Um dos guardas foi buscá-lo e o que parecia ser o chefe ladrou a ordem seguinte. "Despe-te!"
Sem se atrever sequer a hesitar, o Walid mais novo tirou as roupas e ficou nu no meio da cela, os braços, as costas e o peito a exibirem as equimoses do interrogatório a que fora sujeito logo na primeira noite.
"Põe-te de gatas!"
O recluso baixou-se e ficou de gatas. Havia um silêncio pesado na cela; os outros reclusos quase nem se atreviam a respirar, com medo de atraírem as atenções sobre si. O chefe dos carcereiros olhou então para o Walid mais velho, que continuava com uma grande erecção a erguer-se das calças, e sorriu com malícia.
"Sodomiza-o!"
O preso arregalou os olhos, espantado com a ordem. "Como?"
"Es surdo ou quê?", gritou o guarda. "Sodomiza-o!"
Uma expressão de pânico encheu o rosto do Walid mais velho.
"Mas... mas... mas ele é meu irmão!"
O guarda deu um passo em frente, puxou o recluso pelo pescoço e apertou-o com tanta força que ele enrubesceu e deixou por momentos de respirar.
"Se voltas a questionar mais uma ordem minha, mato-te! Ouviste? Aperto-te o gasganete com força e mato-te!" Apontou para o irmão mais novo, que permanecia nu e de gatas no meio da cela.
"Sodomiza-o!"
Encurralado e sem alternativas, o Walid mais velho baixou as calças e aproximou-se do irmão por trás.
Atónitos com o que se estava a passar na cela, Ahmed e os outros reclusos não sabiam o que fazer.
A maior parte voltou a cabeça para o outro lado, num esforço para não ver o que acontecia no meio da cela, mas os gemidos de dor e o choro convulsivo dos dois irmãos eram demasiado terríveis para serem ignorados. Foi nesse instante e naquelas circunstâncias que Ahmed percebeu onde realmente se encontrava. No último grau do inferno.
„. #
Dois dias depois da terrível cena que envolveu os irmãos Walid, os carcereiros voltaram à cela.
"Ahmed ibn Barakah!"
Ao ouvir o seu nome pronunciado por um dos guardas, Ahmed sentiu o coração dar um salto e começar a bater com força, como se quisesse saltar-lhe do peito.
"Sou eu."
"Acompanha-nos."
O recluso seguiu os carcereiros com o medo a anestesiar--lhe o corpo. Não era apenas a breve experiência de tortura que o assustava daquela maneira, nem o estado em que vinham os outros reclusos depois dos interrogatórios, mas sobretudo a humilhação a que vira os irmãos Walid serem submetidos. Se aqueles homens que geriam a cadeia haviam sido capazes de fazer aquilo, concluiu, não existia perfídia que não estivesse ao seu alcance.
Preparou-se, por isso, para o pior. Teria de ser forte, entregar o corpo ao destino e esperar que Alá Ar-Rasbid, o Guia, o conduzisse à salvação.
Acompanhado por dois guardas, Ahmed percorreu o mesmo corredor por onde o tinham levado quando fora interrogado dias antes, mas, em vez de entrar na sala do interrogatório, seguiu em frente até à porta que dava acesso àquela ala. Um dos homens desaferrolhou a porta e o recluso foi empurrado para além dela até chegar a um átrio. Conduziram-no pelas escadas para o andar inferior e levaram-no por um novo corredor até uma outra porta, que também abriram. "Entra."
Embora a medo, Ahmed obedeceu e cruzou a porta.
Era uma nova cela. Encontravam-se ali talvez uns quinze reclusos, mas todos tinham um ar bem mais saudável do que aqueles que deixara para trás.
Clac.
Ouviu o som metálico atrás de si e voltou-se. A porta da cela tinha-se fechado. O alívio encheu-lhe o corpo como o oxigénio preenche os pulmões e Ahmed tomou consciência de que havia abandonado a ala dos interrogatórios e fora transferido para uma ala normal.
A vida tornou-se consideravelmente mais fácil dali em diante. Nesta nova ala os reclusos eram autorizados todos os dias a fazer exercícios no pátio e até a jogar futebol. O quotidiano converteu-se assim numa experiência primeiro mais agradável, depois rotineira e por fim enfadonha. Quando não havia jogos nem outras actividades, Ahmed arrastava-se langorosamente pelo pátio, sem nada para fazer e com a eternidade por preencher.
Havia, porém, alguns momentos para os quais vivia.
Ahmed passou a receber a comida que a mãe lhe enviava duas vezes por mês e tinha até acesso a jornais, como o Al-Abram e o Al-Goumbouria, que os presos passavam de mão em mão. Foi assim que tomou conhecimento das últimas novidades sobre a sagrada guerra dos mudjabedin no Afeganistão, que Alá os protegesse e os acolhesse no Seu jardim, e dos pormenores mais revoltantes relativos à ocupação sionista do Líbano, que Alá os amaldiçoasse e os enviasse para o grande fogo. Ah, como gostaria de se juntar aos mudjabedin!
A sua solidão terminou justamente num dia em que estava sentado num canto do pátio da prisão a ler pormenores sobre uma grandiosa batalha envolvendo o Leão de Panjshir, o glorioso comandante Ahmed Shah Massoud, contra os kafirun russos que se haviam atrevido a pôr os pés imundos em terra islâmica. Quando ia a meio do texto, empolgado pela narrativa da vitória nessa batalha, desta feita em Jalalal^ade,
sentiu
uma
sombra
incómoda
projectar-se sobre o jornal.
Ergueu os olhos e vislumbrou um vulto plantado diante dele, o sol atrás a impedi-lo de distinguir as feições do intruso. Para se proteger da luz que o encandeava, pôs a mão sobre a testa como se fosse a pala de um boné e, a boca entreabrin-do-se de pasmo, reconheceu o homem que o fitava com um sorriso caloroso.
Era Ayman.
O professor de Religião que tanto influenciara Ahmed
na
madrassa
havia
envelhecido
consideravelmente em apenas três anos de cadeia. A barba farfalhuda tornara-se grisalha e Ayman apresentava um aspecto cansado, o corpo curvando-se já ligeiramente, as rugas a riscarem o canto dos olhos.
Mesmo assim, para Ahmed o encontro foi emocionante. Ao longo dos três anos anteriores interrogara-se muitas vezes sobre o que teria acontecido ao professor, como se encontraria ele, se estaria ainda vivo. Rezava amiúde a Alá para que protegesse o seu mestre e agora ali o tinha, mesmo diante de si, é certo que envelhecido e gasto, o corpo quebrado pela prisão, mas a chama do islão ainda lhe cintilava nos olhos; era ao mesmo tempo um recluso e um homem livre, o corpo confinado à prisão e a alma entregue a Alá.
"Que lhe fizeram eles, senhor professor?", perguntou depois da emoção do reencontro.
Ayman fez um gesto de amável reprimenda.
"Não me chames professor", disse. "Aqui não sou professor. Além do mais, já sabes o suficiente sobre o islão para seres tratado como um aluno."
"Então como lhe chamarei?"
"Irmão, como toda a gente. Somos ambos muçulmanos e Alá exige modéstia e pudor de todos nós. Chama-me irmão."
Ahmed sentiu dificuldade em chamar irmão ao antigo professor, de tal modo estava o hábito enraizado, mas tinha também consciência de que era uma questão de se ir acostumando.
"Sim... meu irmão."
Custou, mas lá o disse.
"Muito bem", aprovou Ayman. "Então conta-me, como vais tu?"
"Eu estou bem, mashaallab. Mas o que lhe fizeram eles, senhor profes... meu irmão?"
O antigo professor de Religião encolheu os ombros.
"Fizeram-me o que fizeram a todos os irmãos, que Alá os amaldiçoe para sempre! Torturaram-me."
Desabotoou a camisa e mostrou equimoses no peito.
"Bateram-me, deram-me
choques eléctricos,
penduraram-me como carne num açougue." Estendeu as mãos e exibiu as pontas dos dedos deformadas.
"Arrancaram-me as unhas uma a uma, que Alá os leve para o Inferno!"
Ahmed olhou impressionado para os dedos estropiados e abanou a cabeça, mal contendo a fúria que lhe fervilhava no sangue.
"Também a mim me torturaram, esses cães malditos!" "O que te fizeram?" "Deram-me choques." "E mais?"
"Acha pouco?"
Ayman balançou a cabeça de um lado para o outro, como se dissesse que poderia ter sido pior.
"E agora que já passaste pela tortura?
Ganhaste-lhes medo?"
O jovem encarou o seu antigo professor com uma expressão escandalizada, como se tivesse acabado de ser insultado.
"Medo, eu? Claro que não!"
*
"E então?"
Ahmed tremia.
"Odeio-os!
Odeio-os!
Como
podem
eles
comportar-se assim? Como podem eles fazer-nos isto?" Cuspiu para o chão, num gesto de desprezo.
"Estes cães envergonham o islão! Onde já se viu um crente punir outro crente para proteger os kafirun?"
"Esta gente do governo fez a shabada e pratica o salat", disse o antigo professor, "mas não é crente."
"São cães raivosos!"
Mirando o arame farpado enrodilhado sobre os muros em torno do pátio da cadeia, Ayman fungou com força e lançou um escarro para o chão, num gesto de profundo desprezo.
"Pior do que isso", sentenciou. "São kafirun!"
XXVII
"Alguma vez leu Kipling?", perguntou Rebecca.
"Claro, não se esqueça de que sou historiador..." A americana pousou a mão no cobre trabalhado da peça de artilharia que dominava a grande avenida. "Então já conhece o Zamzama."
Os olhos verdes de Tomás deslizaram das grandes rodas laterais para a arma que elas sustentavam.
"«Quem controla o Zamzama controla o Punjabe», escreveu Kipling a abrir o seu maior romance, Kim."
Ergueu a atenção para ela. "Isso é mesmo verdade?"
Rebecca sorriu, como se não houvesse resposta para a pergunta, ou como se não a soubesse, ou talvez como se ela nem sequer fosse importante, e fez um sinal com a cabeça na direcção do lado esquerdo da avenida.
"Vamos! Temos muito trabalho a fazer."
Atravessaram o The Mali em direcção ao museu de Lahore, uma bela construção em estilo neomogul que Tomás logo
admirou. Estavam em pleno Raj britânico. Neste sector da cidade tudo era grandioso e imponente, com a grande avenida a separar Lahore como um rio majestoso, de um lado o belo museu naquele estilo neomogul à Taj Mahal, do outro a Universidade do Punjabe, os dois lados da avenida com amplos passeios e espaços verdes, tudo muito bem ordenado e arejado, num flagrante contraste com o caos e a p»luiçã(f com que se confrontara ao entrar na cidade.
"Sabe", disse Tomás, "já quebrei o segredo da charada que vocês interceptaram."
"A sério?"
Apesar de caminhar ao longo do passeio, o historiador abriu a mala de mão e procurou o bloco de notas.
"É verdade. Passei a viagem toda à volta dela e consegui descobrir a cifra utilizada pela Al-Qaeda para ocultar a mensagem."
"E o que diz ela?"
"A mensagem? Ainda não cheguei lá, mas apenas por falta de tempo. O facto é que já..."
Rebecca consultou o relógio e ergueu a mão, travando-o.
"Agora não temos tempo para isso", disse, a voz baixa e tensa. "São dez da manhã e o encontro com o seu ex-aluno é daqui a duas horas. Temos muita coisa com que preocupar--nos neste momento. A charada fica para depois."
Travado no seu entusiasmo, Tomás calou-se e deixou-se guiar pela americana, os olhos de historiador perdendo-se pela arquitectura imperial daquela parte da cidade.
As fachadas dos edifícios estavam degradadas, era certo, mas cintilava ali ainda com esplendor a grande jóia arquitectónica do Raj. Olhando para o The Mali era possível viajar no tempo e recuar às indolentes tardes de cricket, com os gentlemen a encherem os passeios pela avenida, as ladies com pequenas sombrinhas a protegê-las, os The Times com semanas de atraso dobrados por baixo dos braços, os cavalos e as charretes a percorrerem a estrada com os seus clip-clops característicos, as figuras de laço ou gravata a entrarem nos clubs para o tea time com scones e as conversas em torno do great imperial game, as mensabib vestidas com... "É
aqui."
A voz de Rebecca desfez a imagem do Raj em Lahore e trouxe Tomás de regresso ao presente. A americana parara ao lado de urna grande carrinha azul estacionada junto ao passeio.
Uma nave espacial.
Foi essa a impressão que teve quando pôs o pé no interior da carrinha. Vista de fora, a viatura apresentava a chapa envelhecida e amolgada em alguns pontos, com o azul da pintura já algo esbatido e meio coberto por uma densa camada de poeira e por espessas manchas de lama. Os pneus estavam quase carecas e, em bom rigor, a única coisa que distinguia a carrinha das carcaças ambulantes que atafulhavam o trânsito de Lahore era o vidro escuro, colocado aparentemente para proteger os ocupantes do calor escaldante do Punjabe.
Considerando o aspecto exterior tão degradado, Tomás esperava um interior sujo e desarranjado, se calhar até com buracos nos assentos, pelo que, ao entrar, experimentou um sentimento de absoluta irrealidade. O ambiente era escuro e fresco, cheio de ecrãs de LCD e alta tecnologia, um aroma sofisticado a pairar no ar. O contraste com as suas expectativas era tal que duvidou dos sentidos.
Aquela não podia ser a carrinha desmazelada que vira ainda instantes antes! Decerto que se enganara!
"Howdy!"
A voz masculina veio da dianteira da carrinha. Ou, em rigor, do cockpit. Esforçando-se por habituar os olhos ao escuro, Tomás distinguiu duas figuras ali dentro. Eram dois homens na casa dos vinte anos, de camisa clara e gravata, e com enormes auscultadores a abraçar-lhes a cabeça.
"O meu nome é Jarogniew", disse um deles,,volta»do-se para trás e estendendo a mão para o cumprimentar. "Mas eles chamam-me Jerry, é mais fácil. Como vai isso?"
"Eu sou o Sam", disse o outro, imitando o gesto do seu parceiro.
O recém-chegado apertou-lhes as mãos.
"Eu sou o Tomás", identificou-se.
"No shit, Sherlock!", sorriu Jarogniew. "Pensámos que você era o fucking Bin Laden!"
Riram-se os dois numa grande algazarra e Tomás juntou--lhes o seu sorriso, mais por cortesia social do que por ter achado realmente graça.
"Rapazes! Rapazes!", disse Rebecca, que entrara também na carrinha e acabara de fechar a porta.
"Tenham juízo e portem-se bem! O que vai o nosso convidado pensar?"
"Sim, Maggie", respondeu Jarogniew, claramente o mais brincalhão. "Partimos agora, boss?"
"Sim."
Jarogniew ligou a ignição e a carrinha arrancou bruscamente, atirando os ocupantes de encontro aos assentos. Rebecca sorriu e voltou o rosto para o português.
"Não lhes ligue, Tom. Estão sempre na brincadeira, mas pode confiar neles. São os melhores operacionais que temos no Paquistão."
"Eles chamaram-lhe Maggie?"
A americana encolheu os ombros.
"Oh, não faça caso."
"Afinal você chama-se Maggie ou Rebecca?" "Não é isso. Eles têm a mania de que eu me pareço com a Meg Ryan..."
Tomás encarou-a com atenção e observou melhor os grandes olhos azuis e o cabelo loiro curto da mulher sentada ao seu lado.
"Não está mal visto", reconheceu. "Dá realmente um certo ar."
"Acha?"
"Claro que você é mais bonita", apressou-se a acrescentar. "Se quer que lhe diga, a Meg Ryan nem lhe chega aos calcanhares..."
Rebecca soltou uma gargalhada.
"Ai esse sangue latino! Mister Bellamy bem me avisou! Tenho de ter cuidado consigo!"
"E eu? Tenho de ter cuidado com quem?"
O olhar da americana desviou-se para as ruas que desfilavam lá fora. A carrinha acabara de sair do The Mali e entrava no sector paquistanês de Lahore.
"Você tem de ter cuidado com o que se passar no forte", disse ela, mudando o tom ligeiro da conversa.
"Esta gente não é para brincadeiras."
"E quem me vai proteger? Você?"
"Claro." Fez um sinal para os dois homens sentados na dianteira. "E eles."
A atenção de Tomás transferiu-se para os homens da frente.
"A NEST tem operacionais no Paquistão?"
"Não. O Jerry e o Sam trabalham na nossa embaixada em Islamabade. Digamos que eles nos foram emprestados para esta operação. Está a ver ali o Jerry?"
Tomás observou o homem que conduzia a carrinha.
Jarogniew era gordo e tinha uma careca reluzente, com cabelo apenas por trás das orelhas.
"Sim."
"E o nosso perito em comunicações. Os avós vieram da Polónia, mas o seu país é agora esta carrinha. Ele monta sistemas de comunicações e faz vigilância operacionak Se houver alguma anomalia, o Jerry será o primeiro a detectá-la."
O português manteve o olhar preso na careca do motorista.
"E se ele identificar uma anomalia? O que acontece?"
"Nesse caso terá de a comunicar", disse ela. "Tudo dependerá então de mim e do Sam."
Os olhos de Tomás deslizaram para o homem sentado ao lado do motorista. Sam era um indivíduo corpulento, de cabelo curto e barba rala, e totalmente vestido de negro.
"O Sam é o vosso músculo?"
"Acho que lhe pode chamar assim."
"Parece uma versão mais feia do Van Damme", observou. "Será que ele também sabe karate?"
