kafirun

da

aliança

cruzados-sionistas a virem combater na nossa terra, de modo a despertar a umma e a provocar o colapso do inimigo?"

"Sim, o plano do califado. Tens um papel para mim nesse plano?"

O xeque assentiu com a cabeça.

"Tenho um papel muito, muito importante."

Ibn Taymiyyah levou a mão ao peito.

"Muito me honras, xeque. Se Alá me criou para desempenhar um papel assim tão importante na expansão da verdadeira fé, quero que saibas que estarei à altura de tão elevada missão. Nada me honra mais do que servir a Deus."

"O teu nome foi-nos sugerido pelos irmãos que te treinaram em Khaldan", revelou Bin Laden voltando-se para Al-Zawahiri, que acompanhava a conversa em silêncio. "Meu irmão, podes explicar tu a ideia?"

O egípcio afinou a voz.

"A situação é a seguinte", começou por dizer. "Os kafirun vão atacar-nos aqui no Afeganistão. Todas as condições de segurança de que gozamos actualmente irão desaparecer nos tempos mais próximos. E por isso que estamos a plantar células adormecidas um pouco por todo o mundo. Quando passarem as primeiras vagas de ataques teremos de ter prontas respostas muito poderosas. Com a graça de Deus, as respostas serão dadas por essas células adormecidas, uma vez que eu receio que a operacionalidade do nosso comando esteja por essa altura comprometida." Fitou o convidado. "Estás a acompanhar o meu raciocínio até agora?"

"Sim, muito bem."

Al-Zawahiri apontou para ele.

"O que nós queremos é que tu sejas uma dessas células."

"Farei o que me for ordenado."

"A ideia é simples. A operação que os nossos valentes irmãos lançaram no abençoado dia 11 de Setembro, que essa data gloriosa fique gravada a ouro na história da humanidade, mostrou que a aliança cruzados-sionistas, por mais poderosa que seja, pode ser atingida nos seus pontos fracos. A América é uma grande potência, mas assenta numa*fundaÇão frágil e oca. Se atingirmos a fundação, o edifício desmoronar--se-á, inch'Allah!

Precisamos, pois, de ti para lançar o mais mortífero dos ataques contra essa fundação."

"O que querem exactamente que eu faça?"

"Falei com Abu Nasiri para lhe dizer que estava à procura de um mudjahedin com um perfil muito específico para uma missão... digamos, especial. Abu Nasiri ouviu as minhas especificações e disse que, por acaso, tinha justamente em Khaldan um mudjahedin que encaixava na perfeição." Sorriu.

"Eras tu, claro."

"Folgo em saber que Alá, na Sua imensa sabedoria, encontrou um papel para mim nos Seus altos desígnios."

"Queríamos

alguém

que

estivesse

muito

familiarizado com explosivos e que não tivesse sido ainda identificado pelos serviços secretos dos kafirun. Quando o Abu Nasiri falou de ti, fomos investigar a forma como chegaste a Khaldan e constatámos que foste enviado pela Al-Jama'a. Ora acontece que eu próprio, sendo egípcio, tenho muitos conhecimentos dentro da Al-Jama'a, pelo que me fui informar. O que me foi dito revelou-se realmente muito encorajador. Não só és um verdadeiro crente, daqueles capazes de dar a vida por Alá, como tens um curso de Engenharia, o que é muito útil na área dos explosivos. Além disso, nunca estiveste inscrito na Al-Jama'a e vives em Al-Lishbuna, uma cidade que se encontra totalmente fora dos circuitos dos verdadeiros crentes! Isso significa que nenhuma polícia tem o teu nome referenciado! E a cereja em cima do bolo, meu irmão, é que tens agora treino de mudjahedin. E... perfeito! Eu nem queria acreditar que tu existias! E, no entanto, aí estás tu, Deus seja louvado! Es uma verdadeira dádiva de Alá para a grande jihad!"


Ibn Taymiyyah quase corou de orgulho.

"Farei o que precisarem."

"Precisamos que voltes para Al-Lishbuna e aí permaneças como uma célula adormecida, vivendo a tua vida normal até alguém te contactar e te entregar uma ordem codificada. Essa pessoa levará um plano para executar. Quando isso acontecer, obedecerás às instruções operacionais que te forem dadas."

"Mas o que precisam de mim exactamente? Que leve a cabo um assassinato?"

"Precisamos que montes uma bomba e a faças explodir no sítio que te for ordenado."

"TNT? Semtexr

Bin Laden fez um gesto a Al-Zawahiri, indicando querer ele próprio retomar a condução da conversa.

Virou a cabeça e fitou Ibn Taymiyyah com gravidade.

"Nuclear."

O convidado abriu e fechou a boca, primeiro chocado, depois na dúvida sobre se teria escutado bem. "O quê?"

"Uma bomba nuclear."

Ibn Taymiyyah olhou em redor, para se certificar de que aquilo era a sério.

"Mas... mas...", gaguejou. Abanou a cabeça, tentando reordenar os pensamentos. "Desculpem, querem que eu construa e faça explodir uma bomba nuclear?"

"Isso mesmo."

"Mas... não pode ser. Não se constrói uma bomba nuclear assim às três pancadas! Uma bomba dessas é muito complexa, requer muitos meios e material sofisticado. Além disso..."

"Ao que nos dizem", cortou Bin Laden com a sua voz calma e suave, "o princípio é até elementar."

O mudjahedin afagou a barba, pensativo enquanto reconsiderava a questão.

*

"Bem... sim, é verdade", admitiu ao fim de alguns instantes. "Embora o fabrico de uma bomba dessas requeira primeiro a produção de materiais muito raros... plutónio ou urânio enriquecido. Eu não quero desanimar ninguém, mas só para obter esse combustível nuclear é preciso reunir uma equipa multidisciplinar

e

equipamento

de

ponta,

comQ„centrifugadoras e coisas do estilo. Depois o trabalho levará, à vontade, uma década. Acima de tudo, é preciso considerar que não será fácil encontrar onde..."

"Nós temos o material nuclear."

"O quê?"

"Foi-nos entregue há uns anos por um comando checheno, como pagamento pelas acções de treino para a jibad contra os kafirun russos no Cáucaso."

"Onde o arranjaram eles?"

"Roubaram-no de umas instalações russas, acho eu.

Não interessa. O facto é que, com a graça de Deus, temos o material."

"E que material é esse? Urânio? Plutónio?"

"Urânio."

A sua mente de engenheiro começou a funcionar a grande velocidade, contemplando as possibilidades que inesperadamente se lhe abriam.

"E qual o grau de enriquecimento?"

"Noventa por cento."

"Por Alá, isso serve!", exclamou com súbito entusiasmo. "Onde está esse urânio?" Bin Laden sorriu. "Em Khaldan."

Ibn Taymiyyah abriu a boca, perplexo. Havia urânio enriquecido em Khaldan? Mas onde? Trabalhara em explosivos com Abu Nasiri e não se lembrava de ver qualquer material radioactivo no campo de treinos.

Ele próprio fora muitas vezes buscar explosivos às grutas que serviam de arsenal e... e...

Bateu na testa quando a ideia lhe ocorreu.

"Por Alá!", exclamou. "A terceira gruta!"

O urânio estava na terceira gruta! Daí que Abu Nasiri o tivesse proibido de a visitar! Pudera! Havia urânio enriquecido na terceira gruta!

"Como dizes, meu irmão?"

A sua mente voltou à galeria onde decorria o jantar.

"Eu?", admirou-se por ter falado alto. "Nada, nada.


Estava apenas a... a falar comigo próprio."

Bin Laden manteve o olhar preso nele, como se o avaliasse.

"Achas-te capaz de cumprir esta missão?"

"Sem dúvida!", exclamou sem hesitar. "Pode contar comigo, xeque."

"A construção da bomba... não é impossível, espero."

"Não, não. Se eu tiver urânio enriquecido em quantidade suficiente, isso faz-se sem grandes problemas técnicos. Como o senhor disse há pouco, os princípios são simples."

"E a tal década de que estavas a falar ainda há instantes?"

"Isso era para enriquecer o urânio ou para produzir plutónio. Mas se já dispomos de urânio enriquecido esse problema não se põe."

Finalmente convencido de que o homem diante dele estava à altura da missão, o xeque esfregou as mãos.

"Excelente! Excelente!", exclamou. "Vou então dar instruções ao Abu Omar e ao Abu Nasiri para te ajudarem. Considerando que os kafirun vêm aí, o material radioactivo vai ter de ser imediatamente transportado para um sítio mais seguro."

Ibn Taymiyyah ergueu o sobrolho.

"Atenção que há problemas de segurança muito importantes. E preciso levar o material para um local discreto, montar a bomba e depois transportá-la para o alvo. Isso não é tão simples como à primeira vista possa parecer..."

"Deixa isso connosco. Quero que sigas a tua vida normal e não te faças notar. Quando chegar o momento certo, serás contactado. Nessa altura, só terás de montar a bomba e, com a graça de Deus, fazê-la detonar no local apropriado. O resto é um problema nosso"

"Como saberei eu que a pessoa que me vai contactar é genuína?"

"Ela dir-te-á uma senha com o nome de código da operação. A senha é o versículo 16 da sura 8 do Santo Alcorão."

O convidado fez um esforço de memória para localizar o versículo em questão.

"Versículo 16... versículo 16..."

"É aquele que avisa os crentes de que não devem fugir da jihad sob pena de irem para o grande fogo."

"Ah, já sei!", exclamou Ibn Taymiyyah, identificando enfim o versículo. "«Quem volte então as costas - a menos que seja para retornar ao combate ou para se unir a outro grupo de combatentes — incorrerá na fúria divina, e o seu refúgio será o Inferno»."

O xeque assentiu.

"E essa a senha."

"Muito bem. E o nome da operação?" "Já te disse: está inserido nesse versículo."

O visitante fez um ar desconcertado.

"Mas o versículo é longo, xeque", argumentou.

"Quais as palavras nele contidas que são o nome de código da operação?"

Antes de responder, Bin Laden ergueu-se da mesa e deu o jantar por terminado. Os outros três homens seguiram-lhe o exemplo e Ibn Taymiyyah ficou à espera da resposta.

O xeque olhou então para ele.

"Gbadhabum min'Allah", murmurou. "Fúria Divina."

LIII

As atenções do grupo estavam todas voltadas para a linha que Tomás rabiscara no bloco de notas a partir da mensagem interceptada à Al-Qaeda. Os homens da CIA olhavam para o gatafunho e abanavam a cabeça, sem entender o que viam.

SUKAtt S AYAH 16

"Shit!", praguejou Frank Bellamy na sua voz rouca e tensa. "É uma nova fucking charada!"

"Não, não é", corrigiu Tomás. "São palavras e números árabes. Mais do que isso, é uma referência corânica! Diz-se surah ou sura e significa capítulo.

Ayab quer dizer versículo. Ou seja, capítulo 8, versículo 16. A mensagem remete para um versículo do Alcorão!"

"J7/ be damned!", exclamou Bellamy, a atenção vidrada na linha decifrada. "Que versículo é esse?"

"Não sei." O historiador olhou em redor. "Tem aí algum exemplar do Alcorão?"

Rebecca dobrou-se e pegou na pasta que guardara aos pés de uma mesinha.

