0

"Ibn Taymiyyah."

O professor esboçou uma careta incrédula. "Esse nome não soa lá muito português..." "O que quer? E

como o gajo se chama." "E ele vai fazer um atentado assim sem mais nem menos, sozinho?"

"Claro que não será sozinho."

"Então quem está com ele?" "A Al-Qaeda."

Ao ouvir este nome, Tomás sentiu os pelos eriçarem-se-lhe e teve de beber mais um gole de lassi para se acalmar e tentar reordenar o raciocínio.

Tudo aquilo lhe parecia assumir proporções demasiado grandes para as suas capacidades. A Al-Qaeda? Caramba, no que se estava a meter! Teve ganas de conversar com Rebecca ou com qualquer dos outros americanos e receber os seus conselhos, mas sabia que não o podia fazer; teria de ser ele próprio a conduzir o processo naquele momento.

"Olha lá, como sabes tudo isso?"

"A Al-Qaeda pediu ajuda aos tipos com quem eu estou. Eles precisavam de fazer passar aqui pelo Paquistão material que retiraram do Afeganistão.

Como estávamos sem pessoal, vieram ter comigo para dar uma mãozinha. Foi assim que me apercebi do que se estava a passar."

"E como sabes que há um português envolvido?"

"O Ibn Taymiyyah? Ora, falei com ele."

"A sério?"

"Sim. Estive com o gajo apenas durante dez minutos, mas reconheci-o de Lisboa e meti conversa." "Tu conhecias o tipo?"

"Sim. Vi-o umas vezes na mesquita e outras na faculdade." "Qual faculdade?"

Zacarias lançou um olhar fugaz na direcção do seu antigo professor.

"A nossa", disse, afastando de novo a cabeça. "A Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa."

"Estás a gozar comigo..."

"Acho até que ele foi seu aluno."

Tomás voltou a abrir a boca, absolutamente atónito. A conversa adquiria tonalidades surreais.

Tinha tido um aluno que agora era elemento da Al-Qaeda? E esse seu antigo estudante ia fazer um grande atentado? Mas que raio de disparate vinha a ser aquele?

"Desculpa, mas eu não me lembro de nenhum Ibn Taymiyyah nas minhas aulas...", disse, após um esforço de memória.

"O senhor professor decora os nomes de todos os seus alunos?"

"Claro que não, são demasiados. Mas um nome desses não é coisa que passe despercebida, não é?

Ibn Taymiyyah? É evidente que me recordaria de um nome desses, sobretudo se considerarmos que se trata de um nome com forte carga histórica!"

Zacarias encolheu os ombros.

"Se calhar não foi seu aluno", admitiu. "Mas que o vi na faculdade, disso não tenho quaisquer dúvidas."

O historiador endireitou-se no seu lugar, decidindo largar aquele assunto de momento. Havia outras prioridades.

"Bem, depois vemos isso", murmurou. "Agora explica-me quem é a malta de quem andas a tentar fugir."

Zacarias ficou um instante calado, como se até tivesse medo de pronunciar o nome.

"Já ouviu falar na... na Lashkar-e-Taiba?", sussurrou» atirando novos olhares em todas as direcções para se assegurar de que ninguém o tinha ouvido.

"São os tipos dos atentados de Mumbai, em 2008.

Andas metido com essa gente?"

"Infelizmente."

"Mas... como?"

O jovem encolheu os ombros, como se até ele fosse incapaz de perceber em que circunstâncias se metera naquela trapalhada.

"Sabe, eu vim para cá para estudar num complexo educacional aqui perto de Lahore", disse, apontando vagamente numa direcção. "Chama-se Muridke, não sei se já ouviu falar."

"Não."

"O Muridke tem um campus a uns quarenta quilómetros daqui. Lá dentro existe um hospital, escolas, uma mesquita, laboratórios... tudo.

Chamam-lhe complexo educacional, mas é também, de certo modo, um campo de treinos."

"Treinos? Treinos de quê?"

"Ora, da fihadr

Tomás lançou-lhe um olhar perscrutador.

