomás e Rebecca tomaram o caminho de uma das esplanadas ao lado da Torre dell'Orologio, onde homens e#n elegantes smokings afinavam violinos, violoncelos e um piano para o concerto ao ar livre do início da noite. Contornaram a esplanada e, nas galerias veccbie, detiveram-se diante da pequena montra de gelados do Gran Caffé Lavena.
"Um chocolate ice cream", pediu ela.
Decidido a impressioná-la, Tomás optou por exibir o seu melhor italiano. Aproximou-se do balcão de estilo antigo e, espreitando a reacção de Rebecca no reflexo dos espelhos oxidados pelo tempo, lançou o pedido ao empregado.
"Per me, uno gelato di fragola, per favore."
A americana lançou-lhe um olhar surpreendido.
"Gee, não sabia que você falava italiano!"
"Oh, falo muitas línguas." Piscou-lhe o olho verde e sorriu com malícia. "Na verdade, adoro exercitar línguas!"
Atenta ao duplo sentido da graçola, Rebecca não deu parte de fraca e soltou uma gargalhada.
"Reserve a língua para o sorvete."
Com os gelados nas mãos, abandonaram o Lavena e atravessaram a Piazza San Marco em direcção à estreita passagem aberta no vértice entre o Museu Correr e as longas arcadas da Procuratie Nuove. Lá atrás, a orquestra da esplanada começou a tocar os primeiros acordes de Strangers in the Night, enchendo o ar de uma melancolia vibrante.
"Então o que faz uma mulher bonita como você na NEST?", perguntou Tomás entre duas lambidelas no gelado de morango.
"Gosto de aventura e desafio", devolveu ela, uma mão com o gelado, a outra a segurar a pasta negra de executivo. "Quando acabei o curso de Engenharia fui recrutada para a CIA e acabei sob as ordens de mister Bellamy no Directorate of Science and Technology. Depois do 11 de Setembro ocorreu um grande susto com o incidente Dragonfire, um alerta nuclear em Nova Iorque que..."
"Eu sei, mister Bellamy contou-me."
"Ah, bom. Pois, no rescaldo desses atentados percebeu-se que os terroristas muçulmanos estavam dispostos a tudo. Mesmo ao impensável. O meu governo chegou à conclusão de que um ataque nuclear terrorista se tinha tornado inevitável e decidiu reforçar a NEST. Mister Bellamy foi enviado para lá e convidou-me para me juntar à equipa. Ao fim de algum tempo, no entanto, concluiu-se que a ameaça não podia ser apenas enfrentada na América e era necessário estender a nossa área operacional ao resto do planeta. Por causa disso, primeiro fui enviada para o Afeganistão e depois para chefiar o nosso centro operacional no Sul da Europa, em Madrid."
"Porquê Madrid?"
Rebecca franziu o sobrolho.
"Você é historiador, viveu o último ano no Cairo a estudar o islão e ainda pergunta «porquê Madrid»?"
"Está a referir-se ao Al-Andalus?" "Claro."
Tomás ficou a matutar na escolha de Madrid para a sede daquele centro operacional da NEST.
"Faz sentido", reconheceu. "Os muçulmanos ocuparam grande parte da Península Ibérica entre 711 e 1492. Quando eu estava na Universidade de Al-Azhar, no Cairo, ouvi alguns fundamentalistas falarem nostálgicamente no Al-Andalus e na necessidade de o islão recuperar a Península Ibérica." Encolheu os ombros. "Mas aquilo pareceu-me um objectivo a longo prazo."
"Está enganado."
O português olhou para a americana, que trincava já a bolacha do cone do gelado.
"Que quer dizer com isso? Acha que eles têm mesmo desígnios imediatos sobre a Península Ibérica?" *
Rebecca parou de mastigar por um instante e olhou-o de soslaio.
"Você está a brincar? Claro que sim! Osama Bin Laden escreveu, e cito de cor: «Pedimos a Alá que a umma recupere a sua honra e o seu prestígio, e erga de novo a única bandeira de Alá sobre toda a terra islâmica que nos foi roubada, da Palestina ao Al-Andalus»."
"Bin Laden escreveu isso?"
"Numa carta ao grande mufti da Arábia Saudita, em 1994." "Caramba!"
"E olhe que isto é apenas uma pequena amostra. A recuperação do Al-Andalus faz parte do discurso dos jihadistas. O braço direito de Bin Laden na Al-Qaeda, o egípcio Ayman Al-Zawahiri, declarou numa gravação difundida em 2007: «O nação muçulmana do Magrebe, zona de batalha e de jibad.
Fazer regressar o Al-Andalus ao islão é um dever da umma em geral e vossa em particular.» E também o mentor de Bin Laden, Abdullah Azzam, estabeleceu ser obrigatório fazer guerra para recuperar as terras muçulmanas do Al-Andalus. Até a revista infantil do Hamas fala do assunto!"
"A sério? O que andam os tipos do Hamas a dizer às criancinhas palestinianas?"
