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"Chiu!", ordenou Abdullah, olhando de novo em redor, quase alarmado. "Mais baixo."
"Desculpa", pediu Ahmed. "Mas tens a certeza?"
Abdullah fingiu-se ofendido.
"Então não tenho? Estou a dizer-te que ele é membro da Al-Jama'a al-Islamiyya."
"Ah!", exclamou o amigo, pondo a mão na boca de espanto. "Tu achas... tu achas que ele matou o... o presidente?"
Estas últimas palavras foram proferidas num sussurro tão baixo que se tornaram quase inaudíveis.
"Não sejas parvo!", retorquiu Abdullah com uma risada nervosa. "Os que mataram o faraó foram logo presos. Mas parece que o professor é militante da Al-Jama'a e eles andam a prender toda a gente ligada ao movimento."
"Como sabes que ele é da Al-Jama'a?"
"Ouvi há pouco o emir da madrassa falar com o professor de Árabe. O nome do professor Ayman estava nas listas da Al-Jama'a."
A informação provocou grande excitação na escola, não só junto dos alunos, mas também entre professores e funcionários. Por Alá, já viram isto?, interrogava-se toda a gente. Tivemos um conspirador a ensinar aqui na escola!
Ahmed sentia-se em estado de choque. Como era possível que tivessem detido uma pessoa tão conhecedora da palavra de Deus? A história do envolvimento do professor Ayman na conspiração para matar o presidente deixou-o pensativo. Se o professor se metera nisso, raciocinou, lá devia ter os seus motivos. A Al-Jama'a era descrita na televisão como um movimento radical por defender a aplicação da sharia, mas, aos olhos de Ahmed, isso não a diminuía; pelo contrário, enaltecia-a. Afinal, a sharia era a lei de Alá e querer a sua aplicação devia ser um desejo natural de qualquer muçulmano! Como era possível haver muçulmanos que se opusessem à sharia?
A discussão começou à mesa quando a família almoçava.
"Estes koftas estão carbonizados", resmungou o pai, mirando com repulsa os três pastéis de carneiro picado que tinha no prato.
"Por Alá, lá estás tu!", disse a mulher, revirando os olhos de enfado. "Estão como sempre estiveram."
"Estou-te a dizer que estes koftas estão carbonizados!", insistiu o senhor Barakah, erguendo a voz. Pegou num dos pastéis e exibiu-o como prova.
"Olha para isto! Olha para isto! Isto é coisa que se apresente à mesa?"
"Se não gostas, vai cozinhar tu!", devolveu a mulher, ofendida pela crítica do marido.
O senhor Barakah ergueu-se de rompante.
Paf.
A estalada ecoou pela casa e os filhos, todos eles à mesa, encolheram-se nos seus lugares e mantiveram os olhos baixos.
"Isso é maneira de me falares?", gritou o senhor Barakah, fora de si. "Já não há respeito nesta casa?"
"Es um estúpido!"
Com a violência de um touro, o marido contornou a mesa e agarrou na mulher.
"Como te atreves, mulher, a faltar-me ao respeito?"
"Larga-me! Larga-me!"
"Eu já te ensino! Eu já te ensino!"
Pelo canto do olho, Ahmed viu o pai a arrastar a mãe para fora do seu campo de visão e, instantes depois, a porta do quarto deles a fechar-se e o som de estaladas e murros e a mãe a gritar. Ninguém dizia uma palavra à mesa, aquele era um assunto tabu entre os irmãos; todos viam o q«e se passava mas ninguém alguma vez falara no caso.
Ahmed sentiu ganas de se levantar e ir a correr em socorro da mãe, mas conteve-se e deixou-se ficar sentado, a cabeça baixa, o coração pesado.
"Toma, sua cabra!", gritava o pai no quarto. "Eu mato-te, ouviste? Eu mato-te!"
Sons de impacto.
"Pára! Pára!"
Era a mãe a implorar.
Para se isolar dos sons brutais que lhe chegavam do exterior, Ahmed pôs-se a recitar mentalmente o Alcorão. Num esforço de se abstrair da violência e de se convencer de que o correctivo que estava a ser aplicado à mãe era justo, escolheu os versículos relacionados com o papel da mulher, e em particular o versículo 34 da sura 4.
"«Os homens têm responsabilidade sobre as mulheres, porque Deus favoreceu a uns em relação aos outros, e porque eles gastam parte das suas riquezas em favor das mulheres»", recitou num murmúrio quase inaudível. "«As mulheres piedosas são submissas às disposições de Deus; são reservadas na ausência dos seus maridos no que Deus mandou ser reservado. Àquelas de quem temais desobediência, admoestai-as, confinai-as nos seus aposentos, castigai-as. Se vos obedecem, não procureis pretexto para as maltratar. Deus é altíssimo, grandioso»."
A recitação de cor só terminou quando sentiu o pai sentar--se no seu lugar para retomar o almoço. Vinha a transpirar e com a respiração arfante. Logo que o senhor Barakah cortou a kofta e meteu metade do pastel à boca, os filhos seguiram--lhe o exemplo sem pronunciar uma única palavra. Ouviam a mãe gemer do quarto, onde o marido a confinara, mas ninguém se atrevia a fazer fosse o que fosse.
Ninguém, com excepção de Ahmed. Atormentado por aqueles gemidos que não cessavam, e apesar de saber que tal tratamento era justo e correcto, o rapaz tomou em silêncio uma decisão que iria mudar a sua vida.
Começou por evitar ficar em casa. Logo que as aulas terminavam, ia para a mesquita rezar e estudar e só chegava a casa pela noite, a tempo do jantar.
Mas em breve se interrogou quanto à sensatez da opção de se refugiar naquela mesquita. O xeque Saad era o mullab do santuário, mas sempre que o via Ahmed lembrava-se das palavras do professor Ayman, que Alá o protegesse: o teu mullah é um sufi, afasta-te dele.
Passou a prestar uma atenção crítica a tudo o que Saad dizia. Até que um dia lhe ouviu uma oração que o fez erguer o sobrolho.
"«Meu Deus, como és bom com aquele que vai contra os Teus princípios»", rezou o xeque nessa ocasião. "«Quem Te procurou e foi renegado por Ti, ou quem procurou refúgio em Ti e foi traído, ou quem se aproximou de Ti e foi afastado?»"
Ahmed ficou a pensar nesta oração. "Meu Deus, como és bom com aquele que vai contra os Teus princípios"? Mas o que é isto? Alá é bom com quem não O respeita? Onde estaria isso escrito?
Quando a oração terminou, Ahmed foi ter com Saad.
"Xeque, posso fazer-lhe uma pergunta?"
"Diz, rapaz."
"Que oração foi essa que o senhor recitou? Não me lembro de a ver no Alcorão..."
"É uma oração da ordem Naqshbandi."
"O Profeta recitou-a?"
Saad sorriu e contornou a pergunta. 0
"A ordem Naqshbandi surgiu alguns séculos depois do Profeta, rapaz." Inclinou-se para o seu pupilo, afagando-lhe o cabelo. "Estou a ver que esta oração te interessou. E bela, não é? Nela se reflecte a bondade e a tolerância do islão."
Ahmed não fez comentários, mas registou na mente o nome da ordem. A primeira oportunidade escapuliu-se para a biblioteca da mesquita e foi procurar num livro referências dos Naqshbandi.
Descobriu que se tratava de uma ordem ligada a Bahauddin Naqshband, o santo de Bucara que viveu no século xiv. A meio do texto, o livro referiu a corrente islâmica a que pertencia essa ordem.
Era sufi.
"Logo vi", murmurou Ahmed, estreitando os olhos.
"Logo vi!"
A associação do xeque aos sufis tornava-se-lhe agora clara, mas faltava-lhe ainda uma prova definitiva. Não foi Maomé que disse que não se pode acusar ninguém sem provas suficientes? Não foi o Profeta que exigiu até em certos casos a presença de quatro testemunhas para que ninguém fosse in-justamente acusado?
A
prova
surgiu-lhe
inesperadamente
na
sexta-feira seguinte. No final da oração do meio-dia, Saad aproximou-se do pupilo.
"Lembras-te daquela oração que no outro dia te deixou fascinado?"
Ahmed levou alguns instantes a perceber que o clérigo se referia à oração da ordem Naqshbandi.
"Sim...", murmurou com uma expressão velada, de modo a ocultar o que verdadeiramente pensava.
"Pois há mil maneiras de chegarmos ao Criador", disse o xeque enigmaticamente. "A oração é apenas uma delas."
"Não entendo. O que pretendes dizer com isso?"
"Queres que eu te mostre?"
Ahmed ainda pensou em dizer que não; suspeitava daquelas novidades. Mas percebeu que estava ali uma oportunidade de ouro para melhor conhecer o seu mestre e, vencendo a relutância, acabou por aquiescer.
Nessa noite o clérigo levou-o ao coração do Cairo, o souq de Khan Al-Khalili. Metendo por uma ruela, conduziu-o a um edifício antigo com um grande pátio central coberto de cadeiras e um palco montado ao fundo. O pátio estava cercado pelos três andares do edifício, com elegantes mashrabiyya cravados nos andares superiores.
"Isto é um wikala", anunciou. Perante o olhar inquisitivo do pupilo, percebeu que a palavra nada lhe dizia. "Sabes que antigamente, quando ainda não havia hotéis, existiam aqui no Cairo pousadas usadas pelos mercadores que atravessavam o Sara em caravanas. Esta é uma delas."
Ahmed contemplou com desconfiança as cadeiras e o palco montados no pátio e a multidão que se aglomerava no local. Viam-se turistas kafirun a tomar alguns lugares.
"Estas pessoas não têm ar de ser caravaneiras. O
que estão aqui a fazer?"
"Tem paciência e já perceberás."
Minutos mais tarde um grupo de homens com turbantes e vestes brancas ou coloridas subiu ao palco e outro apareceu nas varandas com instrumentos na mão, sobretudo tabla. Os aplausos encheram o pátio e, acto contínuo, os homens das varandas começaram a tocar e os do palco puseram-se a rodopiar ao ritmo da música. Era uma melodia estranha, quase hipnótica, com um poder que fazia vibrar o ar e reverberar as paredes do wikala.
Os dançarinos rodopiavam e rodopiavam, seguindo a cadência viciante da música, gitando as túnicas como rodas, a melodia a crescer sem cessar, num frenesim empolgante, num remoinho arrebatador; eram piões, eram o vento do deserto, eram vórtices coloridos, vários corpos num movimento único, reduzidos a manchas,
transformados
num
torvelinho,
mergulhados em transe. "O que estão eles a fazer?"
"Buscam a comunhão com o Criador." O xeque fez um gesto em direcção às figuras rodopiantes; as anteriores tinham revoluteado para fora do palco e agora eram homens com túnicas e turbantes negros que redemoinhavam em crescendo. "Vê como é belo!
Vê como é sublime! Unem-se a Deus através da música e da dança. Mas também o fazem através da meditação e da recitação. Há mil maneiras de comungar com Alá."
Ahmed fez um esgar de repulsa.
"Comungar com Alá? São cristãos?"
"Muçulmanos."
O rapaz quase abanou a cabeça em desaprovação, mas dominou-se. Onde já se vira tal coisa?
Muçulmanos a comungar com Deus? Muçulmanos a usar a meditação, a música e a dança para se unirem ao Misericordioso? Onde estava isso escrito no Alcorão?
Cravou os olhos no xeque, que se mantinha preso ao bailado hipnótico dos dançarinos rodopiantes, e fez-lhe a pergunta com intensidade.
"Quem são estes homens?"
"Dervish."
"O que é isso?"
O xeque desviou enfim a atenção dos dançarinos e sorriu com bonomia para o seu pupilo. "Ascetas sufis." A prova!
Ahmed não sabia se devia estar revoltado ou sentir-se esfu-ziante por ter finalmente confirmado as suas suspeitas. Mas agora não havia dúvidas. O
xeque era um sufi! O professor Ayman tinha razão!
O xeque era um sufi! E o que era um sufi senão um muçulmano submetido a influências cristãs?
Um kafir, portanto.
Isso queria dizer que ele, Ahmed, estava a ser ensinado por um kafir! Isso queria dizer que o verdadeiro islão não era aquele que o xeque lhe explicava nas suas lições. Pior ainda, o verdadeiro islão não era aquele que o mullah pregava todas as sextas-feiras na mesquita. Ele e a família estavam a ouvir uma doutrina cristã encapotada, não o verdadeiro islão! O verdadeiro islão era outro. O
verdadeiro islão era o que se encontrava exposto por Alá no Alcorão e exemplificado pelo Profeta na sunnah. O verdadeiro islão era o da sura 9, versículo 5. "«Matai os idólatras onde os encontrardes.
Apanhai-os! Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»"
Como poderiam os verdadeiros muçulmanos ignorar tão claras ordens de Alá?
Passou a evitar o xeque Saad e aquela mesquita.
Quando as aulas terminavam na madrassa optava por escapar-se para longe, deambulando pelas ruas do Cairo, primeiro perdido em busca de um rumo que não sabia definir, depois encontrando-se quando, a dois passos do wikala onde actuavam os dervish sufis, deparou com aquela que lhe pareceu a mais bela mesquita do souq de Khan Al-Khalili.
A grande mesquita de Al-Azhar passou a ser o seu destino depois das aulas. A hora das orações convergia para o santuário, em pleno bazar, onde recitava com redobrado vigor as orações a Alá. Os mullabs pareciam-lhe ainda demasiado desviantes, mas ao menos não eram sufis. Além disso, concluiu que o islão desviante era defeito geral no Egipto, o medo de desagradar ao governo parecia maior do que a fé desses clérigos cobardes. Para contornar o problema, concentrava a sua atenção essencialmente na recitação do Alcorão, ignorando a maior parte do sermão pregado à hora da oração.
O resto do tempo era passado entre os comerciantes do bazar. Gostava do bulício, das cores, dos aromas, da excitação, das gentes diversas que por ali passavam. Vagueava sozinho pelo souq, embora o seu poiso habitual fosse um trecho da Sharia Al-Muizz li-Din Allah onde a certa hora pousava a longa sombra do minarete em xadrez vermelho do complexo Al-Ghouri. Ouvia da rua as vozes em coro de crianças da madrassa do complexo a recitarem o Alcorão e, sentado no passeio, entretinha-se a acompanhar a recitação. Ah, como era retemperador ouvir as palavras de Alá entoadas por aquelas vozes macias!
"Pssst!"
Ahmed voltou a cabeça, tentando perceber se era com ele. Estava sentado num degrau do acesso ao complexo de Al-Ghouri, mesmo junto à mesquita.
Havia algumas semanas que frequentava aquele trecho da rua e tornara-se notado entre os comerciantes da zona.
"Pssst! Ó miúdo, anda cá!" Era mesmo consigo.
Viu o vendedor de uma loja de cachimbos de água chamá--lo com o dedo e, após uma hesitação, foi ter com ele. "Queres falar comigo?" "Sim, miúdo. Como te chamas?" "Ahmed."