"Tu vieste para o Paquistão para te treinares para a jihad?"

"Não é bem isso. Eu vim para o Muridke sem saber bem no que me vinha meter. No fim de contas, quem gere o complexo é a Jamaat-ud-Dawa, a Associação de Profissão de Fé, que dirige mais de uma centena de escolas e seminários por todo o Paquistão, e ainda uma rede de hospitais e serviços sociais. Confiei nisso, claro." Hesitou. "O que eu não sabia é que...

que a Jamaat-ud-Dawa não passa de uma espécie de fachada da Lashkar-e-Taiba."

Fez-se um breve silêncio, quebrado pelo estrépito de uma moto a passar defronte do estabelecimento.

"As autoridades sabem disso?"

Zacarias riu-se sem gosto.

"As autoridades apoiam isso", exclamou.

"O governo paquistanês apoia essa organização?"

O jovem abanou a cabeça.

"O governo não manda nada", disse. "Quem está por detrás disto tudo é o ISI, os serviços secretos paquistaneses. São eles quem manda no país.

Articulam-se com os talibãs, articulam-se com a Lashkar-e-Taiba... se calhar até se articulam com a Al-Qaeda, não sei."

O historiador abanou a cabeça, como se tudo aquilo fosse de mais para ele.

"Que terra esta!"

"Os tipos da Lashkar-e-Taiba recrutaram-me em Muridke. Eu era muito ingénuo e nem percebi bem no que me estava a meter. Quando compreendi, era demasiado tarde."

Zacarias deixou os olhos perderem-se no casario degradado da cidade velha de Lahore, como se tivesse ficado imerso nos seus pensamentos, ponderando o emaranhado de circunstâncias que o arrastara inexoravelmente para aquele momento e para aquele local, como se ele não passasse de uma folha à mercê dos humores instáveis do vento.

"Os tipos da Lashkar-e-Taiba estavam no forte a vigiar-te?"

O rapaz fez uma careta.

"Não sei", disse, estremecendo, como se o seu espírito tivesse nesse instante voltado ao corpo. "Vi lá um deles, isso é certo. Mas pode ter sido coincidência."


Tomás coçou o queixo, pensativo. Gostaria mesmo de pedir instruções a Jarogniew ou a Rebecca, mas parecia-lhe desaconselhável de momento.

"O que queres fazer agora?"

"Não sei." Hesitou. "Quero ir-me embora daqui, mas receio que seja demasiado arriscado."

"Eu vim acompanhado de gente." #

"Quem?"

"Forças de segurança."

A informação deixou Zacarias horrorizado. O

rapaz arregalou muito os olhos, como se lhe tivessem falado do Diabo.

"O quê? Não me diga que falou com a polícia paquistanesa?!" Pôs as mãos na cabeça, o alarme a toldar-lhe a face. "Oh, não! Não ouviu o que eu lhe disse? Esses tipos dão-se com a Lashkar-e-Taiba, andam todos metidos uns com os outros!" Olhou em redor, desorientado. "Meu Deus, o que vamos fazer agora?"

"Tem calma", disse Tomás num tom tranquilo. "Não falei com polícia paquistanesa nenhuma."

"Então falou com quem?"

"Americanos."

Zacarias espreitou a rua, tentando identificar rostos ocidentais.

"Onde estão eles?"

O historiador fez um gesto displicente na direcção do exterior.

"Andam por aí..."

"E esses gajos podem tirar-me daqui?"

"Claro. Neste preciso momento, se quiseres.

Escondem-te num carro e levam-te para uma base militar aqui perto. Depois metem-te num avião da força aérea americana e retiram--te imediatamente do país. E só dizeres."

O rapaz respirou fundo. Era como se o seu corpo fosse um saco de preocupações que se esvaziava.

"Ufa! Ainda bem!" "Então? O que fazemos?"

Zacarias ergueu-se de um salto, de repente cheio de energia e entusiasmo.

"Vamos embora!", exclamou, já sem tentar disfarçar que estava na conversa com Tomás. "Não há tempo a perder." Fez um gesto na direcção do caminho por onde tinham vindo. "Mas primeiro temos de ir ali ao forte."

