0. *
Por influência do xeque Saad, Ahmed tornou-se um menino ainda mais pio. Fazia o salat completo, isto é, rezava cinco vezes por dia. Antes falhava por vezes a oração da madrugada, a mais difícil porque lhe interrompia o sono, mas agora deixara de haver falhas; tornara-se tão rigoroso que lhe nasceram entre os olhos uns círculos permanentes sombreados de olheiras, que depois exibia na escola e na mesquita como troféus, prova inequívoca da sua fé.
O salat era apenas o segundo dos pilares do islão, e o seu mestre cuidou que respeitasse os restantes. O
primeiro, a shahada, era o mais fácil, uma vez que não passava de uma mera declaração a afirmar a crença num só Deus e o reconhecimento de que Maomé era o Seu mensageiro. Isso já fizera quando era criança e ainda não entendia o que estava a dizer. Mas o xeque insistia muito no respeito pelo terceiro pilar, a zakat, que consistia em dar esmolas aos necessitados.
"O Profeta, que Alá o tenha para sempre na Sua guarda, disse: «Não é um crente aquele que come à vontade, enquanto o vizinho a seu lado tem fome.»"
Saad fez um gesto em redor, exibindo o quarto onde ensinava o islão a Ahmed. "Tudo isto à tua volta pode pertencer temporariamente à tua família, mas o verdadeiro proprietário é Deus. Devemos por isso exercer sempre a zakat e partilhar entre todos nós os bens de Alá Ar-Rahman, o Beneficente."
Depois desta conversa, Ahmed fez questão de mostrar que se tinha tornado pródigo na zakat e, na oração da sexta-feira seguinte, aproveitou na mesquita um momento em que o xeque cruzou com ele o olhar para entregar a um pedinte estropiado uma nota que guardara de propósito para a ocasião.
Foi um gesto difícil, porque aquele era na verdade todo o dinheiro que conseguira amealhar nos últimos meses, mas acreditava que assim impressionaria o mestre. Quando olhou para Saad, porém, viu-o abanar a cabeça, claramente desagradado com o gesto.
O rapaz ficou surpreendido primeiro e intrigado depois com esta reacção inesperada. Pois não fora ele suficientemente generoso? Afinal aquela nota era todo o dinheiro que possuía; resultara da soma de múltiplos trocos insignificantes que o pai lhe fora concedendo ao longo do último ano e ele guardara com zelo numa caixinha de sapatos. Havia-lhe cus-tado muito entregar todo o seu dinheiro ao pedinte e apenas o fizera porque era um bom muçulmano. Não tinha sido um gesto de um crente respeitador dos ensinamentos do islão? Na verdade, nada via de errado no que fizera. Assim sendo, por que razão o xeque desaprovara aquela zakat? Seria a quantia pequena de mais? Se calhar era necessário dar ainda mais dinheiro... mas qual dinheiro? Ele não passava de um menino que andava na escola, não possuía mais do que aquilo!
A resposta a estas perplexidades veio na aula seguinte.
"Não é um problema de quantidade, cada um dá o que pode", explicou o mestre Saad com suavidade.
"O problema é que a zakat é para ser concedida discretamente."
"Mas porquê, xeque?"
"Para que o pedinte não se sinta envergonhado."
Apontou o dedo peremptório ao seu pupilo. "E para que tu não te sintas superior a ele." Exibiu as palmas das duas mãos. "O
Profeta disse: «A melhor caridade é aquela em que a mão direita dá e a esquerda não tem conhecimento disso.» Lembra-te de que não tens de me agradar a mim nem aos teus semelhantes."
"Então a quem tenho eu de agradar, xeque?"
O mestre Saad ergueu os olhos e apontou para cima.
"A Alá."
,
III
Vista do ar, a pequena povoação das Furnas parecia um lugar extraído de um conto de fadas, com as suas casinhas pequenas e muito bem arranjadas ao longo das encostas verdes, os quintais cuidados e os espaços arrumados. Aqui e ali erguiam-se no ar jactos de vapor, sinalizando a forte actividade geotérmica visível nas caldeiras fervilhantes do pequeno povoado.
O helicóptero contornou o casario e pousou num campo ajardinado, entre uma vivenda alva e umas vacas que pastavam no monte ao lado, vagamente incomodadas com o estrepitar das hélices do intruso que ali aterrara. O tenente Anderson foi o primeiro a saltar para fora e estendeu a mão para ajudar Tomás a sair. Afastaram-se do helicóptero em corrida, os corpos curvados e a cabeça baixa, e só pararam diante de um Humvee militar que os aguardava na estrada vizinha. Saltaram para o interior e o jipe arrancou, serpenteando pelas ruas pacatas das Furnas.
4S "Sabe o que os Açores me fazem lembrar?", perguntou Tomás ao americano, o olhar preso nas fachadas das casas que desfilavam pelos passeios.
"O quê, sir?"
"Um filme da Disney que vi no cinema quando era miúdo." "A Cinderela?"
"Não, não. Um daqueles filmes com gente^a sér^o, em carne e osso."
"Como a Mary Poppins..."
"Isso. Só que este contava uma viagem ao Árctico.
Sem saberem como, os viajantes encontraram de repente uma terra perdida no meio da neve, onde tudo era verde e havia vulcões, florestas com árvores altíssimas e animais já extintos." Fez um gesto a indicar a paisagem no exterior. "Os Açores parecem-me essa terra perdida."
O tenente Anderson olhou em redor e assentiu.
"Sim, esta paisagem tem de facto um pouco de fantasia. A mim, confesso, faz-me lembrar a Suíça."
O Humvee percorreu o emaranhado de artérias e estacionou bruscamente numa rua estreita, ao lado de um hotel. O americano fez sinal ao convidado para sair.
"E aqui, sir."
Tomás saltou do jipe mas admirou-se por ver o tenente Anderson quieto no seu lugar. "Você não vem?"
"Nope", disse ele, abanando a cabeça. "O seu encontro com Eagle One será a sós, sir. Não se esqueça de que tudo isto é confidencial, eu não passo de um correio." Acenou em despedida. "Bye-bye."
O Humvee arrancou com um rugido, deixando o passageiro para trás. Tomás respirou fundo e dirigiu-se para a entrada do hotel; não sentia particular simpatia pelo homem que iria encontrar, mas a curiosidade era mais forte que ele. Cruzou o átrio e ouviu de imediato a voz rouca interpelá-lo.
"Hell, você está atrasado!"
Voltou-se e viu a figura hirta e envelhecida de Frank Bellamy com um copo de whisky na mão.
Mantinha o porte militar e as mesmas rugas rasgavam-lhe os cantos dos olhos glaciais e cruéis, mas o cabelo tornara-se todo branco. O americano deu um passo e estendeu-lhe a mão para o cumprimentar.
"Olá, mister Bellamy", disse Tomás, devolvendo-lhe a saudação. "O que o traz por cá?"
O homem da CIA pousou o copo de whisky numa mesa e fez um gesto na direcção do restaurante do hotel.
"A gastronomia, Tomás. A gastronomia."
"O que tem ela de especial?"
"Ouvi dizer que é fucking delicious."
O grande e arejado salão do restaurante regurgitava
de
animação,
os
empregados
afadigando-se de mesa em mesa com largas travessas carregadas de enchidos, couves, cenouras, cebolas, arroz, nabos e, sobretudo, muitas batatas, tudo fumegante e bem cheiroso. Um deles aproximou-se da mesa dos recém-chegados e de imediato começou a servi-los.
"Como se chama este prato?", quis saber Bellamy enquanto ajeitava o guardanapo no regaço.
"Cozido à portuguesa", esclareceu Tomás. "É um clássico da culinária portuguesa, originalmente de uma região do Norte de Portugal chamada Trás-os-Montes."
"Mas você tem de concordar que este dos Açores é especial", atalhou o americano. "Não é todos os dias que se come um almoço cozinhado pela terra..."
"Viu como se faz isto?"
"Não."
"E aqui perto, na lagoa das Furnas. Por causa da actividade geotérmica, a terra ali é muito quente e eles cavaram no chão umas estruturas onde põem as panelas com toda a comida lá dentro. Tapam a estrutura e deixam o calor da terra cozer a comida durante cinco horas. Por volta do meio-dia vão lá buscar as panelas e trazem-nas directamente aqui para»o restaurante."
"Você já viu essas estruturas?"
"Já, pois. Estão num cantinho, ao lado da lagoa."
Frank Bellamy experimentou uma morcela com arroz e rolou os olhos de prazer.
"Hmm... é uma maravilha!"
O português também provou.
"É o melhor cozido à portuguesa de todos", disse.
"Na verdade, este cozido das Furnas é uma das maravilhas da gastronomia mundial. Por ser cozinhada muito lentamente pela terra, a comida fica com este gostinho especial... é difícil de explicar. O senhor escolheu bem o prato, está de parabéns."
"Quando cheguei esta manhã, recomendaram-mo muito."
Veio o empregado e deitou vinho tinto para os copos dos comensais. Tomás sentiu-se descontrair; era realmente uma maravilha voltar às Furnas e deliciar-se com um daqueles cozidos. Mas talvez fosse bom conhecer o resto da ementa do almoço, o menu que o seu interlocutor trouxera para alimentar a conversa.
"Para além da gastronomia, o que o trouxe por cá?", perguntou, a curiosidade sempre a espicaçá-lo.
"O que há em mim que possa interessar à CIA?"
Bellamy pegou no guardanapo, limpou a boca, bebeu um trago de vinho e encarou o seu interlocutor.
"Não é a CIA", disse. "É a NEST."
"A quê?"
"NEST", repetiu. "É uma unidade de resposta rápida criada nos Estados Unidos em meados da década de 1970 para lidar com contingências especiais."
"NEST, diz você? O que significam essas iniciais?"
"Nuclear Emergency Search Team."
"Nuclear? Isso é um laboratório de física nuclear?"
"Não. É uma unidade especial que lida com emergências que envolvem armas nucleares."
Apanhado de surpresa, Tomás parou de mastigar e fixou o olhar em Frank Bellamy.
"Caramba! No que você está metido!" Digeriu a revelação e o pedaço de comida que tinha na boca.
"O senhor deixou a CIA?"
"Não, não. Ainda lá continuo. Permaneço na chefia do Directorate of Science and Technology. Aliás, é por isso mesmo que pertenço à NEST. A nossa unidade da NEST é composta por especialistas em armamento ligados ao DOE, à NNSA e aos laboratórios nacionais, ou seja, as organizações responsáveis pelo desenvolvimento, pela manutenção e pela produção das armas nucleares americanas."
"Ah, a NEST controla as armas nucleares americanas..."
"Errado. A NEST é uma unidade criada para localizar, identificar e eliminar material nuclear."
O português fez uma careta intrigada.
"Que material nuclear?"
"Bombas atómicas, por exemplo. Na verdade, todo o material nuclear que possa ser usado contra os Estados Unidos pelos seus inimigos, como países ou organizações terroristas. Temos ao todo mais de setecentas pessoas preparadas para responder a uma ameaça nuclear, embora utilizemos equipas muito mais pequenas. Em apenas quatro horas, por exemplo, podemos pôr um Search Response Team em qualquer local onde haja uma ameaça."
"Ena, isso parece coisa de filme americano."
"Receio que seja muito real."
Tomás trincou uma batata cozida, quase com medo de fazer a pergunta seguinte.
"E... e têm ocorrido ameaças dessas?"
*■
"Algumas."
"A sério?"
"Um mês depois do 11 de Setembro, por exemplo, a CIA recebeu a informação de um agente com o nome de código Dragonfire a indicar que os terroristas estavam na posse de uma arma nuclear de dez quilotoneladas e que essa arma se encontrava em Nova Iorque. Como deve imaginar, foi o pânico na administração. O vice-presidente Dick Cheney foi de imediato retirado de Washington e o presidente Bush mandou a NEST para Nova Iorque com a missão de procurar a bomba."
"E então? Encontraram-na?"
Bellamy fez um ruído aspirado com o canto da boca, como se tentasse chupar um pedaço de comida preso entre os dentes.
"Era falso alarme."
"Ah, bom. Mas o que eu quero saber é se há ameaças dessas que se revelam reais." "Todos os dias."
Foi a vez de Tomás emitir um estalido com a língua e esboçar uma expressão impaciente. "Oh, vá lá... Fale a sério."
"Estou a falar a sério", insistiu Bellamy. "Todos os dias há uma ameaça de ataque nuclear contra nós."
"Não pode ser."
"Não acredita? Olhe, o Paquistão construiu armas nucleares devido à tecnologia que o seu chefe de projecto, um homem chamado Abdul Qadeer Khan, roubou ao Ocidente. E esse senhor pôs-se depois a vender a tecnologia para a construção de armas nucleares a outros países, como o Irão, a Líbia e a Coreia do Norte, pelo menos."
"Ah, lá vêm vocês com a mesma conversa", troçou Tomás. "Já com o Iraque disseram o mesmo e foi o que foi."
"O Iraque foi um disparate pegado do Bush filho e a história das armas de destruição em massa não passou de um pretexto para viabilizar a guerra pelo petróleo e estender o domínio americano ao Médio Oriente. No entanto, no caso das exportações da rede Khan receio que estejamos a falar de uma coisa muito séria."
"Vocês têm provas?"
"Claro."
"Não me estou a referir às provas do estilo daquelas que o vosso secretário de Estado foi à ONU apresentar contra o Iraque..."
"Não tenha dúvidas de que temos provas. Olhe, em 2003 recebemos uma denúncia relativa a um navio alemão com destino à Líbia chamado BBC China. O
navio foi interceptado no Mediterrâneo e, quando fomos inspeccioná-lo, descobrimos que ele transportava milhares de componentes para centrifugadoras. Apanhada em flagrante, a Líbia confessou que o remetente era o senhor Khan e revelou que ele havia prometido equipar o país com armas nucleares a troco de uns míseros cem milhões de dólares. Isto foi a Líbia que disse, não fui eu. O
mesmo senhor Khan efectuou pelo menos treze viagens à Coreia do Norte. O que acha você que ele foi lá fazer? Ver se as coreanas tinham tetas grandes? Há também registos de viagens deste cavalheiro ao Irão e suspeitas de negócios com um quarto país, mas não temos a certeza de qual. Será a Síria ou a Arábia Saudita. Quer mais provas?"
"Se as tiver..."
"Então aqui vão", prontificou-se Bellamy, embalado.
"Na mesma altura da intercepção do BBC China, os laboratórios do senhor Khan distribuíram numa feira internacional de armamento uma brochura a disponibilizar diferentes tipos de tecnologia nuclear a quem a quisesse comprar. Pressionámos o Paquistão por causa das actividades ilícitas do chefe do seu projecto nuclear. O senhor Khan foi preso e em 2004 apareceu na televisão paquistanesa a confessar tudo."
"Ele confessou?"
"Em directo na televisão. Disse que actuou sozinho." "Ah! Ele fez tudo sozinho..."
Impaciente com a ingenuidade implícita nesta observação de Tomás, Bellamy rolou os olhos.
"Oiça lá, as baratas peidam-se em francês? Não, pois não? Pois a probabilidade de o senhor Khan ter actuado sem o conhecimento dos militares paquistaneses é igual à probabilidade de uma barata se peidar em francês." Formou um O com o polegar e o indicador. "Ou seja, um grandessíssimo zero!"
Bebeu um gole de tinto. "Então o tipo despacha centrifugadoras para a Líbia, distribui brochuras a oferecer equipamento nuclear numa feira de armamento e faz viagens sucessivas ao Irão e à Coreia do Norte e os militares paquistaneses não topam nada? Mas há alguém que acredite nisso?
Claro que o senhor Khan é apenas a face visível do problema! Claro que os militares paquistaneses estão enterrados até ao pescoço nesta porcaria! Então não haviam de estar? Eles são os mentores da proliferação nuclear em todo o mundo! O chefe dos serviços secretos paquistaneses, o ISI, era o general Hamid Gul. Pois sabe o que ele disse? O
homem afirmou em público que era dever do Paquistão desenvolver a infra-estrutura nuclear islâmica e, quase no mesmo fôlego, acrescentou que os Estados Unidos não têm maneira de travar atentados suicidas muçulmanos. Isto é, relacionou em público a questão nuclear com a questão dos suicídios. E se disse isso em público imagine o que não fará em privado! Basta ver que o ISI tem fortes ligações aos grupos terroristas islâmicos, como por exemplo o Lashkar-e-Taiba, que levou a cabo os grandes atentados em Mumbai e tem filiação à Al-Qaeda. Não lhe parece que esta ligação de um estado islâmico a terroristas é um barril de pólvora à beira de rebentar?"
