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"Tom, isto vai explodir!", gemeu Rebecca, o medo a apossar-se da sua voz. "Tommm!"
A transpiração escorria ainda mais abundante pela face de Tomás e pingava num fio contínuo pelo queixo. Passou as costas do braço pela testa para limpar o suor, sabendo que o tempo voava e só havia oportunidade para uma última tentativa.
A derradeira.
Voltou a avaliar o enigma. Em boa verdade, as letras da charada e do nome coincidiam todas.
Todas. A excepção era o maldito terceiro y. Onde diabo errara? Cravou os olhos nos dois y da charada, como se a intensidade do olhar pudesse arrancar o segredo que ela escondia. E se... e se... e se a orto-grafia fosse diferente? Caramba, porque não?
Lembrou-se
nesse instante que a caligrafia árabe não estava uniformizada na referência a Ibn Taymiyyah e que certos textos usavam esse nome com apenas dois...
"Oh, Deus, vamos morrer!"
O tempo esgotara-se.
Com os dedos a tremer, Tomás agarrou-se ao teclado e, em desespero de causa, escreveu Ibn Taymiyab com dois y em vez de três. Podia estar errado, mas já não tinha nada a perder. A seguir carregou no enter e cerrou os olhos com força.
Embora não fosse um homem religioso, benzeu-se às cegas e entregou o destino à divina providência, resignando-se enfim à morte.
O tempo congelou.
Congelou.
Congelou tanto que se eternizou. Como nada parecia acontecer, o historiador abriu um olho e, a medo, espreitou o mostrador.
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O relógio parara.
Epílogo
A cerveja jorrava com profusão pelos copos e as gargalhadas enchiam o bar. Um grupo de homens fardados do NYPD aproximou-se do sofá onde Tomás se sentava e agarrou-o pelo braço direito, puxando-o para o centro do bar.
"Come on, Tom!", disse um deles. "Você é o herói do momento! Venha daí festejar!"
Tomás fez sinal com a cabeça, indicando Rebecca, que ficara lá para trás.
"Mas eu já estava a festejar!", protestou. "Com um anjo!"
Um dos polícias voltou-se para a loira.
"Desculpe, miss Scott. Só o vamos roubar por uns minu-tinhos!"
Rebecca tinha o braço direito engessado, mas fez sinal com a mão esquerda de que não havia problema.
"Tudo bem, guys..."
Os polícias arrastaram Tomás até ao pianista.
"You're the man, Tom!", insistia um deles, levado pelo entusiasmo. "You're the man!"
"No último segundo!", gritou outro, pondo a cabeça entre as pernas do historiador e erguendo-o em ombros. "Ele desactivou a bomba no último segundo!
Nem em Hollywood! Nem o Spielberg!"
"You're the man!"
Tomás riu-se e deixou-se levar às cavalitas pelos polícias eufóricos. Os homens do NYPD desfaziam-se numa cascalhada de gargalhadas e deixaram-no cair sobre uma cadeira ao lado do pianista.
O músico aguardou pelo sinal e começou a dedilhar o teclado, lançando a melodia pelo piano. Ao escutarem as notas introdutórias, os polícias nova-iorquinos encheram os pulmões e berraram em coro, os copos virados para o português.
For he's a jolly good fellow, For he's a jolly good fellow, For he's a jolly
good feeellowww... And so say all of
us!
O coro desfez-se numa galhofa e Tomás aproveitou a confusão para escapar para junto de Rebecca.
"Jeez, você é mesmo o herói!", sorriu ela. "Estou impressionada!"
"E para si? Também sou?"
O sorriso da americana tornou-se ainda mais luminoso. Rebecca lambeu os lábios com malícia, inclinou-se na direcção do historiador e abraçou-o, terna e doce.
"Está a brincar? Depois do que fez esta tarde, para mim você é... é um deus!"
Tomás puxou-a para si e teve vontade de a beijar, mas não se atreveu. Preferiu sentir-lhe o calor e o perfume suave que exalava dos cabelos dourados.
"Posso pedir-lhe uma coisa?", murmurou ele, apertando-a ainda.