O comentário tinha sido feito a brincar, mas Rebecca pareceu considerá-lo pertinente.
"Sam!", chamou.
O homem de negro voltou a cabeça. "O
que é, Maggie?"
"Antes de vir aqui para Islamabade, o que fazia você?" "Receio que isso seja informação confidencial..." Rebecca fez beicinho e pestanejou exageradamente. "Oh, vá lá!" O homem riu-se.
"Navy SEALS", disse. "Fazia operações especiais no Afe ganistão, como muito bem sabe. Não se lembra de tomarmos um chá em Kandahar?"
"Então não me lembro? Eles andavam aos tiros lá fora e nós a saborear aquela zurrapa..."
"Então se se lembra, porque pergunta?"
"Por nada", devolveu ela. "Queria apenas que o nosso amigo percebesse melhor em que mãos está entregue."
"Rigkt."
O operacional voltou a atenção para a frente, retomando a conversa com o motorista, e Rebecca inclinou-se na direcção do português.
"Está a ver? O Sam é o responsável pela sua segurança. Se o Jerry detectar algum problema, o Sam e eu teremos de actuar. A sua vida poderá depender da nossa capacidade de reacção."
Tomás endireitou-se no assento.
"Caramba, já me está a assustar. Acha mesmo que isto pode dar para o torto?"
O olhar de Rebecca regressou ao caos urbano de Lahore, por onde a carrinha ziguezagueava.
"Oiça, Tom. Tem alguma ideia do tipo de muçulmanos que vivem nesta cidade?"
"Sufis", retorquiu Tomás. "Aliás, os sufis de Lahore são famosos. Quem não conhece as noites sufis no santuário de Baba Shah Jamal? Parece que dançam até entrarem em transe, entregando-se assim a Deus. Dizem que é interessante. E muito místico."
Ela fitou-o de novo, uma cintilação incrédula nos olhos. "Sufis, diz você?"
"Sim. E a corrente mais pacífica do islão, juntamente com a dos ismaelitas. Os sufis vivem em paz e harmonia. Para eles a jihad é um conceito de luta do espírito para atingir a perfeição, não é necessariamente guerra nem matança."
Rebecca balançou afirmativamente a cabeça, mas sem a convicção de quem concordava.
"Sim, é verdade que há sufis em Lahore", reconheceu. "É verdade que esta cidade é um centro de misticismo islâmico." O tom da voz da americana ensombrou-se. "Mas também é verdade que vivem aqui muçulmanos de outro tipo. Já ouviu falar na Lashkar-e-Taiba?"
O historiador assentiu.
"O Exército dos Puros", traduziu ele. "Foram eles que levaram a cabo os atentados de 2008 em Mumbai. Porquê?" "A Lashkar-e-Taiba é de Lahore."
"Está a brincar..."
"E mais uma mão-cheia de outras organizações fundamentalistas islâmicas. Lahore, Peshawar, Rawalpindi e Carachi são autênticos viveiros de radicais." Indicou as ruas lá fora. "Esta pode ser a cidade da noite sufi de Baba Shah Jamal, mas não se esqueça de que Lahore é também a cidade das manhãs sangrentas da Lashkar-e-Taiba."
A carrinha saiu do tráfego denso e meteu por um caminho desimpedido que desembocou junto a umas grandes
muralhas.
Havia
dois
autocarros
estacionados em frente e alguns peões com máquinas fotográficas penduradas ao peito. A carrinha aproximou-se devagar e estacionou ao lado de um dos autocarros.
"Chegámos!", anunciou Jarogniew. "E aqui o forte."
O silêncio instalou-se dentro da viatura. Com um misto de curiosidade e preocupação, Tomás esticou a cabeça e observou a movimentada entrada do forte.
"Lahore é a cidade dos fundamentalistas islâmicos", repetiu Rebecca. "Não se esqueça de que é com esse tipo de gente que você se vai encontrar aqui."
As pessoas lá fora tinham um ar absolutamente normal. A maior parte das que entravam no forte eram turistas, pelo que a atenção de Tomás se centrou nos poucos paquistaneses
que ali se encontravam. Havia os motoristas dos autocarros, alguns taxistas, três ou quatro condutores de auto-riquexós, mais um punhado de vendedores de bebidas ou de panfletos turísticos e ainda alguns transeuntes. O historiador procurou uma ameaça em cada um destes rostos, mas todos tinham um ar inofensivo.
"Que horas são?", perguntou.
Rebecca espreitou o relógio.
"Onze", disse. "Falta uma hora."
XXVIII
O reencontro com o antigo professor reacendeu uma chama de esperança em Ahmed. Aproveitava todas as horas em que podia sair da cela e ir para o pátio para se juntar a Ayman e beber um pouco mais da sua sabedoria. Nem sempre o mestre estava disponível para ele, uma vez que se encontrava rodeado de outros elementos da Al-Jama'a alTslamiyya e passavam todos muito tempo juntos em animadas discussões políticas e teológicas.
Mas Ahmed gostava da companhia daqueles homens com quem partilhava tantas ideias e a quem admirava pela coragem de terem morto o faraó. Aprendeu com eles a comportar--se como um verdadeiro crente: a maneira de falar, a forma de rezar, o modo de vestir, em tudo isso se foi gradualmente educando.
Passou a caminhar com os olhos baixos, como se exigia entre os crentes mais pios, de modo a evitar os olhos dos outros. Ensinaram-lhe também a não olhar uma mulher acima do queixo. Como não havia nenhuma ali na cadeia, exercitou esse olhar respeitoso com os outros reclusos.
Aprendeu a cobrir sempre a cabeça, de modo a afugentar o Diabo, e sobretudo a rezar correctamente; não devia olhar para os pés no momento em que se ajoelhava, mas sim para o ponto onde iria pousar a testa quando se inclinasse diante de Deus. Além do mais, na cantina passou a comer como os outros elementos da Irmandade Muçulmana ou da Al-Jama'a, isto é, com os dedos; era esse o modo como Maomé se alimentava, conforme descrito pelos ahaditb, pelo que seria assim que os verdadeiros crentes teriam de comer.
Constatou que os outros reclusos, mais instruídos religiosamente, moviam os lábios sem cessar, mas só ao fim de algum tempo reuniu coragem para perguntar porque o faziam.
"Estou a rezar", explicou Ayman. "Devemos rezar constantemente, devemos arrepender-nos a todo o momento, devemos purificar-nos em permanência.
Não te esqueças de que fazer o salat cinco vezes ao dia é o mínimo exigido aos crentes e que Alá até queria que o fizéssemos mais vezes."
Ahmed passou a ter as orações nos lábios murmurantes, embora por vezes se esquecesse e só a imagem de um outro irmão a rezar o lembrasse do seu dever de bom muçulmano. Vendo-o sempre tão devoto, Ayman vinha ter com ele com frequência para lhe revelar mais facetas do verdadeiro islão.
O antigo aluno já tinha todo o Alcorão decorado, o que fazia dele um hafiz, "aquele que preservou", mas o facto é que, tal como a maioria dos crentes, não compreendia bem o seu conteúdo; as implicações filosóficas, políticas e teológicas escapavam-lhe. O
árabe do século vil em que o Livro Sagrado estava escrito era de difícil compreensão. Para agravar as coisas, os versículos só podiam ser entendidos quando integrados nos abadith que explicavam as circunstâncias que os originaram. Ahmed suspeitava por esta altura que o xeque Saad tinha propositadamente evitado revelar-lhe o contexto de muitos dos versículos, pelo que buscava em Ayman a explicação que tudo esclareceria.
E o antigo professor fazia-lhe a vontade.
A primeira ocasião em que se voltaram a encontrar a sós
no pátio da cadeia foi numa manhã soalheira, mas anormalmente fresca.
m
"O nosso governo é formado por kafirun", proclamou Ayman. "Toda esta gente que manda em nós, todas estas leis que nos regem e que nos enviaram para a prisão... tudo isto é coisa de kafirun que se fingem crentes."
Falava como se não os estivesse a insultar, mas a fazer uma mera constatação teológica, o que intensificou a curiosidade de Ahmed.
"Meu irmão, achas mesmo isso? O nosso governo é... é kafirr
"Com certeza. Está no Livro Sagrado. Qualquer crente estudioso sabe isso. O governo é kafir, não há dúvida nenhuma."
Ahmed meditou nestas palavras.
"Mas onde está isso escrito no Livro Sagrado, meu irmão?" Que eu saiba, os nossos governantes declararam a shahada, fazem o salat e acreditam em Alá. Isso não faz deles muçulmanos?"
Ayman sentou-se com um gemido de prazer num banco do átrio, o sol ardente a tostar-lhe a tez.
"Deixa-me contar-te um haditb que teve grandes implicações no islão", começou por dizer enquanto se acomodava no seu lugar. "Certa vez dois homens foram ter com Maomé, que a paz esteja com ele, e pediram-lhe que decidisse uma disputa. O Profeta, que a paz esteja com ele, decidiu, mas o homem prejudicado disse que não aceitava essa decisão e foram os dois falar com Omar ibn Al-Khattab. Ao saber que o prejudicado não aceitara o julgamento do Profeta, que a paz esteja com ele, Omar pegou na espada e decapitou-o." Inclinou a cabeça na direcção do aluno, num gesto interrogativo. "Estás a ver o problema que se criou, não estás?"
"Omar violou a sbaria", percebeu Ahmed.
"Recita-me o versículo que estabelece a lei que Omar violou", ordenou Ayman, testando a compreensão e a memorização do Alcorão pelo seu antigo aluno.
"«0 vós que credes», diz Alá na sura 3, versículo 3:
«Não vos mateis!»"
Ayman balançou aprovadoramente a cabeça.
"Nem mais! Omar tinha violado a sbaria! Ou, pelo menos, assim parecia. Tendo um muçulmano assassinado outro muçulmano, a sbaria requeria que o assassino fosse executado. Omar teria pois de ser morto. O Profeta, que a paz esteja com ele, viu-se então obrigado a julgar o caso. Foi nessa altura que Deus, através do anjo Gabriel, lhe recitou a frase que está na sura 4, versículo 65: «Mas não, pelo teu Senhor! Não acreditaram antes de te haverem obrigado a julgar sobre o que está em litígio entre eles; em seguida, não encontrando em si mesmos queixa sobre o que sentencies, submeter-se-ão totalmente.» Ou seja, o que Alá comunicou ao Profeta através do anjo foi que, ao não aceitar a decisão do Profeta, o homem prejudicado deixara de ser muçulmano. Assim sendo, Omar não matara um muçulmano, mas um kafir. Não tinha então de ser executado. Percebeste?"
"Sim, meu irmão."
"Agora diz-me: quais as consequências desta decisão?" Ahmed franziu o sobrolho. "Omar foi salvo?"
"Isso é evidente!", exclamou Ayman, subitamente exasperado. "Claro que Omar foi salvo! Mas o que este episódio e este versículo têm de importante não é isso! O importante é que ficaram estabelecidas duas coisas fundamentais: matar kafirun não é necessariamente crime e não aceitar todas as decisões do Profeta faz de nós kafirun. Repito: todas. Lembra-te que está dito no final da sura 4, versículo 65: «Sebme-ter-se-ão totalmente.» Se a submissão for parcial, a pessoa deixa de ser muçulmana. A submissão tem, pois, de ser total. O
mesmo, aliás, diz Alá na sura 4, versículos 150 e 151
do Santo Alcorão: «Os que não crêem em Deus nem nos Seus Enviados desejam estabelecer uma distinção entre Deus e os Seus Enviados. Dizem:
'Cremos nuns e não cremos nos outros.' Desejam tomar entre aqueles um caminho intermédio. Esses são verdadeiramente os infiéis.» Ou seja, não há caminho intermédio. Se não aceitarmos todas as leis, tornamo-nos kafirun."
"O que quer dizer com isso, meu irmão? Se eu falhar uma lei, uma única que seja, deixo de ser muçulmano?"
"E isso mesmo o que diz Alá no Santo Alcorão! Para se ser muçulmano é preciso respeitar sempre todas as leis. Basta falhares em algumas delas e deixas de ser muçulmano. Por exemplo, tu rezas cinco vezes por dia, não é verdade?"
"Sim, sem falhar."
"Se rezas cinco vezes por dia, como o Santo Alcorão requer, mas se por acaso não respeitas o jejum no Ramadão, como o Santo Alcorão exige, deixas de ser crente e tornas-te kafir. Entendeste?
O próprio Ibn Taymiyyah, referindo-se aos Mongóis que aceitaram o islão mas mantiveram algumas das suas práticas pagãs, disse: «Qualquer grupo que aceite o islão, mas ao mesmo tempo não pratique alguns dos seus preceitos, deve ser combatido por acordo de todos os muçulmanos»."
"Ah!", exclamou Ahmed, coçando o couro cabeludo.
"Foi por isso que, naquela última aula na madrassa, o meu irmão disse que os sufis não são crentes!"
"Exacto! Fizeram a sbahada e praticam o salat e a zakat, podem até cumprir o hadj e respeitar o jejum no mês sagrado, mas, ao invocar santos nas suas orações, renegam que só há um Deus. Não cumprem assim todos os preceitos do islão, o que, à luz do estabelecido no Santo Alcorão e na sunnab, faz deles kafirun."
"Estou a perceber..."
"Mas ainda é preciso que percebas uma outra coisa", apressou-se a acrescentar. "Como sabes, Alá cansou-se de ver a Sua palavra deturpada por intermediários e decidiu ditar as Suas leis uma última vez aos homens. Escolheu Maomé, que a paz esteja com ele, como mensageiro. Só que, para impedir que a Sua palavra fosse de novo deformada, Alá proibiu a existência de intermediários e obrigou que a Sua lei ficasse inscrita no Santo Alcorão. Não haveria desse modo possibilidade de desvios. Quem quisesse reinterpretar a vontade de Deus seria confrontado com o que Ele deixara escrito no Livro Sagrado. A sbaria é assim uma ordem dada directamente por Alá aos crentes, sem influência de intermediários. «Não temais os homens, mas temei-Me», diz Deus na sura 5, versículo 44."
"Tudo isso já eu sei, meu irmão. E então?"
Ayman fitou os olhos do seu antigo aluno.
"Recita-me, por favor, a frase do testemunho que o muezzin faz no adhan, quando chama os crentes para a oração."
"«Ash-hadu na la illaba illallab", entoou Ahmed.
"«Sou testemunha de que não há nenhum Deus senão Alá». u«Asb-hadu Mubammad ur rasulullab»", completou. "«Sou testemunha de que Maomé é o Seu profeta»."
"Essa declaração que acabaste de recitar implica a nossa submissão a Deus e Deus apenas", atalhou Ayman. "«Não há nenhum Deus senão Alá.» Isso significa que todas as outras autoridades existentes na Terra, incluindo presidentes e governos, valem menos do que a vontade de Alá, expressa directamente no Santo Alcorão. Isto quer dizer que a vontade de Alá tem de ser obedecida, mesmo que isso implique*deso-bedecer a um presidente ou a um polícia. Alá manda acima de todos. Está claro?"
"Bem... sim." Hesitou. "O Profeta defendia isso?"
"Claro!", exclamou Ayman, quase escandalizado com a pergunta. "Não conheces o hadith do encontro do cristão Adi com o apóstolo de Deus, que a paz esteja com ele?"
"Confesso que não."
"O cristão Adi foi ter com o Profeta, que a paz esteja com ele, e ouviu-o recitar o versículo que diz que os Adeptos do Livro, em vez de Deus, escolheram prestar culto aos seus rabinos e aos seus padres. O cristão negou que isso fosse verdade e Maomé, que a paz esteja com ele, para demonstrar que tinha razão, sentenciou: «Tudo o que os seus padres e os seus rabinos consideram permissível, eles aceitam como per-missível; tudo o que eles declaram proibido, eles consideram proibido e, dessa forma, prestam-lhes culto»."
Ahmed meditou por momentos no sentido do baditb que acabara de lhe ser relatado.
"Portanto, o Profeta achava que os kafirun não adoravam Deus, mas os intermediários de Deus", concluiu.
"Claro. Mas este hadith tem especial importância porque estabelece que a obediência a leis e decisões humanas constitui uma forma de prestar culto.
Assim sendo, quem aceite leis cuja fonte não é Alá está a prestar culto a algo diferente de Alá. Como sabes, meu irmão, isso é contra o islão. Quem o fizer torna-se kafir. Não te esqueças de que até o próprio califa Ali foi destituído e morto por não ter respeitado integralmente a sharia. Ninguém está acima da Lei Divina! Nem califas, nem presidentes, nem polícias! Alá é a única autoridade."
"E... e no caso das leis do nosso país? Como se compatibilizam elas com o islão?"
O antigo professor respirou fundo, como se a referência ao assunto o enervasse.
"Alá me dê paciência!", murmurou. "Hoje não a tenho!"
Sem pronunciar mais uma única palavra, levantou-se e foi--se embora.
Foram precisos dois dias para Ayman reunir toda a paciência de que era capaz e voltar a sentar-se com Ahmed para abordar o assunto que o enervava.
Trazia consigo um grosso livro azul que mostrou ao seu pupilo.
"Isto é o Código Penal do Egipto", anunciou, começando a folhear o livro azul à procura das partes que considerava relevantes. "Deixa-me mostrar-te aqui o artigo 274... ora cá está!" Afinou a voz para ler o texto. "«Uma mulher adúltera deve ser presa até dois anos.»" Olhou para o seu interlocutor. "Agora recita-me o que diz Alá na sura 24, versículo 2 do Livro Sagrado."