"Que é dever dos muçulmanos recuperar Sevilha e todo o Al-Andalus. Isto para não falar, claro, do xeque Qaeadawi, líder espiritual da Irmandade Muçulmana, que escreveu que o islão foi expulso de duas regiões da Europa, o Al-Andalus e os Balcãs e a Grécia, mas ia agora voltar. Ou do xeque Al-Hawali, que, numa carta ao presidente Bush logo a seguir ao 11 de Setembro, escreveu: «Imagine, senhor presidente, que ainda choramos por causa do Al-Andalus e nos lembramos do que Fernando e Isabel fizeram à nossa religião, cultura e honra!
Sonhamos reconquistá-lo!»"
"Bem, se for a ver, tudo isso não passa ainda de conversa..."
A americana imobilizou-se logo a seguir à esplanada do Caffé Florian, diante da estreita passagem que os conduzia para fora da Piazza San Marco.
"Conversa, Tom? Com esta gente não se brinca!
Passámos anos a achar que era tudo conversa, que os muçulmanos falavam, falavam, mas não fariam nada e... e olhe onde essa ingenuidade nos levou!"
"Mas houve alguns passos concretos dados pelos muçulmanos fundamentalistas em relação ao Al-Andalus?"
Recomeçaram a andar e saíram da praça, virando à esquerda na direcção do cais dos vaporetti.
"Os atentados de Madrid, em Março de 2004."
"Está bem, mas isso esteve relacionado com o apoio espanhol à invasão do Iraque."
"Não, Tom. Os atentados de Madrid estiveram relacionados com os desígnios muçulmanos sobre o Al-Andalus. O apoio espanhol à invasão do Iraque foi apenas o pretexto. Não percebeu o que Bin Laden disse na carta ao grande mufti? Essa carta é de 1994, dez anos antes dos atentados de Madrid! E
não ouviu o que Al-Zawahiri declarou na sua gravação de 2007? Estes são os chefes da Al-Qaeda a falar!
Se eles afirmam que o Al-Andalus é para ser recuperado, pode acreditar que vão actuar em conformidade!"
"Muito bem", aceitou Tomás. "Admitamos que os atentados de Madrid estão relacionados com os desígnios islâmicos sobre a Península Ibérica. O que eu quero saber é se vocês tiveram mais alguns sinais de que os fundamentalistas tencionam agir para recuperar o Al-Andalus."
"Por acaso, tivemos."
"Quais?"
* *
"Na Argélia existe uma organização terrorista chamada Grupo Salafista para a Pregação e o Combate. Este grupo filiou--se na organização de Bin-Laden e Al-Zawahiri e mudou o seu nome para Al-Qaeda no Magrebe Islâmico. Num atentado efectuado em 2007 em Argel, esta gente declarou:
«Não descansaremos enquanto não voltarmos a ter o nosso amado Al-Andalus.» Desde então, as autoridades espanholas têm andado muito alarmadas com a actividade destes grupos. Os serviços secretos espanhóis, o CNI, detectaram a presença de um autodenominado Grupo para a Libertação do Al-Andalus na Internet. Sabe-se que mais de três mil pessoas em Espanha consultam regularmente os sites muçulmanos fundamentalistas e que quase oitenta por cento das pessoas presas nos últimos anos em Espanha por ligações ao terrorismo internacional são provenientes do Norte de África.
Isto significa que os terroristas estão a instalar células adormecidas no país. As autoridades espanholas descobriram entretanto que os muçulmanos fundamentalistas assumiram o controlo de dez por cento das mesquitas informais do país e andam a pregar em caves, garagens e locais do género. E isto não é tudo. Foram detectados muitos mudjabedin oriundos de Espanha a treinar em campos terroristas no Mali, no Níger e na Mauritânia. Também já se percebeu que uma importante parte dos mudjabedin enviados para o Iraque é oriunda de Espanha. Imagine o que eles farão com a experiência adquirida nos campos de treino do Sahel e
nos campos de batalha do Iraque quando regressarem a Espanha! Não tenha ilusões, a situação é muito preocupante!"
"Não fazia ideia de que isto já estava assim..."
"A verdade, Tom, é que a Al-Qaeda acredita que toda a terra que foi muçulmana tem de voltar a ser muçulmana. Bin Laden quer recuperar o Al-Andalus para o integrar no grande califado. O público está a ser mantido na ignorância, mas há políticos que sabem muito bem o que se passa. O antigo ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Joschka Fischer, afirmou em círculos restritos que, se Israel cair, o próximo país a ser atacado será, com toda a certeza, Espanha."
Tomás coçou a nuca.
"Pois, realmente...", suspirou. "Não há dúvida de que está montado um grande problema para Espanha." "E
para Portugal." "Como assim?"
"Tom, você anda a dormir ou quê? Já se esqueceu do que era Portugal antes de se formar como país?"
"Você está a insinuar que a Al-Qaeda... a Al-Qaeda já tem os olhos postos em Portugal?"
Pararam os dois à porta do Harry's, a alguns metros do embarcadouro dos vaporetti. As águas do Grande Canal lambiam a pedra do cais e as gôndolas negras passavam paulatinamente, como espectros cosidos à sombra do destino.
"Oiça lá, que territórios integravam afinal o Al-Andalus?"
