Fat Charlie estava com mais sorte. Podia sentir isso. Venderam passagens a mais para o avião no qual embarcaria, então ele foi transferido para a primeira classe. A comida era excelente. Quando sobrevoavam o Atlântico, uma aeromoça veio informar-lhe que ganhara uma caixa de chocolates como cortesia e entregou-lhe o presente. Ele colocou a caixa no compartimento de bagagem superior e pediu um Drambuie com gelo.
Estava a caminho de casa. Acertaria as coisas com Grahame Coats. Afinal, se havia uma coisa no mundo de que Fat Charlie tinha certeza, essa coisa era a honestidade de seu trabalho como contador. Acertaria os ponteiros com Rosie. Tudo ficaria ótimo.
Imaginou se Spider já teria ido embora quando ele chegasse em casa ou se teria a satisfação de expulsá-lo de lá. Torcia pela segunda hipótese. Fat Charlie queria ver seu irmão pedir desculpas. Se possível, até mesmo rastejar. Começou a imaginar as coisas que diria a ele.
— Saia daqui! E leve junto esse seu Sol, sua banheira de hidromassagem, seu quarto inteiro!
— Como? — perguntou a aeromoça.
— Só... ahm... falando sozinho — respondeu Fat Charlie.
Mas até mesmo a vergonha que sentiu com essa situação não foi assim tão ruim. Ele nem mesmo ficou torcendo para que o avião caísse e sua desgraça acabasse. A vida sem dúvida parecia estar melhorando.
Abriu o pequeno kit de mimos que deram a ele, colocou a máscara para os olhos e inclinou o assento ao máximo, o que o permitia ficar completamente esticado. Pensou em Rosie, embora em sua mente sua aparência mudasse constantemente, transformando-se em alguém menor, uma mulher que não usava quase nenhuma roupa. Fat Charlie sentiu-se culpado e a imaginou vestida. Sentiu-se muito chateado ao perceber que, em sua imaginação, a mulher parecia usar um uniforme policial. Ficou dizendo para si mesmo que se sentia muito mal com aquilo, mas não adiantou muito. Ele deveria se sentir culpado. Ele deveria se sentir culpado..
Fat Charlie mudou de posição no assento e emitiu um pequeno ronco, satisfeito.
Ainda estava com um humor excelente quando aterrissaram no aeroporto de Heathrow. Pegou o Heathrow Express para Paddington e ficou satisfeito em notar que na sua breve ausência o sol resolveu aparecer. Disse a si mesmo: “Tudo, tudo mesmo, vai ficar bem”.
A única coisa estranha, que dava um sabor errado àquela manhã, ocorreu na metade da viagem de trem. Ele estava olhando pela janela, desejando que tivesse comprado um jornal em Heathrow. O trem passava por uma área verde — o campo de futebol de alguma escola talvez — e o céu pareceu escurecer por alguns instantes e, com o chiado dos freios, o trem parou em um sinal.
Isso não perturbou Fat Charlie. Estava na Inglaterra, no outono: o sol era, por definição, algo que só acontecia quando não chovia ou quando o céu não estava nublado. Mas havia uma sombra de pé na beira daquele campo verde, perto de algumas árvores.
De relance, pensou que fosse um espantalho.
Mas isso não fazia sentido. Não poderia ser um espantalho. Espantalhos ficam nas plantações, não em campos de futebol.
Sem dúvida não aparecem em matas. De qualquer maneira, se aquilo fosse mesmo um espantalho, não se parecia nem um pouco com um.
Havia corvos em tudo quanto é lugar. Corvos bem grandes e negros.
Então a sombra se moveu.
Estava muito distante para ser algo além do contorno de alguém, alguém vestido com um sobretudo marrom esfarrapado. Mesmo assim, Fat Charlie sabia. Ele sabia que, se pudesse ver de perto, teria visto um rosto que parecia ser esculpido em obsidiana, cabelos negros e olhos insanos.
O trem chacoalhou e recomeçou a andar. Pouco tempo depois, a mulher vestindo sobretudo marrom não podia mais ser vista.