"Porquê?"

O rapaz atirou uma nota para a mesa e saiu para a rua, acompanhado pelo seu antigo professor.

"Trouxe comigo uma prova." "Que prova?"

"A prova de que se está a preparar um grande atentado. Mas quando estava no forte e vi o gajo da Lashkar-e-Taiba por ali, entrei em pânico e deitei-a numa caixa, não queria ser apanhado na posse dela.

Agora temos de ir lá buscá-la! Quando o senhor vir..."

"Ibn al Kalb!"

O grito insultuoso interrompeu a conversa e paralizou Tomás. Sentiu um vulto negro posicionar-se entre ele e Zacarias, apercebeu-se de uma lâmina a cintilar ao sol e, como num sonho, viu-a despenhar-se sobre o corpo do seu antigo aluno.

"Ahhhh!"

O desconhecido apunhalava Zacarias.

XXXIV

Lisboa chocou Ahmed.

Foi a primeira vez que saiu do Egipto e visitou um país estrangeiro, para mais ocidental, pelo que sentiu um brutal embate ao deparar-se com a diferença entre os dois mundos. Os contactos com os kafirun no souq do Cairo já lhe haviam dado alguns indícios, mas uma coisa era intuir as diferenças e outra ser esmagado por elas.

A novidade que de início mais o espantou, e para a qual não estava verdadeiramente preparado, foi a riqueza que encontrou em Portugal. Os automóveis brilhavam de tão novos que pareciam, os autocarros tinham portas que se abriam automaticamente, as estradas eram impecáveis, não havia papéis nem plásticos espalhados pelos passeios, as pessoas tinham um aspecto bem tratado e dos seus corpos emanavam fragrâncias perfumadas, não se viam bairros degradados nem esgotos a céu aberto nem lixeiras pelos cantos nem revoadas de mendigos, o ar respirava-se limpo e tudo parecia ordeiro e arrumado.

Que contraste com o Cairo!

E que dizer dos comportamentos? Nunca tinha visto tanto kafir de uma só vez, mas o mais chocante foi observar as mulheres a andarem por toda a parte com a pele branca exposta - por Alá, iam praticamente nuas! Viam-seThes os braços, as pernas, o cabelo, os ombros; algumas até vestiam camisinhas tão curtas que expunham a barriga e deixavam mesmo antever o rego dos seios!

"Prostitutas!", vociferou em voz baixa, indignado.

"Todas umas prostitutas!"

E o mais extraordinário é que os homens mal pareciam fazer caso disso; não deram sinais de se incomodar com tamanha falta de vergonha. Via-os até a lidar com as mulheres como se fossem iguais, misturando-se sem pudor. Observou inúmeros casalinhos a andarem na rua de mão dada e, com os olhos que Alá lhe dera, chegara a vê-los beijarem-se na boca em plena via pública! Que imundice!

Sentindo-se afogar naquele mar de imoralidade e degeneração, decidiu procurar refúgio no aconchego de uma mesquita. Disseram-lhe que havia uma a funcionar perto do Martim Moniz e procurou-a, mas por mais que andasse não havia meio de a encontrar.

Deambulou perdido pela Baixa de Lisboa e assustou-se quando viu um polícia aproximar-se dele.

Pensou que ia ser preso e preparou-se para fugir, mas sentia-se paralisado de medo e ficou pregado ao chão. O polícia interpelou-o em português e, muito hirto, Ahmed abanou a cabeça e fez sinal de que não entendia. Após as primeiras palavras confusas, ouviu o guarda mudar para um inglês primário mas perceptível.

"Precisa de ajuda?"

O polícia queria ajudá-lo! No Cairo sempre vira os polícias como repressores agressivos e corruptos, pessoas que deviam ser evitadas a todo o custo. Mas aquele guarda mostrava-se desconcertantemente afável. Desconfiado, Ahmed balbuciou uma desculpa improvisada e afastou-se o mais depressa que pôde, convicto de que haveria ali uma artimanha qualquer.