"Eu tenho!", anunciou, abrindo a pasta e começando a vasculhá-la. "Desde que ando a lidar com esta gente que não largo o Alcorão." A mão parou de remexer o interior, como se tivesse localizado o que procurava. "Aqui está!"

Entregou o livro a Tomás, que logo se pôs a folheá-lo.

"Sura 8... sura 8... sura 8...", murmurou, os dedos a passarem as páginas a grande velocidade. "Ah!

Encontrei!" O indicador deslizou pelos versículos do capítulo. "Vamos lá ver o... o... o versículo 16."

A unha do historiador cravou-se na linha onde começava o versículo e os três inclinaram a cabeça para ler o que lá se encontrava.

"«Quem volte então as costas — a menos que seja para retornar ao combate ou para se unir a outro grupo de combatentes — incorrerá na fúria divina, e o seu refúgio será o Inferno»", leu Rebecca.

"Fucking bell!", praguejou Frank Bellamy, os dentes cerrados. "Mais um mistério! Eu não digo? Esta merda não acaba! Cada charada encerra uma nova charada e não saímos disto."

"Não há aqui mistério nenhum", disse Tomás, esforçando--se por interpretar o que lera. "Esta é uma ordem de Alá para que os muçulmanos façam a guerra contra os infiéis, proibindo os crentes de fugirem a não ser para prepararem um novo ataque."

Bateu com o dedo na página do Alcorão. "O que temos aqui é uma ordem operacional."

"Uma ordem de Alá."

"Sim. Mas também uma ordem da Al-Qaeda. Ou seja, ao enviar a referência deste versículo, Bin Laden ordenou ao seu operacional em Lisboa que desencadeasse a operação terrorista." Ergueu a cabeça e mirou Rebecca. "Quando é que esta mensagem foi colocada no endereço da Al-Qaeda na Internet?" "Há dois meses."

Tomás voltou-se para o operador americano que vigiava o

processamento de dados da comparação biométrica em curso.

"Oiça... você chama-se Don, não é?"

^ •

O rapaz voltou a cabeça, surpreendido por ser interpelado. "Yes, sir. Don Snyder."

"Don, não é preciso fazer a comparação das fotografias dos meus alunos com a dos visitantes que entraram nos Estados Unidos nos últimos dois anos. Restrinja o universo de pesquisa aos visitantes que entraram no país nos últimos dois meses."

Don olhou para Frank Bellamy, como se pedisse autorização.

"Sí'rf"'

Bellamy assentiu. "Do ií."

O operador voltou-se para o ecrã e desatou a digitar no teclado as novas ordens.

"Isto vai acelerar consideravelmente as coisas", disse Don, visivelmente satisfeito. "Com um pouco de sorte, talvez amanhã já tenhamos a identificação biométrica completa."

Tomás levou os dedos à boca e pôs-se a mordiscar uma unha, os olhos perdidos no infinito.

"Ora bem, a mensagem foi enviada há dois meses...", murmurou, a mente perdida em cogitações.

Olhou de novo para Rebecca. "Diga-me uma coisa, quanto tempo leva a montar e transportar uma bomba nuclear para um alvo?"

"Depende do alvo."

"Imagine que tem o urânio enriquecido no Paquistão e precisa de o transformar numa bomba para a fazer explodir algures nos Estados Unidos."

"Estou a perceber o seu raciocínio", observou Rebecca. "Se eu tiver o urânio enriquecido em quantidade suficiente, a montagem da bomba é uma coisa simples. Pode, em último caso, fazer-se em apenas vinte e quatro horas num sítio qualquer. Até numa garagem ali em Bethesda. Em todo este processo, o que leva mais tempo é colocar o urânio enriquecido aqui na América. E, claro, há o problema do tempo que leva obter o visto."

"O nosso suspeito é cidadão português", lembrou Tomás. "Não precisa de visto."

"Pois, tem razão. Nesse caso eu diria que toda a operação se pode completar em um ou dois meses."

Fez-se silêncio na sala. Apenas se ouvia o sussurro leve dos computadores a processarem informação.

Os três viraram os olhos para a janela e contemplaram o exterior, como se esperassem ver, a todo o instante, a nuvem de cogumelo a formar--se no céu.

"Então o tempo esgotou-se."

LIV


O The Washington Post dessa manhã trazia as notícias do costume. A primeira página era dominada por um bombardeamento surpresa efectuado por Israel contra presumíveis alvos do Hamas na Faixa de Gaza e pela fotografia de uma criança palestiniana ensanguentada que havia sido resgatada dos escombros e exibida perante as câmaras como uma shahid. Um porta-voz do Hamas jurava vingança e citava as palavras do Profeta, mencionadas no final do artigo sétimo da constituição do seu movimento, prometendo que "o julgamento final não virá até que os muçulmanos lutem contra os judeus e os matem".

Numa caixa à parte vinha o anúncio pelo Irão de que o seu presidente ia levar o assunto à Assembleia Geral da ONU, que se iria reunir daí a dois dias, enquanto os países da União Europeia, ao mesmo tempo que renovavam promessas de falar a uma só voz sobre o assunto, emitiam as habituais opiniões díspares.

"Sempre a mesma merda!", murmurou Tomás, agastado com o carácter repetitivo das notícias.

Mudou de página.

O presidente americano fazia um qualquer apelo ao Congresso para que autorizasse um pacote de incentivos à indústria das energias alternativas.

Seguiu em frente, passando distraidamente os olhos pelos cabeçalhos, e depressa chegou à página desportiva. Procurou notícias sobre o futebol europeu, mas as atenções do jornal americano pareciam concentrar-se numa vitória espectacular dos LA Lakers sobre os Chicago Bulis. Podia ser uma notícia galvanizante para os Americanos, mas ele, um europeu, pousou uns olhos entediados naquelas linhas.

Trrr-trrr.

O toque do telemóvel despertou-o da sua letargia.

Meteu a mão no bolso e tirou-o. "Está lá?"

"Tom, por onde diabo anda você?"

"Estou aqui no business center do hotel a ler o jornal. Porquê?"

"Isso é mesmo aqui ao lado da recepção, não é?"

"Sim. Tem uma grande porta de vidro. Se vier pela porta principal, vire à direita e logo verá que..."

Quando ainda ia a meio da frase, Tomás viu a porta do business center abrir-se e o corpo ágil de Rebecca entrar apressadamente, o telemóvel colado à cabeça dourada.

"Até que enfim que o encontro!", exclamou ela, desligando o telemóvel e estendendo o braço na direcção do português. "Estou farta de lhe telefonar e você não atende."

"Desculpe, só liguei o telemóvel há instantes."

Rebecca pegou-lhe na mão e puxou-o, obrigando-o a levantar-se.

"Venha daí! Não há tempo a perder!"

Arrancado quase à força do seu lugar, Tomás ainda teve tempo de atirar o jornal para a mesa. "O que foi? O que aconteceu?"

Sem se voltar para trás, a americana empurrou a porta de vidro e arrastou o português para o lobby do hotel.

"O computador do Don já terminou a busca", anunciou.

"Temos a identificação biométrica completa." *

Ao contrário do que acontecera na véspera, nesse dia a sala de operações da CIA em Langley estava apinhada de gente. As pessoas conversavam animadamente, as mãos a segurar canecas de café com o logótipo da agência, mas não pareciam fazer grande coisa.

No instante em que Rebecca entrou na sala com Tomás, o burburinho morreu e a pequena multidão abriu alas para os deixar passar. O português ficou intimamente surpreendido por lhe ser dada tanta importância, mas fingiu que tudo aquilo era normal e, muito seguro de si, acompanhou a loira americana até junto de Frank Bellamy.

"Você está fucking atrasado!", rosnou o responsável da NEST, o olhar duro a chispar na direcção do historiador.

"Tinha o telemóvel desligado", retorquiu Tomás, como se isso explicasse tudo. "Então o que se passa?"

Bellamy voltou-se na direcção de Don Snyder, que permanecia sentado no mesmo lugar em que o historiador o vira na véspera, como se nunca dali tivesse saído.

"Passa-se que o computador terminou a busca", disse. "Mostra-lhe, Don."

O operador digitou o teclado e o ecrã encheu-se com o retrato de um homem.

"A identificação biométrica entre as fotografias seleccionadas pelo professor Noronha e a nossa base de dados com as imagens de todos os homens que entraram nos últimos dois meses nos Estados Unidos estabeleceu duas dezenas de ligações, a maior parte inverosímeis. Descobrimos que oito antigos alunos do professor Noronha vieram ao nosso país nos últimos dois meses e que sete já voltaram para Portugal."

"Então há um que ainda cá está."

Don apontou para o rosto no ecrã.

"É este indivíduo", disse. "Rafael Cardoso. O

suspeito chegou ao aeroporto de Miami há uma semana e está hospedado no Holiday Inn. Já pusemos alguns homens a vigiá-lo."

"O que acha, Tom?", perguntou Bellamy. "E este o nosso homem?"

Tomás observou o rosto imberbe do seu antigo aluno. A legenda por baixo da fotografia indicava que ele se chamava Rafael da Silva Cardoso. O professor lembrava-se vagamente dele, tinha frequentado as suas aulas de Línguas Antigas alguns anos antes.

"Não me parece", disse, abanando a cabeça com cepticismo. "Não têm mais ninguém?"

"Os outros sete já regressaram a Portugal."

"Mostre-mos."

O operador voltou a digitar o teclado e no ecrã passou uma sucessão de rostos, que Tomás perscrutou com atenção.

"Nenhum destes meus antigos alunos parece ter nada de extraordinário", concluiu no final, decepcionado. "Não há mais?"

"Receio que não."

Tomás respirou fundo e um burburinho de desalento percorreu a sala. Sentindo que todos os olhos e todas as esperanças estavam pousados em si, o historiador não se deu por vencido.

"Disse-me há pouco que a busca produziu dezenas de resultados..."

"Sim, mas os restantes são inverosímeis."

"Como assim, inverosímeis? O que quer dizer com isso?"

Don atacou o teclado mais uma vez.

"E normal a comparação dar resultados errados, uma vez que pode haver certas linhas do rosto semelhantes entre pessoas diferentes. Quando as semelhanças são muito grandes, isso confunde o computador." Duas fotografias apareceram no ecrã lado a lado. "Por exemplo, a imagem da esquerda é a do seu anjigo aluno Filipe Tavares. A da direita é de Dragan Radanovic, um serralheiro de Belgrado.

Dadas certas semelhanças fisionómicas entre ambos, o computador emparelhou as fotografias e pensou que se tratava da mesma pessoa. É um erro, como é óbvio."

O português balançou afirmativamente a cabeça, percebendo o problema, mas ainda não estava disposto a atirar a toalha ao chão.

"Quantos erros destes ocorreram?"

Don carregou numa tecla e obteve as estatísticas.

"Trinta e um."

"Mostre-mos todos."

O operador olhou para Frank Bellamy, como quem diz que tudo aquilo era já perda de tempo. Porém, o superior hierárquico fez com a cabeça sinal de que obedecesse e Don foi buscar todas as comparações falhadas.

As parelhas de rostos começaram a suceder-se. O

primeiro caso comparava um antigo aluno de Tomás com um visitante italiano, o segundo era o de outro aluno com um brasileiro e assim sucessivamente, sempre um antigo aluno emparelhado com um visitante de outra nacionalidade qualquer.