"Não me ajudas a arranjar fregueses para o meu negócio?" O rapaz espreitou com curiosidade os múltiplos cachimbos de água espalhados pelo chão e pelas prateleiras. "Eu, senhor?"
"Apesar de estarmos na Al-Muizz, os turistas raramente vêm para esta parte do souq", queixou-se o comerciante. "Preciso de alguém que os vá buscar à Midan Hussein." Tirou do bolso uma moeda de cobre reluzente. "Dou-te vinte piastras por cada turista que me tragas e que me compre uma sheesha."
Acenou com a moeda como se tentasse o rapaz com uma doce baklava. "Vinte piastras!"
Desconcertado com a inesperada proposta, Ahmed levantou o rosto para a tabuleta no topo da porta de entrada. Tinha escrito Arif e o adolescente presumiu que se tratava do nome do dono do estabelecimento.
"E se ele não comprar nada?"
"Bem, nesse caso não levas dinheiro, claro. Mas, se fizeres..." "Pai!"
A voz, suave e melodiosa, veio de dentro da loja e os dois voltaram os olhos naquela direcção. Apareceu nesse instante, por uma porta atrás do balcão, uma rapariga de uns dez anos, magra e com uns olhos negros luminosos, pareciam pérolas polidas. Ahmed sentiu um baque. Aquela menina era a criatura mais bela que alguma vez vira.
"Adara!", exclamou o comerciante. "Vai lá para dentro!" "Mas, pai..."
"Vai lá para dentro imediatamente! Agora estou ocupado, não vês? Já te chamo."
A rapariga deu meia volta e desapareceu. Era um anjo como Ahmed jamais havia visto. E ele sabia como se chamava. Adara. Que nome tão belo e apropriado! Adara. A*pala-vra árabe para virgem era perfeita para criatura tão sublime. Adara...
Sem hesitar, o rapaz estendeu a mão na direcção do comerciante. "Aceito."
Arif encarou-o e abriu a boca num sorriso feio, revelando incisivos apodrecidos. "Excelente!"
"Vou encher-lhe a loja de clientes."
XVII
"Onde é o seu hotel?"
Tinham acabado de sair do Harry's e Tomás decidiu fazer de cavalheiro até ao fim.
"Ao pé do teatro La Fenice", disse Rebecca. "É
aqui perto, não se preocupe."
"Eu acompanho-a. O meu hotel também não é longe."
Veneza à noite tinha algo de irreal, parecia um palco fantasmagórico. A luz desmaiada dos candeeiros afagava timidamente as fachadas coloridas de branco, de amarelo, de rosa. Por toda a parte viam-se lojas elegantes, alternando com restaurantes acolhedores e edifícios históricos requintadamente
conservados.
A
multidão
deambulava distraída, os olhos a saltitarem pelas vitrinas ricamente decoradas, os passos levando-as ao abandono pelo enredado de calles.
"É curioso os muçulmanos fundamentalistas usarem imagens pornográficas para esconder mensagens cifradas, não acha?", observou a americana.
"Isso tem a ver com uma ordem dada por Alá no Alcorão." "A sério? Alá manda ocultar mensagens em mulheres debochadas?" Tomás riu-se.
"Claro que não", disse. "Mas há um trecho do Alcorão, julgo que no capítulo 57, onde é dito:
«Criámos o ferro — nele há grandes danos e grande utilidade para os homens —*para que Deus em segredo conheça os que O socorrem a Ele e aos Seus Enviados.» Este versículo é interpretado como uma autorização divina para os muçulmanos usarem tecnologias modernas de modo a difundirem o islão.
Daí que os fundamentalistas não hesitem em recorrer a armas sofisticadas e a computadores, incluindo esses sites pornográficos. Em tempo de guerra vale tudo, é a filosofia desses tipos. Presumo até que vocês tenham detectado muita actividade na Internet..."
"Muita mesmo", confirmou Rebecca. "A Internet é hoje em dia um elemento-chave da Al-Qaeda numa série de coisas: propaganda, treino, planificação, logística... Tudo! Eles usam-na para comunicar entre si, para mostrar vídeos de atentados, para transmitir informações, ordens e planos secretos e para atacar os computadores ocidentais. Já contámos uns cinco mil sites fundamentalistas, alguns deles com instruções pormenorizadas sobre como fabricar bombas simples. Há outros com cbat-rooms onde as pessoas fazem as perguntas que quiserem e têm do outro lado um especialista em lei islâmica a dar as respostas. Uma vez vi num desses chat-rooms um internauta fundamentalista dizer que pertencia a um grupo que estava na posse de um refém e queria saber se, à luz do islão, era permissível decapitá-lo com um serrote ou se teriam de usar uma faca ou uma espada, conforme o exemplo do Profeta..."
"E o que respondeu o especialista?"
"Disse que o exemplo do Profeta devia ser seguido, como ordena o Alcorão, e aconselhou-os a usarem a faca ou a espada."
Sem conseguir deixar de visualizar a cena, Tomás fez uma careta de repulsa e respirou fundo. "O que fazem vocês a esses sites}"
"Encerramos uns e vigiamos outros. Temos ainda uma táctica, que é abrir sites fundamentalistas para ver quem vem ter connosco. Apanha-se assim muito peixe..."
"Miúdo, suponho."
"Claro. Os tubarões têm os seus próprios sites e só frequentam aqueles nos quais têm confiança." "Como Bin Laden?" "Esse já nem usa a Internet." "Tem medo de ser apanhado?"
"Sim. Actualmente todo o núcleo duro da Al-Qaeda evita a Internet. Eles sabem que o risco é demasiado grande; a nossa tecnologia de intercepção é de tal modo sofisticada que os pode localizar a qualquer momento. Ao que sabemos, Bin Laden recorre a mensageiros para transmitir as suas ordens. Quando usa um computador, só vê informação que outros carregam para um CD ou um DVD. Nem pensar em fazer ligações à Internet."
La note xe bela, Fa presto
Nineta, Andemo in barcbeta
l frescbi a chiapar. "
A voz, entoando uma melodia melancólica, rompeu do estreito canal em frente. Atraídos pela promessa de romantismo que aquele som encerrava, Tomás e Rebecca calaram-se e subiram a uma ponte que ligava os dois quarteirões separados pelo canal; a ponte era pequena e pitoresca, curvando-se em arco sobre as águas escuras.
Da penumbra líquida emergiu então uma gôndola furtiva, o gondoleiro de pé a empurrar suavemente o remo, a voz embalando os turistas que o ouviam.
Parados no topo da curvatura da ponte, o português e a americana- tinhffm os olhos colados à pequena embarcação, fruindo o instante. A gôndola passou por baixo da ponte, deslizando suavemente pelo canal, e a melodia ecoou pelo canal.
E Toni el so remo L'è atento a
menar. Nol varda, nol sente
L'è un orno de stuco.
O vulto negro desapareceu numa curva, a voz do gondoleiro a sumir-se na distância, tão irreal que a sua passagem parecia agora não ter passado de ilusão.
"Sabe uma coisa?", perguntou Tomás, a mente voltando ao problema que o preocupava mais. "Ainda me custa acreditar que haja fundamentalistas em Portugal."
Rebecca demorou um instante a libertar-se dos efeitos inebriantes da barcarolle, a canção dos gondoleiros venezianos, e a regressar ao presente.
"Não sei porquê", disse por fim.
"Porque eu conheço a nossa comunidade islâmica.
Encontro-me com eles muitas vezes, temos discussões, falamos muito. É tudo boa gente, já lhe disse."
"E eu já lhe disse que todas as comunidades têm as suas ovelhas tresmalhadas!"
"Mas neste caso não há precedentes. Nunca se viu um muçulmano português envolvido em actos de... de terrorismo islâmico. Isso é coisa impensável!"
Rebecca recomeçou a caminhar, descendo da ponte e pisando o quarteirão.
"Está enganado."
A curiosidade espevitada, Tomás lançou-lhe um olhar inquisitivo do topo da ponte curvada. "Que quer dizer com isso?"
"Já houve fundamentalistas islâmicos oriundos de Portugal envolvidos em atentados."
O historiador desceu por fim a ponte, indo no encalço da americana.
"Está a falar a sério?"
"Claro."
"Diga-me quem!"
Rebecca continuou a andar, imperturbável, mas voltou a cabeça para trás.
"Sabe qual foi o primeiro atentado feito pela Al-Qaeda em solo europeu?"
Tomás apressou o passo e posicionou-se ao lado dela.
"Não foi o de Madrid?"
"Deve estar a gozar..."
"A Al-Qaeda atacou na Europa antes dos atentados de 2004?"
"E evidente que sim."
"Quando?"
"O primeiro ataque da organização de Bin Laden em solo europeu ocorreu em 1991. Foi em Roma. O
antigo rei do Afeganistão, Mohammad Zahir Shah, na altura planeava regressar ao seu país, o que constituía uma óbvia ameaça aos mudjahedin fundamentalistas e, por arrastamento, à Al-Qaeda.
Foi nessa altura que um elemento da Al-Qaeda se fez passar por jornalista e conseguiu aproximar-se do rei. Uma vez diante dele, o terrorista sacou de uma faca e desferiu-a contra o coração do ex-monarca. O que salvou o rei foi uma caixa de prata para cigarrilhas que tinha no bolso e que impediu que a lâmina penetrasse no coração."
"Não sabia disso."
*
"Sabe como se chamava esse elemento da Al-Qaeda?"
A americana parou, tirou uma fotografia da pasta e voltou-a na direcção de Tomás. A imagem mostrava um homem barbudo e bem nutrido, de aspecto europeu mediterrânico, sentado numa cela. Uma legenda em baixo indicava Cárcere di Rebibbia, Roma.
O historiador encolheu os ombros.
"Ignoro."
"Paul Almida Santous."
Rebecca pronunciou o nome com um sotaque fortemente americano; da sua boca saiu um nome tão estranho que Tomás levou um instante a converter estes sons bizarros num nome português.
"Ah!...", exclamou. "Paulo Almeida Santos."
"Isso."
O historiador levou um outro longo momento a fazer a ligação entre este nome, aquela fotografia e a história do atentado em Roma.
"Está a dizer-me que... que esse terrorista da Al-Qaeda era português?"
"You bet", confirmou ela. "Os italianos prenderam-no, claro. Ele primeiro fechou-se em copas e só anos mais tarde é que aceitou falar, mas limitou-se a dizer coisas que já eram do nosso conhecimento. Mesmo assim ficámos a saber que o senhor Santos tinha treinado nos campos da organização existentes no Afeganistão e que teve três reuniões com o próprio Bin Laden para preparar o atentado."
"Desconhecia esse caso em absoluto."
"Estou a contar-lhe isto para que tenha a noção de que o trabalho que esperamos de si não é necessariamente um piquenique", acrescentou Rebecca, voltando a guardar a fotografia na pasta.
"E um facto que a comunidade islâmica em Portugal é tranquila e constituída por gente boa. Mas, tal como entre os portugueses cristãos, também é possível encontrar entre os portugueses muçulmanos quem opte por caminhos diferentes. Ou pode pôr as mãos no fogo por toda a gente no seu país?"
"Claro que não."
"Os nossos sistemas de vigilância mostram que a mensagem que lhe mostrei no Harry's foi aberta há dois meses num cibercafé de Lisboa. O remetente é um endereço que andamos a vigiar há alguns anos e que sabemos ser apenas usado para emitir ordens operacionais de grande magnitude. Isso mostra que..."
"Se é assim", interrompeu Tomás, "porque não encerram esse endereço?"
"Porque já o temos localizado e não o queremos queimar. Se o encerrássemos, a Al-Qaeda abriria outro, provavelmente com maiores cautelas ainda, e emitiria ordens operacionais sem que pudéssemos saber nada. Tendo este endereço identificado, dispomos ao menos da possibilidade de observar o tráfego, de interceptar mensagens e de perceber se vai ou não acontecer alguma coisa."
"Estou a entender."
Rebecca calou-se por um momento, tentando retomar a ideia que expunha quando foi interrompida.
"Como eu estava a dizer, o facto de terem sido emitidas ordens através desse endereço mostra-nos que vai acontecer alguma coisa. E o facto de esse e-mail ter sido aberto num computador cujo IP está num cibercafé de Lisboa mostra-nos que os operacionais a quem foram dadas as ordens se encontram em Portugal."
"Acha, portanto, que vai ocorrer um atentado em solo português..."
"Isso já não sei", retorquiu ela. "Só há uma maneira de responder a essa pergunta, não lhe parece?"
"Qual?"
"Decifre a mensagem que lhe passei há pouco.
Tudo depende do que estiver contido nela."
Tomás meteu a mão ao bolso e extraiu o bloco de notas. Folheou-o e localizou a página para onde havia copiado a linha de letras e números que se encontrava oculta sob a imagem pornográfica.
6 AY-H A S 1 H A 2 R.U
"Não há forma de vocês me arranjarem a chave desta cifra, pois não?"
A americana soltou uma gargalhada.
"Se a tivéssemos, Tom, pode acreditar que já a teríamos usado!", exclamou. "Oiça, o e-mail contém sem dúvida ordens operacionais. Essa mensagem foi aberta em Lisboa, o que significa que este atentado pode envolver o seu país. Se eu fosse a si, sabe o que fazia? Metia horas extraordinárias para decifrar o que aí está escrito!"
"Oiça, eu sou apenas um historiador. Porque não entregam antes este assunto ao SIS?"
"Já entregámos."
"E eles?"
Rebecca revirou os olhos.
"Não sabem nada."
"Mas o que disseram eles?"
"Que a comunidade muçulmana portuguesa é muito pacífica e que não há problemas." "E têm razão."
A americana apontou para o papel que Tomás mantinha entre os dedos.
"Acha que sim? Se têm razão, então quem foi que usou um cibercafé de Lisboa para abrir a mensagem da Al-Qaeda que escondia essa cifra? O menino Jesus?"
O português parou para reler a linha que tinha anotado no bloco de notas. Dois segundos depois, fechou o bloco com um gesto decidido e arrumou-o de novo no bolso.
"Não sei", disse. "Mas acredite que vou descobrir."
XVIII
O homem era loiro, de pele avermelhada pelo sol, e olhava com interesse para os produtos expostos ao longo da ruela adjacente à Midan Hussein.
"Mister! Mister!", chamou Ahmed com um sorriso encantador ao acercar-se do potencial cliente.
"Venha ver a gruta de Ali Babá!"
"Ai sim?", sorriu o ocidental. "O que tem ela de especial?" "Está cheia de tesouros."
A vida de Ahmed depois das aulas passou a ser deambular pelas ruelas do souq em busca de clientes ocidentais. Sabia um inglês elementar com jargão para turistas que Arif lhe ensinara e que foi aperfeiçoando no contacto com os estrangeiros.