"Bem, Espanha e... e Portugal, claro."
Rebecca abriu a porta do Harry's Bar e, antes de entrar, ainda olhou de relance para o historiador.
"Pois aí tem a sua resposta."
XIV
A caminho da aula, alguns dias depois da conversa no gabinete, Ahmed seguia pelo corredor quando sentiu alguém agarrá-lo pelo ombro e puxá-lo, forçando-o a virar-se. Levantou o rosto surpreendido e viu o vulto branco e esguio do professor Ayman inclinar-se na sua direcção, a barba negra a roçar-lhe o ombro.
"Estive a investigar o teu mullah", segredou-lhe ele ao ouvido. "É um sufi." Ayman endireitou-se e retomou a voz normal. "Afasta-te dele."
Logo que deu o conselho, o professor virou as costas e retomou o passo. O aluno ficou pregado ao chão, sem saber o que dizer, os olhos cravados na jalabiyya que se distanciava, incapaz de perceber o significado do que acabara de ouvir.
"Professor!", ainda conseguiu lançar na direcção do vulto. "Qual é o problema de ele ser sufi?"
Já à porta da sala, Ayman virou a cabeça para trás e lançou-lhe um sorriso enigmático.
"Já vais perceber."
A aula começou com as recitações habituais do Alcorão.
Vários
alunos,
incluindo
Ahmed,
esforçavam-se por memorizar todo o Livro Sagrado e eram capazes de recitar as primeiras suras sem olhar para o texto. Mas, meia hora mais tarde, o professor anunciou que o resto da lição seria dedicado à história do islamismo, o que provocou uma vibração alegre na classe; não havia quem não gostasse dos episódios grandiosos que ele narrava com inigualável perícia.
"O islão teve nos primeiros tempos um crescimento glorioso", começou Ayman por dizer, voltando a um tema que a todos era caro naquelas aulas. "O
exército do Profeta, que a paz esteja com ele, submeteu toda a Arábia à vontade de Alá, e logo a seguir, seguindo a ordem de Deus dada através do Santo Alcorão ou da sunnah, os nossos valentes mudjahedin atacaram e impuseram o islão aos países vizinhos. Foi um período de luta constante, de guerras e batalhas, mas o islão saía sempre vencedor."
"Allah u akbar!", exclamaram alguns alunos, pressentindo que vinha aí mais uma grande narrativa épica.
O professor fez sinal para se calarem.
"Ao fim de algum tempo, porém, alguns crentes mais fracos começaram a sentir-se cansados de guerra. Estavam mais preocupados com o seu bem-estar do que em obedecer às ordens de Alá no Santo Alcorão e espalhar a palavra de Deus. Quando o nosso exército conquistou povos que não eram árabes, como aqui no Egipto ou ali na Síria, esses crentes fracos tiveram contactos com os kafirun cristãos que por aqui viviam e acabaram por ser influenciados por eles."
"O que quer dizer com isso de haver crentes influenciados pelos kafirun, senhor professor?", perguntou um aluno, estranhando a observação.
"Por exemplo, viam os monges cristãos fechados num mosteiro a dizer que estavam em meditação para comungar com Deus e para encontrar a paz e o amor. Toda essa conversa influenciou os crentes fracos, muitos dos quais se puseram então a falar no amor de Alá, não na força de Alá. Nasceu assim o sufismo, um movimento que prega o amor, a paz e a espiritualidade." A cabeça de Ayman girou pela sala.
"Algum de vós por acaso é sufi?"
Três mãos hesitantes ergueram-se no ar. O
professor fixou o rosto dos três alunos e esboçou uma expressão de desdém.
"Pois ficai a saber que o sufismo não é islão."
Os três arregalaram os olhos, surpreendidos. Os olhares dos colegas incidiram de imediato sobre eles, deixando-os subitamente intimidados. O que queria o professor dizer com aquilo?
"Mas eu sou crente, senhor professor", argumentou um deles, quase num queixume assustado. "Faço o salat completo, cumpro a zakat, respeito o..."
"O mero respeito de alguns preceitos do islão não faz de uma pessoa um crente", cortou Ayman, um tom agreste a en-sombrar-lhe a voz. "Para se ser muçulmano é preciso respeitar todos os preceitos, sem excepção. Todos. E isso o que Alá diz na sura 4, versículo 65 do Santo Alcorão e é isso o que está estabelecido na sunnab do Profeta, como é relatado num hadith apropriado. O mensageiro de Alá comandava homens no campo de batalha e os sufis vêm agora desvalorizar a importância da guerra? Os sufis renegam o exemplo do Profeta, que a paz esteja com ele, e ainda acham que são crentes?
Acaso não está estabelecido por Alá na sura 33, versículo 21 do Santo Alcorão: «No Enviado tendes um formoso exemplo»? Se o Profeta, ele próprio, fazia a guerra e mandava degolar kafirun, não é isso um formoso exemplo? Se ele mandava matar em guerra, quem são os sufis para desvalorizar a guerra?" O olhar de Ayman cravou-se num dos outros alunos que dissera ser sufi, um rapaz gordo de grandes olhos negros. "Onde está dito no Santo Alcorão que devemos evitar o uso da força?"