Que terra aquela!

"Estes Portugueses devem-se fartar de roubar aps crentes", observou após o seu primeiro passeio pela cidade.

Ahmed fora instalado na casa dos Qabir, uma família de muçulmanos de origem moçambicana que vivia em Odivelas. Ninguém suspeitava da ligação do visitante à Al-Jama'a e o acolhimento resultava de uma mera paga de favores antigos.

"Porque dizes isso, meu irmão?", perguntou o chefe da família, Faruk. "Aconteceu alguma coisa?"

"Estou-me a referir a toda esta opulência, a todo este dinheiro que os Portugueses exibem. Isto é gente muito rica, com certeza foram roubar a algum lado."

Faruk riu-se.

"Quem? Nós?" Mais uma gargalhada. "Somos dos povos mais pobres da Europa ocidental! Meu irmão, tens de viajar mais pela Europa para veres o que é realmente riqueza! Há por aí povos muito mais ricos do que o nosso!"

Ahmed cravou os olhos no anfitrião, o esgar exprimindo um misto de incredulidade e escândalo.

"Os outros kafirun são ainda mais ricos? Por Alá, a roubalheira deve ser muita!"

"Não é bem assim, meu irmão. Nós investimos muito na educação e sabemos que a verdadeira riqueza é gerada pelo conhecimento. Se andares por este país ou por toda a Europa, verás que por aqui existem poucas riquezas naturais nas terras. Não há petróleo, não há ouro, não há diamantes." Colou o indicador

às

têmporas.

"Mas

possuímos

conhecimentos.

Aqui no Ocidente sabemos fazer carros, aviões, pontes, computadores... é essa a nossa riqueza."

Ahmed calou-se. Pareceu-lhe evidente que aquela família era desviante e vivia em jahiliyya. Estes supostos crentes estavam de tal modo integrados que até se referiam aos kafirun ocidentais como nós, não eles! Onde já se vira uma coisa assim? Além do mais tinham comportamentos impróprios. Pois não andava a filha mais velha de Faruk, Fátima, vestida de jeans e a exibir impudicamente o rosto e os cabelos pela rua, sujeitando-se aos olhares lúbricos dos kafirun? E que dizer da mulher do seu anfitrião, Bina,

que

às

vezes

parecia

ser

quem

verdadeiramente mandava lá em casa? Como podia Faruk autorizar tais coisas? Porque não as punha ele na ordem? Como se tudo aquilo não bastasse, Ahmed já vira com os seus próprios olhos cervejas no frigorífico daquela casa! Seria possível?

O recém-chegado começou a frequentar a mesquita de Odivelas, mas achou-a demasiado desviante. Onde estavam os apelos à jibad? Onde se exigia a aplicação da sbaria? Onde se ouvia recitar as ordens de Deus no Alcorão para emboscar os idólatras? Em parte alguma! Por Alá, que muçulmanos eram aqueles?

As instruções da Al-Jama'a a Ahmed iam no sentido de que jamais poderia deixar perceber que era um verdadeiro crente. Devia ocultar em todas as circunstâncias o seu pensamento, mesmo diante dos muçulmanos portugueses. Tratava-se de uma medida de segurança, não podia chamar as atenções sobre si uma vez que a organização o queria manter a todo o custo afastado das listas dos crentes identificados pelos serviços secretos ocidentais. Permaneceu por isso em silêncio, mas sentia-se baralhado e indignado com tanta jahiliyya.

A gota de água que fez transbordar o copo da sua paciência ocorreu ao fim da segunda semana, quando jantava com os Qabir. Fátima chegou a casa nessa noite muito excitada com uma notícia que lhe acabara de ser dada. Uma amiga muçulmana fora, um ano antes, obrigada pela família a casar com um desconhecido. Acontece que se descobrira agora que a rapariga tinha um namorado secreto e,apelos vistos, mantivera o contacto com ele mesmo depois de casada.


"Vai para lá uma bronca!...", observou Fátima à mesa.

"Essa miúda já devia ter juízo", disse a mãe.