À décima sétima parelha, porém, Don quebrou o silêncio.

"Este caso é curioso", disse, indicando o ecrã. "Em vez de ser um ex-aluno seu português emparelhado com um visitante estrangeiro, é um ex-aluno seu árabe que o computador emparelhou com um visitante português." Soltou uma gargalhada.

"Cómico, não é?"

A observação fez Tomás fixar os olhos com mais atenção nas duas fotografias.

"Como se chama este aluno?" Don procurou a tecla da legenda.

"Ahmed ibn Barakah. E egípcio. O computador emparelhou-o com o engenheiro Alberto Almeida, de Palmela."

O historiador manteve os olhos colados ao rosto do seu antigo aluno. Tinha uma vaga ideia dele.

Tratava-se de um rapaz calado e, tanto quanto se lembrava, aparecera a poucas aulas alguns anos antes. A medida que Tomás olhava para a fotografia e fazia um esforço de memória, as lembranças iam fluindo. Teve a impressão de ter falado uma vez com aquele estudante e, logo que se recordou disso, sentiu uma reminiscência desconfortável dessa conversa. O rapaz dissera algo que lhe chamara a atenção. Que teria sido?

Cerrou os olhos e fez um novo esforço de memória.


Fixava o rosto e procurava associar-lhe conversas; esforçou--se tanto que o pormenor desagradável acabou por se tornar presente. O seu antigo aluno fizera um comentário agreste contra os judeus e dissera-lhe qualquer coisa sobre o facto de a história não estar acabada... Como fora que ele pusera a questão? Ah, tinha dito que um dia seriam os historiadores muçulmanos a analisar o passado cristão da Península Ibérica e que...

Num gesto quase reflexo, esticou o braço e apontou para o ecrã.

"É ele!"

Os americanos em redor olharam para o português sem entenderem. "Como?"

"É ele o homem da Al-Qaeda!"

LV

Os rostos estavam presos ao ecrã como se estivessem a reavaliar a imagem para a qual Tomás apontava o dedo acusador. A face imóvel do visitante suspeito fitava o vazio, eternizada pela câmara aduaneira ao lado da imagem fornecida pela Universidade Nova de Lisboa. A indicação por baixo de cada fotografia identificava o rosto do visitante como pertencendo ao engenheiro Alberto Almeida e o rosto do estudante como de Ahmed ibn Barakah.

Dois nomes diferentes, mas a face era a mesma.

Após um primeiro instante de silêncio entorpecido, uma algazarra de ordens explodiu na sala de operações da CIA e toda a gente se pôs em movimento.

"Don!", berrou Bellamy, os olhos presos na face exibida pelo ecrã. "Onde diabo está alojado este motherfucker?"

Nem tinha sido preciso emitir a ordem, uma vez que Don digitava já furiosamente no teclado. As fotografias desapareceram do ecrã e, em sua substituição, apareceram sequências

de palavras com toda a informação relativa ao visitante suspeito.

"Alberto Almeida deu entrada nos Estados Unidos pelo aeroporto de Orlando há exactamente... trinta e três dias. Proveniente de Madrid. Indicou como morada o Marriott de Orlando."

"Liga-me ao Marriott", ordenou Bellamy para Don.

Depois olhou para o homem que estava ao seu lado

"Passa-me a Casa Branca. Quero falar com o David Shapiro."

Don fez de imediato a ligação para a Florida pelo computador. O tom de chamada encheu por duas vezes os altifalantes até que se ouviu o clique de atendimento.

"Hotel Marriott, bom dia. Em que posso ajudá-lo?"

"Passe-me o gerente, por favor", ordenou Don. "E

urgente."

"Com certeza. Espere um momento, por favor." O

tom suave de uma música de salão encheu a linha por uns instantes, seguida do toque de chamada. "Daqui Hughs."

"O senhor é o gerente do Marriott de Orlando?"

"Sim. Em que posso ajudá-lo?"

"O meu nome é Don Snyder e estou a ligar-lhe de Langley. Sou da CIA e preciso de obter com muita urgência uma informação sobre uma pessoa que se hospedou aí."

Fez-se um breve silêncio na linha.

"Isto é alguma brincadeira?"

"Infelizmente, não. Poderemos enviar alguém com as credenciais necessárias, mas o caso é de tal modo urgente que agradecia que confiasse em mim e me desse de imediato a informação. O meu número está decerto registado na vossa central telefónica e vocês podem confirmar que estou mesmo a ligar de Langley."

A voz do outro lado hesitou, como se estivesse a tomar uma decisão.

"Muito bem", suspirou o gerente do Marriott.

"Como se chama esse hóspede?"

"Alberto Almeida. Quer que soletre?"

"Sim, por favor."

Don soletrou o nome e fez-se silêncio na linha, enquanto o gerente verificava a informação no computador do hotel.

"Tivemos de facto um Alberto Almeida hospedado aqui no hotel. Era um indivíduo com nacionalidade do Paraguai... perdão, de Portugal. Dormiu cá uma noite e fez check-out logo na manhã seguinte. Pagou em cash."

"Não há indicações relativas ao sítio para onde ele foi?"

"Não. Como deve calcular, nunca perguntamos isso aos nossos clientes."

Quando Don pôs termo à ligação com o Marriott, já Frank Bellamy estava em linha com a Casa Branca a comunicar as novidades. O responsável da NEST

afastou-se e saiu da sala de operações, fechando-se num cubículo envidraçado para não ser escutado.

"E agora?", perguntou Tomás.

"Já lançámos um alerta nacional para localizarem esse tipo", respondeu Rebecca com ar grave. "Mas se ele chegou há um mês aqui aos Estados Unidos... não sei, não. Com o urânio enriquecido em quantidade suficiente, a construção da bomba completa-se num instante."

Don voltou ao teclado.

"Vou proceder a uma busca com a NORA."

"O que é isso?"

"Non Obvious Relationship Analysis", disse, descodificando o acrónimo. "Acreditem ou não, é um sistema de cruzamento de dados que foi desenvolvido pelos casinos de Las Vegas. Muito eficiente." Pôs a língua no canto da boca, como uma criança, e começou a soletrar à medida que ia digitando. "A-l-b-e-r-t-o-A-l-m-e-i-d-a."

Acrescentou todos os dados que constavam da ficha aduaneira do aeroporto de Orlando e depois, por cautela, inseriu também o nome Ahmed ibn Barakah. A ampulheta do computador começou a girar enquanto processava a informação.

"Explica-me o que estás a fazer", pediu Rebecca, aproveitando a pausa dada pelo computador.

"A NORA combina a informação sobre a identidade de uma pessoa com as bases de dados das companhias de crédito, os registos públicos e a informação que consta dos computadores dos hotéis e de mais uma série de sítios. O sistema funciona através da construção de hipóteses baseadas em informação real."

"Não percebo."

"Isto foi uma ideia dos casinos para detectar fraudes", explicou Don, um olho na ampulheta que continuava a girar, o outro em Rebecca. "A NORA pode descobrir, por exemplo, que a irmã de um dealer de blackjack foi há dois anos vizinha de um homem que ganhou duzentos mil dólares durante um jogo controlado por esse mesmo dealer. A relação entre o dealer e o vencedor é assim estabelecida e permite ao casino investigar se houve ou não batota."

"Ah, já entendi!"

"O sistema permite fazer também outro tipo de associações. Um nome árabe pode ser grafado Otmane Abderaqib em Africa ou Uthman Abd Al Ragib no Iraque. A NORA consegue emparelhar estes dois nomes, o que..."

Uma voz encheu de repente os altifalantes da sala de operações, interrompendo a conversa.

"Atenção a toda a gente! Atenção!"

Era a voz rouca de Frank Bellamy. Tomás olhou para o cubículo envidraçado e constatou que o responsável da NEST havia terminado o telefonema com o conselheiro presidencial e tinha um microfone colado à boca.

"Acabei de falar com a Casa Branca e, com base na informação que lhe fornecemos, o presidente acabou de decretar DEFCON^2. Estamos em DEFCON 2.

Estamos em DEFCON 2."

Um silêncio estarrecido impôs-se na sala de operações.

"Já vi isto nos filmes..." murmurou Tomás.

"DEFCON 2 é o segundo grau de emergência mais elevado dos Estados Unidos", explicou Rebecca também em voz baixa. "Isto significa que as nossas forças militares foram postas em estado de alerta máximo devido à possibilidade de um ataque iminente. Que eu saiba, a última vez que DEFCON 2

esteve em vigor foi durante a crise dos mísseis em Cuba."

"E no 11 de Setembro?"

"Estivemos em DEFCON 3."

"Portanto, isto agora é mais sério..."

Rebecca fitou-o fixamente.

"Tom, estamos a falar de uma bomba nuclear."

A ampulheta do computador parou de girar e o ecrã foi preenchido por uma avalancha de informações. Don aproximou os olhos e estudou as conclusões do gigantesco cruzamento de dados.

"Pessoal", chamou. "Venham ver isto."

As pessoas que estavam na sala convergiram para o lugar do operador e fixaram a atenção no ecrã, onde o programa NORA relacionava todos os dados e fornecia enfim o paradeiro de Alberto Almeida, aliás Ahmed ibn Barakah, aliás Ibn Taymiyyah.

"O motherfucker está em Nova Iorque."

LVI

O Chevrolet branco esperou pelo sinal verde para arrancar. Quando a luz se acendeu, pôs-se em marcha e virou imediatamente à direita, metendo pelo bairro de vivendas da classe média, uma área agradável cheia de árvores e zonas ajardinadas. O

sol escondia-se por entre as nuvens cinzentas, espalhando uma luminosidade melancólica, e o rio Hudson corria com lentidão lá ao fundo, as águas escuras a espelharem a floresta de arranha-céus que se estendia pela outra margem.

"Tem a certeza de que é por aqui?"

Rebecca sacudiu a cabeça para afastar os cabelos loiros que lhe descaíam da testa para os olhos e deu uma nova espreitadela ao mapa.

"É por aqui, é", confirmou. "Não conheço muito bem New Jersey, mas fique descansado que eu já descubro o local."


O olhar de Tomás prendeu-se na ponta sul de Manhattan, do outro lado do rio. Mesmo passados todos estes anos era

estranho não ver ali as duas torres gémeas do World Trade Center.

"Como é possível que a Al-Qaeda tenha metido aqui cinquenta quilos de urânio altamente enriquecido e ninguém tenha dado por nada?", perguntou, vagamente irritado. "Vocês montam um grande aparato de segurança nos aeroportos e no fim deixam passar uma coisa dessas?! Como é isso, possi/el?"

Rebecca mantinha os olhos presos à estrada, em busca da sinalização que a ajudaria a reencontrar o caminho certo.

"Traficar grandes quantidades de urânio enriquecido para os Estados Unidos não é nada de especial", observou. "E até a coisa mais fácil do mundo!"

"Desculpe?"

Mais uma olhadela para o mapa de ruas, para se certificar da sua posição.

"Olhe, há uns anos uma estação de televisão aqui de Nova Iorque, a ABC, despachou em Djakarta uma pasta com sete quilos de material radioactivo para um endereço em Los Angeles. Depois ficou à espera para ver o que iria suceder. Pois sabe o que aconteceu? Algum tempo mais tarde, a pasta foi entregue absolutamente intacta na morada prevista.