Ahmed fez um esforço de memória; sabia que o mestre não estava apenas a questioná-lo sobre aquele versículo em particular, mas também a testar os seus conhecimentos do Alcorão.
"«À adúltera e ao adúltero, a cada um deles dai cem açoites»."
"E há também um hadith que relata a ordem do Profeta, que a paz esteja com ele, de lapidar até à morte um casal de adúlteros", acrescentou Ayman.
"Existe ainda um outro baditb que revela que Alá recitou ao Profeta, que a paz esteja com ele, um versículo a ordenar a lapidação até à morte dos adúlteros,
mas
esse
versículo
perdeu-se
inadvertidamente. Para todos os efeitos, o que nos interessa é que Alá manda no Santo Alcorão dar cem açoites aos adúlteros e a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, ordena que eles sejam executados por lapidação. Mas a nossa lei, pasme-se, appenas prevê até dois anos de prisão às adúlteras e até seis meses de prisão aos adúlteros! É isto o islão?" "Claro que não."
Ayman folheou de novo o Código Penal egípcio.
"Agora o artigo 317", disse, localizando rapidamente a página que procurava. "Ora escuta: «A sentença por roubo é três anos de prisão com trabalhos forçados»." Ergueu os olhos. "Agora recita-me a ordem de Alá na sura 5, versículo 38."
Ahmed precisou de alguns segundos para identificar mentalmente o trecho.
"«Cortai as mãos do ladrão»."
"O que o Profeta, que a paz esteja com ele, também ordenou, conforme contado em ahadith apropriados, explicando que o corte deveria ser da mão direita. Ou seja, Alá mandou cortar as mãos dos ladrões e o Profeta esclareceu que Ele se referia às mãos direitas, mas a nossa lei apenas prevê três anos de prisão com trabalhos forçados. Pergunto eu outra vez: é isto o islão?"
"Não, meu irmão, é evidente que não."
O antigo professor ergueu o Código Penal ao nível dos olhos e fez um esgar de desprezo.
"Já li a lei egípcia de trás para a frente e de cima para baixo e não vejo nada aqui a penalizar a apostasia. À luz da lei egípcia, qualquer pessoa pode deixar de ser crente e tornar-se kafir cristã ou outra coisa qualquer. Agora recita-me o que diz Alá na sura 2, versículo 217."
A sura 2 é o capítulo mais comprido do Alcorão, pelo que Ahmed levou algum tempo a localizá-lo na memória.
"«Aquele de vós que abjure a sua religião e morra é infiel, e para esses serão inúteis as suas boas acções nesta vida e na outra; esses serão entregues ao fogo»."
"O que é completado pela sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele", atalhou Ayman. "Um haditb apropriado registou esta ordem do mensageiro de Alá, que a paz esteja com ele: «Matem quem renegar a nossa religião.»" Exibiu o livro azul que mantinha na mão. "Ou seja, Alá envia os apóstatas para o fogo e o Profeta manda matá-los, mas a lei egípcia nem sequer diz que isso é crime! E eu pergunto mais uma vez: é isto o islão?"
"Por Alá, claro que não!"
"Dei apenas três exemplos, mas há inúmeros outros em que se verifica absoluta dissonância entre a Lei Divina e a lei em vigor no Egipto." Fungou e escarrou. "Sabes o que o Egipto me faz lembrar?"
Ahmed abanou a cabeça.
"Antes de o Profeta, que a paz esteja com ele, ter começado a pregar a palavra de Alá, a Arábia estava toda ela mergulhada em jahiliyya, na ignorância de Deus. Uma sociedade jahili é justamente aquela que não se submete exclusiva e totalmente a Alá, vive na ignorância das Suas leis. Ora isso é muito grave porque a Lei Divina é a lei universal." Baixou-se e apanhou uma pequena pedra. "Estás a ver esta pedra? Vou largá-la." Deixou-a tombar. "Caiu, viste?
E porque caiu ela?"
"Por causa da lei da gravidade, meu irmão."
"Que é uma Lei Divina! A lei da gravidade é igual na Terra e na Lua, é igual hoje e há mil anos, é eterna e universal porque foi estabelecida por Alá. O mesmo se passa com a sbaria. A Lei Divina que Alá prescreveu para os homens, tal como a lei da gravidade e todas as leis da natureza, é eterna e universal,
válida
para
todos
os
homens
independentemente da sua raça ou nacionalidade, válida aqui ou na América, válida hoje, amanhã ou no tempo do Profeta, que a paz esteja com ele. A sbaria é a melhor lei porque vem de D&us e, "Portanto, temos de rejeitar as leis humanas." "Com todas as nossas forças! A base da mensagem de Alá é essa mesmo: todos têm de aceitar a Lei Divina e rejeitar todas as outras leis. O princípio que tudo funda é a verdade eterna que tu enunciaste há pouco: «La illaha illallab», «não há nenhum Deus senão Alá.» Essa proclamação constitui uma declaração de guerra à possibilidade de os homens proclamarem leis que não são permitidas por Deus. «La illaba illallab» tornou os homens livres uns dos outros. Um crente já não pode ser escravo de outro, todos somos finalmente livres e ninguém pode exercer autoridade sobre o outro. A única submissão é a Alá e à Sua sbaria. O islão pôs fim à justiça humana e instituiu a Justiça Divina. Alá disse que não se pode consumir álcool e logo os crentes obedeceram. Compara isso com os governos seculares jabilis, com toda a sua legislação, com todas as suas instituições, polícias e militares, e que têm tanta dificuldade em fazer com que uma pessoa obedeça às suas leis. A América também tentou abolir o álcool, ou não tentou? E conseguiu? Não é o fracasso da América em proibir o álcool, comparado com o sucesso do islão na mesma proibição, a prova de que a Lei Divina é muito mais eficiente do que as leis humanas?" "Além disso, somos mais livres." "Mais livres? Somos totalmente livres! O islão liberta o homem das imperfeitas leis e tradições humanas e submete-o unicamente a Deus. O universo inteiro fica assim sob a autoridade de Alá, e o homem, sendo uma ínfima parte desse universo, passa a obedecer às leis universais. A Lei Divina regula todas as matérias e põe o homem em harmonia com o resto do universo. O ser humano liberta-se. No islão não interessa a raça, a língua, a nacionalidade, a classe social, somos todos gotas de água que se juntam num ribeiro e todos os ribeiros convergem para um grande rio que desagua no oceano imenso. Compara, por exemplo, o império de Deus com os impérios humanos do passado. Olha para o Império Romano! Já viste o que se passava aí?" Ahmed ficou na dúvida sobre o sentido da pergunta. "Acabou?" "Claro que o Império Romano acabou, isso era inevitável. O que eu quero dizer, no entanto, é que se juntavam aí pessoas de todas as raças, mas a relação entre elas não era livre. Uns eram nobres e outros eram escravos, e os Romanos mandavam mais do que as pessoas de outras regiões. Olha para os grandes impérios europeus, como o britânico, o espanhol, o português ou o francês! Todos eles eram fundados na ganância e no orgulho, na opressão e na exploração de povos. Olha para o império comunista! Em vez de mandarem os nobres, ali quem manda é o proletariado, ou, para ser mais verdadeiro, uma elite privilegiada que usurpou o poder em nome do proletariado. Todo o comunismo é fundado na luta de classes, não na harmonia. Compara tudo isso com o islão, que liberta o ser humano destes grilhões e o submete universalmente à Lei Divina. No seu sentido mais profundo, «la illaha illallab» significa que todos os aspectos da vida humana devem ser regulados pela sharia, mas isso, meu irmão, tem uma importante consequência. Sabes qual é?" A pergunta era retórica e Ahmed permaneceu calado. "Aqueles que se revoltam contra a soberania de Alá e decidem proclamar leis humanas têm de ser enfrentados! Deus quis que o Profeta, que a paz esteja com ele, pusesse fim à jabiliyya e impusesse a Lei Divina entre os homens. Impusesse, repito. O problema é que, com o tempo, a sharia foi suspensa e a vontade de Alá já não está a ser respeitada>entre os homens." "O meu irmão acha que o Egipto vive agora em jabiliyya}" "Então não vive?", perguntou Ayman, o corpo inteiro de súbito a tremer, o tom de voz a inflamar-se. "Então não vive? Alá instituiu o islão justamente para pôr fim ao culto das imperfeitas leis humanas. Todas as pessoas da Terra devem obediência a Deus e a Deus apenas. Ninguém tem o direito de fazer leis. Aceitar a autoridade pessoal de um ser humano é aceitar que esse ser humano partilha a autoridade de Alá. Isso é heresia! Isso é a fonte de todos os males do universo!" Incapaz de permanecer sentado, ergueu-se num gesto de exaltação, o braço erguido a sublinhar as sentenças empolgadas. "Só há um Deus: Alá! Só há uma autoridade na Terra: Alá! Só há uma lei: a sharia! Mas aqui, no Egipto e nos países que se dizem do islão, a autoridade é do governo e a lei que vigora é a lei desse governo. E eu pergunto: é isso o islão? Claro que não! Claro que não! Estes governos que se dizem do islão são, na verdade, jahili, uma vez que estabelecem limites à sharia, não punindo os adúlteros com a lapidação até à morte nem ordenando a amputação da mão direita dos ladrões, nem sequer considerando que a apostasia é crime, conforme está previsto na Lei Divina. Uma pessoa pode ser adúltera, bêbeda ou até kafir, mas desde que obedeça à lei humana é classificada como boa cidadã! Isto faz algum sentido? E um crente que mate urna adúltera à pedrada, respeitando assim a sbaria, é, imagine-se!, classificado como criminoso e fanático e até vai para a prisão! E este um país islâmico? Como já te expliquei, Alá ordena no Santo Alcorão que se respeitem todos os Seus preceitos, não apenas alguns. Quem respeitar uns preceitos e ignorar outros é, em bom rigor, kafir. Isso significa que estes governos jahili que mandam em nós não passam, aos olhos de Deus, de governos kafirun." Ahmed tentou digerir as implicações do que acabara de escutar. Os governos que não aplicam a sharia são kafirun, repetiu mentalmente. Isso significava que o seu governo era também kafir. "Mas... mas... como podemos nós viver num país kafir}" "E isso justamente o que eu e os meus companheiros perguntamos. O Egipto é ou não é um país crente? Se é, tem de respeitar integralmente a Lei Divina. Se não a respeitar na totalidade, torna-se kafir." "Tens toda a razão, meu irmão!", exclamou Ahmed. "O que podemos nós fazer para impor o respeito pela vontade de Alá?" Ayman, passada a paixão que o arrebatara momentos antes, voltou a sentar-se. "Temos de derrubar o governo, não há outra possibilidade. Repito o que te disse: Alá quis que o Profeta, que a paz esteja com ele, pusesse fim à jahiliyya e impusesse a Lei Divina entre os homens. A palavra impusesse é aqui crucial, não me canso de o sublinhar. Somos, por isso, obrigados por Deus a reinstituir a comunidade islâmica na sua forma original, de modo a acabar com o estado de jahiliyya em que o mundo mergulhou. A soberania foi retirada a Alá e de novo transferida para o homem, fazendo com que uns homens mandem noutros e façam leis que contradizem a Lei Divina. Como resultado dessa rebelião, voltou a opressão. Olha para o nosso governo: não é ele corrupto? Não vês tu corrupção por toda a parte? Como é possível que os judeus tenham hoje mais força do que toda a umma? Como é possível que os cristãos mandem em nós e usem governos-fantocbes pam nos oprimirem? Como é possível que nos deixemos dividir? Precisamos de iniciar um movimento que una a umma, reinstitua a Lei Divina entre os homens e restabeleça o verdadeiro islão." "Foi por isso que a Al-Jama'a matou o faraó?" "Claro. Não foi por causa do acordo com os sionistas em Camp David, como alguns pensam. O conflito com os sionistas é apenas um sintoma do mal, não o mal em si. O verdadeiro mal é termos leis humanas que se sobrepõem à Lei Divina. Todo o mal que está acontecer à umma é resultado desse erro. Foi por isso que mandámos o faraó para o grande fogo!" "Mas a morte dele não resultou", constatou Ahmed. "A jahiliyya continua." "A matança do faraó foi um primeiro passo, que terá de ser seguido por outros. Não há alternativa. As ordens de Alá no Livro Sagrado são muito claras e não vale a pena fingirmos que elas não estão lá, como fazem muitos que se dizem crentes e que são, na verdade, jabili." Ahmed inspirou fundo e balançou-se no seu lugar, como um pêndulo, considerando o problema. Havia algum tempo que pensava no assunto, em particular desde que um turista que guiara pelo souq do Cairo lhe tinha dado uma ideia. "Se calhar há um outro caminho", murmurou. "Qual?" "Houve um kafir que uma vez me falou na possibilidade de se mudar de governo sem grandes problemas", disse, falando devagar. "Ele chamou a isso democracia. Segundo esse kafir, é..." O antigo professor ergueu-se de rompante. "Democracia?", perguntou quase aos berros, a voz carregada de indignação. "Democracia?" Ahmed deu um salto de susto no seu lugar; não esperava aquela reacção e muito menos o ardor escandalizado que nela sentia. "Porquê, meu irmão? Eu disse... eu disse alguma coisa de errado?" "Tu não tens estado a ouvir o que tenho explicado? Então ando eu aqui a revelar-te o islão, a mostrar-te que Alá ordenou o respeito integral da sbaria, que a verdadeira liberdade está no respeito da Lei Divina e tu... tu... tu vens-me falar de... de democracia? Não percebeste nada do que eu te ensinei?" "Mas, senhor profes... meu irmão!", tentou Ahmed argumentar, a voz submissa e tímida, o corpo encolhendo-se de embaraço. "Que eu saiba até agora não falámos sobre isto! Eu... eu na verdade nem sei bem o que pensar da democracia, queria perceber o que diz Alá sobre o assunto. Por favor, não se ofenda!" Ayman bufou, como uma máquina a vapor a libertar-se da pressão, e fez um esforço para se acalmar. Sentou-se e fitou o seu pupilo. "Tu sabes o que é democracia?" A pergunta deixou Ahmed momentaneamente atrapalhado. "Bem... quer dizer, democracia é... é nós podermos escolher um novo governo." "O que tem grandes e graves implicações. Imagina que os crentes estão em minoria e o governo que é eleito é kafir. O que acontece então? Aceitamos ser governados por kafirunV Posto perante uma possibilidade que nunca considerara, o pupilo ficou de sobrolho carregado a matutar no assunto. "Pois, não tinha pensado nisso." "E esse é apenas o menor dos problemas", apressou-se Ayman a adiantar. "O grande problema é teológico. Esse é inultrapassável." "Não estou a entender..." "Diz-me, qual é a lei verdadeira que deve reger os homens?" "Ora, é a Lei Divina, a sharia." 