Muitos
ocidentais
achavam-lhe
graça
e
deixavam-se arrastar pelo labirinto do Khan Al-Khalili até à loja dos cachimbos de água, quase à sombra do minarete de Al-Ghouri. Havia dias em que angariava tantos clientes e recebia por isso tantas piastras que chegava a somar cinco ou dez libras egípcias.
"Masba'allab!, Ahmed! Masbaallah!"
Arif, o dono da loja, mostrava-se de tal modo satisfeito com o desempenho do seu jovem angariador que passou a chamar-lhe o meu menino.
Convidava-o para almoçar à sua mesa, na copa, de onde Ahmed espreitava amiúde as mulheres a comer na cozinha. Arif tinha várias filhas, todas elas esbel-tas e ruidosas, mas o rapaz só parecia ter olhos para a bela Adara. As mulheres mantinham-se à parte, mas sempre que a rapariga, por qualquer motivo, se aproximava, Ahmed corava e baixava o rosto.
Desde que começara a trabalhar para a loja dos cachimbos de água, jamais trocara uma palavra com ela. Astuto, como bom comerciante que era, Arif acabou inevitavelmente por notar o interesse que o seu protegido nutria pela filha. Não ficou aborrecido. Não tinha a certeza de que Ahmed fosse a pessoa ideal para Adara, menina que considerava especialmente rebelde, mas também era verdade que não estava certo do contrário, pelo que decidiu acompanhar o pupilo com atenção.
O comportamento que ao longo do tempo foi observando em Ahmed agradou-lhe. Descobriu que o rapaz, como bom muçulmano, gastava parte do dinheiro que ganhava na zakat, as esmolas que distribuía aos necessitados. Ahmed limitava-se a cumprir com zelo os ensinamentos do xeque Saad, uma vez que percebera já que a maior parte do que o mullab lhe explicara não eram necessariamente ideias sufis, mas o verdadeiro islão. E foi esse islão que Arif descortinou em Ahmed. O Alcorão e a sunnab do Profeta ordenavam a generosidade e o respeito pelos outros, virtudes que começavam justamente pela distribuição desinteressada da zakat pelos desfavorecidos. Ahmed orgulhava-se de ser o mais crente de todos os crentes, pelo que nunca descurava esta obrigação, facto que não passou despercebido a Arif.
Alá ordenara também o respeito pela família e Ahmed, apesar de evitar passar tempo em casa, entregava à mãe a parte que lhe restava do dinheiro ganho no souq.
"Onde arranjaste isto?", perguntou-lhe a mãe da primeira vez que o filho lhe estendeu duas notas de uma libra.
"No souq", respondeu com honestidade, tal como ordenado por Alá no Alcorão. "A trabalhar nuraa loj«
de sheesha."
Os pais encolheram os ombros à novidade e deixaram-no fazer como quisesse; desde que frequentasse a madrassa e fosse passando de ano, para eles estava tudo bem.
Mas Arif, a quem nada escapava, chegava já a conclusões.
"O que achas de Adara?"
A pergunta de Arif apanhou Ahmed de surpresa. A rapariga acabara de passar pela copa e o seu admirador secreto seguira-lhe o vulto com mal disfarçado interesse.
"Hã?", exclamou o rapaz, atarantado, como se tivesse sido apanhado com a mão nas baklavas.
"Adara. O que pensas dela?"
Ahmed corou e, sentindo-se desnudado pelos olhos perscrutadores do patrão, baixou os olhos. "Eu... eu...
não sei."
"Não sabes? Então não a vês? Ora essa, ela acabou de passar por aqui..."
O adolescente manteve-se muito quieto no seu lugar, horrorizado com a forma tão transparente como se deixara ler.
"Gostarias de casar com ela um dia?"
Ahmed ergueu os olhos, uma centelha de esperança a iluminar-lhe o rosto.
"Eu?"
Arif riu-se.
"Sim, tu. Quem haveria de ser? Achas que darias um bom marido para Adara? Ela é uma boa rapariga."
Com o coração a ribombar-lhe no peito e a garganta estrangulada pela emoção, o rapaz apenas conseguiu balouçar afirmativamente a cabeça e deixar escapar pelos lábios um fiozinho de voz. bim.
"Terás de a domar, claro. A minha filha é um pouco rebelde e precisa da mão firme de um homem.
Sentes-te à altura dessa tarefa?"
O fiozinho de voz voltou:
"Sim."
"Isso implica que sejas sempre um bom muçulmano, não um mole como esses kafirun que aqui me trazes à loja. Achas que posso estar descansado quanto a isso?"
Neste ponto a voz de Ahmed ganhou corpo e firmeza; isso de bom muçulmano era algo que estava determinado a ser ao longo da vida, custasse o que custasse.
"Com a graça de Deus não o desiludirei!"
Arif soltou uma gargalhada e deu-lhe uma palmada nas costas. O acordo estava selado; agora era apenas deixar que Ahmed e Adara crescessem.
Crescer foi coisa que os dois se encarregaram de fazer sem que ninguém lhes desse ordens para tal.
Nos anos seguintes a vida de Ahmed centrou-se na madrassa de manhã e no souq à tarde. Foram tempos de maturação e experiência.
O contacto com os turistas provocava no rapaz uma repulsa que se esforçava por ocultar.
Desaprovava a forma desnudada e imodesta como as mulheres ocidentais se apresentavam em público; elas atreviam-se mesmo a expor os ombros e as coxas, pareciam verdadeiras mulheres de rua, ordinárias e desavergonhadas. Não tinha sido o Profeta que ordenara o decoro? Onde estavam os véus que as protegiam dos olhares ínvios? Por vezes observava até casais de turistas a andarem de mão dada em público!
Encolhia os ombros, num misto de fúria e resignação. Eram kafirun, o que se havia de fazer?
Os relatos sobre os cruzados é que falavam verdade, concluiu. O professor Ayjnan, que Alá o protegesse onde quer que o tivessem encerrado, é que tinha razão, confirmou. Esta gente bárbara desconhecia as mais elementares regras de decência e boa conduta, não passavam todos de animais entregues aos instintos mais primários. Os kafirun pareciam ricos, claro; mas nem por isso eram mais do que meros selvagens.
Que diferença entre essa gente e Adara, por exemplo! Os meses haviam-se feito anos e o corpo de Adara evoluíra de menina para uma mulherzinha.
Logo que teve a primeira menstruação, o pai ordenou-lhe que se cobrisse quando saísse à rua, não fosse a nudez da sua pele leitosa desencadear involuntariamente a excitação sexual dos homens.
Ahmed aprovou esta decisão com todo o coração; não tinha sido o Profeta que, segundo um hadith, havia dito que "quando uma mulher atinge a idade da menstruação não é adequado que ela exiba partes do seu corpo, excepto isto e isto", apontando para o seu rosto e mãos? As mulheres kafirun não passavam de umas ordinárias, enquanto bastava pousar os olhos na filha de Arif para perceber a modéstia e o decoro que caracterizavam as crentes. Que contraste! As kafirun exibiam o corpo despudoradamente, enquanto Adara saía totalmente coberta, como o mensageiro de Deus requeria.
O problema é que, com o tempo, a rapariga pareceu dar alguns sinais de rebeldia e, a certa altura, começou a escolher certos adereços que pareciam pouco apropriados ao rapaz a quem estava prometida. Ahmed calou-se de início, mas, quando estes comportamentos se tornaram demasiado ostensivos, chegou o momento em que não se conteve e decidiu chamar a atenção de Arif.
"Adara vai sempre à rua adequadamente coberta", observou certo dia ao almoço, medindo as palavras com cuidado. "Mas, há pouco, vi-a sair e fazer uma coisa que chama um pouco a atenção dos homens."
"O quê?", alarmou-se Arif, preocupado com a reputação da filha. "O que a viste fazer?"
"Levava saltos altos", denunciou Ahmed, baixando a voz. "Deixa os homens imaginarem-lhe as pernas..."
O patrão deu um murro na mesa, subitamente irado.
"Por Alá, isso não pode ser! Quando essa rapariga voltar vou ter uma conversa com ela!"
"Ela tem de andar de sapatos baixos." Ergueu o indicador. "E há outra coisa: cheirava a champô perfumado. Isso é perigoso! Distrai a mente dos homens, afastando-os de Alá e inspirando-lhes fantasias pecaminosas."
Arif levantou-se de rompante, incapaz já de conter a justa indignação de pai ultrajado.
"Tens razão", vociferou. "Quando ela chegar vai receber um correctivo! Não quero poucas-vergonhas na minha casa!"
O contacto com os ocidentais expôs Ahmed a algumas ideias novas. Certo dia, quando seguia pelas ruas do souq em direcção à loja dos cachimbos de água, ouviu um dos turistas perguntar-lhe o que achava do governo do Egipto. O rapaz riu-se e encolheu os ombros.
"Eu não acho nada, mister. Sou um simples muçulmano."
"Mas não gostarias de ter democracia no teu país?"
A pergunta extraiu uma expressão vazia de Ahmed. "O que é isso, mister?" Foi a vez de o turista se rir.
"Democracia? Nunca ouviste falar de democracia?"
"Eu não, mister."
"E tu poderes escolher o teu presidente", explicou o europeu. "É tu teres uma palavra a dizer na forma corrfb se governa e se fazem as leis do teu país.
Não gostavas?"
"Mas para que preciso eu disso, mister?"
A pergunta pareceu ao turista tão ingénua que o deixou por momentos desconcertado.
"Sei lá, para... para poderes substituir o teu presidente, por exemplo. Olha, imagina que achas que ele está a governar mal. Em vez de o teres a mandar para sempre, podes tirá-lo e pôr lá outro que governe melhor."
"Mas ele não vai deixar, mister."
O turista riu-se outra vez.
"Claro que não! É por isso que precisas de leis democráticas, que permitam substituí-lo. Não gostavas de as ter?"
"Nós não precisamos de novas leis, mister", retorquiu Ahmed, abrandando o passo porque estavam prestes a chegar à loja dos cachimbos de água. "Para nos governar já temos as leis apropriadas."
"Quais? As destes ditadores que mandam em vós?"
O rapaz apontou para cima.
"As de Alá."
Com o tempo foi-se apercebendo de que o souq estava cheio de polícias. Alguns andavam uniformizados, eram facilmente detectáveis. Mas havia outros que circulavam à paisana, se misturavam na multidão e se infiltravam por toda a parte; pareciam formigas.
Ahmed tomou pela primeira vez consciência de que andavam por ali quando viu uns desconhecidos a apreenderem produtos espalhados por um vendedor sobre um tapete no passeio - camisas de marca, rádios, perfumes.
"Contrabando", explicou-lhe, lacónico, Arif, encostado à porta a acompanhar a cena.
Sentado no degrau da loja dos cachimbos de água, Ahmed observava surpreendido os homens a algemarem o comerciante que havia sido apanhado em flagrante.
"Mas qualquer pessoa pode prendê-lo?"
Arif riu-se.
"Estes tipos não são pessoas quaisquer, rapaz", disse, suficientemente baixo para apenas ser escutado pelo seu jovem empregado. "São polícias."
O incidente despertou Ahmed para uma nova realidade. Havia polícias à paisana a circular pelo bazar. Daí em diante começou a estar mais atento a tudo o que se passava em seu redor. Sempre que via esses polícias actuar e deter alguém, parava para os observar com cuidado. Registava os rostos, as atitudes, as expressões, o que diziam, o modo como andavam, a forma de olharem.
Começou assim a distinguir as características que os diferenciavam. Percebeu que esses homens não eram sorridentes ou espontâneos como as outras pessoas que se viam no souq; em vez disso tinham um rosto tenso, grave, compenetrado. Apresentavam também uma maneira característica de caminhar; não o faziam com uma descontracção natural, embora se esforçassem por parecê-lo, antes revelavam uma rigidez que não conseguiam ultrapassar.
Ahmed aprendeu desse modo a reconhecê-los, e sobretudo a evitá-los. O seu negócio era angariar clientes para a loja e procurava fazê-lo bem. Apesar de estar a lidar com kafirun,
não achava o trabalho totalmente desagradável.
Alguns turistas mostravam-se amigáveis e uns davam-lhe até baksbeesh de cinquenta piastras ou mesmo uma libra, mas o rapaz não se deixava enganar. Tinha sempre bem presente o aviso de Deus na sura 5, versículo 51 do Alcorão: "O vós que credes! Não tomeis a judeus e cristãos por confidentes: uns são amigos dos outros. Aquele de entre vós que os tome por confkienteíserá um deles."
A amizade com os Adeptos do Livro era assim proibida por Alá e Ahmed não o esquecia. Daí que, quando o viam passar pelas ruelas labirínticas do souq com um casal de turistas no encalço e lhe perguntavam para onde ia, tinha sempre a mesma resposta na ponta da língua:
"Vou levar este cão kafir e a sua prostituta para o Inferno!"
XIX
O grupo de jovens palmilhava as ruelas em declive, apreciando as fachadas pitorescas das casas com as flores nas va-randas e as roupas coloridas a secarem às janelas. Em alguns cantos cheirava a vinho, por influência das tabernas àquela hora ainda encerradas, e noutros a urina; eram os efeitos da folia nocturna. À frente do grupo, o professor ia chamando a atenção para os pormenores que deveriam observar.
"Já não existem aqui casas mouriscas", explicou Tomás aos seus alunos da disciplina de Estudos Islâmicos. "Mas, se repararem bem, Alfama mantém um certo ar de casbab, não acham?"
Os alunos assentiram, as cabeças voltadas em todas as direcções. A maior parte da classe era muçulmana, mas alguns revelavam-se cristãos ou agnósticos movidos pela curiosidade. Desceram as escadarias e dobraram a igreja, alcançando o terraço do Miradouro de Santa Luzia. Os múltiplos telhados vermelhos e o distante caudal azul do Tejo abriram-se
diante dos seus olhos, mostrando-lhes Lisboa antiga em todo o seu esplendor.
"Pintarola!", exclamou um dos estudantes.
Deixaram-se ali ficar, a descansar e a contemplar a magnífica vista da cidade. A mente do professor, porém, fervilhava de ideias. Desde que voltara de Veneza que andava a imaginar qual a melhor forma de interpelar os seus alunos mruçulnfanos sobre questões políticas, e em particular as relacionadas com o fundamentalismo islâmico. O problema é que não via maneira satisfatória de o fazer. O assunto era totalmente estranho às aulas e aqueles jovens, despreocupados e alegres, pareciam-lhe ter tanta relação com o fundamentalismo como a água com o azeite.
Mas, que diabo!, o facto é que aquele e-mail da Al-Qaeda fora aberto em Lisboa. Era fundamental que começasse a fazer perguntas, mesmo às pessoas mais improváveis. Como os seus alunos muçulmanos.
Foi por isso que decidiu sair da faculdade e dar aquela aula ali, ao ar livre, visitando Alfama e a Mouraria, os bairros da antiga Lisboa muçulmana.
Sabia que só nesse contexto conseguiria criar um ambiente propício às questões que precisava de levantar.