Ou seja, aquele material nuclear passou pela goddam alfândega do porto de Los Angeles sem que ninguém suspeitasse da mínima coisa!"

"Vocês não têm nas alfândegas equipamento para detectar material radioactivo?"

"Claro que temos."

"Então como foi possível que essa pasta não tivesse sido detectada?"

"Tom, você tem de perceber como as coisas funcionam nas alfândegas", disse Rebecca. "Antes de um navio chegar, os nossos fiscais aduaneiros consultam os manifestos de carga e os portos de origem para determinar o grau de risco que envolve cada cargueiro. Imagine que um navio partiu da Co-lômbia. Se considerarem que o risco de tráfico de droga é muito elevado nesse navio, podem decidir analisar a sua carga. Nesse caso submetem os contentores do cargueiro suspeito a uma análise de raios X e de outros sistemas que envolvem raios gama, de modo a obter uma imagem mais precisa do seu interior. Se detectarem alguma coisa estranha podem abrir o contentor e inspeccionar o seu conteúdo."

"Muito bem. Então porque não o fazem?"

"Porque todos os dias há cento e quarenta navios a entregar nos portos americanos cinquenta mil contentores com mais de meio milhão de produtos provenientes de todo o planeta! Eis porquê! Só o porto de Los Angeles, sabe quantos contentores recebe por dia? Onze mil! E sabe quanto tempo levam cinco funcionários a inspeccionar um único contentor? Três horas! E, já agora, tem a noção de quantos portos de águas profundas existem na América? Mais de trezentos! Isto significa que, se pegar em cinquenta quilos de urânio altamente enriquecido e os colocar numa caixa de produtos de ténis, e depois escrever no manifesto que o conteúdo da caixa são raquetes, pode ter a certeza de que a porra da caixa chegará ao seu destino sem grandes obstáculos! Foi isso o que aconteceu com a pasta da ABC. E se a ABC descobriu que é assim tão fácil traficar produtos radioactivos usando o sistema de correio normal, acha que a Al-Qaeda não descobriu também?"

"Pois, tem razão."

"As hipóteses de intercepção são diminutas e sabemos que a Al-Qaeda faz de facto uso frequente de cargueiros para transportar armas. E por isso que a aquisição de urânio altamente enriquecido é o único ponto verdadeiramente difícil numa operação para levar a cabo um atentado nuclear. Se eles conseguirem vencer esse obstáculo e tiverem acesso ao material nuclear em quantidade suficiente, transportá-lo depois para o alvo e construir a bomba não passa de uma brincadeira de crianças!"

Tomás manteve os olhos fixos nas vivendas pelas quais

passavam, a mente a considerar as opções. m

"Portanto, não tem dúvidas de que a bomba já está montada?"

"Nenhumas", disse ela, enfática. "Eles podem ter perdido algum tempo com o transporte do urânio enriquecido para os Estados Unidos. Um barco não é muito veloz, não é verdade? Mas se possuem de facto o material e se o nosso homem recebeu a ordem de passar à acção há dois meses, isso é tempo mais do que suficiente para completar a operação. A bomba atómica da Al-Qaeda já deve estar pronta."

"Então porque não a detonaram ainda?"

O carro fez uma curva para a esquerda, Rebecca verificou mais uma vez a sua posição no mapa e abrandou, encostando ao passeio por detrás de um carro cinzento-escuro.

"Não sei", disse ela. "Mas o nosso terrorista sabe."

Inspeccionou as vivendas em redor e, identificando os números dos portões, apontou para um telhado ao fundo da rua, a casa protegida por muros altos. "E

ali."

"O quê?"

"O poiso do suspeito."

Os dois agentes do FBI estavam a comer um hot dog e a ouvir a música do rádio quando Rebecca e Tomás lhes entraram no carro. Depois de os dois recém-chegados se identificarem, os homens do Bureau fizeram-lhes um briefing com o ponto da situação.

"O Fireball está lá dentro", apontou Ted, o homem do FBI que parecia liderar o duo. "Quem?"

"E o nome de código que demos ao suspeito.

Vimo-lo entrar há pouco com um saco de compras.

Tirámos muitas fotografias."

"Posso vê-las?", pediu Tomás.

Uma máquina fotográfica com um zoom tão grande que parecia um canhão materializou-se nas mãos do companheiro de Ted. O agente do FBI virou para o português o pequeno ecrã que se encontrava nas costas da câmara.


"Está aqui."

As imagens apareceram no pequeno ecrã, mostrando sucessivas fotografias de Ahmed a carregar enormes sacos de compras; viam-se até as pontas de carcaças pontiagudas a espreitar pelos cantos.

"E ele", confirmou o historiador. "A barba está maior e dá a impressão de ter emagrecido, mas é realmente ele."

"A comer desta maneira, até admira que esteja mais magro", gracejou Ted.

"Ele encontra-se sozinho?"

"Assim parece." Indicou as redondezas. "Os nossos homens já andam a questionar os vizinhos e as lojas da zona, mas parece que nunca viram o Fireball com ninguém."

"E o urânio?", quis saber Rebecca. "Já o detectaram?"

O homem do FBI abanou a cabeça, a boca agora a mastigar os últimos pedaços de hot dog.

"Nope."

"O que fizeram vocês para o localizar?"

"Pouca coisa", reconheceu Ted. "Quando o Fireball saiu para as compras, passámos diante dos muros da casa com o contador geiger. Não acusou nenhuma radioactividade."

"Isso não quer dizer nada", insistiu Rebecca. "O

urânio pode estar na cave da casa, protegido por folhas de chumbo. Se for o caso, o contador não o consegue detectar."

"É verdade."

"Então o que planeiam vocês fazer?"

"Daqui a pouco vamos rebentar o sistema eléctrico da casa. Temos as linhas telefónicas interceptadas e, quando^ele telefonar a pedir assistência, a chamada será desviada para uma unidade nossa. A unidade fará deslocar um carro até à vivenda e apresentar-se-á para reparar a suposta avaria e restaurar a electricidade."

"Ah, estou a perceber. Vão meter o contador geiger a funcionar lá dentro."

"Isso. E vamos plantar microfones por toda a casa."

"E se o contador não detectar nada? Lembre-se de que o material pode estar bem protegido..."

"Se nada detectarmos e se considerarmos que a busca ficou incompleta, esta madrugada, quando o Fireball estiver a dormir, vamos inserir uma unidade na casa para fazer uma busca mais pormenorizada."

Tomás ficou admirado com esta parte do plano.

"Isso não é arriscado?"

Ted voltou-se para trás e sorriu.

"Viver é arriscado."

O plano desenrolou-se com a eficiência de um relógio. Ao anoitecer, e conforme previsto, as luzes da casa extinguiram--se subitamente. Tomás viu um ténue clarão passar por uma janela; era decerto Ahmed que deambulava pela casa com uma vela na mão.

Uma hora depois chegou ao local uma carrinha com as palavras General Electric estampadas nas portas.

Dois homens de fato-macaco azul-escuro saíram da carrinha com equipamento e foram bater ao portão.

Após um breve compasso de espera, o clarão reapareceu e o portão abriu-se. Um vulto indistinto, que Tomás presumiu ser Ahmed, espreitou do portão e, após o que pareceu uma breve troca de palavras, os três desapareceram para lá dos muros da vivenda.

"Aqui vamos nós", murmurou Ted, desligando a música do rádio e aumentando o volume do aparelho de intercomunicações.

Acto contínuo, os dois homens do FBI retiraram as pistolas dos coldres ocultos por baixo dos casacos e puseram-se a verificar as balas.

"O que é isso?", admirou-se Tomás. "Vai haver confusão?"

"Se houver alguma anomalia, os nossos homens têm ordens para dar o alerta", disse Ted sem tirar os olhos da pistola. "Nesse caso teremos de assaltar de imediato a casa."

Passaram-se

duas

horas

de

angustiante

expectativa. De quinze em quinze minutos os agentes nos diferentes carros do FBI que vigiavam a casa estabeleciam comunicação entre si para verificar se estava tudo bem, e o facto é que a resposta era sempre a mesma.

"Nada a assinalar."

De repente as luzes foram restabelecidas na casa e, minutos mais tarde, os dois homens de fato-macaco apareceram no portão e fizeram adeus a Ahmed, que os acompanhara. Meteram-se na carrinha e arrancaram dali.

Crrrrrr.

"Electric One, Electric One", chamou uma voz na intercomunicação. "O que descobriram vocês?"

"Nada, Big Mother", devolveu outra voz, presumivelmente de um dos supostos electricistas.

"O mostrador do geiger apenas se animou levemente numa passagem pela cozinha, mas nada de especial.

No resto da casa o geiger registou tudo normal."

"E a cave?"

"Não conseguimos ir lá."

"Porquê?"

"Estava fechada e o Fireball disse-nos que, assim às escuras, não conseguia encontrar a chave.

Pareceu-me um n,ouco nervoso e achámos melhor não insistir."

"E os microfones?"

"Instalámos tudo. Pode começar a testar."

"Okay, obrigado Electric One. Bom trabalho."

O diálogo foi acompanhado do carro onde se encontravam Rebecca e Tomás. Uma vez terminada a troca de palavras, Ted baixou o volume do aparelho de intercomunicações e voltou a ligar o rádio para sintonizar uma estação de jazz.

"E agora?", perguntou Tomás.

"Não ouviu o que disseram os nossos homens?"

perguntou Ted com uma ponta de impaciência. "A busca não ficou completa. Não conseguiram ir à cave."

"Isso quer dizer que vocês vão avançar com uma operação esta madrugada?"

"Yep."

Estava escuro lá fora e Tomás começava a sentir alguma fome. Interrogou-se sobre se valeria a pena permanecerem ambos ali, mas, como Rebecca não dava sinal de se querer ir embora, decidiu não levantar o assunto e deixou-se ficar.

"Há alguma dúvida de que o Ahme... uh... o Fireball é uma ameaça à segurança dos Estados Unidos?", perguntou ele.

"Nenhuma", respondeu Rebecca. "Não temos neste momento a mínima dúvida de que é ele o homem da Al-Qaeda encarregado de fazer explodir uma bomba atómica no nosso país."

"Então porque não o prendem imediatamente?"

"Porque não sabemos onde está a bomba."

A resposta deixou Tomás algo desconcertado.

"Bem... se o prenderem ele pode dizer-vos, não é?

Além do mais, se o deixam à solta ele pode escapar-se a qualquer momento e fazer explodir o engenho!"

Rebecca cravou-lhe os olhos azuis.

"O seu antigo aluno é um fundamentalista islâmico, não é?" "Suponho que sim."

"Então não vai revelar nada em tempo útil", disse ela. "Se o prendêssemos, isso apenas serviria para alertar os seus companheiros da Al-Qaeda de que lhes estamos no encalço. Isso só iria precipitar as coisas. Se a bomba não estiver nesta casa, parece-me óbvio que se encontra nas mãos de outros operacionais que a poderão fazer explodir mais depressa. Temos, por isso, de ser pacientes e dar os passos certos no momento exacto."

"Daí a importância do raide desta madrugada." A americana assentiu e virou os olhos na direcção da casa que todos vigiavam.

"Temos de encontrar a maldita bomba."

LVII

Três dias.