A pergunta ficou a pairar no silêncio, os olhos do professor sempre fixos naquele aluno. Sentindo-se interpelado, o rapaz viu-se na obrigação de responder. Estava encolhido no seu lugar e, quando falou, a sua voz não passava de um fio trémulo.
"Como... como diz, senhor professor?"
"Mostra-me onde está a ordem de Alá no Santo Alcorão a dizer que devemos evitar o uso da força."
O rapaz olhou atrapalhado para o volume que tinha diante de si.
"Está ... está na... na sura 3, senhor professor."
"Recita o versículo."
O aluno não o sabia de cor e abriu o Alcorão, a mão sapuda agitando-se de nervos. Localizou o terceiro capítulo e deslizou o indicador grosseiro pelas folhas, seguindo em silêncio os versículos sucessivos.
O processo prolongou-se, mas o professor deixou correr; aquele silêncio aumentava a intensidade dramática do momento.
"Está aqui!", exclamou enfim o aluno, um tom quase aliviado na voz. "Está aqui! E o versículo 134!"
"Recita-o."
O rapaz bufou para aliviar o nervoso miudinho, como se fosse uma máquina a vapor e tivesse de descarregar a pressão para não explodir. O corpanzil tremia-lhe e a leitura saiu-lhe aos solavancos no momento em que começou a recitar o versículo.
"«Esses que praticam a caridade, obedecendo a Deus nas alegrias e nas desgraças, que reprimem a cólera e apagam a ofensa dos homens - Deus ama os que fazem o bem!»"
"Só isso?"
O aluno gordo ergueu a cabeça; transpirava abundantemente e engolia em seco.
"Há outras suras onde... onde Alá diz o mesmo, senhor professor."
"Claro que há", assentiu Ayman, a voz gelada. "Por exemplo, na sura 42, versículo 37, Deus promete o melhoo»para aqueles «que se afastam dos grandes pecados e das torpezas e que, quando se irritam, perdoam»." Encolheu os ombros. "E depois? Alá quer que haja perdão entre os crentes e que se faça o bem. Perdoemos então e façamos o bem entre os crentes. E por isso que somos bons muçulmanos. Mas engrandecer o islão também é fazer o bem! Perdoar os kafirun que se convertam ao islão também é perdoar! Há, no entanto, limites ao perdão. Ou não há? O que diz Alá no Santo Alcorão para os que roubam? Diz para perdoar? Não! Diz para lhes cortarem as mãos! O que diz Alá através da sunnah para as adúlteras? Diz para perdoar? Não! Diz para as lapidarem até à morte! O que diz Alá no Santo Alcorão para os idólatras? Diz para perdoar? Não!
Diz para os emboscar e para os matar! O Santo Alcorão é para ler no seu todo, a sharia é para ser respeitada no seu todo! Entenderam?"
Um murmúrio de assentimento percorreu a aula.
Apontou para o aluno gordo que regressara ao silêncio e permanecia encolhido no seu lugar.
"Os sufis enfraqueceram o islão", acusou, como se aquele rapaz representasse todos os sufis. "Quando os kafirun cruzados invadiram o islão e conquistaram Al-Quds, que Alá os amaldiçoe para sempre, alguns sufis opuseram-se ao uso da força, dizendo que a guerra pregada no Santo Alcorão não era física, mas espiritual. Esta conversa enfraqueceu o islão e foi Por causa desses sufis malditos que os cruzados conseguiram humilhar a umma. E quando, mais tarde, os Mongóis atacaram e conquistaram a sede do califado, Bagdade, vários sufis repetiram a mesma heresia, afirmando que não se devia lutar com as armas, que pela força não se resolvia nada... essa conversa cristã. Qual foi o resultado disso?
Enfraqueceram de novo o islão e deixaram mais uma vez humilhar a umma! E sabem quem se ergueu contra os sufis e os denunciou como hereges? Foi Ibn Taymiyyah! Sabem o que disse Ibn Taymiyyah?"
Encarou a classe, como se aguardasse resposta, embora todos soubessem perfeitamente que a pergunta era retórica e que ninguém iria responder.
"Ibn Taymiyyah declarou que o sufismo é um movimento cristão!" Ergueu o dedo, para sublinhar a afirmação. "Um movimento cristão! Dizem-se crentes, mas são cristãos! Tal como os kafirun cristãos, os sufis acham que, quando oram a Alá, eles estão com Alá e Alá está com eles. Onde se encontra isto escrito no Santo Alcorão? Em parte nenhuma!
Esse tipo de oração é dos kafirun cristãos, não de um verdadeiro crente! E ainda por cima os sufis puseram-se a interpelar os santos, exactamente como os infiéis cristãos e xiitas, negando assim que só existe um Deus." Voltou a apontar para o aluno.
"Eles não passam de kafirun a fingir-se crentes! Não se deixem, pois, enganar por esses apóstatas! O islão que os sufis pregam não é o islão que está no Santo Alcorão! Leiam o que se encontra de facto escrito no Livro Sagrado e conhecerão a palavra de Deus. Não deixem que os intermediários façam as interpretações que lhes convêm!"