"Sempre foi uma doidivanas!"

"Oh, já a conheces! Quando se lhe mete uma coisa na cabeça, ninguém a tira. Decidiu que o namorado é o homem da sua vida e não o vai largar de maneira nenhuma! Agora que tudo foi descoberto, acho que ela se vai divorciar do marido e casar com o namorado!"

O alvoroço despertou a curiosidade de Ahmed, que pediu que lhe explicassem a conversa. Fátima resumiu o assunto no seu árabe titubeante e deixou o convidado atónito.

"Ela continuava a ver o namorado?", espantou-se.

"E verdade", confirmou Fátima.

"E agora?"

"E agora... olha, vai divorciar-se."

"Mas... mas... e o adultério?"

"Pois, é chato para o marido", reconheceu ela. "Não se tivesse casado por combinação! Quem anda à chuva molha--se, não é verdade?"

"Mas

houve

adultério!",

insistiu

Ahmed,

escandalizado. "Isso é permitido?"

A família Qabir entreolhou-se.

"Bem... claro que não", disse Faruk.

"Ah, bom! Então qual é o castigo que vão aplicar a essa adúltera?"

O anfitrião disparou um olhar de repreensão à filha por ter trazido aquele assunto para a mesa, considerando a presença do hóspede e os seus hábitos manifestamente conservadores, mas logo encarou o egípcio e forçou um sorriso, algo embara-

çado com o que ia dizer.

"Não haverá nenhum castigo."

Ahmed parou de comer.

"Como?! Não haverá nenhum castigo? Não lhe vão fazer nada?" "Não." "Porquê?"

"Porque... porque aqui o adultério não é crime."

Ao ouvir esta revelação o hóspede engasgou-se e desatou a tossir; tossiu tanto que parecia que os pulmões lhe iam saltar pela boca. Quando por fim recuperou, teve vontade de se levantar e de berrar com toda aquela gente e mandar as mulheres da casa porem o véu e atirar todas as cervejas pela janela e...

Conteve-se.

As suas ordens eram de que não deveria revelar os seus pensamentos. Teria de ocultar a todo o custo que era um verdadeiro crente. Por Alá, não podia deixar de cumprir as instruções da Al-Jama'a.

Mas percebeu que ia ser difícil.

Passou os primeiros três anos em Lisboa a aprender português e a fazer as disciplinas do liceu que lhe permitiriam inscrever-se na faculdade.

Agastado com tanto comportamento desviante, saiu o mais depressa que pôde da casa dos Qabir e alugou um quarto a dois quarteirões de distância. A capacidade de memorização que desenvolvera ao decorar todo

o

Alcorão

na

infância

ajudou-o

consideravelmente e, ao fim desse tempo, falava português com apenas alguns vestígios de sotaque estrangeiro.

A modernidade que via à sua volta, em vez de o inspirar e o levar a questionar tudo o que até ali pensara, serviu apenas para reforçar as suas crenças e suscitar-lhe o maior dos ^essen«men-tos.

Como era possível que os kafirun fossem tão abastados e os verdadeiros crentes tão pobres?

Como pudera Alá permitir tamanha injustiça? A resposta era clara. Os crentes haviam-se desviado do verdadeiro caminho. Tinham abandonado a sbaria e Deus punira-os com aquela suprema humilhação!

Era preciso, pois, voltar às verdadeiras leis islâmicas. Era necessário respeitar integralmente a sbaria e trazer de regresso à Terra a Lei Divina. Só assim se agradaria a Deus e se receberia de volta o Seu favor, de modo que os crentes se tornassem de novo mais ricos e prósperos e poderosos do que os kafirun. Na verdade tornava-se fundamental regressar aos valores do passado para garantir a hegemonia no futuro.

Concluiu com sucesso o secundário e, conforme havia acordado com a Al-Jama'a, concorreu para Engenharia, pondo o seu nome nas candidaturas para o Instituto Superior Técnico e para a Universidade Nova de Lisboa. Foi aceite nos dois cursos, o que não era surpreendente se consideradas as suas excelentes notas do secundário e as relativamente baixas médias de acesso, e acabou por optar pela Nova, sempre era uma universidade.