"O que quiser", retorquiu Rebecca. "Por si estou disposta
a fazer tudo. Tudo mesmo."
, »
Ao ouvir estas palavras, o português sentiu uma erecção monstruosa e incontrolável formar-se-lhe nas calças.
"E se saíssemos daqui para fora?"
"Quer ir-se embora?"
"Sim. Estes polícias são simpáticos, mas a verdade é que não os conheço de parte alguma." Afagou-lhe o cabelo. "Prefiro mil vezes celebrar consigo."
Rebecca afastou ligeiramente a cabeça e fitou Tomás nos olhos.
"Está bem", concordou. "Vamos festejar para outro lado. Mas só mais daqui a um bocadinho."
O português fez beicinho.
"Oh, porquê? Porque não saímos já?"
"Não pode ser, Tom. Não se esqueça de que o pessoal de Washington está a caminho para se juntar a nós. Vem mister Bellamy e toda a gente da NEST. Temos ao menos de ficar um pouco com eles, não acha?"
Tomás esforçou-se por ocultar o desapontamento.
Queria sair imediatamente com Rebecca e planeava beijá-la no elevador. Imaginava-se já a fazer amor, ele com o ombro esquerdo engessado, ela com o braço direito na mesma situação. Seria original.
Sentia-se decepcionado por não saírem naquele instante, mas depressa se conformou. O que estava em causa era um mero adiamento dos instantes divinais que os lábios húmidos e o corpo ardente da americana lhe prometiam.
Um mero adiamento.
"Está bem", assentiu. "Quando é que eles chegam?" Rebecca espreitou o relógio. "Daqui a meia hora."
Nova Iorque à noite era uma gloriosa coroa de jóias brilhantes, todas a cintilarem como diamantes incrustados por entre rubis, safiras e esmeraldas.
Mais espectacular ainda era contemplar das alturas a grande cidade, sentindo-a pulsar pela grande janela do Rainbow Grill, o bar situado no sexagé-
simo-quinto andar do edifício da RCA.
Dentro do piano-bar, os homens do NYPD não paravam de cantar e beber cerveja, mas Tomás e Rebecca preferiam observar em silêncio a metrópole resplandecente, como se estivessem hipnotizados pelas luzes e cores exuberantes que se estendiam e mexiam por toda a parte numa grandiosa coreografia.
"Estou mortinho por sair daqui", observou o historiador, que já mal conseguia pensar noutra coisa. "Acha que eles ainda estão muito atrasados?
Já passou a meia hora..."
A americana verificou o relógio.
"Tem razão", constatou. "Levam vinte minutos de atraso. Se calhar é melhor eu ligar para..." "Fucking génio!"
O português reconheceu a voz baixa e arrastada e voltou-se. Atrás dele encontrava-se o rosto familiar do responsável da NEST a abrir-se nos vestígios de um sorriso.
"Mister Bellamy!"
"O que ando eu a dizer há anos?", perguntou o americano, sem tirar os olhos de Tomás. "Você é um fucking génio!" "Foi sorte..."
"Qual sorte! Ninguém faz o que vocês fizeram só por sorte! Estão os dois de parabéns!" Apontou para Rebecca. "Você também, babe. Esteve muito bem!"
"Obrigada, mister Bellamy."
"Fui informado de que o presidente vai conceder-vos aos
dois uma Presidential Medal of Freedom, a mais alta conde-coração civil do país, por especial mérito na defesa da segurança nacional dos Estados Unidos. E o tipo do FBI que
morreu, coitado, também vai levar uma medalha a título
póstumo. Foi um herói."
0
A referência a Ted ensombrou os rostos de Tomás e Rebecca. Não se tratava propriamente de um amigo, mas ambos haviam passado três dias na companhia do operacional do Bureau enquanto vigiavam a casa onde estava Ahmed e tinham-no visto morrer diante deles. Uma estranha afinidade ligá-los-ia para sempre a Ted.
Tomás sentiu necessidade de desanuviar o ambiente.
"Então, mister Bellamy? Veio sozinho?"
"Claro que não."
Rebecca espreitou com súbita ansiedade para a entrada do bar, em busca dos seus colegas da NEST.