"Claro que sim. Mas eu julgava que o Paquistão era vosso aliado. Se as coisas são assim, por que razão vocês não fazem nada?"
Bellamy abanou a cabeça, frustrado.
"Por causa do fucking Afeganistão", desabafou.
"Depois do 11 de Setembro tornou-se essencial obter a cooperação do Paquistão na luta contra os talibãs e a Al-Qaeda, pelo que se decidiu fechar os olhos ao que os militares andavam a fazer com as armas nucleares. Mas claro que é tudo uma grande fantochada. O Paquistão diz em público que está contra os fundamentalistas islâmicos, mas em privado ajuda-os, arma--os e protege-os. Sabe qual é o problema? E que há muitos poderes dentro do Paquistão e o maior deles é o do ISI e dos militares.
O poder dessa gente é tal que a falecida antiga primeira-ministra paquistanesa, Benazir Bhutto, revelou que a primeira vez que viu a bomba atómica do seu país foi uma maqueta que o meu antigo director da CIA lhe apresentou. Quer dizer, os seus próprios militares recusaram-se a mostrar--lhe a bomba do país que ela supostamente governava, veja só! E, quando a senhora Bhutto foi afastada do poder, ela própria disse que tinha sido vitimada por um golpe nuclear montado pelos militares para a impedirem de assumir o controlo dessas armas. Ora é com esta gente que nós temos de lidar. Com os militares a constituírem um estado dentro do estado no Paquistão e com as suas ligações aos fundamentalistas islâmicos, tudo é possível. Daqui até as armas nucleares paquistanesas chegarem às mãos dos terroristas, meu caro, basta um pequeno e terrível passo. Está claro?" "Claríssimo."
"É por isso que, e em resposta à sua pergunta, só lhe posso dizer que todos os dias paira a ameaça de um atentado nuclear contra nós. Em boa verdade, o que está em questão agora já não é saber se ele vai acontecer, porque vai. A questão é saber quando."
Suspirou e deixou a palavra ecoar. "Quando."
Tomás remexeu-se no lugar, pouco à vontade. Para tentar descontrair-se, deslizou o olhar para o vasto jardim que se estendia para lá do restaurante, passeando a atenção pela flora exuberante, e em especial pelos hibiscos e pelas hidrân-geas que enchiam o parque. Tudo ali era pacato e lento, em contraste com as palavras tensas com que o seu interlocutor o brindava à mesa.
"Oiça, mister Bellamy", disse. "O que deseja o senhor de mim?"
O americano recostou-se na cadeira e mirou-o com o desafio a cintilar-lhe nos olhos azuis gelados. "Que se junte a nós." "A nós, quem?" "À NEST."
Tomás franziu o sobrolho, admirado com a sugestão. "Eu? A que propósito?"
"Oiça, a NEST tem equipas especiais na Europa, na região do golfo Pérsico e na base aérea de Diego Garcia, no Indico. Precisamos de si para a nossa equipa europeia."
"Mas porquê eu? Não sou militar nem engenheiro nem físico nuclear. Não vejo como vos possa ser útil numa unidade dessas."
"Não se faça modesto. Você tem outros talentos."
"Quais?"
"É um criptanalista de primeira categoria, por exemplo." "E depois? De certeza de que vocês têm outros por aí, provavelmente bem mais talentosos do que eu." "Não. Você é único." "Não vejo em quê..."
Frank Bellamy brincou com a colher de sobremesa.
"Diga-me uma coisa, onde passou você o seu último ano?" A pergunta deixou Tomás desconcertado.
"Bem... no Cairo. Porquê?" "O que esteve lá a fazer?"
"Estive na Universidade de Al-Azhar a tirar uma especialidade em islamismo e a aprender árabe."
"Porquê?"
"Ora, porque é muito útil para o meu estudo de línguas antigas do Médio Oriente. Como sabe, já falo e leio aramaico, a língua de Jesus, e hebraico, a língua de Moisés. O árabe, enquanto língua de Maomé, pode ajudar-me como instrumento de pesquisa na história das grandes religiões, uma área que me interessa muito em termos académicos. Além disso, o primeiro tratado de criptanálise está redigido em árabe."
"E aprendeu alguma coisa útil no Cairo?" "Sim, claro.
Aliás, até já dou aulas a alguns alunos muçulmanos lá em Lisboa. Porque pergunta?"
O americano inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos na mesa e cravou os olhos em Tomás.
"Ainda pergunta porquê? Então você é um excelente criptanalista, lê e fala árabe, conhece o islão a fundo e, depois de me ouvir falar sobre o tipo de ameaça a que estamos sujeitos, ainda me vem perguntar porquê? É preciso ter lata!"
O português respirou fundo e devagar. 0
"Ah, já estou a perceber tudo..."
"Ainda bem!"
"Mas não conte comigo. Eu não quero fazer parte dessa organização que você representa."
"Prefere fazer como a avestruz? Mete a cabeça na areia e finge que não se passa nada? Pois eu tenho a dizer-lhe que estão a acontecer coisas muito graves, coisas de que o público em geral não tem a mínima noção. E você pode ajudar-nos a enfrentá-las."
"Mas por que motivo hei-de eu ajudar a América?
Vocês inventaram o problema no Iraque, agora andam para aí a lamuriar-se e nós é que temos de vos ajudar?"
"Este problema não é exclusivamente americano. E
europeu também."
"Pois, pois. Vá-me contando histórias."
Bellamy torceu os lábios finos e recostou-se de novo na cadeira, a atenção sempre presa no português, os dedos entre-laçando-se uns nos outros.
"Descobrimos uma coisa, Tom. Precisamos da sua ajuda."
"Que coisa?"
"Um e-mail da Al-Qaeda."
"O que tem esse e-mail de especial?"
"Não lhe posso dizer agora. Esta informação só lhe poderá ser fornecida se. você se juntar a nós." "Isso é tudo conversa!"
O esboço de um sorriso perpassou pelo olhar gelado e calculista do homem da CIA.
"Diga-me uma coisa, Tom. Gosta de Veneza?"
Tomás não percebeu a mudança de direcção na conversa e ainda hesitou na resposta, mas deixou-se embalar, sempre queria ver onde iria aquilo dar.
"É uma das minhas cidades favoritas. Porquê?"
"Venha comigo a Veneza."
O português soltou uma gargalhada.
"Eu gosto de Veneza, mas confesso que, para companhia, idealizava outro tipo de pessoa... uma figura talvez mais curvilínea, não sei se está a ver o género. Além do mais, encontro-me aqui de férias com a minha mãe e não a vou abandonar."
"E quando acabam essas férias?"
"Depois de amanhã."
"Então é perfeito. Eu parei aqui nos Açores a caminho de Veneza. Encontramo-nos lá dentro de três dias." "Mas o que há em Veneza assim tão especial?" "O Grande Canal." Tomás voltou a rir-se.
"E que mais?"
"E uma senhora que quero que você conheça."
"Quem?"
Frank Bellamy ergueu-se, dando o almoço por encerrado. Tirou a carteira do bolso e, com um gesto displicente, largou uma nota gorda sobre a mesa antes de responder.
"Uma brasa."
IV
O homem que apareceu ao fundo do corredor tinha de certo modo um aspecto ascético. Era magro, vestia uma jalabiyya, a longa túnica branca que os homens mais religiosos habitualmente usam, e ostentava uma barba negra, larga e farfalhuda.
"É ele! É ele!", disse uma voz excitada entre o grupo de rapazes que aguardava à porta da sala.
"Ele, quem?", perguntou Ahmed, mirando interroga-doramente a figura que percorria com tranquilidade o corredor.
"O novo professor, estúpido!"
O professor de Religião tinha-se aposentado no ano anterior, pelo que havia agora um novo responsável por aquelas aulas. Ahmed frequentava uma madrassa financiada pela Al-Azhar, a mais poderosa instituição de ensino do mundo islâmico.
Estudava Matemática, Árabe e o Alcorão. A matéria religiosa ocupava mais de metade do tempo de aulas na
madrassa, embora os seus principais conhecimentos sobre o islão lhe fossem transmitidos em casa ou na mesquita pelo xeque Saad, com quem aprendia havia já quase cinco anos. Passou quase todo esse tempo, não a discutir o islão, mas a decorar o Alcorão, tarefa que o enchia de entusiasmo e o fazia sentir-se adulto. Chegara já à sura 24 e sabia que, quando tivesse todo o Livro Sagrado na ponta da língua, atrairia grande respeito pela sua família e seria considerado um menino muito pio.
O aparecimento daquele homem ao fundo do corredor, porém, tudo iria mudar. O novo professor aproximou-se da porta da sala e abrandou. Fez com a cabeça sinal aos alunos de que entrassem e foi ocupar o seu lugar diante da classe.
"As saldam alekum", cumprimentou. "Chamo-me Ayman bin Qatada e sou o vosso novo professor de Religião. Vamos começar a aula por recitar a primeira sura."
As lições iniciais foram em tudo semelhantes a outras que Ahmed tivera sobre o islão, ali na madrassa, em casa ou na mesquita. O professor Ayman era senhor de uma voz rica e enganadoramente suave. As suas palavras e o tom em que as proferia adquiriam por vezes tanta força nos momentos certos que, ao fim de algumas aulas, o professor se revelou capaz de galvanizar os alunos e inflamar a classe com tiradas vibrantes de emoção.
Foi-se tornando gradualmente claro que as suas aulas não eram apenas ocupadas pela memorização em coro do Alcorão. Interessante e imaginativo, o professor Ayman contava muitas histórias e encorajava os alunos a participarem, o que fazia daquelas lições de Religião um momento muito animado. Eram talvez as aulas mais interessantes que havia na madrassa.
A certa altura, a matéria começou a revelar-se um pouco diferente da que o anterior professor havia dado ou daquela que o xeque Saad ensinava a Ahmed em casa ou na mesquita. Até que chegou o dia em que veio a lição mais inesquecível de todas.
Depois da recitação de algumas suras, o professor Ayman não se concentrou nas mensagens de virtude do Alcorão, como era habitual nas aulas do seu antecessor, njas anües na história do islão. Com um brilho nos olhos e um timbre ardente e inflamado na voz, dedicou toda aquela hora a falar sobre a grandeza do império erguido em nome de Alá.
"Maomé, que a paz esteja com ele, começou a expansão do islão com a força da espada", explicou o professor Ayman, brandindo o punho no ar como se ele próprio segurasse uma cimitarra ensanguentada.
"Quando estava em Medina, o Profeta, que Deus o tenha para sempre na Sua guarda, iniciou a conversão dos Árabes à verdadeira fé. Fê-lo pela pregação, mas também lançando uma guerra contra as tribos de Meca. Foram precisas vinte e seis batalhas, mas o mensageiro divino, com a graça de Alá, acabou por submeter todo o povo árabe e convertê-lo ao islão. Quando os muçulmanos se juntaram em Meca para o primeiro Hadj, Maomé, que a paz esteja com ele, subiu ao monte Arafat e fez o seu discurso de despedida." O professor inspirou fundo, como se nesse instante emulasse o Profeta.
"«Depois de hoje já não haverá mais duas religiões a coexistir na Arábia»", disse, citando as palavras de Maomé. "«Eu desci por Alá com a espada na minha mão e a minha riqueza virá da sombra da minha espada. E aquele que discordar de mim será humilhado e perseguido.»"
Os alunos não conheciam estas palavras do Profeta, mas, ao ouvi-las da boca exaltada do professor, a turma inteira ergueu-se a uma só voz.
"Allah u akbar!", gritaram os alunos em uníssono.
"Deus é o maior!"
Ayman sorriu, agradado com a reacção de fervor religioso. O burburinho, porém, revelou-se talvez ruidoso de mais e o homem fez com as duas mãos um gesto para impor o regresso do silêncio à sala.
"Dias depois do sermão final, Maomé, que a paz esteja com ele, apanhou uma febre que durou vinte dias e acabou por morrer. Tinha sessenta e quatro anos de idade quando Alá o chamou para o jardim eterno. Por essa altura já toda a Arábia era muçulmana."
"Allah u akbar!", voltaram a entoar os alunos, desta vez repetidamente. "Allah u akbar!"
O professor pediu de novo calma.
"Pensam que a morte do Profeta, que a paz esteja com ele, foi o fim da história?" Abanou a cabeça.
"Não foi. Foi apenas o princípio de uma grande e gloriosa epopeia. Após a morte de Maomé, que a paz esteja com ele, a utnma ficou temporariamente dividida, mas acabou por escolher um sucessor.
Sabem quem foi?"
"O califa", respondeu um aluno de imediato.
"Claro que o sucessor foi o califa", disse Ayman, um pouco exasperado com a resposta. "Califa quer dizer sucessor, toda a gente sabe isso. O que eu quero saber é quem foi o primeiro califa."
"Abu Bakr", disseram outros dois.
"Abu Bakr", confirmou o professor. "Ele era um dos sogros de Maomé, que a paz esteja com ele. Abu Bakr e os três califas que se lhe seguiram são hoje conhecidos como os quatro Califas Bem Guiados, por terem ouvido a revelação dos lábios do próprio Profeta e por terem aplicado a sharia, protegido a umma e atacado os kafirun."
Todos os alunos na sala sabiam que a sharia era a lei do islão, a umma o conjunto universal da comunidade islâmica e os kafirun os infiéis, plural de kafir, mas houve uma mão hesitante que se levantou.
Pertencia a Ahmed, para quem a afirmação do Profeta de que a sua riqueza viria da sombra da espada constituía novidade; jamais o xeque Saad ou o anterior professor na madrassa lhe haviam falado naquela declaração.
"E como foi que o fizeram, senhor professor?"
"Ora, da mesma forma que o Profeta, que a paz esteja com ele, o fez! Com o Santo Alcorão numa mão e a espada na outra! Abu Bakr exerceu o califado em pleno respeito pela Justiça de Deus, contemporizando quando era de contemporizar, punindo quando era de punir. E o segundo califa, Omar ibn Al-Khattab, lançou uma grande jihad contra as nações que faziam fronteira com a Arábia, como aqui o Egipto e também a Síria, a Pérsia e a Mesopotâmia, para expandir a fé e o império. Com a graça de Alá, conquistámos ainda Al-Quds." Ergueu o punho vitorioso. "Allah u akbarV
"Allah u akbar!", devolveu a turma, entusiasmada.
Nenhuma desta matéria trazia necessariamente novidades, mas o novo professor tinha o condão de a apresentar de uma forma que os alunos achavam bem mais interessante.
"Crescemos e prosperámos, espalhando a sharia pelo mundo conforme ordenado por Alá no Santo Alcorão!" O tom entusiástico e inflamado de Ayman tornou-se subitamente lúgubre. "As coisas complicaram-se, no entanto, com a morte de Uthman bin Affan, o terceiro dos quatro Califas Bem Guiados. E que ele foi assassinado por revoltosos muçulmanos, os Kharij. Quando Ali ibn Abu Talib, o quarto califa, começou a reinar, decidiu não vingar a morte do terceiro califa por recear que a insurreição dos Kharij alastrasse. Só que isso ia contra a sharia e os mandamentos divinos, conforme notou o governador da Síria, Muawiyya, que exigiu a punição dos Kharij. Como o califa Ali não cedeu, Muawiyya concluiu que Ali estava em violação da sharia e já não era o califa legítimo, pelo que se revoltou. Ali respondeu, argumentando que ele era o sucessor de Maomé e que o Profeta, que a paz esteja com ele, jamais permitiria uma revolta contra si, pelo que esta revolta significava ela própria a violação da sharia. A umma dividiu-se assim essencialmente em dois campos: os xiitas, que apoiavam Ali, e os sunitas, que apoiavam Muawiyya.
Seguiram-se muitas batalhas, mas Ali acabou por morrer e Muawiyya tornou-se califa, iniciando assim a primeira dinastia de califas, a dinastia omíada."
"Nós somos sunitas, não somos?", perguntou um aluno.
"A umma é sunita", sentenciou Ayman. "Só o Irão é xiita. O Irão e partes do Iraque e do Líbano. Mas os muçulmanos legítimos somos nós, os sunitas. Vamos de Marrocos ao Paquistão, da Turquia à Nigéria, somos a verdadeira umma. Os xiitas estão em apostasia por terem ficado com Ali depois de ele ter violado a sharia e por andarem a adorar santos, como Ali e o seu filho Hussein."
"E depois?", quis saber outro aluno.
"E depois o quê?"
"O que aconteceu quando a primeira dinastia de califas começou?"