Foi por essa altura que recebeu uma carta do Cairo. Abriu-a e viu que havia sido remetida por Arif, o seu antigo patrão no souq. Depois de o cumprimentar e dos preâmbulos habituais, o dono da loja dos cachimbos de água queixou-se de que Adara já estava em idade de casar e queria saber se o seu antigo pupilo se mantinha na disposição de cumprir o que ambos haviam acordado anos antes.

Ahmed respondeu de pronto e, em dois meses, os papéis necessários foram tratados pelos pais e pelo noivo. Quando os documentos do casamento foram por fim assinados e tudo ficou pronto, Ahmed deu um derradeiro salto aos correios e enviou para o Cairo um envelope com o bilhete de avião. No momento em que saiu do edifício, não se conteve e soltou um urro e um salto de alegria.

A bela Adara vinha aí!

XXXV

Parecia um filme.

O desconhecido agarrava Zacarias com o braço esquerdo, enquanto a mão direita, que segurava o punhal, caía consecutivamente sobre a sua vítima.

Apunhalou-o uma, duas e três vezes, até que Tomás despertou do seu torpor e, ganhando vida, desferiu um brutal pontapé na cabeça do agressor. Apanhado em desequilíbrio, o homem tombou no chão, largando Zacarias, e encarou o português.

"Kafir!", vociferou.

O desconhecido ergueu-se de um salto, a faca a pingar sangue, e avançou na direcção de Tomás, ameaçador. Crrrrrr.

"Blackbawk! Blackbawk!" Era a voz de Jarogniew ao auricular, gritando freneticamente. "Go! Go!"

No meio da confusão, Tomás lembrou-se de que Blackbawk era o nome de código de Sam. Mas não havia tempo para se preocupar com os outros, a ameaça diante dele era demasiado premente.

Crrrrrr.

"Bluebird! Saia daí! Já!"

O agressor de negro deu um passo rápido, como um felino, e espetou o punhal na sua direcção. Tomás saltou para trás e conseguiu desviar-se.

Aproveitando o desequilíbrio momentâneo do desconhecido, desferiu um novo pontapé, desta vez no estômago do homem, mas ele não vacilou e, lançando-se pelo ar, caiu sobre o historiador.

Crrrrrr.

"Blackhawk!? Go! Go/"

O português conseguiu suster-lhe a mão que empunhava o punhal, mas sentiu o agressor socar-lhe os rins. A dor fê-lo fraquejar e logo viu a lâmina a aproximar-se dos olhos. Fez força para a fazer recuar, mas o mais que conseguiu foi suster-The o avanço. A ponta do punhal estava a um mero palmo de distância e Tomás não tinha muito tempo para reagir.

Crrrrrr.

"Bluebird?"

Com um movimento rápido e desesperado, o europeu encolheu-se de modo a dar uma joelhada no ventre do agressor e, acto contínuo, voltou-se e acertou-lhe com o cotovelo na cara. Numa reacção reflexa, a mão com a faca recuou e Tomás aproveitou para cabecear o homem no rosto. O

desconhecido soltou um urro de dor e, às cegas, numa fúria súbita, lançou o punhal contra a vítima com tal força que quebrou a defesa do inimigo, rasgando-lhe a camisa e passando-lhe a lâmina pelo corpo.

Crrrrrr.

"Blackhawk, o que se passa?"

O português sentiu uma dor aguda irromper-lhe no peito, junto ao coração, e percebeu que tinha sido esfaqueado. Quase entrou em pânico. Onde estava a ajuda?,

interrogou-se

naquele

momento


desesperado. Onde parava Sam? Onde se encontrava Rebecca? Porque demoravam tanto a ir em seu socorro? Será que tinham problemas de comunicação semelhantes aos seus no início da operação? Será que não ouviam os insistentes apelos de Jarogniew nos auriculares? Se assim fosse, estava perdido.

Crrrrrr.

Загрузка...