"Onde está o resto do pessoal?"
"Vim à frente num carro com batedor", disse Bellamy. "Eles devem estar a chegar." "A Anne também vem?" "Claro."
Como em obediência a uma deixa de teatro, logo que o responsável da NEST se calou uma pequena multidão invadiu o Rainbow Grill numa grande algazarra. Mal viram Rebecca, os recém-chegados dirigiram-se directamente a ela. À cabeça do grupo vinha uma bonita morena de cabelos longos e encaracolados. Tinha lágrimas nos olhos e caiu nos braços de Rebecca.
"Oh baby!"
"Honey!"
Arregalando os olhos de estupefacção, vendo e recusando-se a acreditar no que os seus olhos lhe diziam, Tomás observou Rebecca e Anne mergulharem na boca uma da outra, viu-as afundarem-se com tal intensidade e paixão e volúpia que o coração se lhe contraiu e, esvaindo-se como oxigénio no vácuo, a esperança foi definhando até se transformar em desilusão completa.
Nota final
Este romance conta uma história ficcional com personagens ficcionais, mas, como acontece em todas as minhas obras, muitas das coisas que o livro revela não constituem qualquer invenção.
São verdadeiras.
E verdade que há documentos da Al-Qaeda e declarações dos seus dirigentes que revelam a intenção do movimento de fazer detonar um dispositivo nuclear. E verdade que, estando na posse de cinquenta quilos de urânio altamente enriquecido, qualquer pessoa com conhecimentos de engenharia pode montar uma bomba nuclear em pouco mais de vinte e quatro horas numa garagem. E verdade que é possível aceder a urânio altamente enriquecido ou plutónio em países com medidas de segurança de eficácia duvidosa. E verdadeiro que já ocorreram vá-
rios roubos de material nuclear em instalações russas, incluindo em Mayak. É verdade que o Paquistão andou a exportar tecnologia nuclear para os outros países islâmicos e os seus
cientistas foram consultados por Bin Laden e por outros dirigentes da Al-Qaeda. E é verdade que mais de cento e cinquenta versículos do Alcorão são dedicados à jihad.
Nenhum dos diálogos das personagens deste romance reflecte a minha opinião sobre o islão; apenas expõe as diferentes perspectivas que se cruzam a propósito desta importante religião, com uma natural atenção à perspectiva dita radical ou fundamentalista. No entanto, as citações do Alcorão ou dos ahadith que estabelecem o exemplo do Profeta são genuínas. Para o efeito, usei a tradução do Alcorão em português feita por Américo de Carvalho
e
editada
pelas
Publicações
Europa-América em 2002; apenas fiz uma pequena alteração de forma, mas não de conteúdo, numa referência que se encontra na sura 8, versículo 16; e ainda na sura 4, versículo 34, a conselho de um clérigo muçulmano para o qual a alteração traduz melhor o original em árabe. Já as citações dos ahaditb são traduções minhas a partir de traduções do árabe em inglês.
Também foram usadas outras fontes. Em primeiro lugar, os textos dos mentores do islamismo dito radical ou fundamentalista, que consultei nas suas traduções do árabe em inglês. Os principais foram jihad, do egípcio Hasan Al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana e assassinado em 1949; e sobretudo Milestones Along the Road, escrito na prisão pelo também egípcio Sayyed Qutb em 1964 e considerado o texto fundamental dos islamitas modernos. Qutb, que sucedeu a Al-Banna na Irmandade Muçulmana, foi executado em 1965
precisamente por ter publicado este livro.
Outras obras que se seguiram na esteira dos textos de Al-Banna e de Qutb, e que também consultei, foram Defense of Muslim Lands e Join the Caravan, do xeque Abdullah Azzam, um dos mentores de Osama Bin Laden; The Virtues of Jihad, do maulana Mohammed Masood Azhar; Ruling by Man-made Law, de Abu Hamza Al-Masri; e Jihad in the Qur'an and Sunnab, do xeque Abdullah Bin Muhammad Bin Humaid.