Tomás começava já a sentir-se farto da inacção. O


raide feito três dias antes não dera em nada e o FBI limitava-se agora a vigiar Ahmed. Isso significava que havia três dias que passava quase todo o tempo fechado naquela amaldiçoada carrinha, estacionada num passeio a dois quarteirões da casa onde o seu antigo aluno se alojara.

A carrinha era enorme, com monitores e câmaras e tudo o que se pudesse imaginar; afinal, era ela a Big Mother, o centro de controlo daquela operação. Os três homens do FBI que a tripulavam, incluindo o chefe da operação, conversavam descontraidamente entre si e Rebecca, mesmo ao lado, tinha a cabeça encostada ao vidro opaco e parecia ter adormecido.

O tédio da espera estava a dar cabo de Tomás. O

português sentia o corpo dorido por causa das más posições em que se sentava e buscava constantemente uma postura mais confor tável, mas sem grande sucesso. Olhou para o The New York Times estendido no chão e pegou nele pela terceira vez; já o tinha lido de uma ponta à outra, mas alimentava a esperança de encontrar ali qualquer coisa nova que o entretivesse.

Ajeitou o jornal com grande fragor e passou os olhos pelos títulos. A notícia do dia centrava-se em suspeitas de irregularidades financeiras envolvendo um senador qualquer. Folheou o jornal e deteve-se numa outra notícia dando conta de mais um escândalo de insider trading em Wall Street, com a detenção de um qualquer investidor famoso de que Tomás nunca tinha ouvido falar. Seguiu em frente.

Um título especulava sobre o teor do discurso do presidente dos Estados Unidos na Assembleia Geral da ONU, essa tarde. Já tinha lido tudo aquilo. Saltou para o desporto e quase gemeu por não encontrar mais uma vez referências ao futebol europeu. O

jornal parecia antes mais excitado com um jogo qualquer entre os Cardinais e os Philadelphia Eagles para o campeonato do American Football Conference.

"Que seca!", grunhiu com frustração, atirando o jornal para o chão.

Suspirou e recostou-se no assento, preparando-se para mais umas horas de espera entediante. Olhou para o lado e constatou que Rebecca ainda dormitava.

Os

cabelos

cor

de

trigo

espalhavam-se-lhe pelo rosto lácteo, dando-lhe um certo ar selvagem. Era bonita. Sentiu ganas de a acordar e conversar com ela, mas dominou o impulso.

A americana andava cansada e precisava de recuperar forças. Estendeu o braço e acariciou-lhe o rosto com carinho, os dedos a deslizarem pelo veludo quente da pele.

"Hmm", ronronou ela, sentindo o afago meigo.

Agora a vontade de Tomás não era apenas de conversar com Rebecca, mas de lhe beijar os lábios húmidos e entreabertos. Inclinou a face em direcção ao rosto sereno, mas no derradeiro instante dominou o impulso de se colar à boca dela e, em vez disso, deslizou para junto da orelha.

"Shhhh", soprou-lhe Tomás ao ouvido, a voz infinitamente suave. "Dorme."

Tut-tut.

Os três agentes do FBI no interior da carrinha deram»um salto, como se tivessem apanhado um choque eléctrico, e assumiram de imediato as suas posições.

"O telefone!", exclamou o chefe da operação, gesticulando para os subordinados. "Bob, localiza-me a chamada. Carl, põe-me o gravador a funcionar."

A

súbita

agitação

despertou

Rebecca.

Estremunhada, a americana girou a cabeça em redor e, sem perceber o que estava a acontecer, voltou-se para o português.

"Tom, o que se passa?"

Tomás pôs o indicador diante da boca.

"Chiu!", disse. "Alguém está a ligar para o Ahmed.

Deixa ouvir."

Tut-tut.

"Hélio?"

Era a voz de Ahmed a atender.

"Ibn Taymiyyab?"

"Nam."

"Surat-an-Nisaa, ayah arba'a wa sabim." Ao ouvir estas palavras, Ahmed fez uma pausa, como se digerisse o seu significado, e clamou. "Allah u akbarr Click.

Na carrinha, os agentes do FBI e os dois elementos da NEST pareciam congelados, os ouvidos atentos aos sons do telefonema que haviam interceptado.

"Fuck!", vociferou o chefe da equipa operacional do Bureau. "Os motberfuckers já desligaram." Virou a cabeça para o lado. "Bob, conseguiste localizar a chamada?"

Bob abanou a cabeça, os olhos presos em desânimo ao monitor.

"Nope", disse. "Foi demasiado curta. A única coisa que consegui determinar é que se tratou de uma ligação doméstica."

O chefe da equipa revirou os olhos.

"Já calculava." Virou-se para o segundo subordinado.

"Está tudo gravado, Carl?" "Sim."

"Ao menos isso. Manda-me a gravação imediatamente para a Federal Plaza. Quero o tradutor de árabe em cima desse material o mais depressa possível."

Tomás pegou na pasta de Rebecca, levantou-se e aproximou-se do chefe de equipa, a mão mergulhada na pasta à procura do livro que sabia estar ali guardado.

"Desculpe."

O americano girou a cabeça para trás. "O que é?", perguntou com irritação. "Não vê que estamos a trabalhar, goddam it!?" "Eu sei árabe."

O chefe da equipa encarou-o com súbito interesse.

"Porque

não

disse

logo?",

perguntou,

evidentemente sem esperar resposta. "O que disseram aqueles motberfuckers ao telefone?

Alguma coisa importante?"

"Foi uma chamada estranha. O tipo que telefonou comunicou ao Fireball um versículo do Alcorão. O

Fireball disse que Deus é grande e a chamada terminou."

O responsável do FBI afagou o queixo.

"Um versículo do Alcorão, eh?" Girou no banco rotativo e voltou-se para os seus homens. "Algum de vocês tem aí um exemplar do Alcorão?"

Como um aluno bem comportado, Tomás estendeu o braço e pôs diante do rosto do americano o livro que acabara de retirar da pasta de Rebecca.

"Está aqui", disse. "Será que podem passar a gravação da conversa, para eu tomar nota da referência corânica?"

Carl colocou nos altifalantes da carrinha a breve troca de palavras entre Ahmed e o desconhecido que lhe ligara. Quando o desconhecido disse

"surat-an-Nisaa, ayab arbaa wa sabiin", o historiador registou a referência no seu bloco de notas e pôs-se de imediato a folhear o livro sagrado do islão.

"Surat-an-Nisaa... surat-an-Nisaa... é a sura 4", identificou. Localizou o capítulo corânico e foi à procura do versículo referenciado na gravação.

"Ayah arba'a wa sabiin é versículo 74." A ponta do dedo deslizou pelos sucessivos versículos daquela sura. "Deixa cá ver... deixa cá ver... aqui está, versí-

culo 74!" Afinou a voz e leu. "«Combatam na causa de Deus os que trocam a vida mundana pela outra! A esses, que combatam na senda de Deus e sejam mortos ou vencedores, dar--lhes-emos uma enorme recompensa.»"

Ficaram todos um instante a amadurecer estas palavras.

"Uma enorme recompensa?", perguntou Carl. "Não me digam que o tipo ganhou a lotaria!?"

Os homens do FBI desataram às gargalhadas no interior da carrinha, mas a dupla da NEST não os acompanhou. Ignorando a galhofa em redor, Tomás releu em silêncio o versículo, buscando o seu verdadeiro sentido.

"Isto é sério."

"Porque diz isso?", quis saber Rebecca, intuindo uma ameaça escondida.

"Em primeiro lugar, repare no início do versículo:

«Combatam na causa de Deus.» No original do Alcorão em árabe, a palavra combate deve ler-se jibad. Isto é, pois, uma ordem divina para que se faça a jibad. A seguir vem esta expressão estranha:

«os que trocam a vida mundana pela outra». No original em árabe, a vida mundana é esta vida e a outra é a vida depois da morte, no Paraíso. Ou seja, com estas palavras Alá está a prometer o Paraíso aos muçulmanos que morram na jibad. Esta ideia é reforçada pela segunda parte do versículo: «A esses, que combatam na senda de Deus e sejam mortos ou vencedores, dar-lhes-emos uma enorme recompensa.» A recompensa para os que morrem é, como se percebe pela referência inicial à outra vida, o Paraíso."

"Então vamos lá a ver, como descodifica você esse versículo?"

"Trata-se de uma ordem de Alá aos crentes, dizendo-lhes que façam a jibad e prometendo o Paraíso aos shabid que morrerem", disse Tomás. "É

isso o que este versículo quer dizer."

Os homens do FBI, que se calaram para ouvir o historiador, abanaram a cabeça quase em uníssono.

"Eles acreditam mesmo nisso?", interrogou-se o chefe da equipa. "Que idiotas!"

Tomás releu mais uma vez o versículo, situando-o no contexto da operação que a Al-Qaeda tinha em curso.

"Isto é uma ordem operacional", sentenciou. "O

Fireball recebeu uma instrução para se preparar para o martírio e passar à acção."

"Que está para aí a dizer?"

Convicto de que tinha interpretado tudo o que havia a interpretar, o português fechou o Alcorão e encarou o responsável do Bureau.

"Prepare os seus homens." "Para quê?"

Sem perder mais tempo, Tomás pegou nas suas coisas, fez sinal a Rebecca de que o seguisse, abriu a porta da carrinha e saltou para a rua. Antes de desaparecer, porém, lançou da rua um derradeiro olhar para o homem do FBI.

"O atentado vai ser hoje." «* *

LVIII


O portão da casa abriu-se lentamente.

Crrrrrr.

"Standby."

Instantes depois de a voz do chefe operacional soar pela intercomunicação rádio do FBI, um Pontiac verde envelhecido emergiu no portão. Instalados nos assentos de trás do carro de Ted, Tomás e Rebecca viram os homens do Bureau disparar uma rajada de fotografias sobre a viatura em marcha.

"É ele", confirmou Ted, o olho colado à câmara com zoom. "O motherfucker está a sair."

Crrrrrr.

"Fireball em movimento. Sierra One, podes pegar nele?" Ted colou o microfone à boca e respondeu.

"Roger, Big Mother", confirmou. "Sierra One em movimento."

O Pontiac passou por eles e o carro de Ted, que tinha ligado a ignição logo após a ordem de standby, arrancou com

suavidade e pôs-se no encalço de Ahmed. Era uma parte muito delicada da operação, com vários automóveis do FBI já em marcha ou a aguardar a passagem do suspeito em diferentes pontos dos itinerários possíveis, numa espécie de coreografia improvisada.

Para evitar denunciar as suas intenções, a viatura onde Tomás se encontrava seguia Ahmed com alguma cautela, mantendo quase duzentos metros de distância.

Crrrrrr.

"Sierra Two", chamou o chefe da equipa.

"Ultrapassa o Fireball e faz uma verificação com o geiger."

"Roger, Big Mother. Sierra Two em movimento."

Um carro azul arrancou lá de trás, como se estivesse apressado, e ultrapassou a viatura onde Tomás se encontrava. Depois aproximou-se do Pontiac de Ahmed e ultrapassou-o também, mas sem muita pressa. A seguir virou à esquerda e desapareceu.

Crrrrrr.

"Sierra Two aqui. O geiger deu negativo."

"Tem a certeza, Sierra Two}"

"Roger, Big Mother. O geiger deu negativo."