A aula foi inesperadamente tensa, sobretudo devido à presença dos três alunos que se disseram sufis e da forma como o professor explicara esse movimento. Toda a gente já tinha ouvido falar dos sufis, claro; havia até poemas sufis que se liam na madrassa ou em casa. Mas o que ninguém tinha ainda pensado é que a doutrina sufi constituía um desvio em relação ao Alcorão e à sunnah do Profeta.
Em nenhum aluno teve esta revelação maior impacto do que em Ahmed. À medida que a sala esvaziava, o rapaz ia pensando no que o professor lhe havia dito uma hora antes no corredor. O xeque Saad era sufi. Sufi! A palavra,agora»amal-diçoada ecoava-lhe continuamente na mente. Sufi! O xeque Saad era sufi!
Com tanta novidade a atormentá-lo, Ahmed queria mais alguns esclarecimentos. Foi para junto do professor e aguardou que todos os colegas saíssem.
"Percebeste agora por que motivo tens de te afastar do teu mullah?", perguntou-lhe Ayman com um olhar severo.
"Sim, senhor professor. Mas ainda preciso de perceber mais algumas coisas."
A sala ficara vazia e Ayman dirigiu-se à porta para sair, acompanhado pelo seu último aluno.
"Diz lá."
"Os sufis, senhor professor. Qual a sura e o versículo do Alcorão onde se..." "É ele!"
A voz no corredor e a imagem do grupo de polícias a cercar a saída da sala de aula paralisaram Ayman e emudeceram Ahmed, que vinha atrás e levou um instante a perceber o que se passava.
"É ele!", repetiu a mesma voz, apontando para o vulto de jalabiyya que se detivera junto à porta da sala.
Ahmed olhou para o homem que falara e apontava agora para o professor de Religião e reconheceu o emir da madrassa. Um dos polícias, decerto o chefe, fez um sinal aos seus homens.
"Apanhem-no!"
Os polícias agarraram Ayman de imediato. Um deles torceu-lhe o braço e obrigou-o a dobrar o tronco.
"O que é isto?", perguntou o professor, a voz alterada, o corpo a remexer-se num esforço para se libertar. "Larguem--me! Por Alá, larguem-me! Eu quero..."
Um polícia esmurrou Ayman no estômago e outros dois algemaram-lhe as mãos por trás das costas. Com o professor imobilizado, os polícias puxaram-no à força ao longo do corredor. Foi tudo muito rápido e Ayman acabou por tropeçar e cair com um gemido de dor, mas os polícias não se detiveram e continuaram a
puxá-lo,
arrastando-o
pelo
chão
até
desaparecerem lá ao fundo, ao virar da esquina.
Aterrorizado, Ahmed tudo viu sem conseguir mexer um músculo que fosse.
XV
Uma atmosfera densa acolheu-os no Harry's Bar.
O rés-do--chão formigava de gente e Tomás preferiu levar Rebecca para o primeiro andar, onde o ambiente era mais tranquilo. Sentaram-se num canto, à meia-luz amarelada, e pediram um bellini para começar.
"Não me quero queixar", observou Tomás com uma careta, "mas o Harry's Bar é mais fama que proveito."
Indicou
o
menu.
"A
relação
qualidade-preço deixa um pouco a desejar."
"Não se preocupe, é a NEST que paga."
"Eu sei e foi justamente por isso que fiz o comentário", riu-se. "Se isto saísse do meu bolso, eu pagava e calava!"
Rebecca ajeitou o cabelo loiro e passeou os olhos azuis brilhantes pelo restaurante.
"Mas tem de admitir que isto tem classe..."
"Não nego."
A americana encheu os pulmões de ar, como se quisesse assim inspirar toda a história do Harry's.
"Awesome!", exclamou, extasiada. "Hemingway costumava vir aqui! Já viu?"
Tomás manteve um sorriso desenhado nos lábios.
"Vocês, os Americanos, parece que têm uma fixação pelo Hemingway."
"Foi um dos nossos melhores escritores, o que quer? Mas este também era o poiso de grandes figuras europeias. Maria Callas, Onassis..." Pegou no menu e indicou o prato mais famoso do restaurante.
"Sabia que foi aqui que inventaram o carpaccio?
Fantástico, não é? Que tal pedirmos uma dose para cada um?"
"Se é a NEST a pagar..."
Instantes mais tarde já o empregado estava na posse da ordem para a refeição. Rebecca parecia realmente excitada por se encontrar ali, mas Tomás ainda tinha a mente retida no que a americana lhe dissera antes de entrarem no Harry's.
"Acredita mesmo que os fundamentalistas islâmicos têm os olhos postos em Portugal?"
Ela fitou-o provocadoramente.
"O que acha, Tom?", perguntou em tom de desafio.
"Você é historiador e conhece o islão a fundo. Pensa que, se eles estão interessados em recuperar o Al-Andalus, se vão contentar com Espanha? Acredita mesmo nisso?"
Tomás suspirou, de repente angustiado.