O estudante mais próximo de si era Suleiman, um rapaz tranquilo cujos pais, de origem indiana, tinham vindo de Moçambique na década de 1960 e se tinham tornado advogados de grande nome em Lisboa.
Tomás viu ali a sua oportunidade.
"Suli, viste ontem as notícias?"
O aluno desviou os olhos da paisagem lisboeta.
"Sim, claro. Porquê?"
"Grande chatice, aquilo na índia, hem?"
Suleiman suspirou e fez uma interjeição com a língua.
"Nem me fale nisso."
"Já viste o que lhes deu? Saíram às ruas e puseram-se a disparar sobre toda a gente..." "São malucos. Doidos varridos."
Três gaivotas aproximaram-se do miradouro em voo rasante e a grasnar sem parar, obrigando alguns jovens a encolherem-se. Seguiram-se algumas risadas e piadas trocadas entre eles a propósito do incidente.
Tomás deixou passar uns segundos antes de voltar à carga.
"E se isso acontecesse aqui?"
"O quê?"
"Os atentados, Suli. Imagina que esses tipos, esses fundamentalistas, pegavam em armas e... sei lá, vinham aqui para Alfama, por exemplo, e começavam a matar toda a gente que lhes aparecia pela frente.
Já viste a confusão que era?"
Suleiman fez um ar interrogativo.
"O professor está a falar a sério?"
"Ó Suli, quem nos garante a nós que isso não acontece aqui? No fim de contas, há fundamentalistas em toda a parte, não é verdade?
Basta um punhado deles para lançar o caos..."
"Nós estamos em Portugal!", devolveu o rapaz, como se esse facto fosse, por si próprio, eloquente.
"Aqui não há dessa gente!"
"Como podes ter a certeza disso?"
Uma expressão baralhada perpassou pelo rosto do estudante.
"Porque... não sei, porque... ora, porque isso saber-se-ia", gaguejou.
"Saber-se-ia como?"
"Quer dizer, eu já teria ouvido alguém falar nisso, por exemplo. Ou alguém já teria comentado alguma coisa. Sabe, a conversa dos fundamentalistas é uma coisa que se nota, não passa despercebida..."
"E tu nunca ouviste nada?"
"Claro que não." Tomás olhou em redor. "Nem o resto do
pessoal?"
Suleiman virou também o rosto para o grupo e, com descontracção, lançou a pergunta.
"Malta! Alguma vez alguém ouviu... sei lá...
aJguém*escu-tou um caramelo qualquer a falar de...
de jihad, ou coisas no estilo?"
O grupo assumiu uma expressão de perplexidade.
Mas um deles, o Alcides, deu um passo em frente, o rosto muito compenetrado.
"Eu já."
Tomás arregalou os olhos. "A
sério? Quem?"
Alcides estreitou os olhos, assumiu uma pose de conspirador, olhou em redor e, assegurando-se de que ninguém o ouvia fora do grupo, inclinou-se para a frente e murmurou com ar muito compenetrado:
"O Sylvester Stallone. No Rambo."
A conversa desfez-se em galhofa.
XX
"Vou levar este cão kafir e a sua prostituta para o Inferno!"
Andava havia três anos a responder a mesma coisa sempre que o interpelavam em árabe no souq a caminho da loja dos cachimbos de água com um casal de turistas no encalço.
Só que, certo dia, aconteceu uma coisa inesperada.
Ahmed tinha já quinze anos e percorria o Khan Al-Khalili com perfeito à vontade, como se sempre tivesse ali vivido. Nessa tarde decidiu ir ao El Fishawy angariar turistas. O café mais antigo do Cairo situa-se numa ruela estreita e movimentada por trás da Midan Hussein. É um estabelecimento com história, dis-tinguindo-se por uma atmosfera exótica que um dia atraíra até o próprio rei Faruk e que parecia ser do agrado dos kafirun.
Os turistas refastelavam-se nos sofás e nas cadeiras do El Fishawy para fumar sheesha ou beber chá
aromático,
apreciando
a
decoração
requintadamente deteriorada do café e o burburinho agitado no souq. A viela era uma passagem estrei ta, protegida do Sol inclemente por enormes toldos, mas focos de luz esgueiravam-se pelos cantos e faziam brilhar a poeira e o fumo perfumado dos cachimbos de água, formando no ar diamantes cintilantes e assumindo tonalidades fantásticas num incessante jogo com as sombras.
Depois de passar os olhos pelos clientes instalados no exterior do El Fishawy, a atenção de Ahmed prendeu-se num casal que fumava sheesha numa salinha interior. "Mister, está boa a sheesha}"
O americano levantou o polegar direito e piscou o olho. "Excelente."
"Gostaria de comprar um cachimbo de água ainda melhor do que esse?"
O turista soltou uma gargalhada.
"Gee, nem aqui vocês nos deixam em paz!"
"Mas, mister, é a mais antiga loja de sheesha do Cairo!" Apontou para a fotografia que o El Fishawy expunha na parede com o rei Faruk sentado numa mesa do café. "Até o rei ia lá abastecer-se!"
Era tudo mentira, claro. O estabelecimento de Arif estava longe de ser antigo e muito menos tivera visitantes ilustres, mas aquelas palavras pareciam funcionar junto de muitos turistas e estes não seriam excepção. Depois de trocarem algumas palavras, Ahmed apercebeu-se de que se tratava de americanos. O homem era um loiro falador, mas a mulher, de tez trigueira e grandes óculos escuros, permanecia calada, para agrado do jovem egípcio. A americana teve o cuidado de manter o recato, o que lhe parecia de louvar; afinal as mulheres sempre têm de saber ocupar o seu lugar. Assim sendo, Ahmed apenas tivera de conversar com o marido em inglês, acabando por convencê-lo a visitar a loja de Arif para ver o que pomposamente designou como "os cachimbos de água mais procurados do Cairo".
O guia e os clientes saíram do El Fishawy e calcorrearam apressadamente as ruas do souq. Já na movimentada Sharia Al-Muizz li-Din Allah, a principal rua do Cairo medieval, viraram em direcção ao complexo Al-Ghouri. O minarete pintado com os motivos de xadrez vermelho funcionava como um farol, uma vez que era à sombra dele que se encontrava a loja dos cachimbos de água de Arif, e passaram pelo velho vendedor de especiarias que há anos fazia a Ahmed a mesma pergunta galhofeira.
"Onde vais tu tão apressado?"
Sem se deter, Ahmed lançou a resposta habitual.
"Vou levar este cão kafir e a sua prostituta para o Inferno!"
Alguns passos adiante, o guia apercebeu-se de que o casal parara atrás dele. Parou também e deu meia volta, sem compreender qual era o problema.
"Então, mister} O que se passa?"
Para espanto de Ahmed, quem respondeu não foi o americano, mas a mulher.
"O que nos chamaste?"
Ahmed ficou boquiaberto. A americana falara. Em árabe. "Como disse?"
"Eu perguntei-te o que nos chamaste", repetiu ela, a voz cortante e fria.
O rapaz abanou a cabeça, tentando reordenar os pensamentos. A americana dirigira-se a ele num árabe fluente, embora com um inconfundível sotaque estrangeiro; pareceu--Ihe libanês. E o que dissera ele que suscitasse aquela pergunta naquele tom? Fez um esforço para reconstituir o minuto anterior.
Vinha ele a andar pela ruela, desaguara na rua principal, vira o velho do costume sentado no sítio de sempre, o velho perguntara-lhe onde iam e ele dera-lhe a resposta habitual, ia levar o cão kafir e a sua prostituta para...
Por Alá! A cadela kafir entendera!
"O que se passa?", interrogava-se o americano em inglês, sem nada compreender. "Porque parámos?"
O homem manifestamente não falava árabe, confirmou Ahmed. Só a mulher. Ela continuava a fitar o rapaz de um modo intenso e o jovem, passada a surpresa de perceber que as suas palavras haviam sido compreendidas, deyolveifr-lhe o olhar sem se mostrar intimidado. Pelo Profeta, nenhuma mulher o faria vacilar!
"O que nos chamaste?", insistiu a turista.
"Chamei-vos o que vocês são!", disse Ahmed, olhando-a nos olhos com uma expressão de desafio.
"O que se passa, sweetie?", voltou o americano a perguntar, pressentindo que algo não estava bem.
"Explica-me."
Sem descolar os olhos de Ahmed, a mulher falou em inglês.
"Este tipo chamou-te cão infiel a ti e prostituta a mim." O homem arregalou os olhos, perplexo e embasbacado, duvidando até de que ouvira bem. "O
quê?"
"E o que te digo, Johnny. Ele insultou-nos." Passado o pasmo inicial, o rosto do americano enrubesceu e, com um gesto rápido e inesperado, esbofeteou Ahmed. Paf.
"Como te atreves?", rosnou, subitamente enraivecido.
Apanhado de surpresa, o rapaz caiu no chão e sentiu o americano aproximar-se.
"Porco árabe!" Seguiu-se um pontapé, que passou de raspão nas costas do guia. "Toma! Quem pensas tu que és?"
O medo de Ahmed tornou-se subitamente fúria.
Ergueu-se de um salto e atirou-se às cegas sobre o americano, socando-o consecutivamente, de qualquer maneira, umas vezes acertando-lhe no rosto ou no corpo, outras atingindo o ar, mas sempre a socar, num frenesim furioso, imparável, louco. Deixou de ver bem, tudo o que registava era uma refrega raivosa, via uma mão, um rosto, o chão, uma loja, um pé, uma mão, tudo numa sequência imparável, numa confusão indescritível, numa cólera descontrolada.
"Cão kafir!", vociferou no meio daquele caos enfurecido. "Que Alá te envie para o fogo eterno!"
Gerou-se um pequeno tumulto em plena rua. Ahmed sentiu inicialmente que a violência do seu ataque apanhara o adversário em contrapé, embora ao cabo dos primeiros golpes ele tenha começado a reagir.
Redobrou a fúria do assalto, numa tentativa de decidir logo a contenda, mas o seu novo ímpeto foi inesperadamente interrompido por duas mãos duras como ferro que o puxaram pelo ar.
"Larga-o!", ordenou uma voz em árabe. "Larga-o!"
Ahmed sentiu o braço direito rodar e quase explodir de dor, preso atrás das costas. Levou um murro no estômago e a dor transferiu-se para aí, aguda e devastadora. Contorceu-se sobre si próprio e bateu com a testa no chão. Sentiu dois pontapés nas costelas e um no nariz. Tentou abrir os olhos e viu tudo vermelho; era o sangue que lhe jorrava abundantemente pela cara. Mas no meio de toda aquela barafunda conseguiu vislumbrar de relance os homens que intervieram e, reconhecendo os rostos sérios e compenetrados, percebeu que estava perdido.
Eram polícias à paisana.
O juiz tinha um ar algures entre displicente e indiferente no momento em que ergueu o martelo de madeira e olhou para o rapaz que, do banco dos réus, o fitava com assustada ansiedade.
"Por ofensas à integridade física de um turista e à integridade moral de uma mulher", proclamou apaticamente, "condeno o arguido, Ahmed ibn Barakah, a três anos de prisão!"
O martelo caiu com estrondo na mesa.
Pak.
Acto contínuo, um polícia puxou-o pelos ombros e Ahmed mal teve tempo de ver a mãe esconder a cara para ocultar as lágrimas, o pai estremecer de vergonha nas bancadas semi-desertas do tribunal e Arif abanar a cabeça de desalento. Num piscar de olhos saiu da sala de audiências e foi arrastado pelos corredores deslavados e opressivos até ao carro celular, onde o aguardavam os outros condenados do dia. Fazia calor, como sempre no Cairo, mas o que lhe ardia nesse dia era a alma. De medo e de indignação.
Sentou-se no carro celular, os olhos perdidos no infinito, enquanto aguardava que chegassem ainda mais condenados e os levassem para a cadeia. Três anos de prisão por ter posto na ordem um kafir e a sua prostituta! Três anos! Mas que país era aquele que dava mais importância a dois kafirun que a um crente? Ainda por cima, ele limitara-se a responder às agressões de um desses cães! Abanou a cabeça, num misto de indignação e de comiseração. Queriam lá ver aquilo? Um kafir já era mais importante do que um crente! Como era possível?! Um kafir tornara-se mais importante do que um crente! Por Alá, onde aquele país já chegara!...
Aos olhos de Ahmed, o seu julgamento resumia-se a uma narrativa de simplicidade arrepiante. O
turista americano não passava afinal de um jornalista que estivera a cobrir a guerra civil no Líbano. Viera ao Cairo com a sua meretriz libanesa, uma cadela cristã decerto apaniguada dos malditos Gemayel, e, por vingança pelo justo correctivo que lhe fora aplicado, usara toda a sua influência para arregimentar a embaixada americana e pressionar a condenação de um crente. O governo, constituído evidentemente por fantoches dos Americanos, vira-se decerto forçado a meter-se ao barulho e pressionara o tribunal. O juiz tinha tido medo e condenara-o. Realmente, só assim se conseguia entender que o juiz desse mais importância a um kafir do que a um crente.
Ah, enquanto aquele governo existisse não se ia a lado nenhum! Não fora aquela gente que tivera o desplante de ir a Al-Quds e fazer a paz com os sionistas? O faraó Sadat dera a cara, mas Mubarak também estivera envolvido na traição, o apóstata! E
o que era o pequeno Ahmed diante de tão grande afronta? Se tiveram a falta de vergonha de irem à terra dos kafirun abraçar os sionistas, o que lhes custava mandar um pobre e humilde crente durante três anos para a cadeia por se ter defendido de um cruzado?
O sentimento de revolta levou Ahmed a pensar numa coisa que um outro turista lhe dissera. Qual fora a palavra que ele utilizara? Democracia, não fora? Ele perguntara se Ahmed gostaria de ter democracia no Egipto. Claro que na altura tinha ido ver essa palavra à enciclopédia. Democracia. Com base no que lera, tinha percebido que isso significava organizarem-se umas eleições e ir toda a gente votar num novo governo.
A ideia, assim à primeira vista, não lhe parecia má de todo. Teria de verificar com um mullab, claro; não com um desviante sufi, mas com um verdadeiro crente. O facto é que, se houvesse eleições, poderia votar contra Mubarak e os seus esbirros e toda aquela miserável corrupção que os arrastava pela decadência. Em vez daqueles vermes, poderiam pôr no governo gente séria e honesta, bons muçulmanos que respei
tassem a sbaria e a vontade de Alá e distribuíssem zakat pelos necessitados e fizessem frente aos kafirun que humilhavam a umma. Sim, talvez fosse disso mesmo que o Egipto precisava. Democracia.
XXI
A vida de Tomás retomou a rotina de sempre. Dava aulas de História na Universidade Nova de Lisboa e fazia consultoria na Fundação Calouste Gulbenkian, curiosamente na mesma rua da faculdade. Aos fins-de-semana ia a Coimbra visitar a mãe ao lar; quando a encontrava mais lúcida levava-a a passear pela Baixinha ou à beira-rio, junto à ponte pedonal.