0 "Então tu não estás a ver que a democracia dá às pessoas o poder de fazerem elas próprias a lei? Numa democracia são as pessoas que decidem o que se pode ou não fazer, o que se pode ou não proibir. Isso é contra o islão! No islão as pessoas não têm o poder de decidir o que é legal ou ilegal. Esse poder é exclusivo de Alá! Os adúlteros têm de ser lapidados até à morte, mesmo que as pessoas discordem dessa penalização. Quem faz a lei é Deus, não são as pessoas! A Lei Divina está enunciada no Santo Alcorão e na sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, e as pessoas, gostem ou não, têm de a respeitar na íntegra. Se não o fizerem, tornam-se kafirun e a sociedade mergulha na jakiliyya. É por isso que a democracia é inaceitável para o islão. Ao retirar o poder a Deus e entregá-lo aos homens, ela está a semear a heresia e o politeísmo." "Mas, meu irmão, já li que a América quer que o islão tenha democracia..." Ayman soltou uma gargalhada sonora. "Isso dá-me vontade de rir!", exclamou. "Só pode dizer isso quem desconheça o islão! Ou, mais provavelmente, quem tenha um plano para destruir o islão! Dizer que um crente pode ser democrata é o mesmo que dizer que um crente pode ser politeísta. As duas coisas são contraditórias, é como querer misturar água e azeite! A democracia prevê liberdade de religião, incluindo o direito de as pessoas mudarem de crença, mas isso vai contra o islão, como muito bem sabes! Não foi o Profeta, que a paz esteja com ele, que decretou a pena de morte para os apóstatas? Como pode isso ser compatível com a liberdade de religião? A democracia prevê também a liberdade de expressão, o que significa que se pode até criticar Alá e as Suas decisões. Ora o islão proíbe terminantemente que se faça tal coisa." "Tem razão", reconheceu Ahmed. "Só não sei onde está estabelecida essa proibição." "Na sunnah. Existe um hadith que revela que o Profeta, que a paz esteja com ele, perguntou a um grupo de amigos: «Quem pode tratar do Kaab bin Ashraf?» Referia-se a um poeta que criticava Maomé, que a paz esteja com ele. Um homem chamado Musslemah perguntou: «Quer que o mate?» O Profeta, que a paz esteja com ele, respondeu: «Sim.» Musslemah decapitou então o poeta e Maomé, que a paz esteja com ele, disse: «Se ele se tivesse calado como todos os que partilham a sua opinião, não teria sido morto. Mas ele ofendeu-nos com a sua poesia e qualquer de vós que fizesse o mesmo também mereceria a espada». Este haditb mostra que não se pode criticar o islão e que a punição para quem o fizer é a morte. Aliás, é uma evidência que a crítica ao islão não pode ser feita. Como pode o respeito por Deus ser compatível com a liberdade de expressão? Como pode ser o islão compatível com a democracia?" Abanou a cabeça e esboçou um sorriso agastado. "Sabes o que desejam realmente os kafirun americanos, sabes?" Ahmed ficou calado, aguardando que Ayman respondesse ele próprio à pergunta que fazia. "Recita-me o que Alá diz na sura 5, versículo 51." O pupilo voltou a concentrar-se. "«O vós que credes! Não tomeis a judeus e cristãos por confidentes: uns são amigos dos outros. Aquele de entre vós que os tome por confidentes será um deles»." "O que Alá está a dizer nesse versículo é que, para além de não podermos ser amigos dos Povos do Livro, não podemos confiar neles. Isso está repetido noutras partes do Santo Alcorão, como a sura 3, versículo 100. Seria ingenuidade nossa acreditar que os judeus e os cristãos estão de boa-fé quando analisam a história islâmica e fazem propostas para a nossa sociedade, como essa da democracia. Quando vêrp con>essas ideias, o que eles realmente querem é atingir as fundações do islão e demolir a estrutura da nossa sociedade. Ao pregar a liberdade, a democracia e os direitos humanos, os kafirun cristãos estão a atacar o islão com poderosas armas intelectuais." "Mas o Irão tem democracia, meu irmão", argumentou Ahmed. "E, que eu saiba, os iranianos são muito respeitadores da sharia." "Já foram mais", retorquiu o mestre com um esgar irónico. "Além disso os iranianos são xiitas, não praticam o verdadeiro islão. De qualquer modo, é preciso notar que quem realmente manda no Irão são os ayatollahs, e esses não são eleitos. Os presidentes e os parlamentos do Irão, embora eleitos, não têm o poder de violar a sharia, apenas de a fazer respeitar. Mas o que é verdadeiramente importante é resistir à tentação de ceder perante as armas intelectuais do Ocidente kafir, sob pena de abandonarmos a Lei Divina e passarmos a querer a lei dos homens. Onde está dito no Santo Alcorão que é preciso democracia? Se Alá não fala nisso é porque ela não é necessária! Basta a Lei Divina, que regula o universo inteiro. Se a lei de Alá é boa para todo o universo, porque não há-de ela ser boa para os homens?" Ahmed coçou a cabeça, simultaneamente esclarecido e confuso. "Então o que fazemos, meu irmão?" "Fazemos o que Ibn Taymiyyah disse que fizéssemos." O pupilo soergueu o sobrolho, admirado com a referência ao xeque que combateu o domínio mongol. "Que quer dizer com isso?" "Posto perante uma situação semelhante à nossa, Ibn Taymiyyah consultou o Santo Alcorão e a sunnab do Profeta, que a paz esteja com ele, e concluiu que um governo que só acata parte da sharia e ignora a outra parte está, na verdade, a seguir homens e não Deus. O xeque disse: «Fé é obediência. Se alguma dela estiver com Alá e outra dela estiver com outro que não Alá, a guerra é obrigatória até que toda a fé esteja com Alá.»" Ahmed ficou um instante calado, amadurecendo as implicações da fatwa de Ibn Taymiyyah. "O meu irmão está a dizer que a única solução é a guerra?" O antigo professor de religião ergueu-se do seu lugar, dando a conversa por encerrada. Mas antes de regressar para o grupo dos seus companheiros da Al-Jama'a que se juntavam no outro lado do átrio para se prepararem para a oração do meio-dia, voltou-se para o seu pupilo. "Chamamos-lhe jibad." XXIX A ansiedade e a expectativa corroíam-lhe o espírito. Tomás espreitou o relógio pela décima vez em apenas cinco minutos e respirou fundo, sem saber se desejava que o tempo acelerasse ou abrandasse. Cerrou os olhos e desejou ardentemente saltar as duas horas seguintes. Que bom seria que, quando dentro de instantes abrisse de novo as pálpebras, fosse já uma da tarde e o encontro com Zacarias já tivesse ocorrido! Abriu os olhos e consultou mais uma vez o relógio. Onze e cinco. "Porra!" "O que foi?", perguntou Rebecca. "Ainda faltam cinquenta e cinco minutos." Remexeu-se no assento, desassossegado. "Não será melhor irmos agora?" "Para onde?" "Lá para fora!", exclamou Tomás, a voz numa tensão impaciente. "O Zacarias já cá pode estar." Rebecca passeou o olhar pelo exterior. "Já o viu?" "Não, claro que não." "Então qual é a pressa?" "Bem... sempre saímos desta maldita carrinha, não acha? Além disso, despachamos isto de uma vez por todas! Quanto mais cedo este assunto ficar resolvido melhor." A americana fitou-o, uma expressão maternal a derramar--se pelo seu olhar azul. "Tenha calma, Tom", disse num tom tranquilizador. "Vamos lá para fora no momento em que tivermos de ir. Nem um minuto antes, nem um minuto depois. Compreendeu?" As palavras de Rebecca pareciam funcionar como sedativos e Tomás deu consigo a descontrair-se. "Está bem." "Não se preocupe, estamos a controlar a situação", acrescentou ela, indicando com a cabeça os dois operacionais lá à frente. "O Jerry e o Sam estão a monitorar o que se passa lá fora." Os dois homens tinham parado de conversar entre eles e pareciam atarefados com os instrumentos electrónicos que enchiam aquilo a que a Tomás parecia ser um cockpit. "Deixe-os trabalhar. Mas se vir o Zacarias avise-me. Okay?" "Fique descansada." O silêncio imperava na carrinha. Apenas se ouviam as comunicações electrónicas no cockpit, com Jarogniew a testar os instrumentos e Sam a perscrutar todo o movimento exterior. Aquela espera era enervante, descobriu Tomás, sentindo o nervoso miudinho apoderar-se de novo dele. Onde seria exactamente o encontro com Zacarias? O antigo aluno apenas lhe falara no forte da cidade velha, mas agora que ali estava percebia que se tratava de um complexo enorme. Como localizar o ponto exacto do encontro? E o que iria acontecer? Será que Zacarias iria mesmo aparecer? Pelo telefone ele tinha-lhe parecido incrivelmente nervoso. E se sucedesse algum imprevisto? Rebecca sentiu a inquietação gradualmente apoderar-se de novo do historiador, que se remexia e suspirava no seu lugar, e percebeu que teria de lhe manter a mente ocupada. "Você viveu no Egipto?", perguntou ela. *■ * Tomás assentiu com a cabeça. "Presumo que tenha lido um dossiê sobre mim." "Sim, mas a documentação raramente mostra o que se passa dentro da cabeça de uma pessoa", devolveu a americana. "Diz o que ela fez, mas não consegue necessariamente explicar porquê." "Quer saber porque fui para o Cairo?" "Sim." "Porque quis aprender árabe e conhecer o islão", retorquiu ele. "Sou perito em línguas antigas e criptanálise. Até sei hebraico, a língua de Moisés, e aramaico, a língua de Jesus. Mas faltava-me a língua e a cultura de Maomé. Além do mais, não se esqueça de que o mais antigo tratado de criptanálise está escrito em árabe." "A sério?" "Não sabia? E um texto do século ix, mas só foi descoberto em 1987, num arquivo de Istambul. Intitula-se Um Manuscrito para Decifrar Mensagens Criptográficas.'1'' Arqueou as sobrancelhas. "Fascinante título, hem?" "Quem é o autor?" "Abu Yusuf Yacub ibn Ishaq ibn as-Sabbah ibn Omran ibn Ismail Al-Kindi." Tomás pronunciou o nome muito depressa, extraindo um esgar perplexo do rosto da sua interlocutora. "Quem?" O historiador soltou uma gargalhada. "Para facilitar chamamos-lhe apenas Al-Kindi", esclareceu, divertido. "É ele o principal responsável pelo meu interesse pela língua árabe. Fiz questão de ler na língua original o manuscrito que Al-Kindi escreveu. É fascinante. Foi por isso que fui para o Cairo aprender árabe. Mas, claro, acabei por me interessar também pelo islão. Estudei na Universidade de Al-Azhar, a mais prestigiada universidade islâmica do mundo, e passei a perceber melhor o que se passa na mente dos muçulmanos. Falei com todo o tipo de gente, nem imagina." "Conheceu fundamentalistas?" "Claro." Rebecca mudou de posição no assento, subitamente interessada. Começara por questionar Tomás sobre a sua passagem pelo Egipto apenas para o manter distraído, mas percebera nesse instante que o historiador podia abrir-lhe perspectivas novas. "E então?" "Então, o quê?" "Ora, não se faça desentendido!", exclamou Rebecca; agora era ela que se mostrava impaciente. "O que lhe disseram os tipos, Tom? Por que razão andam eles a atacar toda a gente? Porque fazem estes atentados horríveis? Eles explicaram-lhe isso?" O historiador franziu o sobrolho. "Está a insinuar que não sabe por que motivo os radicais levam a cabo estes ataques?" "Bem, presumo que isso se deva a... a razões socioeconómicas, à pobreza, à ignorância..." "Quais razões socioeconómicas? Qual pobreza? Qual ignorância? Não sabe que o Bin Laden é milionário? Não sabe que uma importante parte dos homens que levam a cabo estes atentados tem estudos universitários? Aliás, na reunião da NEST em Veneza apareceu um tipo da Mossad a dar-nos um perfil dessa gente." "Pois... tem razão. Então qual é a explicação? Descobriu-a?" "Claro." "E então?" "Aqueles a quem você chama fundamentalistas limitam-se a seguir à letra as ordens que estão no Alcorão %. na vida de Maomé. Tão simples quanto isso." "Não é bem assim", corrigiu ela. "Eles fazem uma interpretação abusiva do islão." "Quem lhe disse isso?" "Quer dizer...", hesitou Rebecca, desconcertada com a pergunta. "Isso está... sei lá, está na imprensa. Já li isso na Newsweek... ou na Time, não sei bem." Tomás inclinou ligeiramente a cabeça, como um professor a repreender com o olhar o seu aluno favorito. "E acreditou?" "Bem, não há razões para duvidar... ou há?" O historiador respirou fundo, desta vez já não de ansiedade, mas para ganhar balanço. O seu problema não era o que responder, mas por onde começar. "Oiça, é preciso entender um conjunto de coisas sobre o islão", disse. "A primeira, e talvez a mais importante de todas, é que o islão não é o cristianismo. Nós temos esta fantasia de que os profetas promovem sempre a paz e de que para eles a vida é sagrada, seja em que circunstâncias for. Em momento algum os profetas aceitam que se faça guerra e se mate outras pessoas. E ou não é verdade?" "Bem... sim, é verdade." Mudou de tom e tornou-se mais assertiva. "Mas também é verdade que a maior parte das guerras são provocadas pelas religiões! Quantas matanças não se fizeram em nome de Cristo?" "Ordenadas por Cristo?" "Não, claro que não. Mas em nome dele..." "Não confunda coisas", rectificou Tomás. "Quando um cristão faz a guerra, é importante que perceba que ele está a desobedecer a Cristo. Não foi Jesus que disse que, quando nos batem numa face, devemos dar a outra? Ao recusar-se a dar a outra face e ao optar pela guerra, o cristão está a desobedecer ao seu Profeta, ou não está?" "Claro que sim." "Pois essa é uma importante diferença entre o cristianismo e o islão. É que, no islão, quando um muçulmano faz a guerra e mata gente pode estar simplesmente a obedecer ao Profeta. Não se esqueça de que Maomé era um chefe militar! No islão pode acontecer que o muçulmano que se recuse a fazer a guerra seja precisamente aquele que desobedece ao seu Profeta!" Rebecca franziu o sobrolho, numa expressão de absoluta incredulidade. "Está a falar a sério?" "Registe isto que eu lhe vou dizer", acrescentou o historiador, quase a soletrar as palavras. "A maior parte do Alcorão é constituída por versículos relacionados com a guerra." O rosto da americana manteve desenhada a incredulidade. "Isso não pode ser!", exclamou. "Sempre ouvi dizer que o islão é totalmente pacífico e tolerante." "E é, se formos todos muçulmanos. O islão impõe regras de paz e concórdia entre os crentes. O problema é se não formos muçulmanos. Está escrito no Alcorão, creio que no capítulo 48: «Muhammad é o Enviado de Deus. Os que estão com ele são duros com os incrédulos, compassivos entre si.» O compassivos entre si é lido como uma ordem de tolerância entre os crentes e o duros com os incrédulos de intolerância para com os infiéis. No nosso caso, os não muçulmanos, as ordens inscritas no Alcorão ou no exemplo de Maomé são que temos de pagar aos muçulmanos uma taxa humilhante. Se não o fizermos, seremos mortos. Ou seja, se levarmos à letra as regras do islão, a escolha é muito simples: ou nos convertemos em muçulmanos, ou nos humilhamos, ou somos assassinados." * "Mas eu nunca ouvi falar nisso..." "Nunca ouviu porque no Ocidente estes factos são ocultados. A versão do islão que nos é apresentada é uma versão expurgada destes pormenores perturbadores. Dão-nos uma versão cristianizada do islão. É até frequente ouvir líderes islâmicos no Ocidente a citarem textos sufis para mostrar que o islão é só paz e amor. Acontece que o sufismo é um movimento místico islâmico muito minoritário e com forte influência cristã, coisa que não nos é explicada. A ideia que fica é que o islão é muito próximo do cristianismo, o que não é bem verdade. Maomé fazia coisas que, sendo naturais naquele tempo, são hoje inaceitáveis para uma mente ocidental. Essas coisas são-nos cuidadosamente escondidas." "Hmm... isso é novidade para mim", disse Rebecca com um esgar céptico. "Dê-me exemplos de coisas que não nos são contadas." "Olhe, a primeira grande batalha em que Maomé esteve envolvido foi a batalha de Badr, contra a sua própria tribo de Meca. Os muçulmanos venceram e os líderes inimigos foram mortos ou capturados. Um deles, chamado Uqba, implorou pela sua vida e perguntou a Maomé quem olharia pelos seus filhos no caso de ele ser executado. Sabe o que o Profeta lhe respondeu? «O Inferno», disse, e mandou matá-lo. Um outro líder inimigo, chamado Abu Jahl, foi morto e o muçulmano que o decapitou exibiu a cabeça decepada diante de Maomé. Ao ver a cabeça, e depois de se certificar de que se tratava realmente de Abu Jahl, o Profeta deu graças a Deus pela morte do seu inimigo." "Jesus!", exclamou Rebecca. "Isso aconteceu mesmo?" "Está amplamente documentado", assegurou Tomás. "Daí que o antigo líder da Al-Qaeda no Iraque, Al-Zarkawi, tenha invocado este incidente quando decapitou um refém americano em 2004. Se bem me lembro, Al-Zarkawi disse: «O Profeta, o mais misericordioso, ordenou que se cortassem os pescoços de alguns prisioneiros em Badr. Ele estabeleceu um bom exemplo para nós.»" Rebecca mordeu o lábio. "Daí que estes fundamentalistas andem a decapitar reféns..." "Estão simplesmente a seguir o exemplo do Profeta, coisa que o Alcorão lhes ordena que façam." "E há mais situações dessas?" "Quer mais?", admirou-se Tomás. "Então vou contar-lhe a história de uma tribo judaica que se recusou a converter-se ao islão. Eram os Qurayzah. Maomé cercou a tribo durante quase um mês e os Qurayzah acabaram por se render. Maomé pediu--lhes que escolhessem alguém que decidisse o seu destino. Os judeus escolheram um muçulmano chamado Mu'adh, que já conheciam e de quem esperavam clemência. Mas Mu'adh optou por executar os homens e escravizar as mulheres e as crianças. Ao tomar conhecimento desta decisão, Maomé disse: «Decidiste em conformidade com o julgamento de Alá lá em cima nos sete céus.» Maomé foi então ao mercado de Medina e ordenou a abertura de uma trincheira no chão. Depois mandou buscar os prisioneiros e, à medida que eles lhe eram apresentados, decapitava-os nas trincheiras. As mulheres e crianças cativas foram depois entregues aos muçulmanos, com excepção daquelas que se converteram ao islão." "Que horror! Tem a certeza de que isso aconteceu?" "Claro que sim. Aliás, há até um versículo do Alcorão que se refere a este episódio." Rebecca abanou a cabeça. "Não fazia ideia nenhuma disso." "E o que eu lhe estava a tentar explicar há pouco", insistiu o historiador. "No Ocidente é apenas apresentada^uma jíersão cristianizada do islão, havendo sempre o cuidado de eliminar todos estes pormenores que nos poderão chocar e alienar. Está a ver Jesus a mandar cortar cabeças de pessoas e a dizer a condenados que quem vai tratar dos seus filhos será o Inferno e a vangloriar-se perante a cabeça decepada de um inimigo? Isto é chocante para nós e é por isso que estes pormenores não nos são revelados! Mas é importante que os conheçamos para percebermos melhor a Al-Qaeda, o Hamas e toda essa gente." "Claro, tem razão." "Lembre-se de que os fundamentalistas não estão a inventar nada. Limitam-se a executar à letra as ordens do Alcorão e a seguir o exemplo do Profeta. Eles citam profusamente os textos sagrados do islão e o grande problema é que, quando vamos às fontes verificar o que está lá de facto escrito, descobrimos que os fundamentalistas têm razão. Está lá mesmo escrito o que eles dizem que está escrito." "Mas isso é muito grave!", exclamou Rebecca. "Se as coisas são realmente assim, então..." "Pessoal." "... não estou a ver como poderemos nós..." "Pessoal!" A segunda vez, o tom de voz