"Tem toda a razão", reconheceu. "À luz do que aprendi na Universidade de Al-Azhar, a ameaça é muito mais séria do que nós pensamos." Tamborilou os dedos na mesa. "Considera que a ameaça sobre a Península Ibérica é nuclear?"
Rebecca curvou os lábios, céptica.
"Hoje em dia ninguém pode ter a certeza de nada", indicou. "Mas eu diria que, quando usarem armas nucleares, os terroristas vão procurar alvos muito mediáticos. O 11 de
Setembro colocou os padrões de terror muito altos.
Depois desses atentados, decerto que procurarão uma coisa ainda mais espectacular ou terrível. O
nuclear é a escolha óbvia, mas podem até nem atacar com uma bomba atómica. Existem outras armas nucleares..."
O rosto do historiador abriu-se numa expressão interrogadora.
„ m
"Que outras armas nucleares? Que eu saiba as armas nucleares que existem são as bombas atómicas."
A americana abanou a cabeça.
"Há outras armas."
"A sério? Quais?"
"Olhe, um avião, por exemplo."
Tomás agitou a cabeça, num esforço para retirar sentido daquela informação.
"Não estou a perceber. De que maneira um avião pode ser uma arma nuclear?"
O empregado reapareceu com dois copos de bellini, que pousou sobre a mesa. A americana deixou-o afastar-se, provou um golo e encarou o português com os seus grandes olhos azuis.
"Imagine, Tom, que os terroristas que assumiram o controlo do voo da American Airlines que embateu na torre norte do World Trade Center, no 11 de Setembro, tinham optado por voar mais uns sessenta quilómetros para norte e atiravam o avião sobre a central nuclear de Indian Point. O que acha que aconteceria?"
Tomás arregalou os olhos, imaginando a cena.
"Eu faço-lhe um desenho", retomou ela. "Se o aparelho atingisse o sistema de arrefecimento do reactor nuclear, teríamos um meltdown que faria Chernobyl parecer um piquenique. Libertar-se-iam centenas de milhões de curies de radioactividade.
Para que tenha uma ideia, estamos a falar de uma quantidade de radioactividade centenas de vezes superior à libertada pelas bombas de Hiroxima e Nagasáqui! E isto com Nova Iorque e New Jersey mesmo ali ao lado!" "Não tinha pensado nisso..."
"Pois nós estamos a pensar. E os terroristas também. Depois de termos invadido o Afeganistão conseguimos deter um dos cérebros do 11 de Setembro, um tipo chamado Khalid Sheikh Mohammed. Sabe o que ele confessou? Revelou que o primeiro alvo dos aviões eram instalações nucleares, mas acabaram por decidir não as atacar para já. E
repetiu a expressão para já."
"Caramba! Mas não são essas centrais que estão concebidas para aguentar terramotos e outros desastres?"
"E verdade, mas um avião carregado de combustível a cair em cima de uma central nuclear é coisa nunca prevista. Nenhum dos mais de cem reactores nucleares actualmente existentes na América foi concebido para aguentar o impacto de um Boeing. Nenhum. E vinte desses reactores, Tom, estão situados num raio de sete quilómetros em volta de um aeroporto. Além disso, nem é preciso o avião provocar um meltdown dos reactores nucleares. Basta que o aparelho caia no edifício onde é armazenado o combustível nuclear já gasto. O
combustível poderia incendiar-se e espalhar em redor uma quantidade de radioactividade equivalente a três ou quatro Chernobyls. Seria uma catástrofe!"
Tomás bebeu de uma assentada metade do seu bellini.
"O que vale é que agora os cockpits dos aviões estão blindados", observou. "Tomar um aparelho de assalto é hoje em dia muito mais difícil do que em 2001..."
"É verdade", assentiu Rebecca. "Mas você não está a perceber a dimensão do problema. Da mesma maneira que um avião pode colidir com uma central nuclear, um camião
carregado de explosivos também pode! Para os objectivos
que os terroristas pretendem atingir, é a mesma coisa! Não
interessa se usam um avião ou um camião armadilhado. O
que interessa é provocar uma catástrofe nuclear. E
isso está
ao alcance de qualquer organização terrorista suficientemente competente." ^ m
"Como a Al-Qaeda."
"Por exemplo. E o pior é que as ameaças nucleares não se ficam por aqui. Há mais armas atómicas ao dispor dos terroristas."
Tomás abriu a boca, estupefacto.
"Mais ainda?"
"Chamamos-lhes bombas sujas."
O empregado apareceu novamente, desta feita com o carpaccio e os pratos principais. Distribuiu a comida pela mesa e sumiu-se tão depressa como aparecera.
"Os militares preferem uma designação mais sofisticada", disse Rebecca, retomando o fio à meada. "Chamam-lhes aparelhos de dispersão radiológica."
"Até parece que estão a falar de máquinas de raios X."
"E de certo modo estão. A ideia por detrás destas bombas é muito simples. Põe-se dinamite numa pasta cheia de césio e faz-se explodir. Ou enche-se um camião de TNT com cobalto e detona-se. As possibilidades são imensas e resumem-se ao conceito elementar de associar explosivos comuns a material radioactivo. E isso uma bomba suja."