A novidade na sua vida chegava por telefone.
Rebecca Scott telefonava-lhe com frequência de Madrid para saber se ele tinha conseguido quebrar o segredo da mensagem cifrada que ela lhe mostrara em Veneza ou se obtivera progressos nos seus inquéritos sobre os muçulmanos fundamentalistas em Portugal.
"Descobri alguns sítios em Lisboa onde se fala muito em jihad", anunciou Tomás. "Ai sim? Onde?"
"Os cinemas que passam os filmes do Chuck Norris", gracejou, ecoando a piada de Alcides.
"Olhe que faz mal em levar as coisas para a brincadeira", repreendeu-o a americana do outro lado da linha. "Isto é muito sério!"
As conversas entre os dois limitavam-se às questões do trabalho relacionado com a NEST, mas Tomás tinha a intuição de que ela usava o assunto como pretexto para falar com ele. Era verdade que a intuição nunca fora cr seu forte e poderia até dar-se o caso de ele estar a imaginar coisas, mas era um facto que as conversas telefónicas com Rebecca lhe deixavam essa impressão.
As revelações de Veneza pareceram-lhe na altura de grande gravidade, mas agora, ali na tranquilidade mansa de Lisboa, espreguiçando-se na placidez soalheira dos dias mornos, aquelas ameaças terríveis afiguravam-se-lhe fantasiosas. Para todos os efeitos, decidiu não deixar o assunto morrer por completo. Bem vistas as coisas, a NEST começara a pagar-lhe um salário, modesto é certo, mas suficientemente interessante para o convencer de que tinha de apresentar serviço.
Começou por isso a frequentar as mesquitas com regularidade. Às sextas-feiras o seu poiso principal tornou-se a Mesquita Central, à Praça de Espanha, tão acessível por se encontrar quase ao lado da faculdade e da Gulbenkian. Foi recebido pelos muçulmanos que a frequentavam com um misto de surpresa e satisfação; não era habitual ver por ali gente de olhos verdes.
"Quer tornar-se muçulmano?", perguntaram-lhe com frequência nas primeiras vezes.
"Não, não. Estou aqui só para ver."
Com o tempo começaram a meter-se com Tomás, em particular os moçambicanos e os guineenses que com ele se cruzavam durante as abluções antes da oração.
"Então quando é que o professor declara a sbabada?",
perguntavam-lhe
na
brincadeira,
referindo-se à declaração de aceitação de que existe apenas um Deus e de que Maomé era o Seu Profeta.
De início ria-se e mantinha a versão de que estava ali apenas para ver, mas sentiu que também precisava de se tornar brincalhão e um dia decidiu ir a jogo.
"Ando a pensar nisso", respondeu dessa vez.
Esta réplica foi diferente da habitual, o que suscitou a curiosidade dos seus bem-dispostos interlocutores.
"A sério, pá?"
"Pois", confirmou. "Desde que descobri que os muçulmanos podem ter várias mulheres que não penso noutra coisa!"
Seguiu-se a gargalhada geral, acompanhada de muitas palmadas nas costas.
"Depende das gajas", contrapôs um moçambicano de mãos mergulhadas na água. "Há mulheres que a malta paga para se ver livre delas, caraças!"
Novas gargalhadas.
"Agora a sério", insistiu o historiador. "Existe alguém que seja casado com várias mulheres?"
"Aqui em Portugal?", perguntou um guineense que aguardava a sua vez nas abluções. "Era bom, era!"
"Aqui não há haréns", confirmou o moçambicano, agora a lavar os pés. "O pessoal respeita a lei. Que remédio!"
Tomás descobriu que este ambiente descontraído era o ideal para criar a atmosfera propícia às perguntas de maior alcance sem correr riscos de ofender ninguém. Passou a usar os gracejos cúmplices entre homens, sobretudo a propósito das mulheres, para sondar o terreno de um modo mais eficiente.
"Quem
tem
grandes
vidas
são
esses
fundamentalistas, hem?", passou a dizer na sequência das piadas sobre os haréns.
"Esses é que só obedecem à sharia e casam com todas as miúdas que querem..."
"Podes crer, meu. Podes crer."
"Gostava de conhecer malta dessa. Será que vocês me podem apresentar alguém?"
Sempre que lhes fazia este pedido, os muçulmanos portugueses riam-se.
*
"Só na Arábia Saudita, pá", tornou-se a réplica mais comum.
"Tens de perguntar ao Bin Laden!", era outra resposta habitual.
Só quatro semanas depois de voltar de Veneza, e após mais um telefonema de Rebecca a questioná-lo sobre os resultados do seu trabalho, é que abriu o bloco de notas e fixou os olhos na mensagem cifrada que a Al-Qaeda ocultara debaixo da fotografia pornográfica da ruiva de boca escancarada.
6AY-H A S I M
Começou por ler a linha em voz alta, procurando respeitar as sílabas.
"Seis ay has um ha oito ru." Calou-se, num esforço para discernir o sentido do que lera. "Que raio quererá isto dizer?"
Era um feriado e dispunha de todo o tempo do mundo para resolver aquele mistério. Coçou a cabeça. Assim à primeira vista, aquilo parecia-lhe claramente uma...
Rrrrrrrrrr ...
O som fê-lo endireitar a cabeça. Era o estremecer mudo do telemóvel. Meteu a mão no bolso e extraiu o aparelho. "Está lá?"
"Boa tarde. É o professor Noronha?"
"Sim. Quem fala?" "Daqui Norberto."
Tomás fez um esforço de memória, mas o nome não lhe dizia nada.
"Desculpe, não estou a ver..."
"Norberto Mamede. Sou seu aluno na faculdade, em Estudos Islâmicos."
"Ah!", exclamou, batendo com a palma da mão na testa. "Norberto! Desculpa, tinha a cabeça noutro lado. Está tudo bem, rapaz?"
A voz na linha hesitou.
"Mais ou menos, professor."
"Então? O que se passa?"
Norberto fez uma curta pausa antes de responder.
"O professor lembra-se daquela aula que deu no outro dia, quando nos levou a passear por Alfama e pela Mouraria?" "Sim..."
"Lembra-se de ter feito perguntas sobre os...
enfim, sobre os fundamentalistas?"
O coração de Tomás deu um salto. Sentou-se devagar no sofá e empurrou o auscultador do telefone o mais possível contra o ouvido, para se assegurar de que estava a ouvir bem.
"Sim..."
"Pois... a coisa é que eu recebi agora um telefonema e... não sei bem o que fazer, não sei a quem me dirija.... Lembrei--me da sua conversa no outro dia e decidi ligar-lhe, não sei se fiz bem."
"Fizeste bem, Norberto", assegurou-lhe. "Fizeste bem. Comigo estás perfeitamente à vontade. Conta lá, que telefonema foi esse que recebeste?"
A voz do aluno voltou a hesitar.
"O professor lembra-se do Zacarias?"
"Quem? Aquele moço de barbas que andou lá na faculdade no ano passado?"
"Sim, esse mesmo! Lembra-se dele, não lembra?
Foi ele que me ligou."
"E então?"
"O Zacarias sempre teve a mania que era mais-muçulmano do que o resto do pessoal, mais isto, mais aquilo, chateava-se quando nos via a beber cerveja... enfim, ele era rigoroso no cumprimento dos nossos costumes. Acontece que o Zacarias desapareceu no ano passado e nunca mais deu notícias. Confesso que não liguei muito a isso, o gajo às vezes era até um bocado chato. Mas ontem à noite, estava eu a jantar, tocou o telefone. A minha mãe foi atender e disse que era uma chamada de longa distância para mim. Quando peguei no telefone percebi que se tratava do Zacarias."
"Ah. O que te disse ele?"
"Pareceu-me assustado e queria ver se eu o podia ajudar a voltar a Portugal."
"Mas por que razão estava ele assustado?"
"Acho que os tipos com quem ele anda são fundamentalistas."
"Ai sim?"
"A ligação não estava boa, havia muitas interferências na linha, mas pareceu-me que ele disse uma palavra... enfim, uma palavra que me acagaçou um pouco, confesso. Ainda estou nervoso."
"O quê? O que disse ele?"
Norberto suspirou para ganhar coragem.
"Terroristas."
XXII
A porta da cela era metálica e, quando o guarda a abriu, Ahmed viu um mar de cabeças e de corpos voltar-se na sua direcção; o guarda empurrou-o para o interior da cela e a porta fechou-se atrás dele. Um forte fedor a fezes infestava o ar pesado e viciado da cela. Fazia um calor insuportável e o recém-chegado depressa percebeu que era difícil conseguir mexer-se no meio daquela multidão. Os prisioneiros pareciam enlatados, todos comprimidos uns contra os outros.
"Quem és tu, irmão?", perguntou um dos companheiros de cela, um velho de barbas brancas.
Ahmed apresentou-se e, respondendo ao questionário cerrado a que o submeteram, explicou por que motivo havia sido preso. A dado ponto da narrativa elevou-se entre os restantes prisioneiros um leve clamor de aprovação, em apoio aos insultos e aos murros que haviam estado na origem da detenção.
"Estes kafirun têm de aprender que não podem vir aqui à nossa terra comportar-se como cruzados", observou o ho
mem das barbas brancas, arrancando novo coro de assentimento. "Fizeste bem, irmão."
A cela tinha o piso forrado a azulejo branco, com duas
pequenas janelas quadradas no tecto e uma retrete no canto.
Era realmente difícil mexerem-se naquele espaço, havia gente
a mais. Quando Ahmed comentou o assunto, recebeu como
resposta uma pergunta inesperada:
*
"Tens dinheiro?"
O recém-chegado olhou desconfiado para o homem que lhe fizera a pergunta. "Porque queres saber?"
"Porque o dinheiro compra favores. Tens dinheiro?"
Ainda sem entender o propósito da pergunta, Ahmed extraiu do bolso uma moeda de vinte piastras. Os olhares em redor tombaram na moeda como abutres.
"Não chega", disse o homem. "Tens mais?"
Do bolso saiu com hesitação mais uma moeda de vinte piastras.
"Quarenta piastras. E capaz de chegar." O homem aproximou-se da porta da cela e gritou: "Guarda!
Guarda!"
Instantes mais tarde abriu-se uma janelinha na porta e o guarda, um homem gordo e mal barbeado, espreitou para a cela.
"O que querem?"
"Não se consegue respirar aqui. Abre a porta durante dez minutos, por favor."
"O que ganho eu com isso?"
O homem virou a cabeça e olhou para Ahmed.
"Mostra-lhe."
Percebendo enfim o que se estava a passar, o novo recluso exibiu as duas moedas ao guarda. "Quarenta piastras."
A fechadura rodou com três clacs sonoros, a porta foi aberta e o ar fresco jorrou para dentro da cela como um rio. O interior tornou-se de repente mais respirável e menos abafado e uma frescura agradável acariciou os rostos magros e transpirados.
Mas durou pouco este bálsamo. Dez minutos mais tarde, o guarda aproximou-se e trancou de novo a porta. A armadilha voltara a fechar-se.
O alívio só voltou ao cair da noite, quando a porta da cela se abriu de novo e os prisioneiros foram encaminhados como cordeiros pelos corredores da prisão. Assustado, Ahmed bateu no ombro do prisioneiro que caminhava à sua frente e perguntou-lhe para onde iam.
"É o jantar."
Desembocaram de facto num salão com uma grande mesa e três guardas sentados nas pontas. Os reclusos formaram uma fila e, um a um, aproximaram-se dos guardas. Quando chegou a vez de Ahmed, o guarda, percebendo que tinha diante dele um novo preso, olhou-o dos pés à cabeça, como se o inspeccionasse.
"Ya ibn al Kalb, ismakeb?", perguntou. "Filho de um cão, como te chamas?"
"Ahmed ibn Barakah."
O guarda estendeu-lhe um prato de alumínio e mandou-o sentar-se. Um cozinheiro aproximou-se com um grande tacho e despejou-lhe arroz, couves e queijo de ovelha no prato. Como não lhe entregaram talheres, Ahmed viu-se forçado a comer com as mãos; mas não se incomodou. Afinal, era assim que o Profeta comia. E ele tinha muito orgulho em comer como o mensageiro de Deus.
No final do jantar, os reclusos foram devolvidos à sua cela, situada no segundo andar do edifício. A sensação de claustrofobia voltou quando a porta foi fechada. Era já noite cerrada e os presos deitaram-se no chão de azulejo, tentando dormir. A impressão de que não passavam de sardinhas enlata-das tornou-se nesse instante mais forte e, esquadrinhando a cena em torno dele, Ahmed apercebeu-se de que cada pessoa só tinha espaço suficiente para ocupar dois azulejos e meio. Sentia pés a tocarem-lhe na cabeça e os seus próprios pés encontravam-se à cabeça de outra pessoa. Tentou abstrair-se disso e adormecer.
Não conseguiu. Por mais que se esforçasse por dormir, o facto é que permanecia acordado. Que estava ali a fazer?, interrogava-se continuamente.
Como fora possível tudo aquilo ter acontecido?
Queria ir para casa, queria frequentar a madrassa, queria percorrer o souq em busca de clientes para a loja dos cachimbos de água, queria deleitar-se com a figura de Adara à hora do almoço na cozinha de Arif.
Por Alá, perdera tudo isso! E agora? Que seria da sua vida? Sentiu as lágrimas a inundarem-lhe os olhos e os soluços a escaparem-se-lhe pela boca.
Tudo aquilo era culpa do governo, concluiu. Seria admissível que, no seu próprio país, um kafir fosse mais importante do que um crente?
Dava voltas e mais voltas no seu estreito lugar, o sentimento de injustiça a ensombrar-lhe o coração.
No tempo do Profeta, pensou, nada daquilo teria acontecido. Se levasse o seu caso directamente ao apóstolo de Deus, decerto Maomé não só o ilibaria de toda a culpa como o cumprimentaria por não ter deixado que um kafir o humilhasse! Quantos crentes haviam sido perdoados por terem morto muitos kafirun? Não seria ele, Ahmed, perdoado por ter defendido a sua honra? Não, em definitivo o governo estava nas mãos dos kafirun!
A certa altura sentiu a bexiga apertar e teve necessidade de urinar. Levantou-se e saltitou entre os corpos deitados até chegar junto da retrete. O
fedor a fezes era ali especialmente forte; havia uma nuvem de moscas a zunir em torno da latrina e Ahmed teve pena dos que estavam deitados naquela zona. Como era possível dormir ali? E verdade que junto à retrete havia mais espaço do que no resto da cela, o que não admirava: todos iam para o mais longe possível da imundice. Mesmo assim, e porque havia gente a mais, alguns não encontravam outro espaço que não fosse aquele.