Fat Charlie sentiu-se mal. Praticamente se convencera de que o que aconteceu, ou o que ele achou que tivesse acontecido, na sala de estar da Sra. Dunwiddy era só algum tipo de alucinação, um sonho poderoso, verdadeiro em algum nível, mas não realmente verdadeiro. Não algo que aconteceu de fato. Na verdade, era um símbolo de alguma verdade maior. Ele não poderia ter ido a um lugar real ou realmente ter feito uma barganha, certo?
Era só uma metáfora, afinal.
Não se perguntou por que tinha tanta certeza de que logo tudo começaria a melhorar. Havia realidades e havia a realidade. E algumas coisas são mais reais que outras.
Cada vez mais rápido, o trem o levava para Londres.
Spider saiu do restaurante grego e estava quase chegando em casa, segurando um guardanapo contra a bochecha. Alguém o tocou no ombro.
— Charles? — Era a voz de Rosie. Spider pulou. No mínimo, levou um susto e fez um barulho de quem está surpreso. — Charles? Você está bem? O que aconteceu com o seu rosto?
Ele ficou olhando para ela e perguntou:
— Você é você?
— Quê?
— Você é a Rosie?
— Que raio de pergunta é essa? Claro que eu sou a Rosie. O que aconteceu com o seu rosto?
Ele pressionou o guardanapo contra a bochecha.
— Eu me cortei.
— Posso ver?
Ela tirou a mão dele do rosto. O centro do guardanapo tinha uma mancha vermelha, como se tivesse absorvido sangue, mas sua bochecha estava inteira, sem nenhum arranhão.
— Mas não tem nada aí.
— Ah.
— Charles... Você está bem?
— Sim. Estou. A não ser que não esteja. Acho que a gente deve ir lá pra casa. Acho que ficarei mais seguro lá.
— A gente ia almoçar — disse Rosie, no tom de voz de alguém pensando que só vai entender o que está acontecendo quando um apresentador de TV aparecer e revelar as câmeras ocultas.
— Sim, eu sei. Acho que alguém acabou de tentar me matar. E fingiu que era você.
— Ninguém está tentando te matar — respondeu ela, não conseguindo soar como se não o estivesse alentando.
— Mesmo assim, será que a gente podia esquecer o almoço e ir lá pra casa? Lá tem comida.
— Claro.
Rosie o seguiu pela rua, perguntando-se quando Fat Charlie tinha emagrecido daquele jeito. “Está ótimo”, pensou. “Com uma aparência realmente ótima.” Entraram em silêncio em Maxwell Gardens.
Então ele disse:
— Olha só isso.
— O quê?
Ele mostrou a ela. A mancha de sangue tinha desaparecido do guardanapo. Agora estava perfeitamente branco.
— Isso é um truque de mágica?
— Se for, não fui eu que fiz. Não dessa vez.
Jogou o guardanapo numa lata de lixo. Quando fez isso, um táxi apareceu na frente da casa de Fat Charlie, e Fat Charlie saiu do carro, amarrotado, piscando e segurando uma sacola plástica branca.
Rosie olhou para Fat Charlie. Olhou para Spider. Olhou de novo para Fat Charlie, que abrira a sacola e tirara de lá uma enorme caixa de bombons.
— Presente para você — disse ele.
Rosie pegou a caixa de bombons e agradeceu. Havia dois homens ali, e tinham voz e aparência completamente diferentes. Ainda assim, ela não conseguia descobrir qual deles era seu noivo.
— Eu estou ficando louca, é isso? — perguntou, tensa. Era mais fácil pensar assim, já que agora ela percebia o problema.
O mais magro dos Fat Charlies, o que usava um brinco, pôs a mão no ombro dela e disse:
— Você precisa ir para casa. Dormir um pouco. Quando acordar, terá esquecido tudo isso.
“Bom”, pensou ela, “isso deixa as coisas mais simples.” E melhor quando a gente tem um plano. Caminhou de volta até seu apartamento com passinhos alegres, carregando sua caixa de bombons.
— O que você fez? — perguntou Fat Charlie. — E como se ela tivesse desligado, sei lá.
Spider deu de ombros.
— Eu não queria chateá-la.