"Ah, a dinastia omíada...", exclamou o professor, retomando o fio à meada. "Pois... seguiram-se tempos turbulentos, claro. O califado ficou sedeado em Damasco, mas os Kharij continuavam em insurreição, o que impediu o exército islâmico de se concentrar na sua missão principal, a expansão e a conquista, para se ocupar da pacificação do império. Muawiyya recorreu a todos os métodos possíveis, incluindo a matança em grande escala, até que acabou por pôr fim à revolta dos Kharij. Mas o mais importante é que o seu filho Yazid, quando se tornou califa, esmagou uma outra revolta, conduzida por Al-Hussein ibn Ali, um neto de Maomé, que a paz esteja com ele. O califa decapitou Hussein e exterminou a sua família."
A turma reagiu em choque a esta revelação. „
»
"O califa matou o neto do Profeta?", admirou-se um aluno, os olhos arregalados.
"Ele pôde fazer isso?", quis saber outro.
"Maomé, que a paz esteja com ele, foi um grande homem", disse o professor. "Mas, atenção, ele era um homem, não era Deus nem se fazia passar por tal.
Todos os homens se devem submeter à sharia, incluindo os descendentes do Profeta, porque as leis de Alá são universais e eternas. A violação da sharia pode implicar apostasia e o Enviado de Deus estabeleceu a pena de morte para esse crime." Inclinou a cabeça, como se fizesse uma concessão. "Mas também é verdade que a matança de descendentes do Profeta, que a paz esteja com ele, chocou a umma e foi por isso que os abássidas, que eram leais à família de Maomé, assassinaram o último califa dessa dinastia e puseram fim aos omíadas."
"Acabaram os califas?"
"Não, começou a segunda dinastia de califas, a dos abássidas."
"Ah! Então a umma ficou unificada..." O
professor Ayman hesitou.
"Bem, não exactamente. A prioridade dos abássidas foi exterminar os omíadas até ao último.
Não foi por acaso que o primeiro califa desta segunda dinastia, Abu al Abbas, ficou conhecido por o Exterminador. Ele mandou matar qualquer omíada que ainda vivesse, mesmo que fosse uma mulher, um velho ou uma criança. E, quando acabaram de os exterminar a todos e já não havia mais ninguém para matar, foram exumar-lhes os ossos e esmagá-los."
"Não escapou ninguém?"
"Apenas Abdul Rahman, que fugiu para o Al-Andalus e reconstituiu o califado omíada em Córdova. Os outros morreram todos."
"Mas isso não permitiu unificar a umma, senhor professor?"
"Infelizmente, não. Os abássidas transferiram a sede do califado para Bagdade, mas o nosso império começou a fragmentar-se devido às múltiplas cisões internas. Apareceram estados independentes, surgiram os fatimidas, os mamelucos... eu sei lá, foi uma confusão. A única coisa que nos manteve unidos, para além do Santo Alcorão, foram as agressões ex-ternas que entretanto se deram. Foi nessa altura que os kafirun vieram da Europa e atacaram Al-Quds e a Terra Santa, apa-nhando-nos fragilizados."
Todos os alunos presentes na sala sabiam que os kafirun, ou infiéis, da Europa a que o professor se referia eram os cruzados que conquistaram Al-Quds, o nome árabe de Jerusalém. "Pouco depois sofremos as invasões dos Mongóis, que ocuparam Bagdade e puseram fim a quinhentos anos de dinastia abássida."
Fez uma curta pausa, como se preparasse o que ia dizer a seguir. "E depois? Quando os Mongóis se instalaram na capital do califado, quem de entre nós se ergueu contra eles?"
Passeou o olhar pela sala silenciosa. Os alunos faziam um esforço para pensar num nome, mas nada lhes ocorria.
"Quem?", perguntou Ayman de novo.
"Saladino?", arriscou uma voz.
O professor soltou uma gargalhada.
"Saladino venceu os kafirun da Europa. Eu estou a referir--me a quem se ergueu contra os Mongóis.
Quem?"
O silêncio mais completo foi a resposta.
"Nunca ouviram falar de Ibn Taymiyyah?"
Muitas cabeças balouçaram afirmativamente; os alunos reconheciam aquele nome. Ahmed não era porém um deles; nunca tinha ouvido falar em tal figura.
"Quem foi Ibn Taymiyyah?", perguntou o professor.
"Foi um grande muçulmano", retorquiu um ^Jos alunos que identificara o nome.
"Um gigante!", atalhou Ayman. "O xeque Ibn Taymiyyah foi um gigante. Nasceu dez anos depois da invasão mongol e o seu pai tornou-se imã da mesquita de Damasco. Os mamelucos continuaram a combater os Mongóis, mas o problema é que a elite mongol se converteu ao islão. Como sabem, o Profeta, que Alá o abençoe, proibiu que se matassem muçulmanos. Se os Mongóis se tornaram muçulmanos, isso significava que já não poderiam ser combatidos.
Ou poderiam? O xeque Ibn Taymiyyah consultou os textos sagrados, analisou o assunto e emitiu uma fatwa a legalizar a jihad contra os Mongóis, dizendo:
«Está provado pelo Livro e pela sunnah e pela unanimidade da nação que quem se desvie de uma única das leis do islão será combatido, mesmo que tenha proferido as duas declarações de aceitação do islão.» E o xeque também disse: «Fé é obediência. Se uma parte dela estiver em Alá e outra não estiver em Alá, terá de haver combate até que toda a fé esteja em Alá.» Desse modo, o xeque Ibn Taymiyyah deu cobertura legal e divina à guerra contra os Mongóis convertidos ao islão. O xeque disse aos nossos soldados que a derrota que haviam sofrido diante do inimigo era como a derrota de Maomé, que a paz esteja com ele, na batalha de Uhud, mas que a sua insurreição seria como o triunfo do Profeta, que a paz esteja com ele, na batalha das trincheiras. Os acontecimentos seguintes provaram que ele tinha razão. Com a ajuda espiritual do xeque Ibn Taymiyyah,
os
Mongóis
foram
finalmente
derrotados." O professor estendeu as mãos para cima. "Deus é o maior!"
"Allah u akbarr, repetiram os alunos, de novo galvanizados.
"O xeque Ibn Taymiyyah ainda era vivo quando nasceu o grande Império Otomano, que deu origem ao terceiro califado, com a capital em Istambul. Os Otomanos destruíram o Império Romano do Oriente, assumiram
o
controlo
de
Constantinopla,
conquistaram os países vizinhos e atacaram os kafirun europeus por todo o lado. O grande califado otomano chegou às portas de Viena e durou quase sete séculos. Mas os Otomanos e a umma começaram a desviar-se da sharia e a ceder à tentação de obedecer a leis humanas, não à lei de Alá. Isso aconteceu numa altura em que os kafirun se puseram a desenvolver máquinas e mais máquinas, cada vez mais poderosas. O resultado foi a fragilização dos Otomanos, e com eles de toda a umma. Até que, em 1924, o califado otomano foi extinto."
"Que Alá amaldiçoe os kafirun!", berrou Abdullah, um rapaz sentado mesmo atrás de Ahmed. "Morte aos infiéis!"
"Sim, os kafirun estão por detrás do fim do grande califado", disse o professor Ayman. "Mas a decisão de acabar com o califado foi tomada pelo novo emir turco, Mustafa Kemal, que arda para sempre no grande fogo. Este apóstata auto-intitulou-se Atatürk, o pai dos turcos, mas estava evidentemente sob a diabólica influência dos kafirun e da sua cultura no momento em que decidiu separar a religião do estado. Teve até o desplante, vejam só, de transformar a grande mesquita de Santa Sofia num museu!"
"Morte ao apóstata!", gritou o mesmo Abdullah.
Um outro secundou-o de imediato:
"Que Alá o retenha para sempre no Inferno!"
O professor ergueu as mãos, procurando sossegar a turma. Queria incutir nos alunos o orgulho de serem muçulmanos, mas não estava nos seus projectos iniciar ali um motim.
"Calma, calma!", pediu. "Tenham calma!"
A sala serenou, com o bruá de vozes a amansar.
Ahmed, que até ali se havia mantido calado a digerir tudo o que ouvia, deu consigo de mão erguida a pedir para falar. *
O olhar do professor pousou nele.
"Sim, rapaz. O que é?"
Ahmed sentia o coração a ribombar-lhe no peito, forte e descontrolado; não sabia se era de nervosismo por falar em público ou de indignação pelo que os kafirun haviam feito à umma.
"Senhor professor, como podemos ter calma?", perguntou num tom empertigado. "Neste momento não há nenhum califado! O senhor disse há pouco que o profeta Maomé deixou os califas como seus sucessores. Se agora estamos sem califa, não estaremos nós a desrespeitar a vontade do apóstolo de Deus?"
O professor Ayman aproximou-se de Ahmed e passou-lhe a mão pelo cabelo, mostrando que achara aquela pergunta muito pertinente.
"Tende paciência e esperai. A umma vai acordar."
"Mas quando, senhor professor? Quando?"
O professor respirou fundo e fez um sorriso enigmático antes de voltar costas.
"Em breve."
V
A faixa de água era uma estrada a cortar a cidade e a lancha acelerava pelo Grande Canal como se fosse um bólide desportivo, ziguezagueando entre os pesados vaporetti, as elegantes gôndolas e os táxis ligeiros, mas o olhar de Tomás mantinha-se preso sobretudo às deslumbrantes fachadas bizantinas que o espelho líquido reflectia em ondulação; viam--se palacetes lado a lado, desfilando pálidos e orgulhosos, ocasionalmente com as luzes interiores acesas, o que permitia vislumbrar pelas janelas múltiplos quadros, candelabros e estantes de livros, sempre por baixo de tectos cuidadosamente trabalhados.
"Falta pouco", prometeu Guido, o guia italiano que fora esperar Tomás ao aeroporto.
Havia já alguns anos que o historiador não vinha a Veneza e regressar à grande e velha cidade dos canais revelava-se uma experiência de cortar a respiração. Pousou os olhos na água; o mar era verde-garrafa e pequenas vagas gorgulhavam de encontro à base da lancha. Inspirou o ar fresco da tarde. Cheirava a maresia e as gaivotas grasnavam sem cessar; num instante os pipilares pareciam alegres e no seguinte melancólicos.
A lancha flectiu para a esquerda, o Grande Canal abriu-se e revelou as torres da San Giorgio Maggiore ao fundo à direita. A embarcação atravessou o Bacino di J»an Marco, passando ao lado da grande praça e do imponente Campanile, à esquerda, e encostou perto da movimentada Ponte delia Paglia.
"Chegámos", anunciou Guido.
Tomás saltou para o pequeno cais, onde as filas de gôndolas negras aguardavam clientes, e o guia veio no seu encalço. "Onde é a reunião?"
Guido apontou para a grande estrutura gótica coberta por mármore rosa mesmo ali ao lado.
"E aqui, signore. No Palazzo Ducale."
"Aqui?", admirou-se Tomás. "Vocês organizam reuniões no palácio dos doges?"
"Claro. Haverá melhor local em Veneza?"
"Mas eu pensei que isto era para turistas..."
O italiano encolheu os ombros e riu-se.
"Inventámos uns trabalhos de restauração para fechar o palazzo ao público. Fique descansado que ninguém nos incomodará."
Dirigiram-se directamente às arcadas da fachada voltada para o mar e, a ladear a porta de entrada, deram com dois carabinieri com armas automáticas.
Identificaram-se e entraram no palácio. Estava escuro. O guia conduziu o historiador pela escadaria até ao segundo piso, onde se viam mais carabinieri armados. Depois de se identificarem de novo, passaram pelas estátuas da Sala dei Guariento e Guido parou diante da porta seguinte, fazendo sinal a Tomás de que avançasse sozinho.
"Faça o favor", disse. "A reunião é aqui, na Sala dei Maggior Consiglio."
A porta abriu-se e revelou um enorme salão ricamente decorado nas paredes e no tecto alto.
Tomás sabia que, no tempo dos doges, era justamente ali que se realizavam as reuniões do grande conselho, o que, como é evidente, requeria um espaço amplo, de modo a albergar os cerca de dois mil conselheiros da cidade. Tal como nesse tempo, uma enorme mesa ocupava agora toda a extensão central da Sala dei Maggior Consiglio e várias dezenas de pessoas fervilhavam em torno dela, algumas sentadas, outras a deambular nervosamente para um lado e para outro, papéis a saltarem de mão em mão.
Na cabeceira, diante do descomunal Paraíso de Tintoretto, como se ele próprio fosse o doge que governava Veneza, sentava-se a figura austera e dominadora de Frank Bellamy.
Um martelo de madeira bateu na mesa.
Toe. Toe. Toe.
"Minhas senhoras e meus senhores", chamou a voz rouca e baixa de Bellamy, "peço a vossa atenção, por favor."
As cadeiras arrastaram-se uma última vez, suspenderam-se as conversas cruzadas, as derradeiras tosses ecoaram pelo salão e o silêncio acabou enfim por se impor. Lá fora o mar rumorejava com suavidade e apenas as gaivotas não se calaram.
"Bem-vindos à reunião anual da NEST na Europa", retomou o homem da CIA. "A maior parte dos presentes tem estado connosco nos últimos anos, mas, como é hábito, juntaram-se a nós alguns elementos novos. Desta feita, em vez de militares, engenheiros e físicos, trouxemos para a NEST pessoas com diferentes perfis e competências.
Acreditamos que elas nos poderão ser úteis a identificar ameaças concretas. Até aqui temos deixado essa parte sobretudo aos serviços secretos, como a CIA, o MI5, a Mossad e outros do género, concentran-do-nos mais na missão de lidar com qualquer ameaça concreta que esses serviços nos indiquem. Mas, após o 11 de Setembro, optámos por fazer um upgrade às nossas capacidades, pelo que aí estão as novas aquisições." Fez um sinal para a mesa.
"Peço aos estreantes na NEST que se ponham de pé."
O pedido deixou Tomás desconcertado. Ele era um estreante, mas a verdade é que não aceitara integrar a NEST, apenas concordara ir àquela reunião. Em resposta ao pedido do orador, umas dez pessoas ergueram-se e Tomás sentiu o olhar frio de Bellamy pousar em si. Relutantemente, empurrou a cadeira para trás e levantou-se também.
"Por favor, dêem um acolhimento caloroso a estes novos membros da nossa equipa."
Uma vaga de aplausos irrompeu na Sala del Maggior Consiglio. Tomás teve ganas de contestar estas palavras e dizer que não era membro da equipa, mas calou-se diante da aclamação. Apercebendo-se da atenção que recaía sobre ele, sorriu com embaraço e, ardendo por se tornar invisível, sentou-se o mais depressa que pôde.
"Vamos fazer uma breve reunião introdutória, com informação geral sobretudo relevante para estes novos elementos da equipa, mas que servirá também para nos lembrar a todos por que razão estamos aqui e por que motivo a nossa missão é tão importante", retomou Bellamy. "Depois teremos reuniões separadas mais especializadas, para discutir a evolução em cada teatro de operações e analisar respostas aos novos desafios. Parece-vos bem?"
Um coro de assentimento correu pela mesa. "O
Ocidente vai ser atacado por armas nucleares", começou por dizer.
Gerou-se um burburinho na sala, com os presentes a trocarem olhares inquisitivos.
"Não vos estou a contar nada de novo, pois não? O
Ocidente vai de facto ser atacado por armas nucleares. A única dúvida é saber quando. E por isso que nós existimos." O burburinho acalmou. "A NEST, como sabem, foi instituída nos Estados Unidos na década de 1970, mas é bom não nos esquecermos de que tudo isto começou em 1945, quando os cientistas do Projecto Manhattan fizeram explodir a primeira bomba atómica em Alamogordo, no Novo México, e depois em Hiroxima e Nagasáqui." Bellamy suspirou.
"Eu naquele tempo trabalhava em Los Alamos, no Projecto Manhattan, e lembro-me do choque que senti quando me apercebi de que a América pensava estar na posse de um grande segredo."
Ouviram-se risos na mesa.
"A sério", insistiu ele, reagindo às gargalhadas.
"Hoje pode parecer anedota, mas os nossos políticos achavam mesmo que a bomba atómica era um grande segredo da América. Não percebiam que nos tínhamos limitado a resolver um problema de engenharia e que, no momento em que fizemos explodir a bomba, provámos que era possível resolver esse problema. A partir daí, qualquer outro cientista poderia fazer o mesmo. O conhecimento ficou ao alcance do mundo inteiro. Pensar que quem inventa a bomba atómica pode ficar com o segredo da sua construção é o mesmo que pensar que quem inventou a roda podia ficar com o segredo da sua concepção. Na verdade, a caixa de Pandora fora aberta. A era nuclear havia começado e já não era possível desfazê-la. Um grupo de físicos, incluindo Einstein, Oppenheimer e Bohr, veio então a público alertar para o facto de que não havia segredo nenhum a proteger e de que em breve todo o mundo estaria armado com engenhos nucleares."