tornou-se mais peremptório e conseguiu sobrepor-se àquele diálogo empolgado. Rebecca e Tomás pararam de falar, voltaram a cabeça para os bancos da frente e viram Sam inclinado para trás, a olhá-los. "O que é, Sam?" "Odeio interromper a vossa conversa. Vocês parecem tão entusiasmados que até me custa." "Está bem, mas o que é? Passa-se alguma coisa?" O operacional voltou o braço para eles, exibiu o relógio e bateu com o dedo no mostrador. "Está a chegar a hora." XXX Sempre que Ahmed se aproximava do grupo de presos da Al-Jama'a al-Islamiyya que rodeava Ayman, ficava atento e escutava as conversas que se cruzavam no ar. Os temas eram variados, da teologia à política e à filosofia, mas nessas múltiplas conversas, umas serenas e outras apaixonadas, destacava-se sempre uma palavra por todos repetida a qualquer instante. Jihad. Como conhecedor de árabe e bom muçulmano, Ahmed sabia muito bem o que ela significava. A origem do termo estava em juhd, uma palavra que queria dizer esforço, luta, tentativa, acto de batalhar. O seu sentido correcto emergia naturalmente do contexto. Mas, ainda como conhecedor da língua árabe e bom muçulmano, Ahmed não ignorava que, no âmbito daquelas discussões, ela significava sobretudo guerra santa, o combate pelo caminho de Alá. Nessa manhã, enquanto aguardava que Ayman estivesse disponível para lhe explicar mais uma questão teológica, Ahmed sentiu o olhar de um dos elementos da Al-Jama'a pousar sobre ele. Era um homem com uma cicatriz a cortar--lhe a cara e de olhos negros penetrantes como adagas; dizia--se que já matara dois polícias. "Meu irmão, porque não te juntas à jibad?", perguntou o homem, o tom entre a provocação e o desafio. "Porventura não queres agradar a Alá?" "Claro que quero." "Então a jihad é o caminho." "Há muitas maneiras de fazer a jibad", argumentou Ahmed, papagueando o que o xeque Saad lhe ensinara anos antes. O homem da Al-Jama'a riu-se, trocista, e abanou a cabeça com uma ponta de desprezo. "Essa é a desculpa de quem não quer fazer a jibad e prestar serviço a Alá. Assim não vais pelo bom caminho, meu irmão." A interpelação deixou Ahmed perturbado. Isto é uma desculpa? O que queria ele dizer com isso? Era ou não verdade que havia várias maneiras de fazer a jibad? O tom trocista implícito na observação do recluso da Al-Jama'a incomodou-o, não apenas pelo mérito da questão em si, mas também porque admirava aqueles homens. Por Alá, eles tinham enfrentado o governo e morto o faraó! Fizeram-no sabendo que iriam ser perseguidos, torturados e executados, mas fizeram-no! Que coragem! Fizeram-no porque estavam ao serviço de Alá e puseram Alá acima das suas próprias vidas! Que fé! Eram realmente dignos de admiração! E um destes homens, um destes bravos, um destes heróis que tanto admirava... troçara dele por causa da sua resposta! Por Alá, teria de tirar tudo aquilo a limpo! Quando Ayman ficou finalmente livre para o elucidar sobre a questão que o levara até ele, Ahmed mudou de ideias e preferiu questioná-lo sobre a guerra santa. "O que sabes tu sobre a jihad?", perguntou Ayman quando o seu pupilo mencionou o assunto. "Sei o que o xeque Saad me ensinou nas lições privadas e o que ele dizia na mesquita." * "Ah, o sufi!", exclamou Ayman com um tom de desprezo a colorir-lhe as palavras. "E o que te ensinou ele, meu irmão?" "Disse-me que a jihad se refere a vários tipos de luta, não apenas à luta militar, e que pode ser a batalha moral que uma pessoa leva a cabo para resistir ao pecado e à tentação." "E que versículo do Santo Alcorão citou ele para sustentar tão interessante observação?" A pergunta, feita com inconfundível ironia, deixou Ahmed um pouco atrapalhado. "Bem, quer dizer... ele não citou o Livro Sagrado..." "Então? Citou o quê?" "Um haditb." "Que haditb é esse? Conta-me lá." "É um haditb que relata que, quando Maomé veio de uma batalha, disse aos amigos que regressava da pequena jihad e que ia agora para a grande jihad. Quando os amigos lhe perguntaram o que queria ele dizer com isso, o apóstolo de Alá respondeu que a pequena jihad era a batalha da qual tinha vindo para lutar contra os inimigos do islão e que a grande jihad é a luta espiritual da vida muçulmana." Ayman passou os dedos deformados pela barba grisalha, uma expressão sibilina a cintilar-lhe nos olhos. "Diz-me, meu irmão, onde está relatado esse haditb?" "Enfim... isso não sei." "Mas sei eu!", atalhou o mestre, de repente peremptório, a voz a ganhar vigor. "Esse episódio é mencionado por Al-Ghazali, que viveu cinco séculos depois do Profeta, que a paz esteja com ele. Sabes quem foi Al-Ghazali, presumo..." Ahmed baixou a cabeça, quase envergonhado. "O fundador do sufismo." "Não admira que o teu mullab te tivesse enchido a cabeça com esses disparates cristãos! A batalha em nome de Alá é pequena jihad? Hmpf! E preciso não ter vergonha!" Apontou o dedo ao pupilo. "Para tua informação, Al-Ghazali menciona esse badith sem citar a sua fonte. Esse hadith não consta da lista de ahadith compilada no Sabib Bukbari ou no Sabib Muslim. E, pois, um hadith falso, inventado pelos sufis para, aos olhos dos crentes, enfraquecer a importância da espada. Aliás, basta ler o Santo Alcorão e todos os ahadith credíveis para perceber que essa história disparatada é incoerente com a palavra de Alá ou a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele. Em ponto algum do Livro Sagrado Alá descreve a jihad nesses termos, nem Maomé, que a paz esteja com ele, o fez em qualquer hadith citado por Al-Bukhari ou Al-Muslim, os mais fiáveis de todos os ahadith jamais compilados. Esquece, pois, essa história disparatada que te contaram." Ahmed manteve a cabeça baixa, quase como se estivesse arrependido e se quisesse penitenciar. "Sim, meu irmão." "Que mais disparates te contou o teu mullah sobre a jihad?" "Contou-me que existem três categorias de jihad: a jihad da alma, a jihad contra Satanás e a jihad contra kafirun e hipócritas. Disse-me que tem de se completar a primeira para passar à seguinte." "Hmm!", murmurou Ayman, ponderando a exposição que acabara de ouvir. "O teu mullah é manhoso, usou a verdade para te enganar. Sabes, é verdade que essas três jibads existem e é verdade que são categorias. Mas o problema é que o teu mullah, embora reconheça explicitamente que elas são categorias, se finge despercebido e as trata como se fossem etapas. Não são etapas! Se fossem etapas, eu teria de deixar de lutar contra Satanás enquanto estivesse a lutar pela minha alma. Ora isso não faz sentido nenhum, pois não? A ve-rdade»é que essas três categorias caminham lado a lado, de mão dada! Eu faço a jibad da alma ao mesmo tempo que faço a jihad contra Satanás e ao mesmo tempo que faço a jibad contra kafirun e hipócritas. Uma jihad não exclui as outras, antes as complementa e as ajuda! Percebeste?" "Sim, meu irmão." "Para entenderes a jibad e a ordem de Alá para a fazer tens de começar por compreender uma coisa", disse o mestre. "A revelação da sbaria foi gradual. O Profeta, que a paz esteja com ele, não recebeu todas as revelações de uma só vez. Alá preferiu desvendar a Lei Divina por etapas e ao longo de muitos anos. Primeiro nomeou o Seu mensageiro, que a paz esteja com ele, e mandou-o converter a sua família e as tribos, sem combater nem impor o pagamento de jizyab, o imposto que os kafirun têm de pagar para poderem viver com os crentes. Por ordem de Alá, os treze anos do Profeta em Meca, que a paz esteja com ele, foram assim passados apenas em pregação. Depois Alá mandou-o emigrar para Medina e pregar para as tribos que aí viviam. Mais tarde, Deus deu-lhe autorização para combater, mas apenas aqueles que o combatiam. O Profeta, que a paz esteja com ele, não foi autorizado a fazer guerra contra aqueles que não lhe faziam guerra. A seguir, Alá mandou-o combater os politeístas até que a Lei Divina fosse inteiramente instituída. Quando esta ordem de jihad foi dada, os kafirun foram divididos em três categorias: os que estavam em paz com os crentes, os que estavam em guerra com os crentes e os dbimmies, aqueles que viviam connosco e pagavam a jizyab, recebendo assim a nossa protecção. Finalmente, veio a ordem para fazer a guerra contra os Adeptos do Livro que nos fossem hostis, guerra que só iria parar se eles se convertessem ao islão ou, em alternativa, aceitassem pagar a jizyab e se tornassem dbimmies. "Portanto só sobraram duas categorias de kafirun..." "Nem mais. Os que estavam em guerra com os crentes e os dbimmies. Essa foi a etapa final, que ainda se mantém porque não há nada no Santo Alcorão ou na sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, a removê-la." Inclinou-se na direcção de Ahmed. "E agora pergunto-te eu: por que razão é importante perceber estas fases?" "Por causa da nasikb, a ab-rogação." "Exactamente! A revelação da vontade de Alá decorreu por etapas e cada etapa anulou a anterior. Agora diz-me: quando o teu antigo mullah, esse kafir sufi que te andou a ensinar, falava de jibad, quais eram as etapas que ele mencionava?" "As primeiras." "E porquê?" A pergunta extraiu uma expressão inquisitiva de Ahmed. "Não sei." "Porque eram as que lhe convinham!", exclamou Ayman com grande veemência. "Porque eram as que lhe permitiam apresentar um islão em paz com os kafirunl Porque eram as que não chocavam os kafirun cristãos! Esse mullah maldito optou por ignorar que a jibad é o principal tópico do Santo Alcorão! Esse mullah herege optou por ignorar que a expressão jibad fi sabilillah, ou a guerra no caminho de Alá, é usada vinte e seis vezes no Santo Alcorão! Esse mullah apóstata optou por ignorar que o Santo Alcorão tem suras inteiras dedicadas exclusivamente à guerra e que algumas delas foram baptizadas com o nome de batalhas, como a sura Ahzaab, a sura Qital, a sura Fath e a sura Saff! O que diz Alá na sura 8, versículo 65? «O Profeta! Incita os crentes ao combate.» E o que diz Alá na sura 9, versículo 14? «Combatei-os! Deus atormentá-los-á pelas vossas mãos, humilhá-los-á e auydliar--vos-á contra eles.» Como ignorar estas ordens directas de Deus? Como se isso não bastasse, há milhares de abadith que ilustram a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, em relação à guerra! Só o Sabib Bukhari compila mais de duzentos capítulos com o título de jihad e o Sabib Muslim conta cem capítulos com o mesmo título! Não te esqueças que o Profeta, que a paz esteja com ele, disse: «Eu desci por Alá com a espada na minha mão e a minha riqueza virá da sombra da minha espada. E aquele que discordar de mim será humilhado e perseguido.»" Inclinou-se na direcção de Ahmed, os olhos em fogo, a voz alterada. "Sabes por que razão esse teu mullab optou por ignorar tudo isto, sabes?" Sentindo o olhar intenso do mestre, o pupilo abanou a cabeça sem se atrever a dizer uma palavra. "Porque ele faz parte da conspiração kafir que tenta impedir os crentes de compreenderem verdadeiramente o Santo Alcorão!", bradou. "Eis porquê!" Ahmed engoliu em seco e, a custo, recuperou a voz. "Mas, meu irmão, é um facto que Alá diz no Alcorão que não há compulsão na religião..." "É um facto", concordou Ayman, baixando o tom de voz para readquirir a serenidade. "E essa a Sua vontade, ninguém pode ser obrigado a converter-se ao islão e a submeter-se a Alá. Claro, a recusa da conversão implica que a pessoa irá prestar contas no dia do juízo, mas esse problema é entre essa pessoa e Alá, não é um problema dos crentes. Alá mandou-nos deixá-los em paz, Ele tratará do assunto no momento próprio. Porém, lembra-te de que as últimas revelações de Deus, que ab-rogam as anteriores, determinam que os kafirun que não se convertem são obrigados a pagar jizyah e a tornar-se dhimmies. Se não o fizerem, serão mortos. E ou não verdade?" bim. "Como isto não lhes interessa, porém, os ditos crentes que querem agradar aos kafirun cristãos, como o teu mullah sufi, extraem dos primeiros versículos coránicos verdades finais, ignorando convenientemente que se trata de verdades provisórias e que só foram válidas numa etapa inicial da revelação da Lei Divina. Eles enunciam uma verdade, a de que não há compulsão na religião, para defender que as guerras só podem ser defensivas, o que é falso." Ahmed ficou intrigado com esta última afirmação. "O que quer o meu irmão dizer com isso? A jihad não é defensiva?" O antigo professor de Religião fez uma careta de enfado. "Defensiva? Então quando o Profeta, que a paz esteja com ele, atacou as tribos judias e mais tarde atacou Meca estava a fazer uma jihad defensiva? Então quando Omar, bendito seja, conquistou aqui o Cairo, conquistou Damasco e conquistou ainda Al-Quds, estava a fazer uma jihad defensiva? Que jihad defensiva? Onde está ela mencionada no Santo Alcorão? Falam em jihad defensiva como se ela fosse uma guerra defensiva. A jihad não é uma mera guerra! Não tenhamos medo das palavras: a jihad é o recurso à força para espalhar a Lei Divina entre os homens!" "Mas... justamente, meu irmão. Não é isso uma contradição? Como podemos nós espalhar a Lei Divina à força se não há compulsão na religião?" Ayman suspirou, num esforço para dominar a impaciência. "Por Alá, vejo que as influências do mullab sufi ainda te perturbam o raciocínio", exclamou. "Estás a confundir duas coisas distintas. E verdade que não há compulsão na religião. Mas é também verdade que, nas últimas revelações que ab--rogaram as anteriores, Alá ordenou que os kafirun que não se convertessem teriam de pagar jizyah ou ser, mortos. A ordem de Alá na sura 9, versículo 29 do Santo Alcorão é muito clara: «Combatei os que não crêem em Deus nem no Último Dia nem proíbem o que Deus e o Seu Enviado proíbem, os que não praticam a religião da verdade entre aqueles a quem foi dado o Livro! Combatei-os até que paguem o tributo por sua própria mão e sejam humilhados»." Ergueu o dedo, peremptório. "«Combatei-os até que paguem o tributo»", repetiu. Fez um gesto a abarcar o pátio da cadeia, como se aquele espaço contivesse o mundo. "Acaso os kafirun hoje em dia pagam o tributo?" "Que eu saiba, não." "Então se não pagam, e em obediência às ordens de Alá, o que lhes devemos fazer?" Confrontado directamente com a questão, Ahmed hesitou, na dúvida sobre se deveria levar o raciocínio até ao fim. "Devemos... combatê-los?" "Seguindo o exemplo do Profeta, que a paz esteja com ele, temos primeiro de dar aos kafirun um prazo para se converterem ou pagarem a jizyah." Inclinou-se sobre o seu pupilo, quase ameaçador. "Mas, se não respeitarem esse prazo, terão de ser mortos, claro." Ahmed mordeu o lábio inferior. "Isso não será um pouco... um pouco brutal?" O rosto de Ayman enrubesceu, as sobrancelhas carregaram-se e o corpo tornou-se tenso. "Brutal?", quase gritou, escandalizado. "O que queres dizer com brutal?" "Bem... matar uma pessoa, mesmo um kafir... enfim... hoje em dia isso talvez não seja a..." "Hoje em dia?", cortou Ayman, furioso. "Desde quando é que a sharia tem prazo de validade? A Lei Divina é eterna! As ordens de Alá são eternas! A lei da gravidade vale hoje como valia no tempo de Maomé, que a paz esteja com ele! A ordem de obrigar um kafir a pagar jizyab sob pena de ser morto vale hoje como valia no tempo de Maomé, que a paz esteja com ele! A sharia é eterna! Ainda não percebeste isso?" Ahmed baixou a cabeça, constrangido. "Sim, meu irmão", sussurrou, a voz num fio. "Tem razão. Desculpe. Rogo o seu perdão." O recuo do pupilo acalmou Ayman. O antigo professor de Religião ergueu os olhos e varreu o céu com a mão. "Por detrás do universo existe uma Lei que o regula, uma Força que o move, uma Vontade que o ordena", disse, a voz já mais controlada. "Em nenhum instante é possível desobedecer à Vontade e à Lei Divina. As estrelas, a Lua, as nuvens, a natureza, tudo se submete à Sua Lei e à Sua Vontade e é assim que o universo encontra a sua harmonia." Indicou os reclusos que se encontravam no pátio. "Ora o homem é parte deste universo e, assim sendo, as leis que o governam não são diferentes das leis que governam o universo. Da mesma maneira que Alá criou leis que regulam o universo, Ele criou leis que regulam o homem. Os seres humanos têm de obedecer à Lei Divina para estarem em harmonia com o universo e em paz consigo mesmos. Se, em vez de o fazerem, cederem às suas tentações e instintos e rejeitarem a sharia, então entrarão em confronto com o universo e aparece a corrupção e todos os problemas que estamos a ver no islão e no mundo. Está claro isto?" "Sim, meu irmão." "O islão é a declaração de que o poder pertence a Deus e a Deus apenas. Os kafirun são livres de escolher a sua religião, mas essa liberdade não significa que se podem submeter a leis humanas. Qualquer sistema instituído no mundo