— Por que não contou a verdade pra ela?
— Não pareceu adequado.
— Como se você soubesse o que é adequado..
Spider tocou a porta da frente e a abriu.
— Eu tenho a chave — disse Fat Charlie. — É a porta da minha casa.
Entraram no hall e subiram a escada.
— Onde você estava? — perguntou Spider.
— Lugar nenhum. Por aí — respondeu Fat Charlie como se fosse um adolescente.
— Eu fui atacado por pássaros no restaurante hoje de manhã. Você sabe alguma coisa a respeito? Sabe, não é?
— Não exatamente. Talvez. É que chegou a hora de você ir embora, só isso.
— É bom você não começar nada.
— Eu? Eu começar alguma coisa? Acho que até o momento fui um modelo perfeito de autocontrole. Você é que entrou na minha vida. Você deixou o meu chefe chateado, e agora a polícia está atrás de mim. Você anda beijando a minha namorada. Você acabou com a minha vida.
— Olha, se quer saber, você fez um excelente trabalho acabando com a sua vida sozinho.
Fat Charlie fechou o punho e acertou Spider na mandíbula, como numa cena de cinema. Spider cambaleou para trás, mais surpreso do que ferido. Colocou a mão no lábio, e viu sangue nos dedos.
— Você me bateu!
— E posso bater de novo — ameaçou Fat Charlie, que não sabia ao certo se podia mesmo. Sua mão estava doendo.
— Ah, é? — disse Spider, e lançou-se contra Fat Charlie, batendo repetidamente nele com os punhos. Fat Charlie reagiu, lançando o braço em volta da cintura de Spider e jogando-se no chão com ele.
Rolaram para lá e para cá no chão do corredor, batendo um no outro. Fat Charlie meio que esperava que Spider lançasse algum tipo de contra-ataque mágico, ou que tivesse uma força sobrenatural, mas os dois pareciam empatar. Ambos lutavam sem nenhuma técnica, como moleques — como irmãos — e, enquanto brigavam, Fat Charlie lembrou-se de que fizera a mesma coisa havia muito, muito tempo. Spider era mais esperto e mais rápido, mas se Fat Charlie conseguisse ficar por cima dele e segurar suas mãos...
Fat Charlie agarrou a mão direita de Spider, torceu-a por trás das costas dele e sentou-se sobre o peito do irmão, colocando todo seu peso.
— E então? Desiste? — perguntou.
— Não!
Spider contorcia-se, mas Fat Charlie não saía de sua posição, sentado sobre o peito dele.
— Eu quero que você prometa que vai sair da minha vida e deixar Rosie em paz. Para sempre.
Spider fez um movimento com raiva e deslocou Fat Charlie. Ele acabou caindo de bruços no chão da cozinha.
— Olha, eu avisei... começou Spider.
Então ouviram alguém batendo na porta lá embaixo. Batidas fortes, do tipo que indicavam que alguém precisava entrar urgentemente. Fat Charlie olhou para Spider, que fez uma careta para ele. Puseram-se de pé lentamente.
— Quer que eu atenda? — perguntou Spider.
— Não. É a minha casa. E eu vou atender a porta da minha casa, muito obrigado.
— Como quiser.
Fat Charlie foi até as escadas. E então virou-se:
— Depois que eu resolver isso, vou voltar pra resolver tudo com você. Faça suas malas. Você já está de saída.
Desceu as escadas, arrumando a camisa, tirando o pó do corpo, tentando parecer como se não tivesse acabado de participar de uma briga no chão.
Abriu a porta. Havia dois policiais grandes, de uniforme, e uma menor, bem mais exótica, em roupas simples.
— Charles Nancy? — perguntou Daisy. Olhou para ele como se fosse um estranho, sem nenhuma emoção nos olhos.
Fat Charlie engoliu em seco.
— Senhor Nancy, o senhor está preso. O senhor tem o direito de— Fat Charlie voltou-se para o interior da casa.
— Desgraçado! — gritou na direção das escadas. — Desgraçado, desgraçado filho-da-mãe, desgraçado, desgraçadooo!