"Essa previsão não se concretizou", observou um homem fardado que se encontrava na outra ponta da mesa.
"Não imediatamente", concordou o orador. "Mas o facto é que a produção de uma arma nuclear não jtem grande segredo, pois não? Existem já pelo menos dez países que as possuem e mais uns vinte com a possibilidade de as fabricar. O Tratado de Não Proliferação Nuclear conseguiu estancar o problema, mas, como sabem, a situação ameaça ficar em breve fora de controlo. Não nos podemos esquecer de que a bomba atómica é a arma mais barata alguma vez inventada na relação entre poder de destruição e custo. Com uma arma nuclear, a destruição de uma cidade é muito mais barata do que com outras armas."
"Não se esqueçam de que a Líbia pagou apenas cem milhões de dólares para que o senhor Khan lhe construísse armas nucleares", atalhou um homem sentado ao lado de Bellamy. "Estas bombas são tão baratas quanto isso."
"Exacto", retomou Bellamy. "Lembrem-se também que, com a evolução tecnológica, a tecnologia nuclear está a tornar--se cada vez mais barata e eficiente.
O que a torna acessível aos países subdesenvolvidos.
E lembrem-se que a tecnologia para construir uma central nuclear destinada a produzir electricidade é praticamente a mesma que é necessária para construir armas nucleares. O que significa que nos países subdesenvolvidos não existem projectos nucleares pacíficos. A bomba atómica é relativamente fácil e barata de construir, pelo que se tornou especialmente atraente para os países pobres. Com pouco dinheiro, esses países conseguem tornar-se incrivelmente ameaçadores. Basta-lhes produzir armas nucleares. No instante em 7T7
que um país toma a decisão estratégica de se tornar uma potência nuclear, não há sanções internacionais que o travem. O país não precisa de ser rico nem desenvolvido. Basta-lhe querer." Olhou em redor da mesa. "Meus amigos, as armas nucleares são agora as armas dos pobres. Se eu tiver uma, posso ameaçar e intimidar o meu vizinho. E as probabilidades de um país pobre de facto fazer explodir uma bomba atómica são, como sabem, muito maiores do que no caso de um país rico."
A maior parte das pessoas naquela sala já tinha consciência de tudo isto, mas mesmo assim reagiu com um silêncio pesado a estas palavras. Embora quase todos conhecessem a ameaça, relembrá-la não constituía uma experiência agradável. Era como a morte; todos sabem que vão conhecê-la, embora ninguém goste de pensar nela.
"Mas a maior ameaça não é esta, pois não? No fim de contas, se um país subdesenvolvido nos atacar com uma bomba nuclear, sempre podemos responder com dez bombas termonucleares. A maior ameaça é, como sabem, a dos terroristas. E, entre estes, os mais ameaçadores são os jihadistas islâmicos. Se eles fizerem explodir uma bomba nuclear aqui em Veneza, por exemplo, contra quem é que retaliamos?
Os fundamentalistas muçulmanos não têm um quartel-general, não têm uma cidade, não têm um país. Na verdade, não possuem nenhum endereço para o qual possamos responder. Com estes terroristas, a ameaça de retaliação não funciona. E
desde o 11 de Setembro que nós já percebemos que, logo que possam, eles vão atacar-nos com armas nucleares. Por um lado, não receiam retaliações. Por outro, gostam de actos dramáticos que chamem a atenção. As armas nucleares são por isso perfeitas para os fundamentalistas islâmicos. São eles a maior ameaça existente, e no fundo é por causa deles que nós existimos."
Terminou a sua exposição e consultou o relógio, exasperado.
"Daran/", praguejou.
"Passa-se alguma coisa, mister Bellamy?"
"Era uma pessoa que devia estar aqui a conduzir a reunião e que se atrasou." Apoiou as mãos na mesa e ergueu-se com um suspiro. "Bom, vou ali pedir ajuda a um colaborador nosso que se encontra numa reunião restrita pa Saia dei Consiglio dei Dieci à Armeria. Não se importam de aguardar um bocadinho?"
"Com certeza."
Frank Bellamy dirigiu-se à porta para ir chamar o colaborador, mas deteve-se a meio caminho, como se se tivesse lembrado de alguma coisa.
"Ah!", exclamou. "Respeitinho com ele, hem? É da Mossad."
VI
O grupo de rapazes juntou-se ao longo do canal, os olhares presos às casas brancas perfiladas na outra margem, os punhos cerrados numa fúria de vingança.
Ahmed estava entre eles e fitava as casas com o mesmo sentimento a ruminar-lhe no espírito.
"Temos de dar uma lição aos kafirun", comentou Abdullah entre dentes, os cabelos lisos desfraldados ao vento. "Não ouviram o professor? Os kafirun odeiam-nos e fazem tudo o que podem para humilhar a umma. Temos de vingar o fim do califado!"
A declaração funcionou como a chama que se cola ao rastilho: incendiou-lhes a vontade.
"Por Alá, vai ser hoje mesmo", exclamou Ahmed, dando um murro na palma da mão. Girou a cabeça em redor com uma expressão de desafio no rosto.
"Quem vem comigo?"
"Eu!", responderam os restantes num tropel.
Olharam uns para os outros, a decisão tomada mas sem saberem bem como proceder a seguir. Uma coisa era decidir, outra era actuar. Voltaram-se para Ahmed.
"O que fazemos?"
O rapaz reflectiu um instante.
"Vamos todos a casa vestir uma jalabiyya."
Apontou para a ponte sobre o canal.
"Encontramo-nos aqui dentro cje meia hora. Quem não aparecer é um apóstata!"
O grupo separou-se à pressa, todos a correr.
Ahmed entrou furtivamente em casa, o olhar dançando de um lado para outro. Não queria que os pais ou os irmãos o vissem, não lhe fossem perguntar alguma coisa. Esgueirou-se para o quarto, abriu o armário e tirou a longa túnica branca que costumava usar nas orações de sexta-feira na mesquita do bairro. Vestiu-a depressa e, quando ia a sair, a irmã mais nova apareceu de repente e quase embateu nele.
"Onde vais assim vestido?", admirou-se ela.
Ahmed ficou um instante especado, sem reagir.
"Eu? Vou... vou... vou à mesquita."
"A esta hora?"
O rapaz afastou-a do caminho e apressou-se a sair de casa com receio de que aparecesse mais alguém.
"Ordens do xeque", ainda lançou da porta antes de desaparecer.
Reencontraram-se junto à ponte do canal. Ahmed foi o terceiro a comparecer, mas em breve surgiram os restantes. Vinham todos de jalabiyya, conforme combinado.
"E agora?", perguntou um deles, quase embaraçado.
Ahmed fez um sinal em direcção às casas brancas do outro lado.
"Agora atravessamos a ponte e vamos ter com os kafirun."
"E quando chegarmos lá? O que fazemos?"
Era uma boa pergunta. Ahmed esfregou o queixo, pensativo. Pois, não tinha pensado nisso.
Atravessavam a ponte, entravam no bairro cristão e... e... e depois? Os olhos do rapaz passearam pelo canal e pousaram nos seixos arredondados que estavam espalhados ao longo das margens.
"Apanhem as pedras", exclamou, apontando para os seixos. "Vamos atacar os kafirun com elas!"
"Boa ideia!"
Os rapazes foram a correr para o canal e encheram os bolsos de pedras. Depois, com a jalabiyya anormalmente pesada, subiram até à entrada da ponte e pararam um instante para ganhar coragem. Já haviam chegado àquele ponto. Seriam capazes de dar o passo seguinte?
"Por Alá, vamos!", gritou Ahmed, mais para se encher de bravura do que para encorajar os outros.
"Allah u akbar!", berraram os restantes, esforçando-se também por ganhar valentia.
O grupo avançou. Eram dez rapazes, todos vestidos com túnicas brancas e os bolsos a abarrotar de pedras. Atravessaram a ponte a tremer de medo, os rostos fechados a exibir uma determinação que não sentiam. Ai se os pais os vissem! Mas eles eram muçulmanos e do outro lado estava o inimigo, os kafirun... os cruzados. Não era o seu dever de bons muçulmanos impor o respeito pelo islão?
Entraram no bairro cristão copta e calaram-se, não fosse a berraria atrair atenções indesejadas. O
ânimo quase se esvaiu. Que lhes aconteceria agora?
Iria algum cruzado aparecer-lhes pela frente a brandir uma espada? O que fariam se isso acontecesse realmente? A imaginação tornara-se subitamente febril e já viam cruzados a espreitar em todas as esquinas.
Talvez seja melhor despachar isto, pensou Ahmed ao chegar à primeira casa do outro lado da ponte, o nervosismo a fazer-lhe tremer as pernas e as mãos.
Tirou uma pedra do bolso e apontou na direcção da casa.
"Esta já serve", disse. "Vamos atacá-la."
Os outros elementos do grupo, também ansiosos por saírem dali o mais depressa possível, pegaram igqalmenjte nas pedras que traziam nos bolsos das jalabiyya.
"Allab u akbarl", gritaram em coro para ganhar coragem.
Uma chuva de pedras cruzou o ar e foi cair sobre a casa sem consequências aparentes. Tiraram mais pedras dos bolsos e fizeram novo lançamento, mas agora com mais convicção. Esta segunda vaga culminou no som de vidros a partirem-se.
Pararam um instante, numa expectativa receosa. "O
que é isto?", ouviram uma voz adulta gritar do outro lado.
Tomados de pânico, deram meia volta e correram como desesperados, correram pela rua de terra avermelhada, correram a levantar poeira atrás das sandálias, correram até à ponte e para além dela, correram até chegarem ao seu bairro e pararem para recuperar o fôlego e rirem-se de nervosismo e excitação.
Por Alá, como se sentiam orgulhosos! Haviam dado uma lição aos kafirun.
Durante as aulas de Religião na madrassa, o professor Ayman falava abundantemente da história do islão, e em particular dos grandes confrontos com os kafirun. Descrevia o massacre feito pelos duzentos mil soldados do Império Romano do Oriente entre os três mil homens do exército de Maomé quase como se tivesse acontecido na semana anterior, e no mesmo tom abordava as guerras com os cruzados por causa de Jerusalém, ou Al-Quds.
"Quando Omar conquistou Al-Quds recusou-se a rezar numa igreja para que ninguém se atrevesse a transformá-la numa mesquita", contou. "Deu ordens para que os kafirun cristãos não fossem molestados e autorizou o regresso dos kafirun judeus, cuja entrada em Al-Quds havia sido proibida pelos cristãos. Pois sabem o que fizeram os kafirun cristãos quando tomaram Al-Quds durante as cruzadas?"
Os alunos ficaram calados, à espera que o professor respondesse à sua própria pergunta.
"Mataram todos os crentes! Homens, mulheres, velhos, crianças... ninguém escapou! Ninguém!
Passaram todos os fiéis pelo fio da espada!" A voz tornou-se arrebatada e o tom empolgado e vibrante.
"E não se ficaram por aí, esses cães. Atreveram-se a transformar a sagrada Cúpula do Rochedo numa igreja, vejam só! E à santa mesquita de Al-Aqsa, sabem o que lhe fizeram, sabem? Mudaram-lhe o nome e passaram a chamar-lhe Templo de Salomão!
Templo de Salomão, vejam bem! Pegaram na santa mesquita de Al-Quds e fizeram dela a morada do emir kafir. Foi isso o que eles fizeram!"
Um burburinho indignado percorreu a sala.
"Os kafirun odeiam-nos", concluiu, repetindo a frase com que terminava cada uma destas histórias.
"Eles querem exterminar o islão."
Atrás de uma história vinha outra e outra ainda.
Ayman gostava de as contar e os alunos adoravam escutá-las. Comparava o comportamento dos cristãos com o dos muçulmanos, repetindo sempre com novos pormenores a história de Saladino, o grande emir muçulmano que, ao conquistar Jerusalém, deixara sair em liberdade todos os cristãos e até indemnizara as viúvas e as órfãs dos soldados cristãos mortos em combate.
"Acham que os kafirun mereceram tamanha consideração?", perguntava sempre o professor depois de uma nova descrição dos actos de Saladino.
"Por Alá, não!", respondia a turma.
"Os kafirun exterminaram os três mil mártire»do exército de Maomé, que o seu nome seja para sempre sagrado! Os kafirun mataram todos os crentes em Al-Quds! Os kafirun de Napoleão invadiram o Egipto e a Síria! Os kafirun vieram para as nossas terras mandar no nosso petróleo! Os kafirun impuseram governos-fantoches para nos governarem à vontade deles! Os kafirun impõem-nos leis que vão contra a sharia! Será que ainda merecem tanta consideração?"
"Por Alá, não!"
Os ataques ao bairro cristão copta foram-se tornando mais arrojados. Ahmed e o seu grupo enchiam os bolsos das jalabiyya de pedras, atravessavam a ponte e atacavam casas cada vez mais longe. Chegaram até a apedrejar um restaurante, mas fugiam sempre que aparecia um adulto e voltavam em corrida para o seu bairro. No final de cada um destes raides, a adrenalina fazia-os sentirem-se tão bravos como Saladino, embora talvez menos clementes.
Mesmo sabendo que os seus pais desaprovariam os ataques, Ahmed acreditava que cumpria assim o seu dever de bom muçulmano. Tinha consciência, no entanto, de que respeitava apenas uma parte das suas obrigações de crente. A outra, mais espiritual, decorria no recolhimento da mesquita ou na memorização diária do Alcorão. Mas o maior desafio espiritual que enfrentava aparecia todos os anos no mesmo mês.
O Ramadão.
Quando o mês sagrado chegou pela primeira vez depois de conhecer o xeque Saad, Ahmed decidira em segredo cumprir o quarto pilar do islão, o sawm, ou jejum. As crianças estavam isentas de sawm, como os pais e o mullab lhe disseram abundantemente, mas Ahmed acreditava que era seu dever de bom muçulmano respeitar o jejum.
"O sawm ajuda-nos a termos uma ideia do que sofrem os menos afortunados que não têm comida", explicou-lhe o xeque numa ocasião em que falaram do Ramadão. "Os bons muçulmanos devem jejuar em obediência a Deus."
No mês sagrado Ahmed acordava antes do amanhecer, como já fazia anteriormente, mas dessa feita passou a comer com a família uma refeição leve e muito insonsa à luz das lâmpadas amareladas da sala. O sal era evitado para não dar sede, uma vez que o jejum se estendia às bebidas. O sawm começava ao alvorecer, altura que a mãe fazia a merenda para os filhos levarem para a escola.
Os cinco irmãos saíam de casa pelas oito da manhã.
Ahmed e os dois mais velhos iam para uma madrassa, as irmãs dirigiam-se a outra. Uma vez na escola, o rapaz atirava a comida para o lixo e passava o dia em jejum. Custaram-lhe mais as primeiras horas e os primeiros dias sem comer, mas ao fim de algum tempo começou a habituar-se e, embora sentindo alguma fraqueza e uma certa irritabilidade, lá foi respeitando o sawm às escondidas.
Descobriu assim que a melhor hora do Ramadão era a do crepúsculo. Quando o Sol se punha para lá do horizonte avermelhado e da mesquita soava o chamar melancólico do muezzin à oração, a mãe espalhava pela mesa tâmaras e jarros com água, que todos consumiam de imediato, os mais pequenos também, apesar de os adultos presumirem que eles não tinham jejuado. Seguia-se a oração do princípio da noite
e o grande jantar, verdadeiramente opíparo: a mesa enchia-se
dos melhores pratos, como ricos koshari, deliciosos taamiyya
ou suculentos molokhiyya, acompanhados de pão baladi e
queijo domiati, tudo regado a muito chá e iogurte; a fechar
vinham os inevitáveis doces de baklava variada, que o rapaz
devorava com indisfarçável gula. ^ m Ahmed abraçou o Ramadão como o mês das boas acções. Para além de se preocupar com a confecção do jantar, a mãe aproveitava o ócio do dia para cozinhar comida para os pobres. O filho, piedoso e imbuído de um espírito de boa vontade, aproveitava os feriados de sexta-feira para a ajudar; depois levava a panela para a mesquita, onde entregava a comida para ser distribuída pelos necessitados.