tem de ter a autoridade de Alá e as suas leis têm de emanar da Lei Divina. É sob a protecção deste sistema universal que cada indrVíduo é livre de adoptar a religião que quiser. Mas lembra-te: quem usurpar o poder divino tem de ser afastado. Esse afastamento é feito através da pregação ou, quando se levantam obstáculos, através da força. Ou seja, com recurso à jihad." Ahmed abanou a cabeça, frustrado. "Não foi nada disso que o xeque Saad me ensinou durante tantos anos. Ele dizia que a jihad era apenas defensiva e que..." "Isso é conversa de cobardes que têm medo de assumir as consequências das ordens de Alá no Santo Alcorão ou da sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele", cortou Ayman, agastado. "Fingem que não está lá o que manifestamente está lá! Os kafirun cristãos distorcem o conceito de jihad, insi-nuando que ela impõe a tirania. Bem pelo contrário, a jihad liberta os homens da tirania. E esses cobardes que se dizem crentes ficam tão embaraçados diante dos kafirun cristãos que se põem a argumentar que a jihad é meramente defensiva e exibem os versículos já ab-rogados como suposta prova." Inclinou a cabeça. "Quando o teu mullah falava em jihad defensiva estava a referir-se à defesa de quê?" "Bem... das terras do islão, suponho eu." "Que vergonha! Como é possível que ele tenha sugerido isso? Quem diz tal coisa está a diminuir a grandeza do islão e a dar a entender que as terras são mais importantes do que a fé. A jihad só é defensiva no sentido em que defende o homem e o liberta dos grilhões de outros homens. Só nesse sentido é ela defensiva. De resto, a ordem de Deus é a de espalhar a Lei Divina por toda a humanidade! E como se faz isso? Só a pregar? Claro que não! Teríamos de ser muito ingénuos para pensar que as sociedades jahili aceitariam pôr as suas leis de acordo com a Lei Divina, de modo a viabilizar um clima de liberdade que permitisse que os kafirun escolhessem a religião que querem sem constrangimentos. E por isso que a jihad é necessária. A jihad não se destina a defender terras, destina-se a impor a Lei Divina!" Ayman inclinou-se no seu lugar e varreu o chão do pátio com as palmas das mãos até fazer um pequeno monte de areia. Depois pegou num pedaço de areia e ergueu-o. "Quanto achas que vale isto?" Ahmed fitou a areia que se escapava em grãos por entre os dedos do mestre. "Sei lá... nada, acho eu." "Nada", ecoou Ayman, limpando as mãos uma à outra para se desfazer da areia. "Ou seja, as terras em si não têm valor. O islão procura a paz, mas não uma paz superficial que se limite a garantir a segurança das suas terras e das suas fronteiras. O que o islão procura é a paz mais profunda de todas: a paz de Deus e de obediência a Deus apenas. Enquanto essa paz não existir, teremos de lutar por ela. A luta faz-se através da pregação e, quando necessário, da jihad. Há algum verdadeiro crente que, depois de ler o Santo Alcorão e de conhecer a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, pense que a jihad diz apenas respeito à defesa das fronteiras? Deus diz no Livro Sagrado que o objectivo é limpar a corrupção da face da Terra! Se fosse a defesa das fronteiras, Ele tê-lo-ia dito. Mas não disse. A jihad não é pois uma mera fase temporária, mas uma etapa fundamental que existe enquanto existir jahiliyya entre os homens. É obrigação do islão lutar pela liberdade do homem até que todos se submetam à Lei Divina. O destinatário do islão é toda a humanidade e a sua esfera de acção é o planeta inteiro. Ou os kafirun se convertem ou pagam a jizyab. São essas as ordens de Alá e é para isso que existe a jihad." "Sim, meu irmão." * Ayman recostou-se no seu lugar e fixou o olhar no firmamento. "Se os kafirun não o fizerem, terão de ser mortos." XXXI Crrrrrr. "Bluebird:' A voz rasgou o ar com a sua tonalidade eléctrica, enxameada pelo ranger raspado da estática. "Bluebird, está a ouvir-me?" Crrrrrr. Tomás ajeitou o aparelhinho que lhe haviam instalado no ouvido, tentando melhorar as condições de recepção. "Isso é comigo?", perguntou o historiador. "Sim", confirmou a voz. "Está a ouvir-me bem?" "Muito bem." Crrrrrrr. A estática voltou. "Já localizou o Charlie}", perguntou Jarogniew no auricular, quebrando mais uma vez a estática. "Qual Charlie}" "O tipo com quem se vai encontrar, já lhe expliquei aqui na carrinha. Você é o Bluebird, ele é o Charlie." O historiador olhou em redor, tentando reconhecer algum rosto na praça. Havia muita gente a circular por ali; eram sobretudo muçulmanos mas nenhum parecia o seu ex-aluno. "Não, ainda não vi o Zacarias." "Fuck!", protestou Jarogniew. "Não use o nome verdadeiro, goddam it! Ele é o Charlie, já lhe disse." Tomás fez um estalido impaciente com a língua. * "Mas que charada mais absurda!", reclamou, revirando os olhos. "Qual é o problema de o chamar pelo nome? Para quê esses códigos idiotas? Isto é algum filme? Eu tenho cara de 007? Que palhaçada vem a ser esta?" "Segurança." "Segurança de quê?" "Jesus! Odeio trabalhar com amadores porque só fazem disparates", resmungou Jarogniew, rangendo os dentes de impaciência. "Oiça, Bluebird, você tem de perceber que os tipos com quem estamos a lidar têm acesso a tecnologia. Se eles souberem deste encontro é muito natural que monitorizem as frequências de rádio. Se o fizerem vão dar connosco. Por isso aconselho-o a usar os nomes de código que eu lhe dei aqui na carrinha. Entendeu?" O historiador suspirou, submetendo-se sem estar inteiramente persuadido. "Sim." Crrrrrr. Olhou mais uma vez em redor. O forte de Lahore parecia--lhe um oásis tranquilo aberto no meio do inferno urbano. Apesar disso, na praça junto à entrada do forte havia muito movimento; eram os crentes a sair da mesquita Badshahi, uma das maiores e mais belas do mundo, elegante com os seus quatro minaretes e situada mesmo do outro lado da praça. O forte e a mesquita estavam construídos no imponente estilo mogul, caracterizado pelas paredes grossas, pela pintura vermelha atijolada, pelas cúpulas largas que lhe lembravam as stupas tibetanas. Eram linhas arquitectónicas soberbas, o que não o surpreendia; no fim de contas, o estilo mogul criara a grandeza do Taj Mahal. Apesar da espectacularidade da mesquita, o que ali o deixava embasbacado era sobretudo o Portão Alamgiri, a porta de acesso ao forte. Tratava-se de uma entrada enorme. Tomás sabia pelos livros de história que era costume no tempo dos moguls passarem por ali elefantes com os membros da família real no dorso. Encarou a porta e esforçou-se por imaginar a cena: elefantes a cruzarem o Portão Alamgiri. Que espectáculo devia ter sido! Espreitou o relógio. Onze e quarenta e cinco. Faltavam quinze minutos para a hora que combinara com Zacarias. Passeou de novo os olhos pela praça, atento aos rostos que por ali circulavam, mas mais uma vez não identificou a face familiar. Teria havido algum problema? Será que o seu antigo aluno iria mesmo aparecer? Crrrrrr. "Bluebird." Desta vez era uma voz feminina ao auricular. "O que é, Rebec..." Não concluiu o nome, lembrando-se do que Jarogniew lhe dissera minutos antes. Não podia chamar ninguém pelo nome. Mas qual era o código que a identificava? "O que é, Sbopgirl?" "Estou a..." Crrrrrr "... mesmo em..." Crrrrrr "... minarete que..." Crrrrrr. "Diga lá outra vez?" Crrrrrr. "... e não sei..." Crrrrrr. "Shopgirl?" Crrrrrr. A comunicação com Rebecca parecia comprometida. Por segurança, Tomás chamou Jarogniew pelo nome de código. "Alpha? Está tudo bem?" * Crrrrrr. "Alpha?" Crrrrrr. Tornava-se claro que, por qualquer motivo, as comunicações tinham ido abaixo. Com uma interjeição irritada, Tomás deu meia volta e regressou para junto da carrinha. "Fiquei sem comunicação." Mal Tomás entrou na viatura, Jarogniew retirou-lhe do cinto o pequeno aparelho de recepção e emissão e pôs-se a fazer testes para localizar o problema. Apercebendo-se de que surgira um imprevisto, Rebecca voltou também para a carrinha para se inteirar do que se passava. "Tens dez minutos para resolver isso", avisou ela na direcção de Jarogniew. "Fica descansada", retorquiu o operacional, embrenhado no aparelho. Tomás e Rebecca instalaram-se nos bancos de trás, numa expectativa nervosa. A hora do encontro estava a chegar e havia problemas nas intercomunicações. Que mais iria correr mal? Muito experiente em situações de tensão, a americana tinha consciência de que nada dependia dela nesse instante e o melhor era mesmo tentar descontrair-se. Precisava de afastar a cabeça daquela dificuldade e a melhor maneira era distraí-la com outro assunto. "Ainda estou a pensar naquilo que me contou há bocado", murmurou. "Confesso que fiquei chocada." "Compreendo", devolveu Tomás. "Mas não é caso para tanto." "Como não é caso para tanto?" O historiador balançou a cabeça. Explicar história a leigos tinha os seus inconvenientes... "Você precisa de perceber que Maomé era um homem do século vil", disse. "As coisas que ele fez têm de ser compreendidas no contexto daquele tempo. O facto é que Maomé uniu os Árabes e ergueu uma civilização. Promoveu o monoteísmo, encorajou a caridade, estabeleceu regras de convivência social... fez muita coisa. Foi sem dúvida um grande homem. Não podemos é avaliá-lo à luz da moral vigente hoje em dia no Ocidente. A nossa moral está impregnada de valores cristãos, embora nem sequer nos apercebamos disso, pelo que temos tendência a olhar para as coisas segundo esses valores." "Está a insinuar que devemos aceitar o que os fundamentalistas fazem?" "Não, de modo nenhum. Temos de ser tolerantes com os tolerantes e intolerantes com os intolerantes. A Inglaterra e a América foram tolerantes com o nazismo e veja no que isso ia dando! Não podemos ser ingénuos ao ponto de pensarmos que há espaço de diálogo com os intolerantes. Não há! A Al-Qaeda é intolerante. A Lashkar-e-Taiba é intolerante. O Hamas é intolerante. Eles seguem à risca o Alcorão e ambicionam impor o islão a todo o mundo. Às vezes vejo intelectuais ocidentais a defender que se deve dialogar com a Al-Qaeda ou com o Hamas e isso dá-me vontade de rir. Só pode dizer isso quem não tem a mínima noção do que..." "Rapaziada, não se querem calar?" Era Jarogniew que testava o aparelho. "Nós falamos mais baixo", prometeu Rebecca. "Estou a tentar concentrar-me, goddam it!" "Pronto, está bem!", disse ela, baixando de seguida a voz. "O que está a dizer, Tom, é que temos de enfrentar os muçulmanos." "Errado." "Desculpe, foi o que depreendi das suas palavras." 0 "O que eu disse é que temos de enfrentar o que habitualmente se designa por fundamentalismo." "Mas os fundamentalistas aplicam os preceitos contidos no Alcorão e no exemplo do Profeta, certo?" "Sem dúvida." "Isso não faz deles os verdadeiros muçulmanos?" Tomás riu-se. "Você parece o Bin Laden a falar." Rebecca esperou pelo resto da resposta, mas, como ela não veio, insistiu. "Faço notar que a minha pergunta não foi respondida..." "Não sei se posso responder a essa pergunta", confessou o historiador. "Isso é muito sensível. Quando estive no Cairo apercebi-me de que, bem lá no íntimo, muitos muçulmanos se interrogavam sobre se os fundamentalistas não teriam afinal razão. Tudo o que os fundamentalistas dizem é, no fim de contas, sustentado por versículos do Alcorão e por exemplos reais da vida de Maomé. Nada daquilo é inventado. Isso deixa muitos muçulmanos desconfortáveis, como deve calcular, sobretudo porque o Alcorão estabelece que, para se ser verdadeiramente um muçulmano, é preciso respeitar todos os preceitos do islão, não apenas alguns. Goste-se ou não, fazer a jihad contra os infiéis é um dos preceitos. Ponto final." "Se assim é, por que razão os muçulmanos em geral não cumprem à letra esses preceitos?" "Isso dá uma longa conversa!" Fez uma pausa. "Quer mesmo que eu lhe explique isto?" "Enquanto o Jerry não resolver o problema, sim." Tomás olhou para o americano, que inspeccionava o interior do aparelho de som, e depois espreitou a multidão lá fora. Não havia sinais de Zacarias. Mesmo que houvesse, Rebecca tinha razão. Não se podia fazer nada enquanto o problema técnico não fosse resolvido. "Oiça, uma parte importante dos muçulmanos são fundamentalistas no sentido em que acreditam no respeito e na aplicação dos fundamentos da lei islâmica", disse, tentando abstrair-se do problema que os preocupava naquele momento. "O que se passa é que uns acham que é preciso aplicar imediatamente a sharia na íntegra, e são esses que designamos habitualmente por fundamentalistas ou radicais. Estou a falar dos fanáticos que nos declararam uma guerra até à morte e andam a fazer matanças por toda a parte. Os outros fundamentalistas são os conservadores. Estes também querem exterminar o Ocidente, mas têm noção de que o inimigo é mais forte do que eles e preferem um entendimento temporário, enquanto esperam o momento mais propício para atacar. Os terceiros são os seculares, que percebem que os tempos mudaram e que certos preceitos estabelecidos por Maomé no século vii reflectem a realidade desse século e não podem ser transpostos para a actualidade. Estes são genuinamente pacíficos, mantêm-se muçulmanos mas querem viver em paz e aceitam o Ocidente." "E os governos desses países? Que pensam eles?" "Há de tudo, como sabe. Mas aqueles que não são fundamentalistas nem conservadores estão sob a mira de parte das suas próprias populações." "Porquê?" "Por estarem a violar a sharià", observou o historiador. "A lei islâmica requer, por exemplo, que se apedreje uma adúltera até à morte, na sequência do que já vem exigido no Antigo Testamento. Só que isso, como deve calcular, choca com a moral ocidental. Não foi Jesus que disse, em defesa de uma adúltera: «Atire a primeira pedra quem nunca pecou»? Acontece que há governos muçulmanos que estão $ob influência da cultura ocidental e estabeleceram penas mais leves para este tipo de crimes. Mas não foi Maomé que ordenou a lapidação até à morte das adúlteras? Se um governo é muçulmano, porque não executa essa ordem do Profeta? Estas duas perguntas são muito complicadas e põem estes governos em xeque." "As populações muçulmanas acham que se deve lapidar uma adúltera até à morte?" "Muita gente acha, sim." "Está bem, mas isso é o o povo ignorante a falar..." "Está enganada! Muitos muçulmanos instruídos e esclarecidos são fundamentalistas. Repare que a principal característica de um fundamentalista islâmico é a sua vontade de respeitar integralmente, e com verdade, o islão. Se o Alcorão manda rezar cinco vezes voltado para Meca, ele reza. Se o Alcorão manda dar esmolas aos pobres, ele dá. Se o Alcorão manda cortar a mão aos ladrões, ele corta. Se o Alcorão manda matar os infiéis que não aceitam ser humilhados com o pagamento da taxa discriminatória, ele mata. É tão simples quanto isto. Para um fundamentalista não há zonas cinzentas. O que o Alcorão e o Profeta dizem para fazer é para ser feito e corresponde ao bem. Os que não obedecem ao Alcorão e ao Profeta são infiéis e estão ao serviço do mal. Mais nada. Os muçulmanos encontram-se no reino da luz e os infiéis mergulhados na treva." "Tudo isso já eu sei", disse Rebecca. "Mas como é possível que essa gente não evolua com o tempo? E isso que não percebo!" "Não percebe porque não conhece a história do islão", atalhou Tomás. Dobrou-se no assento e retirou um mapa do saco de viagens que tinha aos pés. Abriu o mapa no regaço e apontou direcções. "Repare, desde o tempo de Maomé que os muçulmanos se habituaram a estar na ofensiva e a dominar os outros povos. Espalharam-se rapidamente pelo Médio Oriente e pelo Norte de Africa, usaram a força para ocupar a índia, os Balcãs e a Península Ibérica e chegaram a atacar a França e a Áustria." "Mas sempre ouvi dizer que as relações dos muçulmanos com as outras religiões eram pacíficas..." "Quem lhe disse isso?" "Li num artigo qualquer. Dizia lá que as cruzadas é que abriram as hostilidades entre cristãos e muçulmanos." Tomás riu-se. "Isso é conversa da treta! As cruzadas constituíram o primeiro esforço dos cristãos de abandonarem a defensiva, após quatro séculos consecutivos a serem atacados! Foi só com as cruzadas que os cristãos se ergueram contra os muçulmanos e passaram à ofensiva." O dedo de Tomás indicou outros pontos do mapa. "As cruzadas marcaram a primeira resposta dos cristãos aos contínuos ataques dos muçulmanos. Para além da reconquista da Terra Santa, os cristãos recuperaram a Península Ibérica e, com os Descobrimentos portugueses, começaram de repente a espalhar-se pelo mundo. De um momento para o outro apareceram impérios europeus por todo o planeta. Até pequeníssimas potências como Portugal ocuparam áreas de poderio islâmico, como partes da índia e o estreito de