Ahmed urinou longamente para o buraco fétido e, a tarefa cumprida, foi a saltitar de regresso ao seu lugar. Quando lá chegou, porém, percebeu que o seu espaço desaparecera, os corpos tinham-se encostado de modo a ocupar a vaga que deixara aberta.
Procurou noutro canto, mas era a mesma coisa. Não havia espaço. Andou de um lado para o outro, o desespero a crescer, mas estava toda a gente encostada, não havia azulejo visível que pudesse ocupar.
"Queremos dormir", protestou uma voz, incomodada com aquele vulto que andava por toda a parte.
"Não tenho lugar", queixou-se Ahmed.
Seguiu-se um coro de chius irritados.
"Vai-te deitar!"
O novo recluso olhou mais uma vez em redor, já desesperado. Foi então que percebeu como aquilo funcionava. Claro que havia espaço. Claro. Era onde se deitavam aqueles que não encontravam lugar.
Resignado, derrotado e horrorizado, Ahmed saltitou devagar entre os corpos por uma última vez e, com um esgar enojado, deitou-se no único espaço que havia disponível.
Ao lado da retrete.
Quando acordou na manhã seguinte, Ahmed iniciou uma rotina que se prolongaria enquanto estivesse na cadeia de Abu Zaabal. Os presos da sua cela foram arrebanhados pouco depois da oração do amanhecer e levados para a cantina, onde lhes foi servido o pequeno-almoço. Eram favas cozidas com pão. Logo nessa primeira manhã, ao mergulhar os dedos no empapado das favas, sentiu um objecto sólido escondido no meio da comida. Estranhou e extraiu o objecto do meio das favas.
"O que é isto?", perguntou, exibindo o que parecia ser um
pequeno tubo.
»
Os parceiros do lado, dois irmãos chamados Walid, riram-se.
"Uma beata", disse um deles.
Sem acreditar, Ahmed aproximou o tubo do nariz e cheirou. Tinha o odor a cinza e a tabaco; era realmente uma beata.
"Que porcaria!"
"São os guardas", acrescentou o outro irmão Walid, encolhendo os ombros. "Põem nojeiras na comida para nos chatearem..."
Ahmed aprendeu logo ali que as refeições em Abu Zaabal eram sempre uma caixinha de surpresas.
Podia não encontrar nada, como acontecera na véspera ao jantar, embora também houvesse sempre a possibilidade de aparecerem as coisas mais inesperadas. O mais comum eram pequenas pedrinhas ou areia misturada com comida, mas corriam histórias de reclusos que tinham ouvido guardas gabarem-se de escarrar para a panela quando estavam constipados.
O pior, porém, vinha a seguir ao pequeno-almoço.
Os presos eram levados para um pátio no segundo andar do edifício onde os guardas os obrigavam a correr às voltas, no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. Se alguém abrandava era de imediato insultado e açoitado por um grande cinto nas mãos de um guarda. Ahmed não percebia o propósito daquela cena, mas corria como os outros e, também como os outros, levava uma ocasional vergastada.
Só ao final da manhã o grupo era reconduzido à cela. Não foram necessários muitos dias para Ahmed começar a encarar aquele reduzido espaço sobrepovoado, irrespirável e malcheiroso como uma bóia de salvação. O que quando chegou lhe parecia absolutamente insuportável foi-se-lhe afigurando pouco a pouco como um verdadeiro oásis. Já lhe haviam explicado que aquela cela fora concebida para vinte pessoas, mas estavam ali sessenta; a informação escandalizara-o na altura, mas já deixara de o chocar agora.
A cela tornara-se um refúgio.
Viveu cinco meses assim. Dormia mal, a comida não prestava, sofria com saudades da vida que perdera e de vez em quando era agredido pelos guardas.
Preencheu uma requisição especial e a família foi autorizada a enviar-lhe pequenas quantias de dinheiro, o que lhe permitia comprar cigarros, verduras, queijo e melancias na cantina. Como ninguém tinha faca, as melancias eram esmagadas contra o chão para poderem ser abertas.
Ao longo deste período a única coisa que o alegrou foi uma carta que recebeu de Arif. O antigo patrão endereçou-lhe uma missiva terna e calorosa, chamando-lhe meu filho e asseguran-do-lhe que no seu coração nada mudara e que o acordo que haviam feito três anos antes permanecia válido. Adara estava--lhe prometida e seria sua, acontecesse o que acontecesse.
Até que um dia, a meio de uma corrida em círculos no pátio com os guardas a vergastarem com os cintos os reclusos que se atrasavam, um funcionário da cadeia apareceu no local.
"Ahmed ibn Barakah!", chamou, lendo o nome num papel. Como ninguém respondeu, repetiu o nome, mas dessa vez mais alto: "Ahmed ibn Barakah!"
Ahmed arfava pesadamente, o rosto a escorrer suor e as roupas coladas ao corpo com a transpiração, e só à segunda chamada percebeu que era consigo. O que lhe quereriam dessa vez? Teria feito algum disparate? Iria ser sujeito a mais alguma punição? Ainda pensou em deixar-se ficar, em fazer--se despercebido, mas depressa concluiu que isso seria pior; se o viessem a castigar, castigá-lo-iam com .mais -durezft por desobediência.
Abrandou por isso, e, ofegante, apresentou-se diante do funcionário que berrara o seu nome.
"Sou eu", disse por entre golfadas de ar, o peito a inchar e a esvaziar-se. "Ahmed ibn Barakah."
"Vai à tua cela buscar as tuas coisas e apresenta-te dentro de cinco minutos no pátio central", ordenou, virando-se de imediato para o pátio de modo a continuar a chamada: "Mohammed bin Walid!"
Foi assim, sem perceber bem o que se passava, que Ahmed foi metido num carro celular, juntamente com outros oito reclusos, e pelas grades da janelinha viu o complexo prisional de Abu Zaabal ficar para trás. Vislumbrou o edifício da prisão, mas também o hospital e a escola, com a aldeia de Abdel Moneim Riad lá ao fundo, até que a nuvem de pó erguida pelo carro tudo tapou e os prisioneiros se acomodaram nos seus lugares.
Entre eles estavam os irmãos Walid.
"Será que nos vão libertar?", perguntou um deles, esperando contra a esperança.
"Não pode ser", disse Ahmed, mais para manter as expectativas baixas. "Ainda me falta cumprir pena."
"A mim também", disse o segundo irmão.
"E a mim", acrescentou um outro preso.
Depressa perceberam que todos os que iam no carro celular ainda tinham tempo para cumprir, o que lhes ensombrou a esperança. Se não era para os libertar, para que os haviam tirado de Abu Zaabal?
Um dos reclusos que seguia no carro celular olhou para os seus companheiros um a um e o olhar iluminou-se-lhe.
"Vocês já repararam numa coisa?"
"O quê?"
"Somos todos da Irmandade Muçulmana." Olharam uns para os outros, reconhecendo a sua filiação no grupo radical islâmico. "Pelo Profeta, tens razão!"
Ahmed afinou a voz. "Eu não."
Olharam-no com curiosidade. "O
que fizeste para ser preso?"
"Bati num kafir", disse, com orgulho. "E o tribunal, em vez de me proteger a mim, um crente, protegeu o kafir, que Alá o amaldiçoe para sempre!"
Um coro de aprovação percorreu o carro celular.
"Falas e comportas-te como um verdadeiro crente, meu irmão", declarou um dos seus companheiros de viagem com uma certa solenidade respeitosa. "Podes não ser da Irmandade Muçulmana, mas é como se fosses."
A descoberta de que os que ali seguiam pertenciam à mesma organização islâmica ou partilhavam as mesmas ideias deixou-os algo apreensivos.
Tornara-se evidente que o facto de todos respeitarem o Alcorão e a sunnab do Profeta tinha sido um critério para serem seleccionados e retirados de Abu Zaabal. Isso levantava importantes questões. Que se passava? O que lhes iriam fazer?
Para onde seguiam?
Com crescente ansiedade, puseram-se a espreitar lá para fora, tentando descortinar o caminho.
Perceberam que desciam pela província de Qaliubiya na direcção do Cairo.
Duas horas depois já a grande cidade havia ficado para trás e acercavam-se de Maadi, a sudeste da capital. Foi então que repararam numa tabuleta com a inscrição.
Tora.
"Que Alá Ar-Rabim, o Misericordioso, se apiede de nós", murmurou um dos reclusos ao ver a inscrição.
"Porquê?", alarmou-se Ahmed, interrogando-o com o «lhar. "Conheces este lugar?"
"Sim."
"E então? Para onde vamos?"
O homem que falara afastou-se da janela do carro celular e sentou-se no seu lugar com um suspiro prolongado, os olhos baixos e conformados, o ânimo pesado.
"Para o inferno."
XXIII
Optou de início por manter secreta a informação.
Rebecca voltou a ligar de Madrid, mas Tomás nada lhe disse sobre a conversa com Norberto. Queria primeiro apurar algumas coisas e certificar-se dos factos antes de revelar o que quer que fosse.
A primeira prioridade foi localizar a família de Zacarias. Norberto não tinha o contacto do seu antigo colega, que lhe ligara de um número não identificado, pelo que o professor precisava de encontrar outro caminho. Procurou as fichas dos alunos do ano anterior e folheou-as até chegar ao registo do estudante desaparecido. A pequena folha rectangular com o logótipo da faculdade identificava Zacarias Ali Silva e tinha colada ao canto uma fotografia tipo passe colorida, mostrando um rosto coberto por uma barba negra encaracolada que o envelhecia prematuramente.
Tomás pegou no telemóvel e ligou para o número de telefone registado na ficha.
"Está lá?", respondeu uma voz feminina do outro lado da linha.
"Bom dia, minha senhora. Será que posso falar com o Zacarias?"
"O Zacarias não está."
"Daqui fala o professor Noronha, da Universidade Nova de Lisboa. Tenho muita urgência em chegar à
«fala ocm o Zacarias. Será que me pode dizer onde o posso localizar?"
"O meu filho não se encontra no país."
"A senhora é a mãe?"
"Sou, sim."
"Muito prazer, minha senhora. Eu dei aulas ao Zacarias no ano passado e a senhora está de parabéns, tem um filho muito esperto."
A voz do outro lado quase ronronou de prazer.
"Obrigada."
"Quando é que o Zacarias volta?" "Só daqui a uns meses."
"Ah, que maçada! Tenho tanta urgência em falar com ele... Não haverá nenhuma maneira de o contactar?"
"Bem... o meu filho foi estudar para o Paquistão.
Agora é um pouco difícil chegar até ele."
"Mas o Zacarias não deixou nenhum contacto?"
"Deixou, claro."
"E será que... que mo poderia dar?" A mãe fez uma pausa de hesitação antes de responder. "Antes de partir, o meu filho pediu-nos que não lhe ligássemos."
"Ai sim? Porquê?"
"Oh, manias dele! Sabe como é, esta rapaziada hoje em dia quer é fazer o que lhe apetece..."
"Então como fala a senhora com o seu filho?"
"O Zacarias às vezes telefona-nos."
"E o contacto que ele lhe deui? Não o usa?"
"Este número é só para coisas muito urgentes. Ele foi muito insistente. Só deveríamos ligar-lhe em caso de uma grande emergência."
"Bem... este caso é uma granide emergência. Será que mo pode dar?"
A voz feminina voltou a fazeir uma pausa.
"Isso não sei."
Tomás respirou fundo. Percebeu que teria de ser persuasivo se queria chegar a algum ladio.
"Oiça, minha senhora", dissie, a mente freneticamente à procura da mentira mais convimcente e sedutora que conseguisse imaginar.
"Eu preciso mesmo de chegar à fala com o Zacarias.
Abriu-se agora uma..,, uma grande oportunidade profissional para ele e temos de actuar com enorme rapidez."
A senhora adoptou um tom distante, desconfiado até.
"Será que me pode explicar dlo que se trata?"
A mentira teria mesmo de ser boa, percebeu Tomás.
"Bem, passa-se o seguinte. Eu dou aulas na faculdade, mas também trabalho na Gulbenkian. A fundação está ligada ao negócio do petróleo, não sei se sabe..."
"Toda a gente sabe."
"Acontece que eles estão à pnocura de uma pessoa versada em estudos islâmicos para chetfiar o seu departamento de relações com o mundo islâmico., Sabe como é, a Gulbenkian acha que nada melhor do que urm muçulmano para falar com outro muçulmano, parece que issso facilita os negócios lá no Médio Oriente. A pessoa que deísempenhava essa função, um muçulmano muito respeitado, mtorreu subitamente e eles precisam de um substituto com girande urgência. Está a ver, trata-se de um trabalho que lidai com muitos milhões, não é verdade? Como calcula, a responsabilidade é enorme e... e estamos a falar de um trabalho principescamente pago." Disse estas últimas palavras num tom de confidência, como se estivesse a partilhar com ela um grande segredo. "Ora eles vieram falar comigo e eu sugeri-lhes o Zacarias.
Agora, se eu não o encontrar... lá se vai a oportunidade..."
O silêncio voltou ao outro lado da linha, desta feifa um pouco mais prolongado do que as pausas anteriores.
"Eu vou ali buscar o número do Zacarias."
Os algarismos já estavam registados no bloco de notas e Tomás ficou um instante a contemplá-los.
Depois levantou-se e foi buscar a lista telefónica.
Localizou as páginas das ligações internacionais e só parou quando chegou ao Paquistão. Olhou de novo para o número que a mãe de Zacarias lhe havia dado.
00-92-42-973...
O indicativo nacional, 92, era mesmo do Paquistão.
Fixou o indicativo de área e percorreu a lista dos indicativos por cidade, obviamente estabelecida por ordem alfabética.
Faisalabad 41
Islamabad 51
Karachi 21
Lahore 42
Reteve o olhar neste último indicativo, 42, e verificou mais uma vez o número que lhe havia sido dado. 00-92-42-973... Lahore.
O número de emergência de Zacarias era de Lahore. Conhecia a cidade de nome e de múltiplas referências históricas, mas percebeu que não era capaz de a situar no mapa. Pegou no atlas e procurou as páginas da Ásia. Encontrou o Paquistão e deslizou o indicador até Lahore. Ficava perto da fronteira com a índia, constatou.
Ainda hesitou em relação ao que deveria fazer de seguida. A hipótese mais simples era entregar já o assunto a Rebecca e ao seu pessoal da NEST. Mas, se calhar, o melhor seria mesmo certificar-se de que estava numa pista correcta, não se fosse dar o caso de lançar um falso alarme. Poderia ser embaraçoso.
Além do mais, Zacarias conhecia-o a ele, não a uns americanos que lhe aparecessem pela frente.
Vencendo as derradeiras reticências, pegou no telemóvel e digitou o número. Da linha vieram os sons das ligações a serem estabelecidas e finalmente do aparelho a chamar.
Trrrr-trrrr... trrrr-trrrr...
"Salaam", soltou uma voz masculina do outro lado.