Quando nessa primeira vez em que respeitou o sawm em segredo chegou a Lailat al-Qadr, a Noite do Poder, que assinalava a primeira revelação recebida por Maomé na gruta de Meca, já perto do fim do mês sagrado, Ahmed não pregou olho. Passou a noite inteira a rezar, acreditando na promessa feita por Deus de que, naquela noite, nenhuma oração passaria despercebida.
"Está escrito no Livro Sagrado: «A Noite do Poder vale mais do que mil meses»", dissera-lhe o xeque Saad durante uma lição na mesquita, recitando de cor os versículos 3 e 4 da sura 97. "«Nela descem os Anjos e o Espírito com a permissão do teu Senhor para executarem todas as Suas ordens»."
A Noite do Poder tem mais poder do que mil meses? Os anjos descem à Terra nesta noite para executar as ordens de Alá? Ele próprio foi consultar o Alcorão e leu e releu a sura 97. Era verdade, estava lá! Como não aproveitar para rezar a noite inteira, se ela valia mais do que mil outras noites?
Rezou por isso horas a fio, mas a verdade é que não tinha muito a pedir a Deus. Claro, como bom muçulmano, seria mais piedoso se rezasse pelos pobres e pelos desfavorecidos. E rezou. Precisava também de rezar para que fosse sempre honesto e íntegro, como requeria o Alcorão, e que Alá lhe desse forças para que respeitasse escrupulosamente as Suas leis e não o deixasse cair em tentação. E
rezou.
Passou doravante a cumprir o sawm na íntegra no Ramadão, mesmo que em segredo, e a rezar na Noite do Poder até de madrugada. Às habituais orações que fazia desde os sete anos, depois de conhecer o professor Ayman passou a acrescentar outras preces nessa noite sagrada. A partir dos doze anos rezou pelos desfavorecidos e rezou pela incorrupti-bilidade da sua alma. Mas, a partir dessa altura, achou que deveria rezar igualmente pelo islão nessa sua hora difícil, deveria rezar para que o Profeta tivesse enfim um sucessor, deveria rezar para que o califado fosse restaurado.
E rezou.
Toe. Toe. Toe.
Alguém bateu à porta com suavidade à hora do almoço. O Ramadão já tinha passado havia cerca de um mês e toda a família estava à mesa a comer um cabrito assado.
"Ahmed, vai ver quem é", ordenou o pai, agarrado a um pedaço de carne.
O filho ergueu-se e foi abrir a porta. Do outro lado viu um homem de olhar submisso e corpo curvado.
"O senhor Barakah está?"
Ahmed olhou em direcção à sala.
"Pai, é para si."
"Quem é?"
"É um senhor. Quer falar consigo."
ss O senhor Barakah limpou as mãos a um guardanapo e levantou-se. Ahmed foi sentar-se à mesa e não prestou atenção à conversa que começou à porta.
Instantes mais tarde, porém, ouviu a voz do pai troar pelo ar.
"Ahmed, anda cá!"
O tom era inesperadamente imperativo e o rapaz deu um
salto de susto na cadeira.
„. »
"Anda cá, já te disse!"
Ahmed levantou-se, interrogando-se sobre o que se passaria e o que teria acontecido para irritar assim o pai. Aproximou-se a medo da porta, onde ele permanecia. O visitante encontrava-se ainda do lado da rua e tinha a cabeça baixa, como um penitente.
"Sim, pai?"
Paf.
Nem a viu chegar. A estalada foi repentina e brutal, de tal modo forte que o rapaz cambaleou e embateu desamparado contra a parede.
"Não tens vergonha?", gritou o pai, puxando-o de novo para a porta. "Não tens decência?"
"O que foi, pai?", ainda conseguiu perguntar, a voz embargada. "O que fiz eu?"
Paf.
Mais uma estalada, desta feita na outra face.
"O que fizeste? Ainda tens o descaramento de me perguntar o que fizeste?" Agarrou-o pelo pescoço e forçou-o a encarar o visitante. "Conheces este senhor?"
Com o olhar embaciado pelas lágrimas, Ahmed fitou o desconhecido.
"Não", balbuciou, abanando a cabeça.
"Este senhor mora no outro lado do canal, no bairro cristão. Diz que tu e os teus amigos foram lá apedrejar-lhe a casa. É verdade?"
Ahmed sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo e olhou melhor para o visitante de olhar submisso e tronco curvado. Era isto um kafir? Era aquilo um temível cruzado? Era aquela gente que andava a humilhar o islão?
"Responde", insistiu o pai, abanando-o como a um saco de batatas. "É verdade?"
Foi a vez de Ahmed baixar a cabeça.
"Sim", murmurou.
Sem largar o filho, o senhor Barakah olhou para o visitante, apresentou-lhe desculpas e despediu-se.
Quando o desconhecido se afastou, fechou a porta e arrastou o rapaz para o seu quarto. Uma vez a porta trancada, Ahmed viu o pai tirar o cinto das calças e de imediato soube o que o esperava.
Maldito kafir.
VII
A porta da Sala dei Maggior Consiglio abriu-se e Frank Bellamy reentrou acompanhado de um homem baixo e redondo, de barba grisalha e pequenos óculos encavalitados na ponta do nariz. Tinha um ar tão patusco e inofensivo que o vizinho de Tomás se inclinou na direcção do português e sussurrou um gracejo.
"Se a Mossad for toda assim, Israel está perdido!"
O historiador sorriu por cortesia, mas manteve a atenção fixa nos dois homens que se aproximavam da mesa. Bellamy indicou ao seu convidado um lugar para se sentar.
"Meus amigos, apresento-vos o David Manheimer."
O recém-chegado inclinou a cabeça para cumprimentar os presentes.
"Shalom"
O grupo devolveu a saudação e o homem da CIA retomou a apresentação.
"Como alguns de vocês sabem, o David é o nosso elemento de ligação à Mossad e tem grande experiência no estudo de
grupos terroristas islâmicos. Ele interrogou muitos desses terroristas e traçou-lhes um perfil e um quadro motivacional que se tornou uma referência para os serviços de informações de todo o mundo ocidental. E um privilégio tê-lo aqui connosco, mesmo que apenas por breves instantes, uma vez que ele tem de voltar à sua outra reunião." Sorriu para o israelita. "Go on, David."
O homem da Mossad afinou a voz.
"O que posso dizer que vocês não saibam já?", perguntou num inglês gutural. "O terrorista religioso é um zelota. Tem tendência a concentrar-se num único valor e a excluir todos os outros. No caso dos terroristas muçulmanos, o valor central é obedecer a Alá e ao Profeta e impor a lei islâmica, custe o que custar. A religião explica-lhes o mundo e o seu lugar enquanto indivíduos, mas ao mesmo tempo impulsiona-os à acção. Para estes zelotas não existem áreas cinzentas, mas branco e negro, e todas as ambiguidades morais são destruídas. As coisas são ou não são, não há meio-termo. Os terroristas vêem-se a si mesmos como o povo de Deus e aos outros como o inimigo de Deus, e assim desumanizam o adversário ao ponto de o quererem matar como quem mata... formigas, por exemplo.
Pretendem purificar o mundo e não percebem que apenas o conspurcam ainda mais."
"Uns malucos, portanto", observou uma voz.
Manheimer olhou imediatamente para o homem que falara, um indivíduo magro, com os malares muito salientes.
"Nem pense nisso", corrigiu-o, peremptório. "Todos os testes psicológicos que lhes fizemos mostram que estamos a lidar com pessoas perfeitamente normais.
Não são psicopatas nem sequer desequilibrados. São pessoas como quaisquer outras. Aliás, se reparar, quando a polícia vai falar com vizinhos e conhecidos de um terrorista depois de ele ter cometido um atentado, a resposta típica é de completa surpresa, uma vez que todos o achavam absolutamente banal. E
é o que eles são! Muitos terroristas mostram-se até bastante simpáticos e afáveis, ninguém diria que eles fazem estas coisas terríveis."
"De certeza que não são loucos?"
"Absoluta! Se quiser, a única fraqueza psicológica c#mum que lhes encontramos é sofrerem quase todos de um forte complexo de inferioridade. Eles convivem mal com o domínio intelectual, cultural e tecnológico do Ocidente. Como não o conseguem igualar, sentem-se complexados e então rejeitam o Ocidente, agarrando-se à religião e declarando-a superior a tudo. Ora só proclama superioridade, como sabe, quem sente inferioridade. O que eles fazem é racionalizar esse complexo de inferioridade, convencendo-se a si próprios de que eles é que são superiores, eles é que são bons, eles é que têm razão. Na verdade, os terroristas muçulmanos encaram-se a si mesmos como santos e mártires, pessoas que abraçam causas nobres, que dão a vida para o bem da humanidade. O facto é que estão apenas a exorcizar o seu complexo de inferioridade."
"Mas fazem coisas loucas..."
"Do nosso ponto de vista, sim. Mas não do ponto de vista deles. Se percebermos a forma como eles raciocinam ficamos até surpreendidos com a maneira absolutamente lógica como tudo bate certo. Basta que demos por bons alguns pressupostos, como, por exemplo, que as ordens do Alcorão e de Maomé são mesmo para ser seguidas à letra. O resto é apenas consequência disso..."
"Tem de haver uma explicação para esses comportamentos", insistiu o homem dos malares salientes, sempre combativo. "Se não são malucos, são necessariamente pessoas mcultas e pobres, uma vez que..."
"Está mais uma vez enganado!", cortou Manheimer.
"Todos os estudos mostram que os terroristas em geral são pessoas com uma educação acima da média, a maior parte das vezes de nível universitário. O
perfil do terrorista islâmico não é excepção. E
verdade que alguns são pobres e incultos, mas a maioria frequentou ou tirou cursos superiores e há até vários casos de pessoas ricas. Bin Laden, por exemplo, é milionário!" Abanou a cabeça e esboçou um sorriso condescendente. "Eu sei que os políticos e os académicos ocidentais gostam de arranjar causas socioeconómicas que expliquem tudo. Isso de certo modo conforta-vos, faz-vos pensar que, se resolverem os problemas socioeconómicos desses povos, resolvem o problema do terrorismo. Consigo perceber esse modo de raciocinar. Mas já repararam que uma percentagem anormalmente elevada de terroristas é saudita? Ora que eu saiba a Arábia Saudita está a nadar em petrodólares e não existem praticamente sauditas pobres! Isso deita por terra essa conversa politicamente correcta das causas socioeconómicas!"
O israelita ergueu o dedo, professoral, num esforço para enfatizar o seu ponto de vista.
"E preciso que vocês percebam uma coisa: embora em alguns casos as questões socioeconómicas possam de facto desempenhar um papel, os terroristas muçulmanos são sobretudo motivados por questões religiosas. Eu sei que, para um ocidental, isso é difícil de entender, mas é a pura verdade: os terroristas muçulmanos limitam-se a acatar as ordens do Alcorão e de Maomé, acreditando que, através da obediência cega às palavras divinas, conseguem libertar-se do seu complexo de inferioridade em relação ao Ocidente."
"Não posso aceitar essa explicação" insistiu o homem dos malares salientes.
"E, no entanto, é o que revelam os interrogatórios e exames aos terroristas muçulmanos que capturámos. Como deve calcular, fizemos perfis extensíssimos a muitos e muitos fundamentalistas islâmicos. As conclusões não deixam lugar para dúvidas."
"Acho isso inacreditável. Decerto que..."
O corpo Frank Bellamy, até aí passivo, de repçnte ganhou vida.
"Desculpem, meus senhores, mas não vamos entrar em discussão", interrompeu. "Se o senhor Dahl alimenta dúvidas quanto ao que escutou, estou certo de que o David lhe poderá fazer chegar às mãos os relatórios adequados." Consultou o relógio, como quem dá aquele assunto por encerrado devido a falta de tempo. "David, creio que o seu tempo se esgotou..."
"De facto, assim é", confirmou o homem da Mossad, er-guendo-se. "Peço desculpa, mas aguardam-me noutra reunião. Foi um prazer ter estado aqui convosco."
Apesar do seu porte arredondado, Manheimer abandonou a sala com passo ligeiro, tão depressa como havia chegado. Bellamy voltou a ficar com a reunião nas mãos.
"Estamos já perto do final desta reunião geral e daqui a pouco começam as reuniões especializadas.
Mas não queria terminar sem lembrar as consequências de um eventual fracasso da nossa missão de vigilância." Virou-se para uma senhora de meia-idade sentada à sua esquerda. "Evelyn, por favor. Explique-nos o que acontecerá às nossas sociedades se ocorrer um atentado destes."
Evelyn levantou-se e ajeitou o casaco negro.
"Jolly good, mister Bellamy."
"A professora Evelyn Cosworth é uma das nossas novas aquisições", esclareceu o homem da CIA. "É
catedrática em Sociologia pelo Imperial College, em Londres, e tem uma tese de doutoramento sobre os efeitos das grandes catástrofes na sobrevivência ou morte das civilizações. Faça o favor, Evelyn."
A professora lançou um derradeiro olhar sobre as suas notas.
"O que eu tenho para dizer é muito simples e breve", começou por dizer, falando com um forte sotaque de upper dass britânica. "As únicas bombas atómicas lançadas contra sociedades humanas foram as do Japão, em 1945. Essas explosões provocaram o colapso imediato da sociedade japonesa. Será que o mesmo aconteceria agora? O terrorismo nuclear é uma experiência que ainda não vivemos, pelo que só podemos calcular os efeitos sem ter muitas certezas. Mas há algumas coisas que podemos dar por certas. Se ocorrer um atentado nuclear na América, por exemplo, as ondas de choque serão sentidas com brutalidade por todo o planeta. Claro que as primeiras vítimas serão as pessoas atingidas pela explosão, muitas das quais morrerão ou ficarão feridas. Mas, tal como aconteceu no Japão, as consequências de tal evento irão muito para além disso. Toda a confiança das populações nos governos que as dirigem seria automaticamente destruída.
Com a perda de confiança, a economia americana poderia quase parar. E possível que eclodissem motins, revoltas e insurreição generalizada, tornando os Estados Unidos ingovernáveis. Ora o grande crash financeiro de 2008 serviu para nos recordar que hoje em dia todas as economias do planeta estão ligadas por uma rede invisível, mas bem real. E serviu também para nos lembrar quão importante é existir confiança - confiança na economia, confiança no sistema, confiança na administração. Um colapso da confiança na América poderia suscitar um novo colapso da economia mundial. E possível que a nossa civilização sobreviva a um choque desses. Mas se os terroristas tiverem a intenção de destruir o
Ocidente, é só uma questão de fazerem depois explodir uma segunda bomba atómica e uma terceira e uma quarta. Meus amigos, garanto-vos que a nossa civilização não sobreviveria a uma catástrofe dessas."
O silêncio da Sala dei Maggior Consiglio tornou-se absoluto. Aproveitando o impacto das palavras da professora Cosworth, Frank Bellamy retomou o comando *da reanião.
"Aqueles que pensam que o terrorismo nuclear é apenas um problema americano deveriam pensar melhor", disse à laia de conclusão. "Está terminada esta reunião geral. Nos vossos cadernos poderão encontrar o programa para hoje. Podem dirigir-se às salas onde vão decorrer as reuniões de especialidade. Aqui neste salão está marcada a reunião com os novos membros da NEST, a quem convido para se sentarem mais perto do meu lugar.
Minhas senhoras e meus senhores, bom trabalho!"
Seguiu-se uma cacofonia de cadeiras a serem arrastadas, documentos arrumados e conversas retomadas. Com a barafunda momentaneamente instalada, Tomás ergueu-se e foi ocupar um lugar entretanto deixado vago, a duas cadeiras de distância de Bellamy. O americano estava a endireitar os seus papéis, mas ergueu o olhar na direcção do recém-chegado.
"Então, Tomás? Aprendeu alguma coisa?"
"Sim, claro. Mas olhe que eu não sou um novo membro da NEST. Vim apenas assistir a uma reunião, mais nada."
Bellamy ficou um longo segundo a fitá-lo, com uma expressão algures entre pensativa e irónica.
"Que eu me lembre, você não veio apenas assistir a uma reunião..."
"Ai não? Então vim cá fazer o quê?"
"Veio ajudar-nos a decifrar um e-mail da Al-Qaeda."
"Mas o senhor disse que eu só poderia ter acesso a esse
e-mail se aceitasse integrar a NEST. Ora que eu saiba ainda não aceitei tal coisa."
"Vai aceitar."
O historiador riu-se.
"O que lhe dá tanta certeza?"
"A pessoa que lhe vou apresentar. Ela está quase a chegar." "Está a falar de quem?"
O rosto do americano abriu-se no seu habitual sorriso sem humor.
"Da brasa, claro."