Para perceber a Al-Qaeda e conhecer o pensamento do seu líder consultei dois opúsculos escritos pelo próprio Osama Bin Laden e intitulados Declaration of War on America e Exposing the New Crusader War, e ainda a entrevista quf ele deu à ABC News em 1998. Importantes neste segmento foram igualmente os livros Al-Qaeda, de Jason Burke; e The Secret History of Al-Qaeda, de Abdel Bari Atwan, que me forneceram pormenores relativos a Bin Laden e ainda aos campos de treino da Al-Qaeda no Afeganistão. Sobre estes campos em particular, contudo, a obra mais importante foi, sem dúvida, Inside the Jihad, de Omar Nasiri.
Outras referências de destaque foram Terror in the Name of God, de Jessica Stern; Who Becomes a Terrorist and Why, um relatório feito em 1999 por Rex Hudson para o governo americano; O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, a célebre obra de Samuel Huntington; O Fim da Fé —
Religião, Terrorismo e o Futuro da Razão, de Sam Harris; Sobre o islão, de Ali Kamel; The Crisis of Islam — Holy War and Unholy Terror, de Bernard Lewis; e ainda God's Terrorists — The Wahhabi Cult and the Hidden Roots of Modern Jihad, de Charles Allen.
No que diz respeito a obras gerais sobre o islão, e para além do próprio Alcorão, usei como referência os livros O Islão, de Akbar Ahmed; Islam — Faith, Culture, History, de Paul Lunde; e também ABCedário do islão, de Yves Thoraval.
Recorri igualmente a obras que analisam a faceta belicista do islão. As mais importantes foram Journey Into the Mind of an Islamic Terrorist e Islam and Terrorism, de Mark Gabriel; mas também consultei The Truth About Muhammad, de Robert Spencer. De referir que os nomes destes dois autores são pseudónimos, uma vez eles revelaram recear pela vida caso divulgassem a sua verdadeira identidade — o que me pareceu inquietante e sintomático sobre o estado de intolerância em relação à liberdade de expressão.
No que diz respeito à questão nuclear, as minhas obras de referência foram The Atomic Bazar, de William Langewiesche; Nuclear Terrorism — The Ultimate Preventable Catastrophe, de Graham Allison; The Four Faces of Nuclear Terrorism, de Charles Ferguson e William Potter; The Seventh Decade — The New Shape of Nuclear Danger, de Jonathan Schell; America and the Islamic Bomb —
The Deadly Compromise, de David Armstrong e Joseph Trento; Deception — Pakistan, the United States, and the Secret Trade in Nuclear Weapons, de Adrian Levy e Catherine Scott-Clark; The Nuclear Jihadist — The True Story of the Man Who Sold the World's Most Dangerous Secrets...
and How We Could Have Stopped Him, de Douglas Frantz e Catherine Collins; e, por fim, Shopping for Bombs — Nuclear Proliferation, Global Insecurity, and the Rise and Fall of the A. Q. Khan Network, de Gordon Corera.
Não posso deixar de reconhecer o valioso contributo de várias pessoas para esta obra. O
primeiro agradecimento vai para os dois muçulmanos que fizeram a revisão do romance: Paulo Almeida Santos, um dos mais antigos operacionais da Al-Qaeda, interlocutor de Bin Laden e autor do primeiro atentado desse movimento na Europa; e um amável clérigo que conheceu os mudjahedin no Afeganistão e no Paquistão e que, embora con-firmando que este livro apresenta realmente a visão que os fundamentalistas têm do islão, preferiu manter-se anónimo.
Obrigado também a José Carvalho Soares, professor de Física da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de Física Nuclear, pela revisão do que diz respeito à engenharia de cons trução de uma bomba nuclear; a Evgueni Mouravitch, mais uma vez útil para as coisas russas; a Ali Zhan, o meu esclarecido guia muçulmano ismaelita em Peshawar e Lahore; a Hussein, que me mostrou o Cairo islâmico e cristão copta; a Mohammed, que me levou ao templo de Hatshepsut, onde em 1997 a Al-Jama'a Al-Islamiyya efectuou o massacre de Luxor; ao meu editor, Guilherme Valente, e a toda a equipa da Gradiva*, pelo» seu empenho e profissionalismo; e, como sempre acima de tudo, à Florbela.