"Hello?", perguntou Tomás em inglês. "Será possível falar com Zacarias Silva, por favor?" "Muje angrezee naheeng aateel"
O homem não falava inglês, percebeu. Tentou por isso em árabe, mas a resposta veio novamente em urdu. "Kyaap aap ko urdu atee hay?"
O português suspirou, impaciente com aquela conversa de surdos. Assim não iria lá.
"Zacarias Silva", disse, repetindo a seguir o nome próprio sílaba a sílaba. "Za-ca-ri-as!"
"Zacareya? Zacareya?"
"Isso! Isso!", entusiasmou-se. "Ele está?"
O paquistanês retorquiu com uma algaraviada em urdu tão longa que deixou Tomás sem saber como responder.
"Zacarias!", foi tudo o que conseguiu dizer mal o outro lhe deu oportunidade. "Vá chamá-lo, por favor!
Zacarias!"
Uma nova barreira cerrada em urdu encheu o telefone. Quando Tomás já desesperava, porém, o homem deixou de falar e a linha permaneceu em suspenso.
"Está lá?", chamou o historiador, sem perceber bem o que se passava. "Está lá? Alô!"
O silêncio prolongou-se e o português ficou na dúvida sobre o que fazer. Deveria aguardar? Seria melhor desligar e tentar outra vez? A chamada teria caído? Na verdade, não tinha a menor ideia de qual o melhor procedimento.
"Está sim?"
»
A linha parecia morta. A medida que o silêncio se prolongava, Tomás ia-se inclinando para a possibilidade de desligar e ligar de novo. Quando o ia a fazer, todavia, a ligação animou-se.
"Salaam'", disse uma nova voz do outro lado, mais suave do que a anterior.
Talvez este falasse inglês, pensou Tomás, esperançado.
"Hello? Queria falar com Zacarias Silva, por favor."
Detectando o Zacarias Silva pronunciado à maneira portuguesa, a voz mudou inesperadamente para português.
"Sou eu. Quem fala?"
"Zacarias Silva?"
"Sim, sou eu."
"Daqui Tomás Noronha, o teu professor em Lisboa.
Estás--me a ouvir bem?"
"Sim, sim. Estou a ouvir. O que se passa?"
"Zacarias, o Norberto falou comigo e parece que estás a precisar de ajuda. Diz-me o que é preciso fazer e eu farei."
Fez-se um curto silêncio do outro lado.
"Professor, não posso falar agora", disse Zacarias, tão depressa que ia atropelando as palavras. "Depois ligo-lhe."
Click.
A chamada foi desligada.
Manteve o telemóvel por perto durante o resto do dia, sempre preocupado com a possibilidade de receber uma chamada de Zacarias. Nem sequer nas aulas desligou o aparelho. Sentia-se quase como um miúdo apaixonado, tão ansioso pelo prometido telefonema da namorada que chegava a suspirar.
Sempre que o telemóvel tocava, metia a mão no bolso e agarrava-o com uma rapidez expectante, para se sentir desapontado logo a seguir, ao constatar que a chamada afinal não era do antigo aluno.
"Você anda estranho", constatou Rebecca, a autora de uma das chamadas que Tomás recebeu entretanto. "Passa-se alguma coisa?"
"Por acaso, passa."
"Ai sim? O quê?"
"Tenha calma", riu-se ele. "Logo que tenha alguma informação mais concreta digo-lhe, está bem?"
Rebecca soltou um grito de excitação. "Não me diga que descobriu alguma coisa!" "Tenha calma..."
Calma era, porém, um bem de que o próprio Tomás não dispunha em abundância por aqueles dias.
Permaneceu atento ao telemóvel durante dois dias sem que nada acontecesse, o que o deixou ainda mais enervado. Que se passaria? Que segredos eram aqueles que Zacarias escondia? Do que tinha ele medo? Porque falara ele em terroristas quando tinha ligado a Norberto?
Com o ex-aluno teimosamente silencioso, o historiador começou a recear ser ultrapassado pelos acontecimentos. Nessa noite, quando se foi deitar, decidiu abrir o jogo com Rebecca logo na manhã seguinte. No fim de contas, raciocinou, ela e a NEST
é que tinham os meios para chegar a Zacarias.
Crrrrrrr Crrrrrrr Crrrrrrr
O telemóvel acordou-o a meio da noite. Olhou estremunhado para o enorme mostrador digital do despertador pousado na mesinha de cabeceira e viu as horas exibidas a âmbar fluorescente. 04:27
Esticou o braço e agarrou o aparelho.
"Está sim?", atendeu, sonolento.
"Professor Noronha?"
A voz distante despertou-o como se naquele jnomanto o tivessem encharcado de água gelada.
Endireitou-se de imediato na cama, de repente muito alerta.
"Sim, sou eu", confirmou. "Es tu, Zacarias?"
"Não tenho muito tempo para falar", disse a voz.
"O professor estava a falar a sério quando disse que me ajudava?"
"Sim, absolutamente. O que precisas que eu faça?"
"Preciso que me tire daqui!"
"Queres dinheiro para comprar uma passagem de avião?"
"Eu tenho dinheiro", respondeu Zacarias. "O
problema é que eles desconfiam de mim e têm-me debaixo de olho. Se eu for à estação de comboios ou ao aeroporto, eles descobrem."
Tomás teve vontade de perguntar quem eram eles, mas conteve-se. O tom de urgência que sentia na voz do antigo aluno mostrava-lhe que Zacarias não dispunha de muito tempo para falar, pelo que teria de se limitar à informação útil.
"Então que queres que eu faça?"
"Não sei bem. Preciso de protecção para sair."
"Queres que vá aí?"
"E perigoso, professor..."
"Não te preocupes comigo. Estás em Lahore, não estás?" "Sim."
"Então encontramo-nos exactamente de hoje a oito dias ao meio-dia, aí em Lahore." Abriu a gaveta da mesa-de--cabeceira e tirou um lápis. "Diz-me em que sítio."
Zacarias fez uma pausa, claramente a tentar escolher um ponto de encontro.
"O forte da cidade velha", decidiu. "Sabe onde é?"
Tomás tomou nota da referência.
"Não sei, mas vou descobrir. Encontramo-nos então no forte da cidade velha de Lahore, ao meio-dia, precisamente daqui a uma semana."
"Combinado." Fez-se um súbito silêncio na linha, como se o ex-aluno quisesse acrescentar mais alguma coisa. "E... professor?"
"O que é, Zacarias?"
"Tenha muito cuidado."
XXIV
Os portões abriram-se em dois e revelaram um complexo prisional absolutamente gigantesco. Tora incluía quatro prisões e Ahmed e os seus companheiros de viagem foram levados para uma delas. O elemento da Irmandade Muçulmana que vira o nome de Tora inscrito na tabuleta contemplou lugubremente o edifício, identificando-o.
"Mazra Tora."
O nome foi instantaneamente assimilado por todos os outros presos, mas extraiu de Ahmed uma expressão vazia. "Conheces?"
"E a cadeia para onde vão os nossos irmãos."
A vida em Abu Zaabal havia sido um completo inferno e Ahmed estava convencido de que, dissessem o que dissessem, nada poderia ser pior.
Mas enganava-se. Os primeiros dias em Tora revelaram-lhe que o inferno tinha diversos níveis e que Mazra estava talvez situada no patamar mais profundo.
Os recém-chegados foram levados para uma das alas da prisão e depressa perceberam que se tratava de um sector especial. O grupo proveniente de Abu Zaabal foi atirado para uma cela imunda e, horas depois, os guardas foram buscar um deles.
"O que será que lhe querem?"
Ninguém foi capaz de responder.
"Vamos esperar para ver", sugeriu o mais velho do grupo.
A resposta foi dada duas horas depois, quando o seu companheiro reapareceu, ensanguentado e quase incapaz de falar. Foi nesse instante que perceberam que aquela era a ala dos interrogatórios.
Depois de ver o estado em que o preso viera e consciente do que o esperava, o segundo recluso a ser chamado resistiu e tentou escapar aos carcereiros. Foi espancado logo ali, à frente dos companheiros, e arrastado pelos cabelos para fora da cela.
"Já vais aprender a obedecer", rugiu um dos guardas que o levaram.
O segundo preso voltou horas depois numa maca.
Trazia alguns dentes partidos, os olhos inchados e as mãos ensanguentadas. Seguiu-se outro recluso e outro ainda, até que, já na madrugada do dia seguinte, Ahmed sentiu mais uma vez a porta da cela reabrir-se, dois guardas a entrarem e atirarem para o chão o homem que haviam acabado de interrogar, e aproximarem-se e pararem à sua frente.
"É a tua vez."
Como um autómato, quase sem sentir as pernas e com as mãos subitamente a tremerem-lhe, Ahmed ergueu-se do seu lugar e acompanhou-os para fora da cela. Caminhava num transe, sem pensar, sabendo o que o esperava mas entregando-se ao destino, resignado, como se deixasse a sua vida nas mãos de Alá Ar-Rabim Al-Halim Al-Karim - o Misericordioso, o Clemente, o Benévolo.
A sala estava caiada de branco, com poças de sangue no chão e manchas avermelhadas na parede.
Havia uma cadeira no centro, com correias para prender braços e pernas, e uma máquina eléctrica ao lado. Um homem gordo e ^transpirado, de aspecto brutal e com barba rala, aproximou-se dele.
"Despe-te!", ordenou.
Olhando de relance para a salinha, o coração aos saltos e todo o corpo a tremer quase em convulsões, Ahmed hesitou. "O que... o que me vão fa..." Paf.
Uma estalada violenta incendiou-lhe o
rosto. "Despe-te."
O preso tirou de imediato as roupas até ficar nu. O
homem gordo puxou-o pelo cabelo e obrigou-o a sentar-se na cadeira. Os guardas que o tinham ido buscar à cela apertaram-lhe as correias aos braços e às pernas, imobilizando-o no assento, e retiraram uns eléctrodos da máquina ao lado, fixando-os aos testículos de Ahmed. Quando terminaram, o homem gordo posicionou-se diante do recluso com uma grande pasta nas mãos.
"Como te chamas?"
"Ahmed ibn Barakah."
O homem abriu a pasta e folheou os papéis até encontrar o que queria. Parou e leu durante uns instantes
"Estou aqui a ler o teu dossiê", murmurou, enquanto percorria o documento com os olhos. "Diz aqui que és um radical." Fitou o preso com os olhos muito arregalados, como quem sabe a verdade e não admite que lhe mintam. "E verdade?"
O
coração
de
Ahmed
saltava-lhe
descontroladamente no peito. Sabia que tinha de responder a cada pergunta sem cometer uma falha, mas não percebia com exactidão o que lhe queria aquele homem. "É verdade?"
O preso engoliu em seco. Precisava de responder, mas tinha medo de falar, não fosse dizer a coisa errada.
"Eu... eu sou um crente", balbuciou por fim.
"Acredito em Alá Ar-Rahman Ar Rabim, o Beneficente e o Misericordioso. Sou testemunha de que não há nenhum Deus senão Alá, sou testemunha de que Maomé é o Seu profeta."
O homem gordo mudou a perna de apoio.
"Todos acreditamos em Alá e somos testemunhas de que não há nenhum Deus senão Alá", retorquiu, a voz no limite da paciência. "Mas aqui quem manda é Alá Al-Hakam, o Juiz, e o que eu quero saber é se és ou não um radical."
"Não sei o que é um radical", tentou Ahmed argumentar, num esforço para contornar a questão.
"Sou um crente, sigo as ordens de Alá no Alcorão e a sunnak do..."
Uma dor violentíssima subiu-lhe do ventre, como facas a dilacerá-lo; a dor era tão forte que o cegou, enchendo-lhe a visão de luzinhas. Contorceu-se na cadeira para tentar dobrar-se, mas as correias eram resistentes e mantiveram-no no seu lugar.
"Es ou não um radical?"
Percebeu que o espaço para negociar tinha terminado e decidiu que diria tudo o que lhe pedissem. "Sim... sim, sou um radical." "Pertences à Irmandade Muçulmana?" "Não."
A dor voltou, imensa e poderosa, e Ahmed quase perdeu os sentidos. Sentiu água fria ser-lhe despejada pela cabeça e, reabrindo os olhos, viu o homem gordo a mirá-lo.
"Pertences à Irmandade Muçulmana?", perguntou ele de novo.
"Não."
"Mas vinhas com eles de Abu Zaabal."
"Eu... eu vim com quem me puseram no carro. Nem sabia... nem sabia quem eles eram."
"Não os conhecias em Abu Zaabal?"
"Só... só de vista. Dois... dois deles eram da minha cela em
Abu Zaabal."
#
"Quem?"
"Os irmãos... os irmãos Walid."
O homem gordo consultou os documentos que tinha na mão e assentiu com a cabeça; pareceu aceitar a resposta. Porém, depressa ergueu de novo os olhos e fixou-os no recluso.
"E a Al-Jama'a alTslamiyya? Pertences a ela?"
Era uma pergunta muito perigosa, percebeu Ahmed. Uma facção da Al-Jama'a era a responsável pela morte de Sadat e todo o movimento se tornara objecto de cerrada perseguição pelo governo.
Qualquer associação sua a esta organização seria explosiva, devastadora.
Abanou a cabeça, enfático.
"Não. Não pertenço à Al-Jama'a."
Mais uma explosão de dor e de cegueira e de luzes.
O sofrimento era incrivelmente doloroso, como se mil facas pontiagudas o espetassem no corpo. Desta feita perdeu mesmo os sentidos.
Voltou a si com uma impressão fria e húmida na cara; tinham-lhe novamente atirado água à cabeça.
"Volto a perguntar: pertences à Al-Jama'a al-Islamiyya? Diz a verdade!"
"Não!" negou de novo, abanando veementemente a cabeça. "Não!"
O homem gordo apontou para os papéis que tinha nas mãos.
"Diz aqui que há testemunhas de que tinhas simpatias." "Quais... quais testemunhas? Não sei de nada, juro! Pelo Profeta, juro que não sei de nada!"
"Mentes!"
"É verdade! Não sou da Al-Jama'a! Juro!" "Não estiveste envolvido no martírio do presidente?"
"Eu?", surpreendeu-se Ahmed, arregalando os olhos horrorizados. "Claro que não! Claro que não!" "Podes prová-lo?"
"Eu... eu tinha doze anos quando isso aconteceu!
Claro que não estive envolvido!"
"Mas tinhas amigos da Al-Jama'a!"
"Eu tinha muitos amigos. Se calhar alguns eram da Al-Jama'a... não sei."
O homem folheou mais umas páginas, os olhos sempre a percorrer a informação ali registada.
"Dizem que te tornaste radical."
"Sou um crente. Sigo as instruções de Alá no Alcorão e a sunnah do Profeta. Se isso é ser um radical, sou um radical."
O interrogador voltou a estudar os documentos que tinha na mão e fixou a atenção na data de nascimento.