VIII
Os dedos magros do xeque deslizaram docemente sobre o couro da capa do Alcorão, como se o mestre acreditasse que, com aquele gesto, estava a acariciar Deus.
"Porque fizeste isso?", perguntou o xeque Saad, a voz melíflua.
Ahmed manteve o rosto hirto, os olhos a segurarem o olhar do mestre, convicto de que nenhuma censura o afastaria do caminho da verdade.
"São kafirun, xeque."
"E depois? Que mal te fizeram eles?"
"Fizeram mal ao islão. Quem faz mal ao islão faz mal a Alá e faz mal à umma. E quem faz mal a Alá e à umma faz-me mal a mim."
"Achas mesmo isso?"
"Sim."
"Foi isso que eu te andei a ensinar nestes últimos cinco anos? Foi isso o que aprendeste comigo? Foi isso o que aprendeste nesta mesquita?"
O rapaz baixou cabeça e não respondeu. O xeque cofiou a barba, pensativo.
"Quem é que te anda a contar essas coisas?"
"Pessoas."
"Quais pessoas?"
O rapaz calou-se por um instante. Se mencionasse o professor Ayman era capaz de lhe arranjar problemas, pensou. Talvez fosse melhor recorrer a uma resposta evasiva.
"Os meus amigos."
Saad apontou o dedo ao seu pupilo.
"Então vais dizer aos teus amigos que, ao perseguir os cristãos, eles próprios são os kafirun." Ahmed levantou os olhos admirados. "O que quer dizer com isso, xeque?" O mestre indicou o Alcorão que tinha nas mãos. "Em que sura vais?" "Perdão?"
"Até que sura já decoraste?" O
pupilo sorriu com orgulho. "Já
cheguei à sura 25, xeque."
"Nestes cinco anos já decoraste todo o Alcorão até à sura 25?" "Sim."
"Então recita-me a sura 5. Já."
"A sura 5, xeque?", surpreendeu-se Ahmed de novo, arregalando os olhos. "Mas é enorme..."
"Recita-me o versículo 82 da sura 5."
O rapaz fechou os olhos e fez um esforço de memória. Passou em revista mental a sura 5 e chegou enfim ao versículo pedido.
"«Nos judeus e nos que adoram ídolos encontrarás a mais violenta inimizade para com os que crêem»", recitou. "«Nos que dizem: 'Nós somos cristãos', encontrarás os mais próximos, em amor, para os que crêem»."
"Vês?", perguntou o xeque. "Vês? Entre os cristãos encontrarás os mais próximos dos crentes! E o que diz Alá no Alcorão! E a própria voz de Alá a dizê-lo!"
"Mas, xeque, a mesma sura 5 revela outras coisas também", argumentou Ahmed, combativo. "No versículo 54, Alá diz o seguinte: «O vós que credes!
Não tomeis a judeus e cristãos por confidentes: uns são amigos dos outros. Aquele de entre vós que os tome por confidentes será um deles»."
"É verdade", reconheceu Saad. "Mas lembra-te do que Alá diz no versículo 256 da sura 2: «Não há constrangimento na religião!» Ou seja, não podemos obrigar os cristãos a converterem-se."
"O problema, xeque, é que na mesmíssima sura 2, versículo 191, Alá diz outra coisa: «Se vos combatem, matai-os: essa é a recompensa dos incrédulos.» E, dois versículos adiante, Alá diz:
«Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus. Se eles se converterem, não haverá mais hostilidade.»"
O xeque endireitou-se no seu lugar. Diabo do rapaz, pensou, para além de ser precoce tem mesmo a primeira parte do Alcorão na ponta da língua! Onde quer que ele estivesse a beber toda esta informação, a verdade é que trazia sempre resposta pronta.
"Ouve, Ahmed, é um facto que tudo isso está escrito no Alcorão e corresponde à vontade de Alá", afirmou, falando devagar como se pesasse as palavras. "Mas devo lembrar-te que Deus reconhece os judeus e os cristãos, a quem chama os Adeptos do Livro. E, no versículo 109 da sura 2, Alá diz: «Muitos Adeptos do Livro, por inveja, queriam voltar a fa-zer-vos
incrédulos depois de haverdes
professado a vossa fé, depois de a verdade se lhes mostrar claramente. Perdoai e contemporizai.»"
Vês? "«Perdoai e contemporizai»." Mesmo que Alá censure os judeus e os cristãos, Ele apela aos crentes para que perdoem os Adeptos do Livro.
Temos, pois, de perdoar e contemporizar. E uma ordem directa de Alá."
"Mas, xeque, o senhor não recitou todo esse versículo", corrigiu o pupilo. "Há uma parte que omitiu."
"O quê? Que parte omiti eu?"
"No versículo 109, Alá diz tudo o que o senhor disse que Ele disse", admitiu. "Mas a frase completa do «perdoai e contemporizai» é: «Perdoai e contemporizai até que Deus venha com a Sua Ordem.» Ou seja, os crentes só devem perdoar e contemporizar até Alá aparecer com a Sua Ordem.
Isto implica que, uma vez a Ordem aparecida, já não se deve perdoar nem contemporizar! Deve-se fazer outra coisa. Deve--se: «Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus», como vem na mesma sura, alguns versículos adiante."
O xeque Saad suspirou, exasperado.
"Ouve, Ahmed", disse. "O Livro Sagrado é complexo e por vezes contraditório. Deves acima de..."
"Complexo? Contraditório?", admirou-se o pupilo, ganhando atrevimento. Indicou o Alcorão com o olhar. "Xeque, o que está escrito no Livro Sagrado é simples e directo. Alá diz na sura 2, versículo 193:
«Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus». Isto é muito claro!
Isto é..."
"Cala-te!", cortou Saad em tom subitamente agastado, o rosto enrubescendo como uma malagueta, a voz elevando-se pela primeira vez nos três anos em que instruía Ahmed. "Não deves falar assim! Nenhum bom muçulmano deve falar assim!
Tens apenas doze anos, és ainda uma criança! Não me venhas ensinar o que diz ou não diz Alá no Alcorão! Eu sei muito bem o que está dito por Deus no Livro Sagrado! Eu estudei o Alcorão toda a minha vida! O islão é Alá, a quem chamamos Ar-Rabman e Ar-Rahim, o Beneficente e o Misericordioso! O islão é Maomé, que disse que era irmão de todo o homem piedoso! O islão é Saladino, que poupou os cristãos quando libertou Al-Quds! O islão são os cento e catorze versículos do Alcorão que falam sobre o amor, a paz e o perdão!"
Ahmed encolheu-se no seu lugar, intimidado com aquela fúria repentina.
"Alá aconselha-nos no Alcorão a sermos generosos com os nossos pais, com a nossa família, com os pobres, com os viajantes", continuou Saad no mesmo tom, quase atropelando as palavras. "Não devemos ser perdulários, não devemos enganar os outros. A ostentação e o orgulho são grandes defeitos, a honestidade é uma virtude. E isso o que Alá diz no Alcorão!" No empolgamento das palavras, ergueu o dedo justiceiro. "O islão é o que o Misericordioso enuncia na sura 2, versículo 177: «Recto é quem crê em Deus, no Ultimo Dia, nos anjos, no Livro e nos Profetas; quem dá dinheiro por seu amor aos parentes, órfãs, pobres, ao viajante, aos mendigos e para o resgate de escravos. Os que fazem a oração e dão esmolas, os que cumprem os pactos quando os têm, os perseverantes na adversidade, na desgraça e no momento da calamidade; esses são os verdadeiros e esses são os tementes.»" Fixou no pupilo os olhos ainda furiosos. "E, acima de tudo, não te esqueças de que o islão é pacífico, ouviste? Pa-cí-fi-co! «Ó vós que credes!», ordena Alá na sura 4, versículo 29:
«Não vos mateis!» Matar é, pois, proibido! Está sentenciado por Alá no Alcorão! «Não vos mateis!»"
Fez-se silêncio na salinha da mesquita; apenas se ouvia a respiração ofegante do xeque e o eterno zunir irritante das moscas. Saad passou a mão pela cara, num esforço para se acalmar e retomar o dominio emocional de si próprio, e o pupilo baixou os olhos, embaraçado com o próprio embaraço do seu mestre.
Já mais sereno, o clérigo afinou a voz.
"Através do Alcorão, Alá reconheceu os profetas dos judeus e dos cristãos como Seus mensageiros", disse, a voz retomando a tranquilidade habitual.
"Deus diz na sura 3, versículo 3: «Deus te revelou, ó Profeta, o Livro com a verdade, testemunhando os que o precederam: a Tora e o Evangelho.» E Alá acrescenta na sura 4, versículo 163: «Inspirámos--te como inspirámos a Noé e aos Profetas que vieram depois dele, pois inspirámos a Abraão, Ismael, Isaac, Jacob, às doze tribos, a Jesus, a Job, a Jonas, a Aarão, a Salomão e a David, a quem demos os salmos.» O problema é que as mensagens originais destes profetas da Tora e do Evangelho foram deturpadas por intermediários, como os rabinos e os padres. Daí a necessidade que Alá teve de fazer a revelação por uma última vez, desta feita a Maomé, e ordenar que as Suas palavras ficassem registadas no Livro Sagrado para não mais serem deturpadas.
Quando o Alcorão fala, é pois Alá que fala. E no Alcorão está o reconhecimento de que Jesus era um Profeta verdadeiro. Ou não leste isso?"
"Sim, xeque. Li."
"A mensagem de Alá é uma mensagem de bondade, de piedade e de tolerância. No último sermão que fez antes de morrer, Maomé disse: «Não existe superioridade de um árabe em relação a um não árabe, nem de um não árabe sobre um árabe, nem de um branco sobre um negro, nem de um negro sobre um branco, excepto a superioridade que se obtém através da consciência de Deus»." Fez uma pausa para deixar esta frase assentar. "Está claro isto?"
"Sim, xeque", assentiu Ahmed de novo.
O pupilo hesitou, como se quisesse acrescentar mais alguma coisa, mas, preocupado com a inesperada irascibilidade do mestre, conteve-se.
"O que é, rapaz?", perguntou Saad, que havia notado a hesitação.
"Nada, xeque."
*
"Diz."
O olhar de Ahmed pousou no volume que o mestre ainda acariciava.
"Quando Maomé disse que não havia superioridade de raças, estava a dizer o que vem no Alcorão."
"Claro."
"Mas, xeque, nessa mesma frase o Profeta torna claro que, não havendo superioridade de raças, há superioridade no islão. O que o apóstolo de Alá diz é: não há superioridade entre os homens «excepto a superioridade que se obtém através da consciência de Deus». Ou seja, os muçulmanos são superiores.
Alá diz na sura 3, versículo 19: «A religião, para Deus, é o islão.»"
"Claro, o islão é a submissão a Deus. Quem se submete a Deus é superior. Mas lembra-te de que os Adeptos do Livro também têm consciência de Deus..."
"É uma consciência deturpada pelos rabinos e pelos padres, xeque. Não é a verdadeira consciência. Eles só têm conhecimento de Deus através de intermediários, não de forma directa, como nós."
"E verdade", reconheceu o mestre. "E então?"
"Isso mostra que não somos todos iguais, xeque."
"Admito que não", reconheceu Saad. "Mas lembra-te que Alá diz na sura 2, versículo 62: «Na verdade, os que crêem, os que praticam o judaísmo, os cristãos e os sabeus - os que crêem em Deus e no Último Dia e praticam o bem - terão a recompensa junto do seu Senhor. Para eles não há temor.» A mesma mensagem é repetida em dois outros versículos. Como vês, as pessoas boas dos Adeptos do Livro serão recompensadas por Alá. Isto mostra tolerância para com as outras religiões."
"E, no entanto, na sura 5, versículo 51, Alá torna claro que um crente não pode ser amigo de um judeu ou de um cristão..." "É verdade."
Ahmed voltou a hesitar, na dúvida sobre se deveria expor o que tinha em mente, mas desta feita venceu a hesitação.
"E há outra coisa, mas peço-lhe que não se zangue com aquilo que vou dizer ...."
Saad sorriu, benigno.
"Fica descansado."
"O senhor disse há pouco que Alá proibiu no Alcorão que se matasse." "Sim."
"Mas se assim é, xeque, por que razão a sura 2, versículo 193, diz: «Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus»?
Se assim é, por que razão o versículo 191 da mesma sura diz: «Se vos combatem, matai--os: essa é a recompensa dos incrédulos.» Se assim é, por que razão Alá ordena no Alcorão a morte dos que cometem certos crimes? Afinal, matar é ou não proibido?"
O mestre ficou momentaneamente sem saber o que dizer.
"Bem... quer dizer, é proibido, mas... também é permitido... enfim... é permitido, mas só em certas circunstâncias, claro."
"E isso, xeque. E permitido em certas circunstâncias. Mais do que isso, a morte é ordenada, como acontece no caso dos crentes envolvidos em assassínio, apostasia ou relações se-xuais ilegais ou no caso dos kafirun. Lembre-se que a sura 4,
versículo 29, se dirige aos crentes, não aos kafirun.
«Ó vós
que credes», diz Alá: «Não vos mateis!" Ou seja, não mateis
outros crentes, não mateis outros muçulmanos, com excepção
dos criminosos. Mas Alá não proíbe a matança de kafirun.
Aliás, ainda nem sequer falámos sobre o que vem na sura 9,
versículo 5, onde Alá..." ,. #
A voz de Ahmed morreu ao ver o mestre empalidecer no instante em que mencionou este versículo. Mas o xeque permaneceu calado e o pupilo retomou a voz e concluiu a frase.
"... na sura 9, versículo 5, Alá diz: «Matai os idólatras onde os encontrardes. Apanhai-os!
Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»"
Os músculos dos maxilares do mestre contraíram-se, denunciando o esforço que ele fazia para se dominar.
"Isso é para os idólatras, não é para os Adeptos do Livro", argumentou, a voz fria e tensa.
"São todos idólatras, xeque! Os kafirun cristãos, não rezam eles a estátuas que põem nas igrejas?
Não adoram eles santos e a mãe de Jesus? Não dizem eles que Jesus é o filho de Deus? Isso é idolatria! Está no Alcorão: «Não há outro Deus que não seja Deus!» O senhor mesmo o disse nas inúmeras lições que tivemos ao longo destes anos! Só há um Deus! Ninguém reza a Maomé! Ninguém reza à mãe de Maomé! Ninguém reza a Abu Bakr ou a qualquer outro califa! Um verdadeiro crente só reza a Deus, unicamente a Deus! Mas os kafirun cristãos rezam a Jesus, rezam à mãe dele, rezam ao Espírito Santo, rezam ao santo este e ao santo aquele, rezam ao papa, rezam diante de estátuas... rezam a tudo!
Acham até que Jesus é uma espécie de Deus... Isso é idolatria! E Alá diz: «Matai os idólatras onde os encontrardes.»"
"Está bem, mas essa ordem foi dada no contexto de urna batalha específica, não pode ser lida como ordem geral."
"Só não é lida como ordem geral por quem não a quer ler assim, xeque", devolveu o pupilo com um esgar sobranceiro. "É evidente que todos os versículos do Alcorão têm um contexto. Mas não é Alá As-Samad, o Eterno? Então as Suas ordens, embora sempre proferidas num contexto, também são eternas. Quando Alá, na Sua infinita sabedoria, revelou ao Profeta o versículo a ordenar que certas acusações envolvessem um mínimo de quatro testemunhas, essa ordem tem ou não tem um contexto?"
"Claro que sim."
"E, no entanto, é eterna. O mesmo se passa com a ordem da matança dos idólatras. Como todos os versículos do Alcorão, esse versículo tem igualmente um contexto. Porém, é tão eterno quanto os outros."
Apontou para o seu mestre. "O senhor mesmo disse várias vezes que o Livro Sagrado é atem-poral. Se assim é, este versículo também o é."
Saad respirou fundo, subitamente cansado.
"Não sei quem te anda a ensinar essas coisas", exclamou com um gesto impotente, contornando o problema que o pupilo lhe apresentava. Em jeito de que a conversa estava concluída, pegou carinhosamente no Alcorão e ergueu-se da cadeira.
"Mas deves ter cuidado."
Ahmed ergueu as sobrancelhas, surpreendido com o inesperado aviso.
"Porquê, xeque?"
O mestre lançou um derradeiro olhar ao pupilo antes de lhe voltar as costas e abandonar a salinha.
"Porque o que andas a dizer é perigoso."
IX
"Fuck! Já passa da hora!"
Frank Bellamy levantou os olhos do relógio e espreitou a porta, ardendo de impaciência.
"O que se passa?", quis saber Tomás.
"E uma das nossas chefes de equipa. Está atrasada."