Ted espreitou de relance pelo espelho retrovisor para os seus convidados da NEST.

"A medição não detectou nenhuma radioactividade no carro", disse. "O tipo não leva a bomba."

"E porque ela já deve estar posicionada", observou Rebecca, os dedos a tamborilarem pensativamente na janela do carro. "E estranho, não é?" Olhou para Tomás com a expressão de quem se sente baralhado.

"Por que motivo não fizeram eles explodir a bomba logo que a colocaram no sítio? Não faz sentido..."

"Talvez ela ainda não esteja instalada no alvo", disse Tomás. "Às tantas o Ahmed vai agora buscá-la."

"Só pode ser isso..."

Continuavam a seguir pelas ruas de New Jersey e a operação de vigilância decorria sem novidades. A certa altura o Pontiac aproximou-se de uma rotunda e Ted preparou-se para o problema.

Crrrrrr.

"Aproximamo-nos de Blue Three."

Blue Three era a rotunda. "Mantenha em Blue Three."

O Pontiac meteu-se na rotunda e Ted tentou acompanhado, mas o tráfego intensificou-se de repente, impedindo-o de avançar de imediato.

Percebeu que teria de ser outro automóvel a assumir a cauda do suspeito.

"Fuck!", praguejou Ted, dando uma palmada frustrada no volante. Sem se desconcentrar, seguiu com os olhos o movimento do carro verde que contornava a rotunda, ao mesmo tempo que, com um gesto

rápido,

pegava

no

microfone

da

intercomunicação rádio e se mantinha atento à saída da viatura suspeita. "Fireball na Blue Three." Viu-o virar à direita e sair da rotunda. "Tomou dois." O

Pontiac tinha tomado a segunda saída. "Tomou dois.

Quem pode?"


Uma nova voz respondeu.

"Sierra Five, tenho o Fireball."

Ao ouvir uma outra viatura assumir o controlo, Ted descontraiu-se e contornou tranquilamente a rotunda. Identificou a rota escolhida por Ahmed e, com um sorriso de satisfação, virou à direita e foi dar a uma rua paralela. Meteu por ela e acelerou, num esforço para assumir uma nova posição mais adiante.

"Onde vamos?", perguntou Tomás, sem perceber os pormenores da manobra.

"Vamos esperá-lo lá mais à frente."

"Lá à frente como? Vocês já conhecem o itinerário que ele vai seguir?"

"Considerando a estrada que ele tomou depois da rotunda, até já percebemos qual é o destino." "Ai sim?"

Ted apontou para a floresta de betão que se erguia do outro lado do rio, o topo dos arranha-céus iluminados ptlas aberturas soalheiras, as ruas mergulhadas na sombra.

"Manhattan."

A boca do Lincoln Tunnel ia engolindo tráfego como um monstro sôfrego. Dentro do carro do FBI o grupo permanecia em silêncio, acompanhando pelas intercomunicações a progressão do automóvel de Ahmed e à espera de ver o Pontiac verde aparecer a todo o momento da Route 495.

"Está atrasado", observou Tomás, impaciente.

Ninguém

respondeu.

Ted

manteve-se

tranquilamente a mastigar a sua chewing gum, os olhos colados ao trânsito ininterrupto.

"Se ele se dirige para Manhattan é porque a bomba já está posicionada", observou Rebecca. "Não faz sentido que ele vá a Manhattan buscar a bomba para a instalar noutro sítio qualquer. Não existe nas redondezas alvo com um perfil mais elevado do que Manhattan. O atentado tem de ser aqui."

"Tem razão", admitiu Tomás. "Mas se assim é, porque diabo não a rebentaram já? De que estão eles à espera?" A americana encolheu os ombros. "Beats me."

Ted mantinha a atenção fixa no tráfego e fez-lhes sinal de que se calassem. "Ali vem ele!"

Ligou a ignição e esperou que o carro verde se aproximasse. Quando Ahmed passou, arrancou e posicionou-se atrás, tendo o cuidado de manter uma viatura entre os dois, uma medida de precaução para se fazer menos notado.

"Sierra One em movimento", comunicou pelo microfone.

"Roger, Sierra One", confirmou a viatura que até ali mantinha o contacto com o suspeito. "Sierra Five a passar o Fireball para o esperar na 30th West."

Mal acabou esta comunicação, o outro carro meteu-se pela faixa exclusiva para transportes públicos e ultrapassou em velocidade a lenta fila de trânsito no sentido de Manhattan. Tomás quase teve inveja de o ver acelerar daquela maneira, uma vez que o tráfego estava completamente embatucado no acesso ao túnel. A progressão revelou-se ainda mais vagarosa do que havia calculado, com as viaturas a avançarem num pára-arranca interminável.

Por fim, conquistando caminho metro a metro, os automóveis de Ahmed e de Ted percorreram todo o Lincoln Tunnel e desembocaram em Manhattan. O

português consultou o relógio; só aquele curto troço entre New Jersey e a ilha tinha levado trinta minutos.

"Está um engarrafamento incrível", constatou Tomás. "É sempre assim?"

"O tráfego em Manhattan nunca foi simples", respondeu Ted. "Mas hoje o trânsito na cidade encontra-se muito condicionado pelas medidas de segurança, o que tem dificultado as coisas."

O pisca direito do Pontiac verde acendeu-se de repente e o carro virou no sentido que indicara. Ted invadiu de imediato a linha exclusiva para os transportes públicos e ultrapassou a viatura diante dele, pondo-se no encalço de Ahmed. O Pontiac meteu pelo emaranhado de ruelas, fugindo assim ao trânsito, e internou-se por Manhattan em direcção a leste, com os homens do Bureau sempre atrás.


Quatro quarteirões adiante, a viatura verde virou para o

que parecia ser um túnel e desapareceu no interior.

Os tripu-

lantes do carro do FBI identificaram uma tabuleta azul com o

P de Parking.

*

"Stop, stop!", ordenou Ted ao microfone. "Near side."

Era uma ordem para os automóveis do FBI que seguiam lá atrás pararem. Mas o próprio Ted nem sequer abrandou, optando antes por seguir em frente, não fosse o suspeito estar a vigiar o trânsito para verificar se alguém o seguira.

Crrrrrr.

"Sierra One, o que se passa?"

"O

Fireball

meteu-se

no

parque

de

estacionamento", explicou Ted, parando mais adiante. "Sierra Two e Sierra Three, fiquem onde estão. Sierra Four e Sierra Five, identifiquem outras saídas deste parque. Atenção que Sierra One vai ficar com um só homem porque eu e os nossos dois convidados vamos tornar-nos Foxtrot One."

"Porquê, Sierra One}"

"O Fireball pode colocar-se foxtrot."

"Roger that."

A um sinal de Ted, Rebecca e Tomás saltaram do carro e caminharam pelo passeio em direcção ao parque de estacionamento.

"O que é isso de o Fireball colocar-se foxtrot}", quis saber Tomás, a curiosidade sempre atiçada pelos códigos, quaisquer que eles fossem. "Que significa foxtrot}"

"Há uma forte probabilidade de o Fireball sair do carro", retorquiu o homem do FBI. "Foxtrot significa peão. Não se esqueça de que o nosso homem entrou num parking. Só costuma fazer isso quem quer estacionar um carro, não é verdade?"

Penetraram no parque de estacionamento com fingida descontracção, os olhos atentos a qualquer movimento. Vasculharam o primeiro piso e não detectaram nada de anormal. Meteram pela escada para ascender ao segundo piso, mas ouviram o som dos passos de alguém a descer e recuaram, ocultando-se atrás de um pilar.

Um homem de jeans e camisa verde emergiu da sombra das escadas e seguiu na direcção da saída.

"É ele!", identificou Tomás.

Assim que Ahmed cruzou a porta do parking e saiu para a rua, os três apressaram-se a abandonar o parque de estacionamento e a segui-lo à distância, conversando entre si da maneira mais insuspeita que conseguiram simular. O muçulmano caminhava cinquenta metros adiante de uma forma algo hirta, como se estivesse tenso.

"Estamos ao pé da Port Authority", constatou Ted, observando o grande terminal ali próximo.

Tomás ignorou a referência; preferia manter a atenção concentrada no seu antigo aluno.

"Já viram a cor da camisa dele?", perguntou.

Rebecca fez um trejeito indiferente com a boca.

"E verde", constatou. "O que tem isso de especial?

Que eu saiba, o verde é a cor do islão. Sendo ele muçulmano..."

"E verdade", confirmou o português. "Mas, para os muçulmanos, o verde é também a cor do Paraíso.

Claramente o nosso homem acredita que está a caminhar para o Paraíso."

Ted soltou uma gargalhada.

"Nova Iorque? O Paraíso? Essa é boa!"

Dobraram a esquina e Tomás viu cinco polícias a cavalo à sua esquerda e mais três à direita, todos de capacete. Ao fundo da rua identificou dois carros com o logótipo do NYPD estampado nas portas e ouviu várias sirenes a soar à distância. Olhou para cima e viu helicópteros a percorrer o céu de Manhattan. Enquanto observava os aparelhos a zunir, o seu olhar prendeu-se quase por acidente »um vfllto posicionado num terraço com o que parecia ser uma espingarda de mira telescópica. Era um atirador especial da polícia.

"Oiçam lá, vocês não estarão a exagerar um bocadinho?", perguntou o português, quase chocado com tanto aparato. "Porquê?", admirou-se Ted.

"Ainda pergunta porquê?" Fez um gesto na direcção dos polícias a cavalo. "Já viu o número de guardas que colocaram ostensivamente na rua? Acha isto normal? Pensa que o nosso homem é parvo e não vai desconfiar?"

O agente do FBI deitou um olhar desinteressado ao dispositivo policial.

"Claro que isto é normal."

"Está a gozar comigo?", perguntou Tomás. "Acha normal toda esta... esta catrefada de polícias? Acha que o nosso suspeito não vai topar que o estão a vigiar?"

Ted riu-se.

"O quê? Você julga que isto é tudo por causa do Fireball} Não, man, é a Assembleia Geral da ONU.

Todos os anos é a mesma cowboyada aqui em Manhattan. Vêm chefes de Estado e de governo de todo o mundo discursar na Assembleia Geral e espalham o pandemônio na cidade. A vida aqui é um inferno nestas duas semanas."

"Quando há Assembleia Geral, isto é todos os dias assim?"

"Bem, hoje está pior, é verdade. No fim de contas, vem cá

o presidente, não é verdade? Quando ele aparece, o aparato de segurança é sempre um pouco mais espectacular." "Qual presidente?"

"Qual haveria de ser? O dos Estados Unidos, claro."

"O presidente dos Estados Unidos vai discursar diante da Assembleia Geral da ONU?"

Ted assentiu.

"Esta tarde."

"Ele... ele já cá está?"

O homem do FBI consultou o relógio.

"Deve estar, deve. O discurso está previsto para daqui a quinze minutos."

A notícia deixou Tomás embasbacado. Estancou a meio do passeio, os olhos fixos na camisa verde que se movimentava cinquenta metros adiante, a luz da compreensão iluminando-o enfim. Lera nos jornais a notícia do discurso na Assembleia Geral e, grande burro!, nunca fizera a relação entre as coisas.

Mas era tudo tão claro!