"Pois, nasceste em 1969, não foi?" Coçou os pelos da barba enquanto fazia as contas. "Realmente, tinhas apenas doze quando o presidente foi martirizado." Leu mais algumas linhas dos documentos e ergueu a cabeça quando descobriu algo que lhe despertou a atenção. "Olha lá, porque deixaste de frequentar a tua mesquita?"
Nesse instante Ahmed percebeu, surpreendido, que a polícia andara a investigá-lo com algum pormenor. Até haviam feito perguntas sobre ele na mesquita!
"Qual mesquita?", perguntou, sabendo muito bem a qual o seu interlocutor se referia mas procurando ganhar tempo para reordenar os seus pensamentos.
"A do teu bairro. Porque deixaste de ir lá?"
"Porque... porque não era o verdadeiro islão o que ali se ensinava."
O homem gordo levantou o sobrolho. *•
"Ai não? Então era o quê?"
"Era uma versão cristianizada do islão, uma versão feita para agradar aos kafirun. Aquilo não era o verdadeiro islão."
"Então o que é o verdadeiro islão?"
"E o que está no Alcorão e na sunnab do Profeta."
"Nessa mesquita não ensinavam o Alcorão e a sunnab}"
"Sim, claro", reconheceu. "Mas só uma parte. Havia coisas que não eram ensinadas."
"Tais como?"
"Que não devemos ser amigos dos Povos do Livro, por exemplo. É o que Alá diz no Alcorão e o que algumas pessoas que se afirmam crentes parecem querer ignorar. Ou que temos de emboscar e matar os idólatras onde os encontrarmos, tal como Alá ordena no Livro Sagrado. Nenhuma dessas coisas era ensinada nessa mesquita, o mullab fingia que não estavam lá."
O homem gordo respirou fundo e atirou os documentos para cima de uma mesinha. Depois olhou para os seus homens e fez com a cabeça um sinal na direcção de Ahmed.
"Levem-no e tragam-me outro."
XXV
Coff! Coff!
O cheiro ácido e penetrante da poluição penetrou-lhe nas narinas e invadiu-lhe os pulmões.
Tomás tossiu, aflito, e olhou lá para fora. Uma nuvem violeta erguia-se das ruas, pairando sobre os milhares e milhares de motos e automóveis que enchiam como formigas as artérias poeirentas de Lahore. O pior, percebeu, eram os auto-riquexós, cujos escapes exalavam rolos densos de fumo; pareciam chaminés de fábricas montadas sobre rodas.
Coff! Coff!
Os pulmões desfaziam-se em tosse.
"Por favor", pediu ao condutor, já a sentir-se asfixiar. "Será que pode fechar as janelas?" "Yes, mister'", assentiu o taxista.
O paquistanês rodou o manipulo até fechar a janela da sua porta e, com o carro sempre em movimento e uma mão ao volante, inclinou o corpo para o outro lado e começou a rodar o outro manipulo.
"Cuidado!", gritou Tomás ao ver o táxi ir na direcção de um auto-riquexó.
Uma guinada rápida evitou a colisão no último momento. O taxista voltou a cabeça para trás e exibiu os dentes amarelos, no que parecia ser a caricatura de um sorriso.
"Não se preocupe, mister. Aqui em Lahore é sempre assim."
0
As janelas ficaram fechadas e o interior do táxi pareceu enfim selado, uma caixa respirável no meio de uma nuvem incrivelmente vasta de poluição.
Tomás inspirou fundo, aliviado.
"Puf! Agora está-se bem melhor."
Olhou lá para fora e examinou o emaranhado urbano. Lahore era uma cidade plana e poeirenta, mas sobretudo caótica. Tinha o casario baixo, os edifícios cor-de-tijolo inacabados e uma permanente nuvem de smog a flutuar ao longo do horizonte irregular; a neblina era tão cinzenta que escurecia a manhã. A névoa de poluição nascia nas grandes artérias, todas elas muito movimentadas, e ascendia devagar para o firmamento até ficar a pairar como um espectro.
"O Zamzama é longe?", perguntou o cliente, impacien-tando-se.
A avenida onde o táxi se metera estava tão congestionada que parecia quase impossível avançar.
"Não, mister." A informação tranquilizou-o.
"Quanto tempo para chegar lá? Cinco minutos?
Dez?" O taxista riu-se.
"Não, mister. Da forma como o trânsito está, vamos levar pelo menos uma hora..." Tomás rolou os olhos.
"Oh, não!"
Recostou-se no assento, mentalizando-se para uma viagem lenta e demorada. Apanhado na armadilha daquele trânsito infernal, o táxi avançava aos solavancos. Não admirava que a viagem demorasse uma hora, percebeu. Só os últimos duzentos metros tinham levado uns dez minutos!
Sentia-se cansado depois de muitas ligações aéreas. Passara as últimas vinte e quatro horas a apanhar voos consecutivos, de Lisboa para Londres, onde não havia nesse dia ligação directa para o Paquistão; de Londres para Manchester, a tempo de apanhar o voo nocturno das linhas aéreas paquistanesas; de Manchester para Islamabade, onde desembarcara de madrugada; e finalmente de Islamabade para Lahore. Tinham sido ao todo quatro voos para ali chegar. O que valia, considerou, é que havia aproveitado todo aquele tempo para trabalhar.
Cerrou as pálpebras, tentando descontrair-se e descansar. Mas as imagens do trabalho que o ocupara ao longo dos voos invadiram-lhe a mente; eram tão obsessivas como aqueles jogos de computador que lhe permaneciam na retina depois de passar horas a jogá-los. Apesar de ter os olhos fechados, só via as letras e os números formarem combinações no escuro, como um imenso sudoku mental.
"Porra!", praguejou, abrindo os olhos.
Percebeu que não iria conseguir dormir enquanto não solucionasse o enigma no qual finalmente se embrenhara. Ren-dendo-se à evidência, inclinou-se no assento e abriu a mala de mão, de onde extraiu o bloco de notas. Folheou-o e voltou à linha que o assombrava sempre que cerrava as pálpebras.
6A7-H A 5 1 H A2R.U
Ao lado da linha, e nas páginas seguintes, multiplicavam-se as tentativas frustradas de quebrar a cifra. As coisas não estavam a resultar, percebeu. Talvez fosse melhor encarar a charada de uma forma nova. Tal como os criptanalistas da NEST, sempre partira do princípio de que se encontrava diante de uma cifra de grande complexidade, uma vez que os seus autores pareciam ter recursos de tal modo sofisticados qae até haviam conseguido ocultar a mensagem por baixo de uma imagem. Mas estaria mesmo no caminho certo?
Os seus consecutivos fracassos, e também os dos criptanalistas da NEST, constituíam um indício evidente de que estavam a cometer um erro.
E se mudasse de perspectiva? E se tentasse pôr-se no lugar dos homens que tinham enviado aquela mensagem? Melhor ainda, e se conseguisse compreender a posição do destinatário em Lisboa?
Coçou a cabeça, inteiramente absorvido naquele mistério.
A primeira coisa a notar era que a mensagem, embora tivesse sido enviada por muçulmanos, possivelmente por árabes, se encontrava redigida em caracteres latinos. Esse pormenor, raciocinou, não era despiciendo. Que leitura deveria fazer dele? Em primeiro lugar, isto parecia mostrar que o destinatário em Lisboa não tinha modo de abrir uma mensagem em caracteres árabes. Claro, tinha-a consultado num cibercafé, como descobrira a NEST, e era natural que o computador desse cibercafé não estivesse apetrechado com software para língua árabe. Fora por isso que a mensagem tivera de ser enviada em caracteres latinos.
Mas havia ainda uma outra conclusão a extrair deste facto. Quem enviara a mensagem não tinha manifestamente a noção de que o endereço do remetente se encontrava sob vigilância. Já Rebecca, aliás, o dissera. Assim sendo, e uma vez ocultada a mensagem por baixo da fotografia pornográfica, decerto que os terroristas não veriam necessidade de utilizar uma cifra muito complexa. Porque o fariam se se achavam em segurança? De resto, era até admissível que o destinatário em Lisboa não dispusesse de meios para decifrar uma mensagem que utilizasse um sistema demasiado sofisticado.
Posto o problema nestes termos, havia uma coisa que se tornava muito clara.
A cifra só podia ser simples.
Simples.
"É evidente...", murmurou Tomás, caindo em si.
"Como é que eu não vi isto antes?" "Perdão, mister}"
O português olhou aparvalhado para o taxista que o fitava pelo retrovisor, a mente mergulhada no enigma, os olhos momentaneamente presos no rosto do paquistanês, e levou um instante de perplexidade a perceber o que o homem lhe perguntara.
"Não é nada", disse, a atenção a voltar-se de novo para o bloco de notas. "Sou eu a falar para os meus botões."
Com movimentos frenéticos, pôs-se a ensaiar com a caneta soluções tradicionais para a mensagem. A chave deveria ser simples. Tentou a cifra de César, mas não obteve quaisquer resultados. Exercitou depois as cifras de substituição homófonas, também sem sucesso. Pegou num quadro de Vigenère e procurou aí a solução, mas mais uma vez falhou.
"Tenho de me pôr outra vez na posição de quem enviou e de quem recebeu a mensagem", sussurrou, pensativo.
Voltou a fixar os olhos na mensagem, como se a intensidade do olhar pudesse resgatar o segredo que ela escondia. Se o remetente era da Al-Qaeda, com toda a probabilidade estaria diante de um árabe. E o receptor também deveria ser árabe.
Mesmo que não fossem árabes, eram pelo menos muçulmanos
fundamentalistas,
o
que
obrigatoriamente significava que sabiam árabe, nem que fosse por terem memorizado o Alcorão. Ou seja, apesar de estar redigida em caracteres latinos, com toda a probabilidade a mensagem original encontrava-se em árabe.
Em árabe.
*
Ora o árabe escreve-se da direita para a esquerda!
Como diabo lhe escapara um pormenor desses?
Voltou a recorrer à cifra de César, às cifras de substituição homófonas e ao quadro de Vigenère, mas lendo os resultados no sentido inverso.
Novamente sem êxito. Suspirou, já desanimado. Num derradeiro fôlego, pôs-se a escrever a sequência de números e letras em tamanho gigante, como se através da ampliação pudesse extrair o segredo oculto na charada.
Desenhou as letras num tamanho descomunal, mas elas ficaram tão grandes que não couberam todas numa única linha do bloco de notas, pelo que teve de as repartir em duas linhas com dimensões iguais.
é A Y H A S 144 A 8
R U
"Seis-Aybas-Um-Ha-Oito-Ru?"
De repente, esta forma inesperada pareceu-lhe ter potencialidade. Da esquerda para a direita não fazia sentido. E da direita para a esquerda?
"Sahya-Seis-Ur-Oito-Ah-Um."
Também não.
A não ser que fossem coordenadas geográficas.
Ur, sabia-o, foi a primeira cidade do mundo. A escrita nascera aí. E Abraão também. Situava-se na Suméria, hoje Iraque, e tinha nas proximidades uma base aérea americana. Seria uma pista? Seria esta mensagem as coordenadas de um lugar? Seria a localização do sítio onde iria ocorrer um atentado?
Em Ur?
Era uma possibilidade, concluiu. Mas a separação dos algarismos, o seis de um lado, o oito de outro e o um numa posição solitária não lhe pareciam corresponder a coordenadas. Pôs-se então a imaginar rotas diferentes, que lograssem juntar os algarismos. A primeira vista só poderia conciliar o seis e o um, uma vez que um estava por baixo do outro, pelo que ensaiou uma rota a deambular entre a linha de cima e a linha de baixo. Começou num sentido, sem resultados, e depois ensaiou outro.
"Meu Deus..."
De boca aberta, a mensagem emergiu-lhe de repente diante dos olhos, poderosa e cristalina.
Pegou na caneta e, num frenesim nervoso, rabiscou com setas a rota do segredo que a cifra ocultara.
£ A-Y S t \ t \ t \
1~H A-8 RrU
"Descobri!", gritou.
O motorista quase deu um salto de susto.
"O quê? O que se passa?"
Percebendo que se tinha descontrolado no seu entusiasmo, Tomás corou, embaraçado.
"Nada! Nada!", garantiu, regressando ao presente.
Espreitou lá para fora. "Oiça lá, ainda falta muito?"
O carro passou ao lado de um pequeno campo ajardinado de hóquei e desembocou no início de uma grande avenida de
aspecto europeu, com um canhão oitocentista instalado no início.
"Chegámos."
O carro estacionou ao lado do passeio e pela janela Tomás viu uma mulher escultural junto ao canhão, o cabelo coberto por um lenço de seda cor-de-laranja.
Como se tivesse um sexto sentido, a mulher rodou o corpo na direcção do^táxi, tirou os óculos de sol e fitou-o com os seus olhos azuis brilhantes.
Era Rebecca.
XXVI
Ahmed chegou à cela arrastado pelos carcereiros, dorido no ventre e incapaz de caminhar. Mas, tirando as dificuldades de locomoção, vinha num estado incomparavelmente melhor do que todos os outros reclusos que haviam sido interrogados antes dele. E, outro pormenor que não passou despercebido aos seus companheiros de cela, o interrogatório não excedera a meia hora.
"O que aconteceu?", perguntou-lhe um dos reclusos que ainda não fora interrogado, algures entre a esperança e a desconfiança.
"Acho que ainda andam à procura de crentes envolvidos na matança do faraó", explicou Ahmed, numa referência ao assassínio de Sadat.
"E não estiveste?"
"Claro que não."
"Como os convenceste disso, meu irmão?"
"Eu tinha doze anos na altura."
Todos os elementos da cela acabaram por passar pelas mãos dos interrogadores e a grande maioria regressou quase inconsciente para junto dos companheiros. A primeira fase dos interrogatórios durou dois dias, seguindo-se mais dois dias em que ninguém os incomodou, o que permitiu aos mais maltratados recuperarem forças.
Ao quinto dia, porém, três carcereiros entraram na ç^la e um deles, depois de chamar pelo mais velho dos irmãos Walid, estendeu-lhe um frasco e uma colher.
"Toma duas doses deste xarope!"
Walid lançou um olhar interrogador ao frasco.
"O que é isso?"
"Toma!", rugiu.
Sabendo que não tinha modo de se opor àquela ordem, o recluso aceitou o frasco e engoliu duas colheradas do xarope. Quando terminou, os guardas permaneceram na cela, como se esperassem que o remédio fizesse efeito.
Alguns minutos mais tarde consultaram o relógio e deram uma nova ordem.
"Massaja-te nas partes baixas."
"O quê?"
"Faz o que eu te digo!", voltou a gritar.
"Massaja-te!"
O preso obedeceu e massajou-se, sem perceber bem o objectivo daquela ordem. Ao fim de poucos instantes parou, surpreendido com a enorme erecção que se lhe formara nas calças. Os carcereiros pareceram ter ficado satisfeitos com aquele resultado, pois logo sorriram entre eles antes de se voltarem de novo para o recluso.
"O teu irmão?"
Walid apontou para um homem que estava do outro lado da cela. "Está ali."