"Esperamos mais um pouco."
"Não pode ser", insistiu, consultando mais uma vez o relógio. "Tenho outra reunião marcada a seguir e depois um jantar."
O salão já se havia esvaziado e Bellamy olhou em redor para a dezena de figuras que ali permaneciam, todas especadas à espera de instruções sobre o que fazer. A hora do crepúsculo aproximava-se e a iluminação da Sala del Maggior Consiglio fora ligada instantes antes. Verificou se o ecrã de plasma e o DVD se encontravam instalados, lançou uma derradeira miradela esperançosa na direcção da porta e, tomando a decisão inadiável, fez sinal para as cadeiras vazias.
"Meus senhores, façam o favor de tomar os vossos lugares", disse. "Vamos então começar a reunião."
A cacofonia de cadeiras a arrastarem-se e das pessoas a sentarem-se foi agora bem mais breve e tranquila do que quinze minutos antes, quando a reunião preliminar acabara. Desta vez os presentes não se conheciam uns aos outros, pelo que as conversas trocadas não passaram de amabilidades de circunstância.
"Como expliquei há pouco, todos os presentes vieram de áreas de recrutamento pouco tradicionais na NEST. O que esperamos é sobretudo ajuda vossa no processo de detecção de qualquer ameaça potencial aqui na Europa. Cada um tem, por um motivo ou por outro, conhecimentos aprofundados sobre o islão e relações com as comunidades muçulmanas que vivem nos seus países. Mas, que eu saiba, ninguém aqui possui uma noção aprofundada do tipo de ameaça que enfrentamos, razão pela qual achei importante falarmos um pouco." Ajeitou os papéis e deixou respirar uma pausa antes de lançar a pergunta provocatória que marcaria o tom da reunião. "Se eu fosse um terrorista e quisesse efectuar um atentado nuclear, o que acham que teria de fazer?"
A pergunta ficou no ar, insidiosa, até os presentes perceberem que Bellamy esperava de facto uma resposta.
"Arranjar uma bomba, suponho eu", arriscou Tomás.
"Muito bem", disse, parecendo aprovar a ideia.
"Mas onde a iria eu encontrar?"
"Sei lá. Comprava-a esse tal Khan, por exemplo."
O homem da CIA considerou a resposta.
"Seria uma boa opção. O problema é que o senhor Abdul Khan já foi neutralizado, mas isso, admito, não constitui necessariamente um grande obstáculo. O
senhor Khan pode estar fora do circuito, mas há por aí outros Khan à solta. E
no
bom lembrarmo-nos de que ele acabou por confessar em 2008 ser apenas o testa-de-ferro dos militares paquistaneses e esses, receio bem, continuam a operar com relativa impunidade. Muitos deles são fundamentalistas muçulmanos e, se eu fosse um terrorista islâmico, poderia de facto pensar em pedir-lhes ajuda. Mas se assim é, pergunto eu, por que razão os jihadistas ainda não fizeram explodir uma dessas bombas?". »
O grupo permaneceu calado. Era uma boa questão.
"A resposta é simples", adiantou Bellamy, respondendo à sua própria pergunta. "Porque uma bomba dessas teria a morada do remetente."
"Não estou a perceber", confessou a professora Cosworth do outro lado da mesa.
"O que eu quero dizer é que as bombas atómicas têm uma assinatura individual que pode ser lida. A NEST possui uma base de dados muito completa sobre tudo o que diz respeito à concepção de armas nucleares, de textos publicados em revistas científicas a passagens de romances de espionagem.
Está tudo lá. No caso de uma bomba nuclear ser detonada, a NEST tem por obrigação analisar as características da explosão, incluindo a sua força destrutiva e a composição dos isótopos da chuva radioactiva que inevitavelmente se seguirá. Essas características serão comparadas com a informação de que dispomos sobre os arsenais nucleares já existentes. Na nossa base de dados possuímos elementos muito concretos relativos às bombas que estão na posse do Paquistão, da índia, da Coreia do Norte... de toda a gente. Comparando as características da explosão com esses dados poderemos saber qual foi o país que construiu a bomba detonada e a entregou aos terroristas. Ou seja, as características da explosão dão--nos a morada do remetente. Sabendo onde os terroristas foram buscar a bomba poderemos retaliar, destruindo o país
lll
que a entregou aos terroristas. Estão a perceber? É
isso que tem impedido os militares paquistaneses de entregarem armas nucleares aos jihadistas muçulmanos. Eles sabem que nós podemos localizar a origem da bomba."
Todas as cabeças assentiram ao mesmo tempo, num movimento sincronizado de compreensão.
"A hipótese mais verosímil para os terroristas obterem uma arma nuclear intacta é, por isso, o roubo", retomou Bellamy. "Aqui, receio que o principal suspeito seja a Rússia. Desde o fim da União Soviética que os sistemas de controlo e segurança atómicos entraram em colapso na Rússia.
O país tem entre quarenta mil e oitenta mil ogivas nucleares, mas a forma como essas armas são guardadas deixa qualquer pessoa arrepiada. Basta pensarmos que a inflação na Rússia chegou a atingir os dois mil por cento para percebermos como se tornou fácil subornar um cientista ou um militar em situação mais vulnerável. Aliás, eles alienaram armas ao desbarato logo que o sistema comunista acabou.
Houve até um almirante que foi condenado por ter vendido sessenta e quatro navios da frota russa do Pacífico, incluindo dois porta-aviões, à índia e à Coreia do Sul! Quem nos garante a nós que os Russos não venderam também armas nucleares?"
"Se o tivessem feito", argumentou a professora Cosworth, "presumo que já se saberia."
O homem da CIA levantou-se do seu lugar e ligou o ecrã de plasma e o aparelho de DVD.
"Acha que sim? Então veja esta entrevista dada em 1997 pelo general Alexander Lebed, na altura conselheiro do presidente Bóris Yeltsin, ao programa 60 Minutes, da CBS."
Bellamy carregou num botão do aparelho de DVD, o ecrã iluminou-se e apareceu a figura do general russo sentado numa cadeira. Diante de Lebed encontrava-se o entrevistador
Steve Kroft. O texto introdutório, apresentado com a voz de Kroft, mencionava o problema do paradeiro de bombas nucleares soviéticas de uma quilotonelada com o tamanho de uma pasta de executivo. As vozes de Kroft e Lebed irromperam pelas colunas de som ligadas ao aparelho de DVD.
"Acredita que essas armas estão seguras e contabilizadas?"',
perguntou o entrevistador.
0
"De modo nenhum", retorquiu Lebed. "De modo nenhum."
"Seria fácil roubar uma delas?"
"Têm o tamanho de uma pequena pasta."
"E possível pôr uma numa pasta e sair com ela?"
"A própria bomba tem a forma de uma pasta. Na verdade, é uma pasta. E possível transportá-la. Mas também se pode pôr noutra pasta, se quisermos."
"Mas já é uma pasta."
"Sim."
"Eu poderia passear pelas ruas de Moscovo ou Washington ou Nova Iorque e as pessoas pensariam que eu estava a transportar uma pasta?"
"Sim, sem dúvida."
"É fácil detoná-la?"
Lebed reflectiu um instante.
"Bastariam vinte, trinta minutos."
"Mas não são precisos códigos secretos do Kremlin ou coisas do género?" "Não."
"O senhor está a dizer-me que há um número significativo destas bombas que desapareceram e que ninguém sabe onde estão?"
"Sim. Mais de uma centena." "Onde se encontram elas?"
"Algures na Georgia, algures na Ucrânia, algures nos países bálticos - quem sabe? Talvez algumas esteiam mesmo fora desses países. Basta uma pessoa para detonar esta arma nuclear - uma única."
"O senhor está a afirmar que estas armas já não se encontram sob o controlo militar russo..."
"Eu estou a afirmar que mais de cem armas de um total de duzentas e cinquenta não estão sob o controlo das forças armadas da Rússia. Não sei onde se encontram. Não sei se foram destruídas ou se foram guardadas ou se foram vendidas ou roubadas.
Não sei."
Bellamy desligou o aparelho de DVD e a imagem no ecrã de plasma desfez-se.
"Penso que estas declarações são elucidativas sobre a dimensão do problema que temos em mãos", disse, reocupando o seu lugar. "Convém esclarecer que, depois desta entrevista do general Lebed, um porta-voz governamental russo declarou que essas armas nunca existiram e que as existentes foram destruídas." Sorriu com sarcasmo. "Uma pequena contradição, não vos parece? Primeiro dizem que essas armas nunca existiram e logo a seguir afirmam que elas já foram destruídas, o que significa que afinal sempre existiram."
Fez-se silêncio da Sala del Maggior Consiglio.
Tomás tinha dificuldade em assimilar o que acabara de ouvir.
"Acha que essas armas desaparecidas caíram nas mãos de terroristas?", perguntou ele.
"É possível", assentiu Bellamy. "Mas o importante desta entrevista é que as palavras do conselheiro do presidente ilustram o colapso do sistema de segurança na Rússia. Se calhar as bombas nucleares em pastas de executivo não caíram nas mãos dos terroristas, mas outras bombas podem ter caído.
Lembrem-se que o arsenal russo se situa algures entre
as quarenta mil e as oitenta mil ogivas. Como podemos ter a
certeza de que, com a corrupção lá existente, todas elas estão
em segurança? E depois não é só a corrupção, é o laxismo
também. Os inspectores americanos que foram visitar instala-
ções nucleares russas em 2001 revelaram que, quando chegaram ao armazém onde as armas eram guardadas, encontraram a porta aberta!"
^ „
"Gott im Himmel!", murmurou um homem que até aí permanecera calado, obviamente alemão.
"Este problema é pois de extrema gravidade", insistiu Bellamy. "Acontece que as coisas entretanto parecem ter melhorado na Rússia e houve um forte regresso à disciplina. Por outro lado, é bom lembrarmo-nos de que as armas nucleares requerem manutenção, sob pena de não funcionarem. Além disso, muitas delas estão protegidas por ferrolhos electrónicos, o que dificulta consideravelmente as coisas. Não quer dizer que não haja risco de roubo.
Esse risco mantém-se, claro, mas na nossa análise existem riscos ainda maiores."
"Maiores?", admirou-se a professora Cosworth.
"Good Lord! Que riscos poderão ser maiores do que os terroristas roubarem uma... uma bomba atómica?"
A conversa foi interrompida por uma voz feminina proveniente da porta e que ressoou pela sala.
"Porque não os terroristas construírem, eles próprios, uma bomba nuclear?"
Todos os rostos sentados à mesa se voltaram na direcção da entrada, procurando identificar a recém-chegada.
"Rebecca!", exclamou Bellamy, aliviado. "Está atrasada!"
A caminhar em direcção à mesa com uma pasta de executivo negra na mão vinha uma rapariga de cabelo curto e tão loiro que parecia palha. Tinha uns grandes olhos azuis, luminosos e expressivos, e uns lábios suculentos e apetitosos como
morangos. Vestia um pullover amarelo e jeans azul-claros, uma combinação a condizer na perfeição com os cabelos e os olhos.
Despindo-a com o olhar, Tomás reparou que o corpo dela se desenhava curvilíneo como uma viola, com seios pequenos mas arrebitados, e foi nesse instante que percebeu quem ela era.
"Peço desculpa", disse Rebecca, com o sotaque nasalado dos Americanos. "Fui retida pelo tráfego no Grande Canal." Era a brasa prometida por Bellamy.
O corpo de Ahmed balouçava para a frente e para trás, ao ritmo monocórdico das palavras que repetia sem cessar, uma ladainha a cujos sons se esforçava por se familiarizar.
"«Mas os infiéis desmentem a Hora»", entoou, recitando os mesmos versículos da sura 25 pela quinta vez consecutiva, numa tentativa de completar a memorização daquele capítulo do Alcorão. "«E para os que desmentem a Hora preparámos uma fogueira.
Quando esta de um lugar distante os veja, ouvirão a sua fúria e o seu crepitar. Quando forem lançados num lugar estreito, dentro dela, ali mesmo pedirão a aniquilação. Responder-se-lhes-á...»"
Calou-se.
Ouviam-se vozes excitadas na casa. Inclinou-se em direcção à porta fechada do quarto, tentando destrinçar os sons que ela abafava. Vinham da sala, percebeu. Era a voz do pai. E da mãe. Estariam outra vez a discutir? Aquilo ia acabar mal, pensou com desânimo; dali a pouco o pai já estaria a espancar a mãe. Não se sentia com vontade de suportar mais uma
cena, mas no momento em que ia tapar os ouvidos apercebeu-se de outras vozes. Aguçou de novo a atenção. O que era aquilo? Ouviam-se... ouviam-se também os irmãos, estavam todos a falar com grande exaltação. Por Alá, o que estaria a acontecer?
Hesitou. Estava sentado no chão e tinha o Alcorão pousado num kursi, um suporte desdobrável de madeira que facilitava a leitura e, sobretudo, garantia que o Livro Sagrado ficava acima dos seus joelhos, uma posição adequadamente respeitosa. Mas o barulho perturbava-lhe a recitação, pelo que acabou por fechar o Alcorão e guardá-lo com cuidado na estante. Depois abriu a porta e esticou a cabeça lá para fora.
"O que se passa?"
A algazarra continuava e ninguém respondeu à sua pergunta. Intrigado, saiu para o corredor e foi para a sala. Viu a família a discutir com grande agitação e no meio estava o televisor ligado, mostrando um homem de gravata a falar.
"Que aconteceu?", perguntou de novo, a atenção já fixa no ecrã em busca de uma resposta.
"Não sabemos bem", devolveu o pai, sem tirar os olhos do televisor. "Houve problemas numa parada militar e parece que dispararam sobre o presidente."
"Qual presidente?"
"Qual é que havia de ser? Sadat, claro!"
"Dispararam sobre Sadat? Porquê?"
"Sei lá, é isso que estamos a discutir. Eu acho que são rivalidades entre eles, o poder cria muitos inimigos. Mas o teu irmão pensa que foram os sionistas."
Ahmed apontou para o televisor.
"O que dizem na televisão?"
"Nada", devolveu o irmão mais velho com um encolher de ombros. "Dizem que o presidente foi para o hospital."
"Mais nada?"
"E que foi decretado o estado de emergência."
Depressa se tornou evidente que da televisão não viriam
mais notícias. Mas toda a família mergulhara num estado de
excitação febril e ninguém conseguia permanecer fechado em
casa.
•
Apesar do calor que fervia lá fora, saíram todos para a rua e deram com o nariz nos vizinhos; toda a gente sentia a mesma coisa, ninguém era capaz de conter a agitação nervosa que se apossara de si. As conversas centravam-se obsessivamente no mesmo assunto: o que acontecera e quem o fizera. Uns diziam que era um golpe de estado dos generais, outros que aquilo era tudo inventado, os primeiros indignavam-se com os segundos, havia quem insistisse nos Israelitas e dissesse que o acordo de paz de Camp David havia sido uma emboscada; o facto é que a algazarra se transferira para a rua.
A mãe de Ahmed, que tinha ido inspeccionar um tacho que deixara ao lume, apareceu de repente à porta de casa, esbaforida.
"Depressa! Depressa! Venham ver!"
Foram todos a correr para casa, família e vizinhos, e as atenções fixaram-se de novo no ecrã. O homem engravatado desaparecera; em seu lugar surgiram imagens do Alcorão, com uma voz a recitar o Livro Sagrado. Ficaram paralisados, tentando digerir o significado daquilo. Por que motivo a televisão recitava o Alcorão?
"O rádio!", exclamou o senhor Barakah.
O pai de Ahmed foi apressadamente ao quarto buscar um pequeno receptor de ondas curtas. Voltou para a sala, pousou o aparelho sobre a mesa, ligou-o e sintonizou a estação que habitualmente ouvia. Uma voz melódica e melancólica irrompeu do rádio. Estava a dar um qualquer programa de música e os sons flutuavam como ondas, iam e vinham, tornavam-se mais límpidos num momento e logo a seguir mais distantes, pelo meio ouviam-se uns assobios, como era característico das recepções de onda curta.
"Que horas são?", quis saber o irmão mais velho de Ahmed.
O pai consultou o relógio. Faltavam quatro minutos para a hora certa.
"O noticiário é daqui a quatro minutos."
Aguardaram em volta do aparelho, a impaciência a rumi-nar-lhes no estômago. No televisor continuava a recitação do Alcorão; Ahmed identificou os versículos da sura 2. O programa musical da rádio, que até ali lhes parecera infindável, chegou entretanto ao fim e uma voz pausada e distante encheu a sala.
"Aqui Londres. Esta é a BBC. Estão a ouvir os serviços em língua árabe."