"É isso!", quase gritou, esmurrando a palma da mão.

"É isso!"

"O quê?", assustou-se Rebecca. "O que aconteceu?"

O historiador apontou num frenesim para o vulto distante de Ahmed, os olhos arregalados no horror da compreensão. "Ele está à espera do discurso! Ele está à espera do discurso! "O quê?"

"A Al-Qaeda vai fazer explodir a bomba atómica quando o presidente estiver a falar na ONU!"

LIX

"Foxtrot One para Big Mother."

Considerando as circunstâncias, Ted nem sequer fez um esforço para disfarçar quando efectuou a chamada pelo intercomunicador rádio portátil que trazia no cinto.

Crrrrrr.

"O que é, Foxtrot One}"

"Mandem

evacuar

Manhattan

e

retirem

imediatamente o presidente da sede das Nações Unidas", disse com uma calma gelada. "Ponham os contadores geiger a funcionar no edifício e também em todos os quarteirões vizinhos. Vasculhem tudo de uma ponta à outra."

Fez-se um silêncio perplexo no espectro de comunicações.

"Porquê, Foxtrot One} O que aconteceu?"

"O presidente está em Manhattan! O Fireball também está em Manhattan! Existe uma elevada probabilidade de que ele faça detonar um engenho nuclear ainda hoje! Preciso de explicar mais alguma coisa?"

"Roger, Foxtrot One."

Observaram a figura de Ahmed a cruzar mais uma avenida no meio da multidão, neste caso a Quinta Avenida. Seguiam pela 42nd Street e as linhas clássicas da Biblioteca de Nova Iorque ficaram para trás. Não havia dúvidas de que o seu antigo aluno se encaminhava na direcção da sede da ONU, no outro lado da cidade.

"Considerando o que se passa, não seria mais aconselhável interceptá-lo já?", perguntou Tomás, nervoso com tudo aquilo. "Era capaz de ser mais seguro, não acham?"

"E a bomba?", quis saber Rebecca. "Onde está a bomba?"

"Isso vemos depois."

"Não pode ser assim", disse ela. "Se neutralizarmos o Fireball, a ameaça mantém-se.

Parece-me altamente provável que a bomba se encontre na posse dos seus capangas. Eles não hesitarão em fazê-la explodir se o Fireball não aparecer. A nossa prioridade é, pois, localizar a bomba. Só depois de sabermos onde ela está poderemos avançar." Indicou o vulto verde de Ahmed. "De qualquer modo, o Fireball ainda não é uma verdadeira ameaça. Não leva a bomba com ele e por isso julgo que ainda dispomos de algum tempo."

Tomás espreitou nervosamente o relógio.

"O presidente começa a discursar dentro de sete minutos." Olhou para Ted. "Para além dele, quem mais está cá?"

"Deixe cá ver... temos hoje o presidente do Brasil, o primeiro-ministro espanhol, o primeiro-ministro italiano... o presidente do Irão, o primeiro-ministro de..."

"O do Irão também?"

Reflectindo sobre a presença do chefe de Estado iraniano, Ted sentiu-se subitamente encorajado.

"Pois é, está cá o iraniano! Isso é bom, não acham?

O tipo é fundamentalista. Se ele também se encontra cá, a

Al-Qaeda não se atreverá a fazer explodir a bomba hoje, pois não?"

"A Al-Qaeda é sunita e considera que os xiitas são infiéis", explicou o historiador. "O presidente iraniano é xiita, logo é um infiel. A sua morte constitui, pois, um excelente bónus para a Al-Qaeda."

Ted abanou a cabeça e voltou-se para leste, olhando*na direcção da zona onde se encontrava a sede das Nações Unidas.

"E a ONU?", perguntou. "Eles nem ao menos respeitam a ONU?"

Tomás sorriu sem vontade.

"Respeitar a ONU? A Al-Qaeda já lançou ataques violentíssimos contra a ONU no Afeganistão, no Iraque, na Argélia, na Somália, no Sudão, no Líbano..."

"Mas porquê? As Nações Unidas são uma organização que junta todos os povos, que diabo! Até os muçulmanos estão lá! Como podem eles atacar a ONU?"

"A Al-Qaeda acusa a ONU de crimes contra o islão, incluindo o reconhecimento da existência de Israel", explicou Tomás. "Mas o principal problema é teológico."

"Está a gozar."

"A sério. A Carta da ONU estabelece a igualdade de todas as religiões e os muçulmanos não aceitam isso, uma vez que Maomé declarou a superioridade do islão. A declaração da igualdade das religiões desmente Maomé e isso é, consequentemente, algo que eles consideram que faz da ONU uma organização anti-islâmica."

Ted arregalou os olhos, perplexo com aquilo que para ele era uma total novidade.

"Mas... mas a liberdade de religião é um direito humano fundamental!"

"Isso achamos nós, mas não acham muitos muçulmanos", observou Tomás. "Aliás, o mundo islâmico levantou grandes objecções à Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, e essas objecções não se limitam aos fundamentalistas. Se for a ver bem, muitos países muçulmanos nem sequer aceitam essa declaração porque ela estabelece o direito de as pessoas mudarem de religião conforme a sua livre vontade. Ora isso colide frontalmente com o crime de apostasia estabelecido pelo Alcorão e pelo Profeta e que prevê a pena de morte para quem renegar o islão. Além do mais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece a total igualdade de direitos entre homens e mulheres e entre pessoas de qualquer religião, o que também vai contra as leis do islão. Daí que

muitos

muçulmanos,

e

não

os

fundamentalistas, achem que essa declaração é anti-islâmica."

O homem do FBI grunhiu de frustração.

"Nem sei o que diga!"

O edifício das Nações Unidas encontrava-se já a uns meros quatro quarteirões de distância e Tomás vislumbrou na avenida seguinte, a Lexington Avenue, uma barreira metálica que bloqueava o acesso à continuação da 42nd. As ruas pareciam fechadas ao trânsito para além da barreira.

Crrrrrr.

"Big Mother para Foxtrot One." "O

que é, Big Mother}"

"Está fora de questão a evacuação de Manhattan.

Não há tempo para isso." "E o presidente?"

"Também não o podemos retirar da sede da ONU.

Tecnicamente o edifício não é território americano, pelo que o presidente não tem prioridade sobre os outros governantes que lá estão. E estamos a falar de mais de trinta governantes. Teríamos de os retirar a todos ao mesmo tempo, o que não é possível em poucos minutos."

"O quê?", escandalizou-se Ted, perdendo a calma pela primeira vez. "Vocês estão loucos? O presidente tem de sair imediatamente de Manhattan!"

"Lamento, Foxtrot One. A decisão foi dele e é fiflal. Vocês têm mesmo de localizar essa bomba e de a neutralizar."

O homem do FBI teve vontade de atirar o intercomunicador para o chão, mas conteve-se. O

momento era demasiado grave para que se desse ao luxo de ter um ataque de nervos. Respirou fundo e recuperou o autocontrole

"Os contadores geiger já detectaram alguma coisa?"


"A sede da ONU está limpa, Foxtrot One. E as ruas imediatamente em torno do edifício também. A busca está agora a ser alargada."

Ted guardou o intercomunicador portátil no cinto e consultou mais uma vez o relógio.

"Fuck!", praguejou. "Três minutos para o presidente começar a falar. Se calhar vamos mesmo ter de interceptar o Fireball."

"Já disse que primeiro precisamos de localizar a bomba", repetiu Rebecca, começando já a sentir-se cansada de frisar aquele ponto. "Quantas vezes tenho de vos lembrar que o objectivo último não é neutralizar o Fireball, mas neutralizar a bomba?"

O lado de lá da Lexington Avenue estava cheio de polícias e os vultos dos franco-atiradores formigavam nas varandas e terraços dos prédios; os helicópteros zumbiam por toda a parte e as sirenes não paravam de se fazer ouvir. Não havia dúvidas, a zona circundante da sede da ONU era naquele dia o local mais bem vigiado do planeta. Diante de tão espectacular

aparato, parecia uma loucura haver alguém que sonhasse desencadear um atentado naquele local e naqueles dias, mas pelos vistos nada daquilo impressionava a Al-Qaeda.

A atenção de Tomás voltou-se para a figura solitária de Ahmed, que caminhava agora ao longo da Lexington Avenue em direcção a norte e passava ao lado dos magotes de polícias e de carros-patrulha que protegiam o acesso à zona da sede da ONU.

Estaria o seu antigo aluno a explorar o terreno? O

historiador pôs-se a questionar todas as ideias que até ali dava por certas. Como ter a certeza de que o atentado estava iminente? E se, na verdade, tudo aquilo não passasse de...

Caiu.

Sem que ninguém o esperasse, Ahmed pareceu tropeçar de repente e estatelou-se desamparado no chão.

Os três perseguidores cravaram os olhos no corpo do homem que tombara no passeio do outro lado da avenida, tentando perceber o que se passara. O


suspeito caíra e, pelos vistos, não se levantava.

Estaria bem?

Tomás e os dois companheiros mantiveram-se atentos ao vulto tombado, esperando que ele se erguesse, que se mexesse, que fizesse alguma coisa.

Mas o corpo estendido no passeio permanecia quieto e os três chegaram à conclusão inevitável.

Ahmed fora abatido.

LX

"Foxtrot One para Big Mother."

Ted estava de novo agarrado ao intercomunicador portátil, fervendo de irritação e sentindo um nervosismo crescente apossar-se dele.

"O que é, Foxtrot One}"

"O Fireball está down. Quem diabo disparou sobre ele?"

"Já vou verificar, Foxtrot One", foi a resposta.

"Standby."

Ficaram os três na esquina da Lexington Avenue com a 43rd, junto ao edifício da Chrysler, a observar o corpo inerte de Ahmed. Viram alguns polícias a aproximarem-se e um homem de bata branca a sair de uma ambulância ali parada e a ajoelhar-se diante do vulto verde, verificando-lhe os sinais vitais. O homem de bata branca, obviamente um médico, começou a falar com os polícias; parecia evidente que lhes dava instruções sobre como proceder.

Quando terminaram de falar e gesticular, dois guardas pegaram no corpo e levaram-no para a ambulância, uma

carrinha branca com a cruz vermelha e o nome Bellevue Hospital por baixo. Ahmed foi deitado numa maca e introduzido na viatura pelas portas traseiras, que logo se fecharam.

"Se calhar é melhor irmos lá ver o que se passa", disse Tomás, enervado por ter perdido o contacto visual com Ahmed.


"E se o tipo volta a si?", perguntou Rebecca.

"Vê-nos a fazer perguntas ao médico e somos desmascarados. Não, se calhar é melhor ficarmos quietos. Mais vale pôr o FBI a falar com os responsáveis do hospital e eles que questionem o médico pelos canais normais."

Ted assentiu com a cabeça, aceitando a sugestão, e puxou o intercomunicador para a boca.

"Foxtrot One para Big Motber. Será que pode verificar uma coisa, por favor?"

"Diga, Foxtrot One."

"O Fireball foi metido numa ambulância do Bellevue Hospital estacionada junto ao edifício da Chrysler.

Será que o hospital pode indagar discretamente junto do médico da ambulância o que se passa com o seu novo paciente?"

"Roger, Foxtrot One."