Ormuz, chegando até a erguer fortes em plena Arábia, terra que o Profeta, antes de morrer, dissera que só podia ser ocupada por muçulmanos. Apesar da espantosa expansão europeia, o islão manteve o objectivo declarado de conquistar toda a Europa e fez uma derradeira tentativa de retomar a ofensiva atacando de novo o Sacro Império Romano no século xvü, mas o segundo cerco de Viena fracassou e ps exércitos islâmicos bateram em retirada. Foi a consumação do descalabro. Seguiu-se derrota atrás de derrota, até que os europeus entraram em pleno coração do islão." "No século xix", atalhou o americano. "Antes", corrigiu Tomás. "Napoleão invadiu o Egipto em 1798. Como deve calcular, os muçulmanos ficaram em estado de choque. E o pior foi constatar que quem expulsou os infiéis franceses do Egipto não foram os exércitos islâmicos, como seria de esperar, mas uma pequena esquadra britânica. O islão percebeu nesse momento que as potências europeias podiam invadir a seu bel-prazer as suas terras e, para cúmulo, só outras potências europeias tinham capacidade de as desalojar!" "Bem, de certa forma houve aí uma justiça poética, não acha?", observou Rebecca. "Os muçulmanos passaram séculos a comportar-se como imperialistas e a invadir país após país. Alguma vez tinham de provar o fruto que antes impunham aos outros..." "Visto sob esse prisma, é verdade. Só que eles descobriram que esse fruto era até muito amargo, uma vez que a expansão europeia em território islâmico se acentuou no século xix, com os Britânicos a ocuparem Aden, o Egipto e o Golfo Pérsico e os Franceses a colonizarem a Argélia, a Tunísia e Marrocos. O auge deste processo ocorreu com a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. A Grã- Bretanha e a França abocanharam todo o Médio Oriente, com os Britânicos a ficarem com o Iraque, a Palestina e a Transjordânia e os Franceses a dominarem a Síria e o Líbano. O símbolo desse domínio ocidental sobre o islão foi a abolição do califado otomano, em 1924." "Está bem, mas isso é tudo história!", contra-argumentou Rebecca. "Que eu saiba todos esses países já recuperaram a independência. Além do mais, quem aboliu o califado foram os próprios Turcos, não foi o Ocidente..." O historiador dobrou o mapa e guardou-o de novo no saco de viagem. "Acha que é tudo história? Olhe que os muçulmanos não vêem a coisa assim. Nós, os ocidentais, encaramos a história como uma coisa que já passou e que não deve condicionar-nos. E, mais uma vez, a cultura cristã que nos orienta, mesmo que não nos apercebamos disso. Mas os muçulmanos não são cristãos e olham para as coisas de maneira diferente. Encaram acontecimentos de há mil anos como tendo acontecido agora!" "Lá está você a exagerar..." "Quem me dera! Eu sei que para nós tudo isto parece estranho, mas o passado para os muçulmanos tem uma importância desmesurada, eles encontram aí orientação religiosa e legal. No fundo os muçulmanos acham que o passado reflecte os propósitos de Deus e por isso toda a história é muito actual. Daí que a colonização dos países islâmicos pelos europeus os choque acima de tudo." "Mas já lhe disse que eles recuperaram a independência há muito tempo!", insistiu Rebecca. "Tanto quanto sei, a maior parte desses países libertou-se dos colonizadores entre 1950 e 1970..." "E verdade, mas para eles é como se tudo tivesse ocorrido ontem. Repare que o islão foi a principal civilização do planeta na altura em que o cristianismo estava mergulhado na Idade Média. Os muçulmanos habituaram-se a encarar-se a si próprios como os guardiães da verdade divina e viam a sua supremacia como uma consequência natural e lógica disso mesmo. Mas eis que, de repente, se viram confrontados com a reconquista cristã, com as consequências dos Descobrimentos portugueses e com a idade das luzes- e, de um momento para o outro, aperceberam-se de que o Ocidente passou a mandar no mundo. Os infiéis ocidentais, até aí na defensiva, tornaram-se senhores do planeta e chegaram ao ponto de colonizar os países islâmicos! A capital do califado, Istambul, pôs fim ao próprio califado e, por decisão de Atatürk, passou a imitar a cultura e o sistema secular dos infiéis ocidentais, separando a religião do Estado. Como acha que os muçulmanos encararam esta transformação?" "Imagino que não tenham gostado muito..." "Claro que não gostaram! E, para agravar as coisas, o contraste entre a qualidade de vida das duas civilizações tornou-se gritante. Muitos muçulmanos começaram a comparar as suas vidas com as dos ocidentais e isso fê-los questionarem--se. Por que razão viviam os países islâmicos na pobreza e tinham governos tão corruptos? Porque motivo estavam tão atrasados em relação ao Ocidente? Por que diabo não conseguiam eles também fabricar belos automóveis e voar até à Lua? Incapazes de fazer frente ao domínio tecnológico e financeiro do Ocidente, esses muçulmanos concluíram que só conseguiriam responder na área cultural. E o que havia aqui? O islão! Não foi o islão que dominou o mundo, da índia até à Península Ibérica? Não tinha Maomé em poucos anos criado uma grande civilização? Como fizera ele isso? A resposta era: respeitando integralmente a lei islâmica. Logo, a resposta para os problemas de hoje também podia ser a mesma. Muitos começaram a achar que o problema é que haviam abandonado a verdadeira fé e passaram a acreditar que, se respeitassem de novo todos os preceitos do islão, o esplendor de outrora regressaria em força." "E foi isso que os atirou para o fundamentalismo." "Exactamente! Quando um muçulmano diz que se sente humilhado pelo Ocidente, não está a dizer que o Ocidente o maltrata. O que está a dizer é que é humilhante ver o Ocidente superiorizar-se ao islão nos planos económico, cultural, tecnológico, político e militar. O pecado do Ocidente é mostrar-se mais poderoso do que o islão. Daí ao raciocínio seguinte é um mero passo. Muitos muçulmanos acham que, se rejeitarem a modernidade e respeitarem à letra os preceitos do Alcorão e o exemplo do Profeta, a glória e o domínio do islão em todo o mundo voltarão." "E foi isso que os fundamentalistas começaram a defender depois da queda do califado otomano..." Tomás fez um trejeito com a boca. "Na verdade este retorno aos fundamentos do islão começou com um xeque medieval chamado Ibn Taymiyyah, que defendeu a interpretação literal do Alcorão e do exemplo de Maomé, e foi sobretudo relançado no século xvni, no rescaldo do choque da invasão napoleónica do Egipto. Nessa altura apareceu na Arábia um teólogo chamado Al-Wahhab que, inspirado em Ibn Taymiyyah, rejeitou as inovações feitas ao longo do tempo e preconizou o regresso do islão às suas fontes mais originais, o Alcorão e a sunnah do Profeta, estabelecendo a jihad como um dever fundamental dos muçulmanos. Al-Wahhab declarou que todos os muçulmanos que não respeitavam o islão à letra eram infiéis e aliou-se a um emir tribal chamado ibn Saud. Juntos, os dois conquistaram o que é hoje a Arábia Saudita e criaram uma dinastia que ainda agora governa o país. Os Saud mantêm-se como chefes políticos e os descendentes de Wahhab como líderes religiosos. Mas o que é importante perceber é que é aos wahhabistas que está hoje entregue a gestão das madrassas e das universidades." "O quê?!" "A sério. A educação saudita assenta hoje no fundanfenta-lismo mais primário que possa existir. Está a ver o problema que isso cria, não é verdade? O controlo pelos wahhabistas do sistema de ensino saudita significa que o islão que os sauditas aprendem desde pequenos na escola é o islão da jihad, da matança dos infiéis, da mutilação dos ladrões, dos apedrejamentos das adúlteras até à morte... e por aí fora. E como se isto não bastasse, no século xx apareceu o petróleo!" Rebecca fez uma careta. "O que tem o petróleo a ver com isto?" O historiador esfregou o polegar e o indicador. "Dinheiro", explicou. "O petróleo enriqueceu os Sauditas. De repente os wahhabistas ficaram cheios de dinheiro e imagine o que decidiram eles fazer?" "Ergueram grandes mesquitas?" Tomás soltou uma gargalhada. "Também", disse. "Mas, sobretudo, puseram-se a financiar madrassas em,todo o mundo islâmico, assumindo o controlo da matéria pedagógica nelas ensinada." "Meu Deus!" "Pois é, pois é! De repente as escolas espalhadas pelo mundo islâmico e financiadas pelos wahhabistas sauditas puseram-se a ensinar por toda a parte o islão da jihad! Essas madrassas tornaram-se autênticos viveiros de fundamentalistas, com os novos currículos educativos a pregarem o regresso ao século vil, a defenderem a matança dos infiéis e a rejeitarem a modernidade, dizendo que o retorno ao islão original poria os muçulmanos de novo na vanguarda." "Mas isso não faz muito sentido! Como é que rejeitar a modernidade os põe de novo na liderança? Não percebo..." "Oiça, tem de entender que esta mensagem de regresso às origens os apanhou num momento de vulnerabilidade, em que muitos muçulmanos se sentiam humilhados pelo colonialismo e cidadãos de segunda classe na sua própria terra..." "Mas não era isso justamente o que eles faziam aos cristãos, aos judeus e aos hindus? Não andaram eles séculos a fazer dos outros cidadãos de segunda, obrigando-os até a pagarem taxas discriminatórias e humilhantes para poderem viver nas suas próprias terras?" "Claro que sim", reconheceu Tomás. "Mas quando os cristãos lhes fizeram o mesmo eles não gostaram e, como é evidente, sentiram-se humilhados. Essa humilhação foi a parte negativa, embora talvez pedagógica, da colonização europeia. Mas repare que a moeda tem uma outra face. Os europeus construíram infra-estruturas que eles não tinham, instituíram sistemas escolares e serviços públicos que não existiam e aboliram a escravatura. Se for a ver bem, não há comparação do grau de desenvolvimento das terras islâmicas que tiveram colonização europeia com o das terras islâmicas que permaneceram sob domínio muçulmano. Só os palestinianos criaram sete universidades desde a ocupação israelita em 1967. Compare isso com as oito universidades da imensamente rica Arábia Saudita ou com o atraso do Afeganistão! E isto para não falar no obscurantismo. Só para que tenha uma ideia, a soma de todos os livros traduzidos em todo o islão desde o século ix é de cerca de cem mil, que é exactamente o número de livros que hoje em dia se traduzem em Espanha num único ano!" "Então qual é a dúvida dos fundamentalistas? Eles não percebem as vantagens da modernização?" "Os fundamentalistas e os conservadores vêem as coisas de maneira diferente, o que quer que lhe faça? Eles acham que o islão foi ultrapassado pelo Ocidente justamente, por «e ter desviado das leis divinas e, influenciados pelos ensinamentos dos wahhabistas financiados pelo petróleo saudita, julgam que só o regresso às práticas do século vil os poderá pôr de novo na dianteira. Eles não têm uma visão humanitária do mundo, mas uma visão ortodoxa islâmica." "Qual é a percentagem de muçulmanos que raciocinam dessa maneira?" "E difícil de dizer. Eu diria que o muçulmano médio quer apenas viver a sua vida em paz e sossego, respeitar Deus e ser feliz. Penso que estes são a maioria. Têm um conhecimento superficial do islão, ignoram os fundamentos coránicos da jibad, mas sabem que não querem viver num país onde se aplique a sharia na íntegra." "Portanto, a maioria é secular." "Sim, acho que se pode dizer isso. E um facto, porém, que, em alguns casos, a maior parte de uma população muçulmana pode ser fundamentalista. Não foi a revolução islâmica que contou com amplo apoio popular no Irão? Não foi o Hamas que ganhou as eleições na Palestina? Não foi a Frente de Salvação Islâmica que venceu a primeira volta das eleições na Argélia - e só não ganhou a segunda volta porque o acto eleitoral foi cancelado? Os fundamentalistas argelinos andavam a cortar o pescoço a milhares de pessoas e, pelos vistos, a maior parte da população aprovava! Isso mostra que os fundamentalistas gozam de uma sustentação popular maior do que gostamos de pensar, embora em geral sejam de facto minoritários." "Portanto, se bem entendi, temos os fundamentalistas, os conservadores e os seculares." "Sendo que os seculares são tendencialmente maioritários", insistiu Tomás. "Mas não tenha ilusões: os dois outros grupos são muito perigosos e, pelo menos em alguns países islâmicos, constituem sem dúvida a maioria. Não podemos ser ingénuos ao ponto de acreditar que os muçulmanos são todos muito tolerantes e o conflito que existe se deve a meros problemas sociais e à existência de Israel. A questão é infelizmente muito mais vasta e perigosa do que isso. A maioria pode ser secular, mas, ao mesmo tempo, é também silenciosa. Já a minoria fundamentalista é muito activa e ruidosa." "Estou a ver." "O islão está, pois, a viver um grande despertar. Existe uma vontade muito forte por parte de alguns muçulmanos de passar à ofensiva e estender o islão a todo o planeta, impondo..." "Está pronto!" Olharam para a frente e viram Jarogniew com o aparelho na mão, preparado para o reinstalar. Tomás ergueu-se e foi ter com o americano, que pregou o aparelho ao cinto do historiador e começou a fazer as ligações. "Então? Qual era o problema?" "Havia uns fios que estavam a fazer mau contacto", explicou Jarogniew. "Este problema é muito frequente e às vezes põe em risco as operações. Eu lembro-me de uma vez em que..." Mas Tomás já não o ouvia. Tinha os olhos presos num rapaz de shalwar kameez branca e turbante cinzento que viu a passar lá fora. O vulto parecia-lhe familiar, mas não tinha a certeza; a barba negra era maior e o corpo ligeiramente mais magro. As dúvidas, porém, desfizeram-se no momento em que o rapaz levantou por instantes o rosto. "Ele está aqui", murmurou. "O quê?" "O Cbarlie chegou." XXXII A visita da mãe à cadeia de Tora era sempre um acontecimento aguardado com grande expectativa por Ahmed. O pai recusava-se a ir vê-lo, dizia que o filho o envergonhara e trouxera desgraça e desonra à família, mas mãe era mãe. As visitas aos reclusos que não estavam confinados a alas especiais eram autorizadas duas vezes por mês e a mãe jamais faltou a uma. Era dos primeiros visitantes a entrar e levava--lhe habitualmente merendas caseiras que faziam as delícias do filho e o compensavam pelo rancho austero da prisão. A princípio os guardas inspeccionavam com grande cuidado essas merendas, abrindo-as e mergulhando os dedos sujos na comida. Quando ouviu o seu pupilo queixar-se destas inspecções, Ayman explicou-lhe o que devia fazer para evitar que a comida fosse assim conspurcada. "Baksheesh." "O quê?" "Tens de pagar aos guardas!" Embora fosse elementar, a ideia parecera-lhe genial. A partir do instante em que os carcereiros começaram a receber um suborno, que podia ser em dinheiro ou em tabaco, tudo se tornou de facto mais fácil. A mãe trazia sempre a ansiedade desenhada no rosto; no fim de contas não era fácil ter um filho na prisão. Mas, nesse dia, quando a viu, Ahmed apercebeu-se de que, dess» feita havia algo de diferente nela; era a expressão que lhe bailava no rosto, não parecia tão ansiosa e tinha um ar de certo modo feliz, o que o surpreendeu. "O que se passa?", perguntou-lhe logo que se sentaram juntos na sala das visitas. Ela fitou-o com um sorriso luminoso. "Não me digas que não sabes..." "Eu não." "A moção que submetemos ao tribunal foi deferida." Ahmed manteve um ar indiferente. "E então?" A mãe fez um ar quase escandalizado, chocada com a displicência do rapaz. "E então?", admirou-se. "Ó filho, o juiz decidiu que deves ser libertado! Achas pouco?" Ahmed encolheu os ombros. "Isso é uma mera formalidade", observou sem entusiasmo. "Não vale nada." "O que queres dizer com isso?" "Mãe, eu já estou preso há ano e meio. Cumprindo-se metade da pena, e não havendo queixas em relação ao meu comportamento, é normal que o juiz determine a minha liberdade condicional." "Mas... e ainda te queixas? Condicional ou não, o que vais ter é a liberdade! O juiz mandou que te libertassem! Achas pouco?" "Quando será isso?" "Daqui a duas semanas." Ahmed riu-se sem vontade. "O mãe, acredita mesmo nessa conversa?" "Claro que acredito." Olhou-o com ar desconfiado. "Porquê? Não devia acreditar?" "Claro que não." "Porquê?" Ahmed apontou para o guarda prisional que vigiava a sala. "Porque eles são uns mentirosos! Porque eles fazem o que querem! Alguma vez me vão libertar?" "Mas a decisão não foi dos guardas, filho. Nem foi do governo. Foi do juiz." "E depois? Olhe, já vi aqui quatro casos de irmãos da Al-Jama'a a quem o juiz deu ordem de libertação. Sabe o que lhes aconteceu? Continuam presos! O governo não quer saber das decisões dos juízes para nada! Se os juízes nos libertam, o governo invoca as