Daisy deu um tapinha em seu ombro.
— Não gostaria de nos acompanhar sem oferecer resistência? — perguntou ela, com voz baixa. — Se não quiser, podemos fazê-lo cooperar. Mas não recomendo. Eles são bem eficientes em fazer os outros cooperarem.
— Não vou causar problemas — respondeu ele.
— Ótimo — disse Daisy.
Acompanhou Fat Charlie e o trancou na parte de trás de uma van preta da polícia.
Vasculharam o apartamento. Não havia absolutamente ninguém por lá. No fim do corredor, havia um pequeno quarto contendo diversas caixas com livros e carrinhos de brinquedos. Remexeram um pouco, mas não encontraram nada interessante.
Spider estava deitado no sofá de seu quarto, mal-humorado. Tinha ido para o quarto quando Fat Charlie foi atender à porta. Precisava ficar sozinho. Não lidava muito bem com discussões. Quando chegava a esse ponto, era o momento em que ia embora. Agora Spider sabia que era hora de ir, mas mesmo assim não queria.
Não sabia ao certo se ter mandado Rosie para casa havia sido o melhor a fazer.
O que queria mesmo — e Spider era alguém governado mais pelo verbo “querer”, nunca pelo verbo “dever” — era dizer a Rosie que a queria muito. Ele, Spider. Contar a ela que não era Fat Charlie. Que era algo bem diferente. E isso, por si só, não constituía exatamente um problema. Poderia simplesmente ter dito a ela, com bastante convicção, “Na verdade, eu sou Spider, o irmão de Fat Charlie, e você não tem nenhum problema quanto a isso. Para você, está tudo bem”, e o universo exigiria só um pouquinho dela, e ela aceitaria aquilo exatamente como tinha ido para casa. Ela aceitaria. Não se importaria nem um pouco.
Exceto que ele sabia, lá no fundo, que se importaria, sim. Os seres humanos não gostam de ser comandados pelos deuses. Talvez pareçam gostar, na superfície, mas bem lá no fundo, por baixo de tudo, se ressentem do fato. Eles sabem. Spider poderia dizer a ela que deveria ficar feliz com a situação, e ela ficaria. Mas isso seria tão real quanto pintar um sorriso no rosto dela — um sorriso que ela genuinamente acreditaria, de todas as maneiras possíveis, ser um sorriso autêntico. A curto prazo (e até aquele momento Spider só pensara em termos de curto prazo), nada disso teria importância. No entanto, a longo prazo, só traria problemas. Ele não queria uma criatura perturbada e furiosa, alguém que, embora o odiasse bem lá no fundo, ficasse perfeitamente calma, como uma boneca, na superfície. Ele queria Rosie. E, se fosse assim, ela não seria Rosie, certo? Spider ficou olhando pela janela para a magnífica cachoeira e o céu tropical por trás dela. Pôs-se a imaginar quando Fat Charlie viria bater à sua porta. Algo havia acontecido naquela manhã, naquele restaurante, e tinha certeza de que seu irmão sabia mais a respeito do que dizia.
Depois de certo tempo, ficou cansado de esperar e resolveu andar pelo apartamento. Não havia ninguém. O lugar estava uma bagunça — como se tivesse sido revirado de cabeça para baixo por profissionais treinados para aquilo. Spider decidiu que provavelmente Fat Charlie bagunçara o lugar para indicar o quanto estava chateado com Spider por ter apanhado na briga.
Olhou pela janela. Havia um carro da polícia estacionado atrás de uma van preta. Enquanto observava, o carro e a van foram embora.
Preparou algumas torradas. Passou manteiga nelas e comeu. Então caminhou pelo apartamento, fechando cuidadosamente todas as cortinas.
A campainha tocou. Spider fechou as últimas cortinas e desceu as escadas.
Abriu a porta. Rosie olhou para ele. Ainda parecia meio perturbada. Ficou olhando para ela.
— E então? Não vai me convidar para entrar?
— Claro. Entre.
Ela subiu as escadas.
— O que aconteceu aqui? Parece que houve um terremoto.
— É?
— Por que você está no escuro?
Ela foi abrir as cortinas.