Seguiu-se uma pausa cheia de estática e os toques metálicos e imponentes do Big Ben romperam devagar o silêncio. A voz voltou.
"Morreu o presidente Anwar al-Sadat. O chefe de estado egípcio foi vitimado hoje por um atentado no Cairo. O ataque ainda não foi reivindicado, mas..."
Só na semana seguinte recomeçaram as aulas. A lei marcial decretada pelo vice-presidente Mubarak obrigou Ahmed e toda a família a ficarem em casa durante alguns dias, como aconteceu com a generalidade dos Egípcios. Reinava na altura a maior das confusões sobre os reais motivos do atentado, mas, dois dias depois, a televisão deu a conhecer a identidade dos assassinos.
"Quem são esses homens da Al-Jama'a?", perguntou Ahmed ao pai, ao almoço, depois de ouvirem o noticiário.
"Al-Jama'a al-Islamiyya", corrigiu o senhor Barakah, dando o nome completo do movimento. "São radicais."
"O que é isso?"
"O filho, tens cada pergunta!", retorquiu o pai com impaciência. "São muçulmanos que querem a aplicação da sharia."
"Uns malucos!", acrescentou a mãe, inclinada sobre a travessa para cortar uma fatia de carneiro. "Uns doidos!"
"Cala-te, mulher! Que sabes tu disso?"
"Sei que assim as coisas vão piorar..."
"Não vão nada!", sentenciou o marido, estendendo o prato na direcção da mulher para que ela o servisse de carne. "O Mubarak vai ter mão firme para lidar com esta gente, vais ver."
"E se não tiver?"
"Se não tiver, olha... isto pode realmente acabar mal."
"Matar o presidente!", insistiu a mãe, olhando de relance para cima como se consultasse Alá. "Onde já se viu isto, meu Deus? Onde já se viu isto? Queira o Misericordioso que tudo se componha! Inch'Allah!"
"Devem pensar que estamos na América!", exclamou o pai, preparando-se para meter o primeiro pedaço de carneiro na boca. "Lá é que se matam presidentes..."
"O Sadat não devia ter feito a paz com os sionistas", opinou o filho mais velho, que até ali permanecera calado. "Isso foi mal feito!"
"Lá isso é verdade", assentiu o senhor Barakah, já a mastigar. "O presidente devia ter tido mais cuidado. Foi um desrespeito para com a umma e para com os mártires das guerras contra os sionistas.
Isso é verdade."
"O Sadat estava a pedi-las...", insistiu o mais velho.
"Sabem o que disse um dos homens que disparou sobre ele? «Matei o faraó!»"
O pai riu-se.
"Faraó? E boa, essa!"
A conversa prosseguia animada, mas Ahmed já não prestava atenção. Tinha a mente mergulhada num turbilhão, tão pensativo ficara quando o pai lhe explicara o que eram radicais. São muçulmanos que querem a aplicação da sharia? E qual o mal disso? A sharia é a lei de Deus e está ordenada por Alá no Livro Sagrado. Se a Al-Jama'a quer a aplicação da lei de Deus, não será isso porventura justo? A cabeça de Ahmed enchia-se de interrogações e perplexidade, mas, considerando o clima de medo que se instalara após a morte do presidente e a purga entretanto iniciada pelo vice-presidente, sabia que aquele era o pior momento possível para começar a fazer perguntas em voz alta.
O melhor era permanecer calado.
A madrassa reabriu portas na semana seguinte e Ahmed compareceu às aulas logo no primeiro dia.
Tinha a noção de que não conseguiria calar-se indefinidamente; precisava de saber. A mente fervilhava-lhe ainda de dúvidas e necessitava de respostas urgentes. Talvez as encontrasse na aula de Religião, pensou, e foi por isso com ansiedade que aguardou a hora da lição.
Quando
o
professor
Ayman
apareceu,
descobriu-lhe no rosto uma expressão estranha; era como se misturasse alegria com apreensão; num momento sorria, no seguinte quase espreitava por cima do ombro. Havia de facto um clima de medo que perpassava por toda a gente e pelos vistos o professor não era excepção. A tensão tornou-se palpável, mas Ahmed acreditava que a aula de Religião lhe mostraria caminhos.
Não foi isso, porém, o que aconteceu. A aula revelou-se nesse dia uma enorme decepção; em vez de falar do que lhe interessava, o professor Ayman limitou-se a pôr os alunos a recitar o Alcorão em coro.
A recitação do Livro Sagrado era uma coisa mufto belã,
repreendeu-se
de
imediato
Ahmed,
subitamente mortificado com o seu desapontamento.
Como podia ele estar decepcionado por recitar o Alcorão? Aquelas eram as palavras de Alá As-Samad, o Eterno, e qualquer oportunidade para as proferir constituía uma grande honra e era assim que tinha de pensar sempre!
Momentos após a lição terminar e depois de toda a gente sair da sala, deu consigo a caminhar no encalço do professor. Não o planeara, mas o facto é que o estava a seguir.
Ayman percorria o corredor com a sua longa jalabiyya branca a roçar o chão e o rapaz vinha em silêncio dois metros atrás. Muito atento a tudo em seu redor, no entanto, o professor depressa se apercebeu de que estava a ser seguido e parou de repente para encarar Ahmed.
"O que é?", perguntou com inesperada rispidez.
"Porque vens atrás de mim?"
O rapaz quase se sobressaltou com o tom agressivo da interpelação e arregalou os olhos.
"Eu... eu preciso de falar consigo, senhor professor."
Ayman olhou de imediato em redor, como se procurasse uma ameaça escondida.
"Porquê? Passa-se alguma coisa?"
"Não, senhor professor. Sou eu que estou com umas... umas dúvidas."
"Dúvidas? Que dúvidas?"
"Dúvidas sobre o que diz o Alcorão."
O professor fez um ar interrogativo.
"Ora essa!", exclamou com admiração. "As coisas que Alá diz no Santo Alcorão são muito claras. Basta ler o que lá está e obedecer às Suas ordens."
"Pois, senhor professor, mas o mullab da minha mesquita está a dizer-me coisas diferentes."
"Que coisas?"
"Sobre os kafirun."
O corpo de Ayman descontraiu-se visivelmente.
Fez um gesto rápido com a mão para que o aluno o seguisse.
"Anda daí", ordenou, recomeçando a avançar pelo corredor. "Vamos ali ao meu gabinete falar."
De novo a caminhar atrás do docente, Ahmed sentiu uma beatífica serenidade a envolvê-lo. O
professor Ayman sabia, tranquilizou-se enquanto o via deslizar na sua jalabiyya. Ele esclarecê-lo-ia quanto à verdade.
A verdade sobre os kafirun.
XI
Frank Bellamy indicou a loira que acabara de chegar.
"Apresento-vos Rebecca Scott, uma operacional da CIA que se encontra agora adstrita à NEST e que se junta à nossa pequena reunião."
Seguiu-se um coro de "hello" e "good afternoon"
com muitos acenos de cabeça e sorrisos; a recém-chegada era realmente vistosa e todos os olhares incidiram nela. A loira sentou-se ao lado de Bellamy e pousou a sua mala de executivo aos pés.
"A especialidade de miss Scott", continuou o orador, "está relacionada com a montagem e desmontagem de armas nucleares. Isto quer dizer que, se houver uma crise, ela é uma das pessoas que poderão ser chamadas de emergência para neutralizar uma bomba atómica. Além disso, miss Scott tem experiência de combate no Afeganistão." Fixou a atenção nela. "Olhando para este rosto bonito ficamos com a impressão de que estamos perante um anjo, não acham? Mas lembrem-se, meus caros: os dentes dela são feitos de aço!"
O grupo riu-se, embora ninguém tivesse a certeza de que se tratava de uma piada. Com modos muito profissionais, Rebecca endireitou-se na cadeira e enfrentou a mesa.
"Muito obrigado, mister Bellamy", começou ela por dizer. "É um prazer estar aqui convosco. Segundo me pareceu, do que escutei ao entrar aqui na sala, vocês já analisaram as possibilidades de os terroristas adquirirem uma bomba nuclear intacta."
"Exacto", confirmou Bellamy. "íamos agora ponderar os cenários ainda mais prováveis." Rebecca Scott assentiu.
"Bem, mais provável do que roubarem uma arma nuclear é os próprios terroristas construírem uma bomba dessas. É esse, aliás, o cenário mais preocupante. As probabilidades de se verificar são incrivelmente elevadas."
As pessoas à mesa carregaram as sobrancelhas, surpreendidas e intrigadas.
"Isso é possível?", quis saber Tomás, sem perder tempo a fazer-se notar pela beldade que iluminava a sala. "Repare que estamos a falar de uma bomba nuclear..."
"E depois?"
"Bem... suponho que não se construa uma bomba nuclear assim do pé para a mão." Rebecca ergueu dois dedos. "Bastam dois dias", disse. "Ou menos."
"O quê?"
"Construir uma bomba nuclear é facílimo. Sublinhe a palavra facílimo, por favor. A única dificuldade é mesmo arranjar material físsil. Se um grupo terrorista tiver esse material na sua posse e contar com um engenheiro minimamente competente, o resto é uma brincadeira de crianças."
"Está a falar a sério?"
"Não tenha dúvidas! A maior parte das pessoas pensa que
para construir uma bomba nuclear é necessário um mega-projecto com instalações e recursos gigantescos, como o
Projecto Manhattan, por exemplo. Nada mais errado.
As
instruções sobre como se monta uma bomba destas estão
divulgadas na Internet e em vários livros técnicos disponíveis
em qualquer boa biblioteca. É só ler." *
"Desculpe, mas não pode ser assim tão simples..."
"Há algumas dificuldades, claro", reconheceu ela.
"Mas, no essencial, a construção de uma bomba nuclear é realmente simples. Para que tenham uma noção, deixem-me explicar--vos o seguinte: existem dois tipos de bombas nucleares. Uma é a de plutónio, preferida pelas forças armadas por ser altamente físsil, o que permite provocar uma explosão com pequeníssimas quantidades, tornando-se portanto miniaturizável."
"Como as pastas de executivo russas."
"Isso mesmo. A bomba de Nagasáqui, por exemplo, era uma bomba de plutónio. Mas um engenho destes levanta alguns problemas delicados. O primeiro é a sua construção. A bomba de plutónio detona por implosão, o que requer uma engenharia complexa e muito minuciosa de simetria explosiva. Além do mais, o plutónio é de difícil manuseamento por ser altamente
radioactivo.
Basta
respirarmos
quantidades
ínfimas
deste
elemento
para
morrermos."
"Eu julgava que tinha dito que a construção de uma arma nuclear era uma brincadeira de crianças...", observou Tomás.
"E é", assegurou Rebecca. "Mas nenhum grupo terrorista irá para a bomba de plutónio, devido aos problemas que acabei de enumerar. A opção será sempre a bomba de urânio, do género da utilizada em Hiroxima. Trata-se de um engenho que usa urânio altamente enriquecido, contendo mais de noventa por cento do isótopo físsil U-235. Se estivermos na posse de urânio altamente enriquecido com esse isótopo, podemos montar uma bomba atómica em qualquer lado - até numa garagem."
"Está a brincar...", disse a professora Cosworth.
"Infelizmente não. Tendo urânio altamente enriquecido, a construção do engenho é de uma simplicidade infantil."
"Sim, mas o manuseamento do urânio altamente enriquecido há-de requerer cuidados especiais", argumentou Tomás. "Não nos podemos esquecer de que estamos a lidar com material radioactivo. Que eu saiba isso não se faz numa... numa garagem!"
"Basta uma garagem", repetiu Rebecca, categórica.
"Reparem, o que é exactamente o urânio altamente enriquecido? Em forma natural, o urânio é constituído por três isótopos: U-234, que é residual, U-235 e U-238. Para efeitos militares, apenas interessa o U-235. O problema é que, quando se extrai o urânio da terra, a presença deste isótopo é inferior a um por cento. A esmagadora maioria do urânio em estado natural é constituída pelo isótopo U-238. E preciso, pois, processar o urânio em centrifugadoras de modo a eliminar o U-238 e enriquecer a proporção do isótopo U-235. Estão a perceber?"
"E isso o enriquecimento?"
"Exacto. Procura-se enriquecer o urânio com o isótopo U-235. E essa é a única parte complexa da produção de uma bomba atómica. O urânio extraído da terra é esmagado e molhado em ácido sulfúrico, de modo que só sobreviva o urânio puro. Esse urânio puro é secado e filtrado, transformando-se num pó chamado yellowcake. Este pó é então submetido a um gás a temperaturas elevadas e convertido assim num composto gasoso que depois é enviado para máquinas de rotação supersônica chamadas centrifugadoras. À
medida que as centrifugadoras rodam, os diferentes pesos dos isótopos levam-nos a separarem-se, com o mais pesado, o U-238, atirado para o exterior das centrifugadoras e o mais leve, o U-235, a fixar-se mais perto do eixo. O gás vai passando de centrifugadora em centrifugadora, extraindo a cada passo mais U-235. Este processo requer cerca de mil e quinhentas centrifugadoras a trabalharem em cascata durante um ano até se conseguir apurar U-235 suficiente para cruzar o ppnto arítico de detonação. Nessa altura o gás é convertido num pó metálico, chamado óxido de urânio, e finalmente num metal cinzento, de preferência com a forma de um ovo. Ao tocarmos nele verificamos que é frio e seco.
Bastam..."
"Ao tocarmos nele?", insistiu Tomás. "Mas esse urânio não é radioactivo?"
"Claro que é radioactivo", confirmou ela. "Mas tem baixa toxicidade. O urânio altamente enriquecido é tão tóxico como... sei lá, como o chumbo, por exemplo. Se uma pessoa respirar ou engolir traços deste elemento irá sentir-se mal disposta, claro, mas apenas isso. O urânio altamente enriquecido é moderadamente radioactivo, o que significa que pode ser manuseado sem luvas e até transportado numa simples mochila. Com um pouco de protecção nem sequer é assinalado pelos detectores de radiação, vejam só!"
"Good beavensV\ exclamou a professora Cosworth, horrorizada.
"É por isso que uma bomba atómica de urânio é tão interessante para os terroristas. Podemos até dormir com uma pequena quantidade deste material debaixo da almofada!" Ergueu o indicador. "Mas, atenção, há alguns cuidados que é preciso ter. O
urânio altamente enriquecido não pode ser amontoado a partir de determinadas quantidades, uma vez que ocasionalmente os átomos de U-235
dividem-se de forma espontânea, disparando neutrões que, a partir de uma massa com urna certa dimensão, poderiam dividir um número de átomos suficiente para provocar uma reacção em cadeia e uma consequente explosão nuclear. O quê eu quero dizer é que há um valor crítico de massa de urânio enriquecido que não pode ser cruzado. Se estivermos na posse deste material, temos de ter o cuidado de o manter separado em pequenas quantidades subcríticas, perceberam?"
"No caso do urânio altamente enriquecido, qual é o valor crítico?", quis saber Tomás, infinitamente curioso. "Como é que eu sei que a quantidade de material na minha posse é sub-crítica ou crítica?"
"A massa crítica de urânio é inversamente proporcional ao nível de enriquecimento. O nível mais baixo
de
enriquecimento
necessário
para
desencadear uma reacção nuclear é vinte por cento.
Nesse caso, teria de se acumular quase uma tonelada de urânio para provocar uma explosão nuclear espontânea. Na outra extremidade do espectro está o enriquecimento a noventa por cento ou mais. Neste caso bastam pequenas quantidades."
"Quanto?"
"Uns cinquenta quilos." Fez um gesto com as mãos, indicando o volume. "Fica assim com o tamanho de uma bola de futebol."
"Está a dizer-nos que, se eu juntar cinquenta quilos de urânio enriquecido a noventa por cento, posso gerar uma explosão nuclear espontânea?"
"Sim."
"Caramba!"
"É tão simples como isso!", exclamou Rebecca, balouçando a cabeça afirmativamente. "Daí que a construção de uma bomba destas seja tão fácil."
Pegou numa caneta e pôs-se a rabiscar um desenho numa folha A4. "Basta construir um tubo... pôr vinte e cinco quilos de urânio altamente enriquecido numa extremidade, a que chamaremos bala... pôr outros vinte e cin
co quilos na outra extremidade, a que chamaremos alvo... pôr um pouco de material propulsor atrás da bala... disparar a bala em direcção ao alvo... as duas quantidades subcríticas colidem, tornando-se críticas... e bang, dá-se a reacção nuclear!"
Exibiu o desenho diante dos rostos embasbacados à mesa.
"MA/O"
TIRp"