medidas especiais previstas no estado de emergência e mantém-nos aqui fechados. Só sairemos daqui quando o governo decidir, não quando os tribunais decidirem..." A mãe recuperou o sorriso. "Olha lá, tu por acaso és da Al-Jama'a?" "Bem... na verdade, não sou." "Foi isso o que nos disse o tio Mahmoud, que conhece o pessoal da polícia. Parece que a polícia percebeu que não és da Al-Jama'a, e por isso não vai invocar o estado de emergência para impedir a tua libertação." Ahmed cravou os olhos na mãe, perscrutando-a com atenção, como se tentasse ver através dela. "A mãe está a falar a sério?" "Claro que estou." "A polícia disse isso ao tio Mahmoud?" Ela ergueu a mão frágil e, meiga e terna, passou-lhe os dedos quentes pelo rosto. "Meu filho", disse, com doçura. "Vais para casa." Também Ayman, já habituado às reiteradas práticas do governo em circunstâncias semelhantes, reagiu inicialmente com cepticismo à notícia. Mas os pormenores da conversa do tio Mahmoud com a polícia também acabaram por convencê--lo de que a libertação do seu pupilo estava agora iminente. "Pois, a tua mãe tem razão", observou Ayman, balançando afirmativamente a cabeça. "Na verdade não estás filiado na Al-Jama'a. Eles devem ter procurado e, como é evidente, não encontraram nenhum documento nem nenhum testemunho que te ligue a nós. Portanto, é perfeitamente natural que te libertem." Estavam na cantina da cadeia à hora do almoço e a sopa acabara de ser servida. Escutando distraidamente a opinião do seu mestre, Ahmed fez um gesto de abandono. "E-me indiferente." Ayman olhou-o com curiosidade. "Não pareces muito satisfeito..." "O que vou eu fazer lá para fora? O meu irmão disse, e muito bem, que vivemos numa sociedade jahili que se finge crente. Como acha que me sinto por estar lá fora e não poder fazer nada para impor a vontade de Alá? Como pode um verdadeiro crente viver no meio da jahiliyyar'' O mestre percorreu a cantina com os olhos, observando os reclusos a comer o almoço. "A maior parte dos irmãos sai daqui quebrada, com medo de voltar a enfrentar os kafirun que se dizem crentes e mandam em nós." O olhar voltou a Ahmed. "E tu? O que achas que te fez esta experiência aqui na prisão? Também te sentes com medo?" "Eu? Medo?", rosnou o seu pupilo, o olhar incendiando-se de indignação por tal hipótese ter sido ventilada. "Nunca! Quem julga que eu sou?" "E então?" "Saio daqui com raiva! Saio daqui revoltado! Alguma vez aceitarei o que o nosso governo nos está a fazer? Jamais! Como é possível que acredite que eu seja assim tão fraco?" Pousou a mão no peito. "Nós somos crentes e eles perseguem os crentes! Como se atrevem eles? E como se atreve o meu irmão a pensar que eu tenho medo desses... desses cães? Se acha que esta gente do Diabo me fez medo, a mim, engana-se!" Ayman abriu as mãos num gesto de aprovação. "Que Alá seja louvado, és um verdadeiro crente!", exclamou. "Perdoa-me por ter duvidado, mas deves saber que só uma minoria reage como tu. Quando submetida à tortura e à clausura, a maior parte dos irmãos quebra. Mas alguns, poucos e corajosos como tu, ganham determinação. São esses a vanguarda do islão, aqueles que marcham pelo oceano da jabiliyya com o archote na mão e guiam a humanidade até Deus." Ao ouvir estas palavras, a indignação do pupilo afogou-se num carrossel de emoções e deu lugar a uma vaga inebriante de orgulho. "Se houvesse maneira, também eu ergueria o archote." Bateu no peito. "Também eu!" Ayman tamborilou os dedos na madeira da mesa à qual estavam ambos sentados. "Há maneira." "Qual?" "A do Profeta, que a paz esteja com ele." Ahmed estreitou os olhos. "O que está a sugerir?" "A jihad." O pupilo calou-se. Havia já muito tempo que andava a ponderar o assunto. Desde que começara a perceber realmente o Alcorão e a sunnah do Profeta que se questiqnava »e não seria sua obrigação obedecer às ordens de Alá: espalhar a fé pela pregação quando possível, pela força se a pregação falhar. O envolvimento de Ahmed na Al-Jama'a nunca fora explicitamente abordado entre ele e o seu mestre, mas permanecera sempre implícito, como um fantasma a pairar sobre as conversas entre ambos. Havia uma coisa, porém, que se lhe afigurava cada vez mais clara: se Ahmed acreditava realmente em Alá e na Sua mensagem, teria de Lhe obedecer. A obediência não era realmente uma opção, mas uma ordem divina. E a ordem instituída nas últimas revelações de Deus ao Profeta era que a humanidade inteira teria de se submeter ao islão. "Combatei-os até que não exista tentação e seja a religião toda de Deus", diz Alá no Alcorão, sura 8, versículo 39. Combatei-os até que seja a religião toda de Deus! Por Alá, poderia a ordem ser menos explícita? Como poderia um crente ignorar esta instrução divina? Deus mandava combater os kafirun até que todos se submetessem! E ele, Ahmed? Pois se se dizia crente, não deveria ser consequente com a sua crença? Se se submetera à vontade de Alá, não deveria obedecer às Suas ordens? Como poderia ele fingir que essa ordem inequívoca não estava gravada a ouro no Alcorão? Estava! Ele lera-a! Ele decorara-a! "Combatei--os até que não exista tentação e seja a religião toda de Deus." Se era verdadeiramente crente teria de obedecer, não dispunha de alternativa; a sua vontade e opinião pessoal não contavam para nada. A vontade de Alá era soberana. Virou o rosto e encarou Ayman com determinação, a decisão já tomada, a submissão a Deus finalmente completa. "O que tenho de fazer?" A resposta à pergunta levou duas semanas a ser dada. Ayman explicou que tinha de consultar os irmãos para decidir qual o melhor caminho, pelo que Ahmed ficou a aguardar as instruções. Sentia-se pela primeira vez absolutamente em paz consigo mesmo. Decidira juntar-se à jihad e cumprir as ordens divinas. Por Alá, haveria maior prazer na vida que o de realizar a vontade de Deus? Os dias passaram e recebeu uma notificação formal a informá-lo da data e da hora em que seria libertado. Seria dentro de setenta e duas horas. Mostrou a notificação ao mestre, que lhe pediu que tivesse paciência. Em breve teria novidades. Na véspera da libertação, quando Ahmed estava já no pátio a despedir-se de companheiros de prisão que ocupavam outras celas e que não iria ver mais, Ayman apareceu e fez-lhe sinal de que o seguisse para uma zona discreta junto do muro. "Os irmãos deram-me a resposta", anunciou-lhe o mestre num sussurro, lançando olhares em volta para garantir que não havia ninguém à escuta. "Já está tudo tratado." "Então?" "Queremos que prossigas os estudos." A decisão deixou Ahmed boquiaberto. "Estudos? Quais estudos? Eu quero é combater! Eu quero é juntar-me à jibad!" Ayman lançou-lhe um olhar de leve reprovação. "Tem calma, meu irmão. Acalma-te e escuta-me: a seguir ao nome de Deus, sabes qual é a segunda palavra mais usada por Alá no Santo Alcorão?" Ainda afogado em frustração, o pupilo abanou a cabeça com uma veemência feita de fúria mal contida. "Não." "//w", disse o mestre, colando o indicador a> têmporas. "Conhecimento. Em trezentos versículos do Santo Alcorão, Alá exorta os crentes a usarem a inteligência e o conhecimento. O próprio Profeta, que a paz esteja com ele, o afirmou: «A primeira coisa criada por Alá foi o intelecto.»" Bateu com o dedo na testa. "Temos pois de usar a cabeça." "Está bem, eu uso a cabeça. Mas quero usá-la para fazer a jibad, como Alá ordena aos crentes!" "E vais fazê-la", assegurou Ayman. "Podes estar tranquilo quanto a isso. Mas primeiro tens de adquirir conhecimentos." "Que tipo de conhecimentos?" O antigo professor de Religião voltou a olhar em volta, para se assegurar mais uma vez de que ninguém os escutava. "Engenharia." Ao ouvir a palavra, Ahmed esboçou uma careta. "Para quê?" "Eu lembro-me que, na madrassa, eras muito elogiado pelo professor de Matemática. Suponho que sintas afinidade com essa área, ou estou enganado?" "Não, estás certo. E depois?" "Os irmãos dizem que precisamos de engenheiros. Tu pareces vocacionado para essa área. Portanto, queremos que completes os teus estudos e tires Engenharia." Ahmed respirou fundo, resignado. "Muito bem, se essa é a vossa vontade..." "E essa a vontade dos irmãos, sim." "Mas garantes-me um lugar na jihad?" "A seu tempo receberás instruções a esse respeito, inch'Allah. Mas isso só acontecerá quando terminares o teu curso de Engenharia." "Está bem." "E já escolhemos o sítio onde vais estudar." Apesar da frustração, Ahmed quase se riu. "Por Alá, isso é que é organização!", exclamou. "Vou para onde? Espero ao menos que seja no Cairo..." O mestre abanou a cabeça. "O nosso país tornou-se demasiado perigoso, há muitos polícias nas universidades a vigiar os estudantes. Além do mais, não te esqueças de que tens cadastro. Terás de sair do Egipto." "O quê?" "Aqui serias logo apanhado." "Então quero ir para a Terra das Mesquitas Sagradas", disse, peremptório. "E o único país que aplica a maior parte da sbaria." Ayman voltou a abanar a cabeça. "Não", repetiu. "Não vais para a Arábia Saudita, já aí está muita gente. Queremos-te totalmente fora dos circuitos habituais. Temos outro destino para ti." "Qual?" "A Europa." A notícia deixou o pupilo chocado. "Eu? Para a Europa?" Não queria acreditar no que acabara de ouvir. "Mas... mas vocês enlouqueceram? Querem-me mandar para junto dos kafirun?" "Tem calma, meu irmão", pediu Ayman, pondo-lhe a mão no ombro para o sossegar. "O que queremos é mandar-te para um sítio onde ninguém te irá vigiar e onde te sentirás à vontade. O mundo islâmico está cheio de governos jabili que só fazem o que os kafirun querem que eles façam. Não estarias seguro aqui. Precisamos de te enviar para um sítio onde passes absolutamente despercebido." Ahmed esfregou o queixo, pensativo. "Ir para a Europa é um grande sacrifício", disse. "Se realmente me querem nas terras dos kafirun, tenho^uma condição. Solicito que me dêem condições para casar." Ayman abriu a boca, espantado. "Por Alá, tu tens noiva?" "Está-me prometida desde os doze anos." "És uma caixinha de surpresas, meu irmão", exclamou o mestre. "Podes ficar descansado que terás a ajuda da Al-Jama'a. Aliás, o casamento é a forma ideal de te manteres invisível. E... perfeito!" Ahmed encheu o peito de ar, muito satisfeito com a evolução dos acontecimentos. "Então estamos de acordo", disse. "Para onde querem que eu vá? Há muitos irmãos a ir para Londres..." "Justamente, e isso é um problema. Em Londres encontram-se já demasiados irmãos e os kafirun começam a desconfiar. Não podemos mandar-te para lá. Tens de ir para um sítio mais tranquilo, onde passes despercebido." "O que tem a Al-Jama'a em mente?" "O Al-Andalus", anunciou o mestre. "Queremos que vás para uma das grandes cidades do califado do Al-Andalus." "O califado de Córdova?" "Sim." "Querem que eu vá para Córdova?" Com um sorriso que deixou ver os dentes podres, Ayman abanou a cabeça uma última vez e anunciou então o destino reservado ao seu protegido. "Al-Lushbuna." "O quê?" O mestre tirou do bolso uma folha muito engelhada e abriu-a, exibindo-a ao seu pupilo; era um pequeno mapa da Europa. Apontou o dedo deformado e sujo para uma cidade no extremo ocidental da Península Ibérica. "Os kafirun chamam-lhe Lisboa." XXXIII O vulto de Zacarias tinha emergido do Portão Alamgiri, o que significava que o rapaz já devia estar havia algum tempo dentro do forte à espera do seu antigo professor. Já com as intercomunicações restabelecidas Tomás apressou o passo e aproximou-se dele. O rapaz trocou um breve olhar com o historiador e seguiu em frente, como se não fosse nada, atravessando a praça entre o forte e a mesquita. "Ele está a ir-se embora!", comunicou Tomás pela intercomunicação que Jarogniew lhe instalara na roupa. "Bluebird, o Cbarlie estabeleceu contacto?" "Quer dizer... ele viu-me, sim." "E fez algum sinal?" Tomás hesitou, os olhos fixos na figura de sbalwar kameez que caminhava à sua frente. "Não tenho a certeza", disse. "Ele olhou para mim e reconheceu-me, isso é certo. Mas não posso garantir que me tenha feito qualquer sinal. Talvez. Não sei." "Siga-o." O historiador obedeceu às ordens de Jarogniew e pôs-se no encalço de Zacarias. Olhou em redor, à procura de Rebecca e Sam, mas não os viu. A praça não estava tão cheia como dez minutos antes, embora mantivesse algum movimento. "Bluebird", voltou a chamar Jarogniew. "Qual é a situação?" "Ele está a caminhar em direcção a um grande portão, situado do outro lado da praça, mas apenas com uma pequena passagem." "E o Portão Roshnai", identificou a voz ao auricular. "Continue atrás dele." Zacarias aproximou-se do portão e encolheu a cabeça para passar através da abertura estreita para o outro lado. Tomás seguiu-lhe o exemplo e, ao emergir na rua, viu o antigo aluno espreitar para trás, como se se quisesse certificar de que o homem com quem se ia encontrar permanecia no seu encalço. Esta troca de olhares encorajou o historiador, que viu nela um sinal claro de que devia prosseguir, pelo que apressou o passo e se chegou mais ao rapaz. Caminhavam agora pelas ruas estreitas da cidade velha de Lahore. Habituado ao souq do Cairo, Tomás esperava que este sector fosse mais pitoresco, com bancadas por toda a parte e um certo charme exótico pelas ruelas. Mas ali não havia nada disso. A cidade velha era suja e parecia cair aos bocados, com os edifícios degradados e cabos de electricidade pendurados por toda a parte. As ruas estavam enlameadas por condutas de água rotas e esgotos a céu aberto e eram percorridas por motos, mulas, jumentos, carroças, auto-rique-xós e um automóvel ocasional, numa cacofonia de buzinadelas e rádios com o volume no máximo. Não havia ali elegância nenhuma, apenas uma nojeira contínua. O seu ex-aluno meteu por uma ruela à direita, tão imunda como as outras, e entrou no que parecia ser uma casa de chá improvisada. Não tinha paredes para o exterior, apenas cadeiras de plástico e uma enorme vasilha a fermentar leite. Zacarias sentou-se numa cadeira e disparou olhares em todas as direcções; dava a impressão de que se sentia acos-sado. * "Bluebird, qual é a situação?" "Agora não! Silêncio nas comunicações!" Crrrrrr. Tomás abrandou o passo, entrou no mesmo estabelecimento e sentou-se a duas cadeiras de distância. Viu o rapaz pedir um lassi, uma bebida feita à base do leite que fermentava na vasilha, e seguiu-lhe o exemplo, pedindo outro. Depois ficou sentado em silêncio, à espera do que viesse a acontecer. "Isto está complicado, professor." Foi a primeira coisa que Zacarias disse. O antigo aluno falou em português, mas quase sem movimentar os lábios e a olhar para a rua, como se quisesse disfarçar. Quem o visse de longe poderia pensar que estava a cantarolar ou a murmurar uma prece. Percebendo esta preocupação de esconder que haviam entabulado conversa, Tomás assentou o cotovelo na mesa e deixou cair a cabeça na mão, de modo que a palma lhe ocultasse a boca e ninguém lhe visse os lábios a mexer. "Então?", perguntou. "O que se passa?" "Julguei que os tinha despistado. Mas quando estava no forte à sua espera vi um deles. Quase entrei em pânico." Tomás lançou um olhar para a rua, tentando vislumbrar qualquer figura suspeita, mas nada viu de anormal. Havia pessoas de um lado para o outro e motociclos a passar com grande fragor e muito fumo, mas cada um parecia metido na sua vida. "Estão a vigiar-te?" "Sim." "Porquê?" "Porque eu sei de mais e porque já lhes disse que não concordava com o que eles andam a fazer." Mordeu o lábio e revirou os olhos, como se estivesse a repreender-se. "Eu e a minha grande boca! Nunca mais aprendo a estar calado!..." "Mas sabes o quê, concretamente?" "Sei que vai haver um grande atentado. Será uma coisa terrível, pior do que o 11 de Setembro." "Pior ainda?", admirou-se o historiador. "Onde?" "No Ocidente." "Sim, mas em que sítio?" Zacarias abanou a cabeça. "Isso não sei." "Na Europa ou na América?" "Apenas sei que será no Ocidente." "E quando será isso?" "Está iminente." "O que quer isso dizer? Vai ser hoje, amanhã, na próxima semana, daqui a um mês... quando?" "Iminente quer dizer iminente." O empregado do estabelecimento aproximou-se e os dois calaram-se. O homem colocou um copo de alumínio diante de Zacarias e entregou outro a Tomás, regressando de seguida para junto da grande vasilha de leite a fermentar. O historiador levou o copo à boca e provou o lassi; tinha o sabor fresco de iogurte. Pousou o copo de alumínio e limpou o líquido branco que lhe ficara a colorir os cantos da boca. "Já percebi que o atentado pode ocorrer a qualquer momento", retomou ele. "Mas quem o vai levar a cabo?" "Um muçulmano português." Tomás abriu a boca, estupefacto. "O quê?" "A sério. É um gajo de Lisboa." "Como se chama ele?"