O homem do FBI passeou os olhos pelo topo dos prédios. O recorte longínquo de um franco-atirador lembrou-lhe que havia ainda uma resposta para ser dada, pelo que voltou a colar o intercomunicador à boca.

"A propósito, Big Mother. Já se sabe quem foi o idiota que abriu fogo sobre o Fireball?"

"Negativo", foi a resposta. "Ainda estamos a tentar perceber o que se passou, mas até agora ninguém se acusou. Quem quer que tenha disparado está a fechar-se em copas. Provavelmente foi um franco-atirador mais nervoso, sei lá..."

"Não me admirava nada", resmungou Ted entre dentes, baixando devagar o intercomunicador enquanto abanava a cabeça. "Recrutaram uma série de novatos e está-se mesmo a ver que os tipos já fizeram merda." Voltou a colocar o intercomunicador diante da boca e carregou no botão. "Big Motber, já há notícias da inspecção com os geiger?"

"Afirmativo, Foxtrot One. Pusemos várias viaturas com

contadores a percorrer toda a zona e também o resto da

cidade. A busca está quase completa." m

"E então?"

"Negativo. Não foram detectados sinais de radioactividade em parte alguma de Manhattan. Está tudo limpo. Pelos vistos não há nenhuma bomba, Foxtrot One."

Ted, Tomás e Rebecca entreolharam-se, sem saber o que fazer nem dizer. Os eventos pareciam tomar rumos imprevisíveis; o que era certo num momento tornava-se improvável no instante seguinte. Parecia que cavalgavam uma montanha--russa de emoções.

Num gesto que parecia ter-se tornado um tique nervoso, o historiador português espreitou o relógio pela enésima vez.

"Está na hora."

O homem do FBI recuou alguns passos e plantou-se diante da montra de uma loja de electrodomésticos a ver um televisor sintonizado na CNN. Tomás e Rebecca juntaram-se a ele. A estação de notícias transmitia em directo do interior da sede da ONU e mostrava um homem de fato azul-escuro e gravata vermelha subir tranquilamente ao pódio de mármore verde para fazer o seu discurso.

Era o presidente dos Estados Unidos.

Crrrrrr.

"Big Motber para Foxtrot One." "O

que é, Big Motber}"

"Você deve ter-se enganado quanto à ambulância."

"Enganado como?"

"O Bellevue Hospital diz que não tem nenhuma ambulância em Lexington. Aliás, nem sequer dispõe de qualquer ambulância nessa zona. Pode verificar melhor?

Os olhos de Ted fixaram-se no veículo branco de emergência médica, estacionado do outro lado da avenida. As portas da ambulância apresentavam, de facto, a inscrição Bellevue Hospital.

"Desculpe, Big Motber. Mas esta ambulância é mesmo do Bellevue Hospital, não há dúvida nenhuma quanto a isso."

"Negativo, Foxtrot One. O hospital diz que não tem nenhuma ambulância na zona."

Ted não desistiu.

"Eles estão enganados!", insistiu. "Eu estou a ver à minha frente..."

Num gesto impulsivo, Tomás, que seguia a conversa com crescente atenção, arrancou o intercomunicador portátil das mãos do homem do FBI e falou directamente com o comando da operação.

"Big Motber, aqui Tomás Noronha, da NEST", apresentou-se. "Estou a acompanhar o Foxtrot One e precisava de saber uma coisa."

A resposta tardou uns segundos; dava a impressão de que o comandante da operação estava a ponderar se iria falar com um amador estrangeiro que não pertencia ao Bureau. A gravidade das circunstâncias, porém, acabou por ditar a sua decisão.

"Go abead, mister Noronha."

"Vocês já passaram os contadores geiger por toda a cidade?" "Afirmativo."

"E eles não registaram nenhuma radioactividade em parte alguma?"

"Exacto. Não há nada."

"Estão-me a dizer que em momento algum a agulha do contador geiger registou qualquer actividade?

Nada de nada?"

"Sim... quer dizer, há sempre circunstâncias em que o geiger acusa a existência de radioactividade, não é verdade?"

"Que circunstâncias?"

"Olhe, quando passa ao pé de hospitais, por exemplo.*Os hospitais estão cheios de equipamento radioactivo. Sempre que um contador geiger é apontado para algum hospital, a agulha mexe-se. Mas isso é normal e tem de ser descontado."

Tomás começou a sentir o coração bater mais e mais depressa. Os olhos arregalaram-se-lhe de terror e teve tanto medo da pergunta seguinte que esteve quase para não a fazer.

Mas fez.

"E... e as ambulâncias?" "E a mesma coisa."

Tomás olhou para Ted e para Rebecca, e os três caíram em si. As cabeças convergiram para a ambulância estacionada na base do edifício Chrysler e os rostos imobilizaram-se por um longo segundo, interpretando o que viam de um modo totalmente novo, o pavor tombando sobre eles como uma sombra.

A ambulância era a bomba atómica.

LXI

Como se tivessem recebido nesse instante um choque eléctrico, os três largaram a correr para atravessar a avenida, Ted e Rebecca a sacarem as suas pistolas, Tomás de mãos vazias mas a correr também, a mente dos três fixada obsessivamente na mesma ideia, na mesma descoberta, no mesmo horror.

A ambulância era a bomba atómica.

Acercaram-se do veículo já sem se preocuparem com manter-se furtivos; era tudo demasiado urgente para subtilezas. O homem do FBI agarrou o manipulo e puxou-o, de modo a abrir a porta traseira, mas ela manteve-se fechada. Estava trancada.

Sem hesitar, Ted apontou a pistola à fechadura, segurou o pulso para travar o coice da arma e carregou no gatilho. Pah.

O brutal estampido do disparo ecoou pelos tímpanos de Tomás e lançou o caos em redor. Os polícias que faziam a

segurança naquela zona aperceberam-se de que algo de anormal se passava, sacaram das armas e começaram a gritar. "Freeze!"

Mas Ted ignorou-os.

A fechadura da ambulância estava estilhaçada e ele puxou a porta, que se abriu de imediato, revelando dois homens no interior do veículo, um de camisa verde ajoelhado sobre alguma coisa, o de bata branca com uma arma na mão.

Pab.

Pab.

Ted abateu o homem da bata branca, que se dobrou em dois e caiu para a rua. O homem de verde, evidentemente Ahmed, sacou de uma pistola e apontou-a para o exterior.

Crack-crack-crack-crack-crack.

Uma chuva de balas abateu-se sobre Ted, que caiu desamparado no chão. Eram os polícias em redor a abrir fogo sobre ele, pensando que o homem do FBI acabara de balear um médico indefeso.

"CIA!", gritou Rebecca para os polícias. "Parem o fogo!"

Os polícias hesitaram e suspenderam os disparos.

Pab.

Um tiro partiu do interior da ambulância e Tomás rolou pelo chão, fulminado pelo disparo.

Acto contínuo Rebecca atirou-se ao asfalto e, deitada de barriga para baixo, apontou para Ahmed, que já virava a arma fumegante na direcção dela.

Pab.

Pab.

Ahmed tombou no interior da ambulância.

Crack-crack-crack-crack-crack.

Dessa vez a polícia abriu fogo sobre Rebecca, mas como ela estava estendida no chão acabou por se revelar um alvo menos exposto. Além disso largou de imediato a pistola e protegeu a cabeça. Vendo-a indefesa, os guardas suspenderam os disparos e mantiveram as armas apontadas para toda a gente, mesmo os que haviam sido atingidos.

"Ninguém se mexe!", gritou um dos polícias.

"Mantenham-se deitados no chão! Quem se levantar ou fizer alguma coisa será abatido!"

"CIA!", repetiu ela. "Sou da CIA! Há uma bomba na ambulância! Temos de a desactivar!"

Os polícias ficaram desconcertados com a informação. Olharam para a ambulância e depois para o mais graduado do grupo, um barrigudo que tentava ainda decidir o que fazer.

"Você é da CIA?"

"Sim. Deixem-me ir ver a ambulância. Está lá uma bomba!" "Esteja quieta!", ordenou o polícia barrigudo. "Tem algum cartão que a identifique?"

"Sim."

"Com movimentos muito lentos, tire-o e mostre-nos. Mas, atenção, têm de ser mesmo movimentos muito lentos. Se fizer algum gesto brusco, abrimos fogo."

A mão ensanguentada de Rebecca mergulhou devagar no casaco e extraiu um cartão, que exibiu na direcção dos guardas. Os homens do NYPD

aproximaram-se com cuidado, curvados e atentos, as armas sempre apontadas. Um deles inclinou-se com lentidão e pegou no cartão. O pequeno rectângulo plastificado apresentava a fotografia dela e o círculo com a águia americana no centro e as palavras Central Intelligence Agency em redor.

"Com os diabos, ela é mesmo da CIA!", constatou o guarda, mostrando o cartão ao mais graduado.

"Posso levantar-me?", perguntou Rebecca.

O superior hierárquico ponderou o pedido por um instante. Olhou para o cartão, depois para Rebecca, de novo para o

cartão e mais uma vez para Rebecca. Não encontrando motivos para duvidar da autenticidade do documento, acabou por

fazer sinal afirmativo com a cabeça. O polícia que pegara no

cartão estendeu a mão e ajudou-a a erguer-se. m A americana sentia-se combalida e teve dificuldade em endireitar-se. Havia sido atingida por duas balas no braço direito e a manga da camisa estava molhada de encarnado. Olhou em redor e viu Tomás e Ted deitados no alcatrão com pequenas poças de sangue em redor.

"Meu Deus!"

"A senhora conhece esta gente?"

"Eles estão comigo", disse ela, aproximando-se o mais depressa que pôde do português. Ajoelhou-se junto dele e inclinou a cabeça cor de palha para lhe falar ao ouvido. "Tom, você está bem?"

Tomás gemeu e voltou-se devagar.

"Fui apanhado no ombro", arrulhou com um esgar de dor. "Mas acho que vou sobreviver."

Rebecca caiu sobre ele e abraçou-o, aliviada.

"Graças a Deus! Graças a Deus! Tive tanto medo..."


Tomás devolveu o abraço, embora com cuidado para proteger o ombro esquerdo, e beijou-a nas orelhas e no pescoço. Cheirou-lhe o perfume suave no cabelo dourado e sentiu-se flutuar, os músculos distendendo-se e o corpo descontraindo e entregando-se a ela.

"Está tudo bem", insistiu num sussurro, os dentes subitamente cerrados para dominar um inesperado recrudescer da dor no ombro. "Pronto, está tudo bem."

Os polícias rodearam-nos.

"Minha senhora", disse um deles, uma expressão alarmada no rosto. "Há um relógio dentro da ambulância."

Num sobressalto, Rebecca e Tomás viraram imediatamente a cara para ele.

"O quê?"

"Está em contagem decrescente."

LXII

Um polícia magro e alto ajudou Rebecca e Tomás a subirem para a viatura. Sentiam ambos dores fortes nas partes do corpo onde haviam sido baleados, mas a informação que o homem do NYPD lhes dera funcionara como uma chicotada. Fosse qual fosse a dor que sentissem, aquele assunto tinha prioridade sobre todos os outros.

O polícia indicou-lhes o relógio.

"É aqui."

Os dois inclinaram-se sobre o local e arregalaram os olhos ao ver os dígitos luminosos a mo

vimentarem-se na sombra.

Загрузка...