"Está a dizer-me que essas bombas têm capacidade de desencadear explosões nucleares?"
"Não, claro que não. Mas se forem detonadas ao ar livre podem espalhar radioactividade por um raio de centenas de quilómetros quadrados. Já viu o impacto psicológico que isso causaria? O césio, por exemplo, emite raios gama, que podem causar danos nos tecidos biológicos, envenenamento radioactivo e cancro. Um atentado destes desencadearia o pânico generalizado, devido à ameaça invisível da radioactividade. Provavelmente haveria até mais mortes de acidentes de automóvel provocados pela tentativa de fuga desesperada do que pela explosão ou pela radioactividade propriamente ditas. Se fosse usado material radioactivo especialmente forte, as partes da cidade onde ocorresse a explosão teriam de ser evacuadas e descontaminadas ao longo de vários meses. As primeiras camadas de solo e até a vegetação, o asfalto e o cimento teriam de ser retirados e armazenados em locais seguros. Milhares de pessoas seriam forçadas a mudar de casa e muitas nunca mais poderiam voltar. Já viu a confusão que se geraria?"
"Mas onde iriam eles buscar o material radioactivo?"
"Ora, a qualquer parte. Hospitais, por exemplo. Os aparelhos de raios X que mencionou há instantes são radioactivos. Até os detectores de fumo usados nos escritórios têm material radioactivo. Qualquer terrorista pode pegar nesse material, juntar-lhe dinamite e... bum!"
"Se é assim tão fácil, por que razão ainda não pensaram nisso?"
Rebecca recostou-se na cadeira, de repente cansada. "Já pensaram." "O quê?"
"Em 1995, os terroristas chechenos puseram uma bomba no Parque Ismailovsky, em Moscovo. O
engenho era constituído por dinamite e alguns quilos de césio-137, um material altamente radioactivo.
Felizmente, em vez de o detonarem, telefonaram a uma estação de televisão local para indicar a localização da bomba. Dessa feita não quiseram provocar destruição, apenas criar medo. À luz do que aconteceu no 11 de Setembro, não sei se da próxima vez os terroristas serão assim tão escrupulosos..."
O empregado veio com os cappuccinos fumegantes e desapareceu de imediato. Tomás deitou açúcar no café e ficou a remexê-lo distraidamente com a colher, a mente absorvida pelos problemas novos que lhe haviam sido apresentados.
"Com tudo isso, desviámo-nos de Portugal", constatou.
"Pois desviámos."
"Confesso que ainda não percebi por que razão vocês me contactaram."
"Precisamos de si para perceber o que se passa em Portugal, o que estão os fundamentalistas islâmicos a fazer aí, se há alguma coisa anormal... essas coisas."
"Mas para isso tem a secreta portuguesa, o SIS."
"O SIS serve para algumas coisas, mas para outras não. Você tem relações dentro da comunidade islâmica, o SIS não tem."
O rosto de Tomás assumiu uma expressão inquisitiva.
"O que tem a comunidade islâmica em Portugal?
Aquilo é tudo boa gente. Conheço-os bem, são pessoas fantásticas e muito pacíficas, de uma gentileza incrível. A maior parte veio de Moçambique, é gente que ocupa lugares de relevo na sociedade portuguesa e, quando falamos entre nós, a questão da religião nem sequer se põe. Sabe, ponho as mãos no fogo por eles."
"E verdade que as referências que temos dos muçulmanos em Portugal são excelentes. Aliás, isso aplica-se aos muçulmanos de todos os países de língua portuguesa, como o Brasil, a Guiné-Bissau e Moçambique. Ao contrário do que acontece na maior parte dos países ocidentais, os muçulmanos em Portugal não são uma minoria ostracizada, mas cidadãos de primeiro plano, muito bem integrados e com formação superior. Ao que parece, urna importante parte até põe a lusofonia à frente do islamismo, ou pelo menos lado a lado." "Então qual é a dúvida?"
Rebecca ficou um instante a fitar o seu interlocutor. "Em todos os rebanhos há ovelhas ronhosas..." "Que está a querer dizer com isso?"
A americana inclinou-se no seu lugar, pegou na pasta de executivo que pousara aos pés, pousou-a no regaço e abriu-a. Extraiu do interior um computador portátil metálico e, afastando o cappuccino para abrir espaço, instalou-o sobre a mesa.
"A Al-Qaeda gosta muito da Internet", disse, carregando no botão para ligar o portátil. "Desde os atentados de 1998 contra as embaixadas americanas em Nairobi e Dar-es-Salaam, a organização de Bin Laden e Al-Zawahiri tem coordenado todas as suas grandes operações através da Internet." O ecrã do computador acendeu-se. "Usam formas muito sofisticadas de esconder mensagens. Por exemplo, recorrem a programas de encriptação que..."
"Está a desviar-se do assunto", observou Tomás.
"Não foi isso que lhe perguntei."
"Tenha calma", pediu Rebecca. "Não estou a mudar de assunto, fique descansado. Estou antes a tentar demonstrar--lhe algo." Os vários programas do portátil encheram o ecrã do computador.
"Esteganografía. Já ouviu falar?"
A americana carregou no programa da Internet.
"Claro que sim", retorquiu Tomás, quase ofendido por uma tal pergunta lhe ser feita, a ele, um criptanalista. "E uma ideia de encriptação muito engenhosa, destinada a esconder a existência de mensagens. Como elas estão ocultas em imagens inocentes, ninguém vai lá procurar nada. Porque pergunta?"
A Internet ficou acessível no portátil e a americana procurou o Hotmail.
"Porque é uma técnica muito usada pela Al-Qaeda.
A organização do nosso amigo Bin Laden gosta de ocultar nas imagens instruções destinadas aos seus operacionais ou às células adormecidas. Ora, entre outras coisas, nós estamos sempre a vigiar endereços electrónicos suspeitos e aqueles cujas mensagens são abertas no Sul da Europa vêm-me calhar a mim." Escreveu uma morada electrónica no Hotmail. "Este endereço é usado pela Al-Qaeda para comunicar com as suas células adormecidas." O
endereço foi aberto e o ecrã exibiu a lista de mensagens. "Quer ver agora uma coisa curiosa?"
"Mostre lá..."
Rebecca carregou em spam, exibindo todo o lixo electrónico ali acumulado.
"Você não costuma receber muito lixo de natureza sexual?", perguntou ela.
"UÜ", riu-se Tomás. "Muitas propostas de operações para aumentar o meu pénis! Como se eu precisasse..."
A americana olhou-o de relance.
"Dispenso o marketing.'" Voltou a concentrar-se nas mensagens acumuladas no spam até detectar uma em particular, intitulada naugbty redhaired.
"Repare agora nesta mensagem."
Carregou na linha e a mensagem abriu, exibindo um link para um site designado sexmaniacs. Rebecca carregou no link e o computador fez ligação ao site.
Instantes depois, o ecrã exibiu a imagem de uma ruiva a fazer sexo oral.
Em close up.
"Caramba!", exclamou Tomás, chocado com a fotografia que cobria todo o ecrã. "Você anda a frequentar estes sitesV
Rebecca revirou os olhos.
"Engraçadinho", disse. "Agora vou usar o key-tracker para identificar a password." Ligou o software de intercepção e, em alguns instantes, o programa desvendou a chave que lhe permitia aceder à mensagem oculta. "Boa! Agora repare no que está escondido aqui dentro."
Digitou a password que o key-tracker lhe fornecera. Apareceu a ampulheta do computador a tremer sobre a imagem da ruiva de boca escancarada e, em poucos segundos, a fotografia pornográfica foi substituída por uma linha composta por letras e números.
"Bingo!"
Tomás inclinou a cabeça para a frente e, a mente a funcionar como um criptanalista, leu a mensagem que a Al-Qaeda havia escondido naquela fotografia.
6 A Y H A S 1 H A 8 R U
"Ah, então é este o e-mail da Al-Qaeda de que mister Bellamy me falou!", percebeu o criptanalista.
"Mas o que tem ele assim de tão especial que requeira que seja especificamente eu a decifrá-lo?"
"Tenha calma, já vai perceber", disse Rebecca.
"Seguimos a rota desta mensagem e descobrimos que ela foi aberta por alguém, decerto o destinatário a quem a Al-Qaeda estava a dar instruções. Através da identificação do IP do computador onde a mensagem encriptada foi aberta localizámos o paradeiro da célula adormecida. Era um cibercafé. O operacional obviamente não abriu a mensagem em casa, mas num local público, de modo a evitar qualquer possibilidade de ser identificado."
"De qualquer modo, esse cibercafé dá-vos já uma localização, não é? Em que parte do mundo estava o computador que abriu esta mensagem da Al-Qaeda?
No Paquistão? No Iraque?"
Rebecca manteve os olhos fixos em Tomás, de modo a medir a reacção dele ao ouvir a revelação.
"Em Lisboa."
XVI
A notícia correu célere pela madrassa: o professor de Religião tinha sido preso pela polícia. O colega sufi gordo que Ayman interpelara na sua última aula parecia aliviado e tentava convencer os amigos de que o professor havia sido preso por ter dito que os sufis não eram muçulmanos. Os companheiros de turma fingiram acreditar, mas todos sabiam que não podia ser; o professor demonstrara na aula que o sufismo ia contra o Alcorão e a sunnah. Além do mais, como poderia a polícia ter sabido e reagido tão depressa? Claro que não era por isso! Mas então porque o tinham prendido?
Foi só no dia seguinte à detenção que as coisas se esclareceram. O rumor começou a circular logo pela manhã e fazia todo o sentido.
"Anda cá", disse Abdullah logo que viu Ahmed chegar à madrassa, puxando-o para um canto do corredor. "Já sabes porque prenderam o professor de Religião?"
O recém-chegado pousou a mochila no chão.
"Há novidades?"
O colega olhou para todos os lados, uma expressão conspirativa estampada no rosto, antes de se voltar de novo para Ahmed e murmurar o segredo.
"Ele é da Al-Jama'a."
"O quê?", admirou-se Ahmed, levantando inadvertidamente
a voz. "O professor Ayman?"