— Não faça isso! Deixe as cortinas fechadas.
— Mas você está com medo de quê?
Spider olhou pela janela.
— Dos pássaros — por fim confessou.
— Mas os pássaros são nossos amigos — respondeu Rosie, como se falasse com uma criança.
— Os pássaros são os últimos dinossauros. São pequenos velociraptores com asas. Devoram bichinhos indefesos, nozes, peixes e até outros pássaros. São ótimos para pegar minhocas. Já viu uma galinha comer? Podem parecer inocentes, mas os pássaros são cruéis.
— Outro dia vi no jornal um caso de um pássaro que salvou a vida de um homem.
— Mas isso não muda o fato de que...
— Era um corvo, sei lá. Um desses pássaros pretos, grandes. O homem estava deitado na grama de seu quintal, em sua casa, na Califórnia, lendo uma revista. Aí ele ouviu um barulho de corvo querendo chamar sua atenção. Ele se levantou e foi até a árvore em que estava o pássaro. Aí o homem viu que embaixo da árvore havia um leão da montanha que já estava se preparando para pular sobre ele. Então entrou na casa. Se o corvo não tivesse avisado, ele seria o jantar do leão.
— Não é um comportamento comum dos corvos, esse aí. Mas, se um corvo um dia salvou a vida de alguém ou não, isso não muda nada. Os pássaros continuam querendo me pegar.
— Certo.... — concordou Rosie, fazendo o possível para não soar como se achasse graça dele. — Os pássaros estão querendo pegar você.
— Isso.
— E eles querem pegar você porque...?
— Ahm...
— Deve ter algum motivo. Você não pode dizer que um monte de pássaros decidiu de repente que você é uma apetitosa minhoca.
— Acho que você não acreditaria em mim — disse ele, realmente achando isso.
— Charlie. Você sempre foi muito franco. Quer dizer, eu sempre confiei em você. Se você me contar, vou fazer o possível para acreditar. Vou tentar de verdade. Eu te amo e acredito em você. Então por que não experimenta para ver se eu acredito ou não?
Spider pensou no que ela disse. Pegou sua mão e apertou.
— Acho que eu preciso mostrar uma coisa pra você. — Levou-a até o fim do corredor. Pararam do lado de fora do quarto extra de Fat Charlie. — Tem uma coisa aqui dentro. Talvez explique tudo melhor do que eu.
— Você é um super-herói. E aqui é onde você guarda seus bat-apetrechos. É isso?
— Não.
— É alguma coisa meio pervertida então? Você gosta de usar roupas femininas, colar de pérolas e se chamar de Dora?
— Não.
— Seria então um trenzinho? Ou não?
Spider empurrou a porta do quarto extra de Fat Charlie e ao mesmo tempo abriu a porta para o seu quarto. As janelas ao fundo mostravam uma cachoeira que terminava numa piscina de água natural, lá embaixo. O céu tinha um tom mais azul que o de uma safira.
Rosie disse alguma coisa em voz baixa.
Virou-se, caminhou pelo corredor, entrou na cozinha e olhou pela janela, para o céu cinzento de Londres, feio, pesado. Voltou para o quarto.
— Eu não entendo. Charlie.. O que está acontecendo?
— Eu não sou o Charlie. Olhe para mim. Olhe bem para mim. Eu nem mesmo me pareço com ele.
Ela não estava mais fingindo que entrava na brincadeira. Seus olhos estavam arregalados, assustados.
— Eu sou o irmão dele. Eu estraguei tudo. Tudo. E acho que a melhor coisa que posso fazer é sair da vida de vocês, ir embora.
— Então onde está o Fat... Onde está Charlie?
— Eu não sei. Nós brigamos. Ele foi atender a porta, eu fui para o meu quarto, e ele não voltou mais.
— Não voltou mais? E você nem mesmo tentou saber o que aconteceu com ele?
— Ahm... Talvez tenha sido levado embora pela polícia. Mas é só uma hipótese. Não sei se isso é verdade.
— Me diga o seu nome — exigiu ela.
— Spider.
Rosie repetiu o nome. Lá fora, pela janela, acima do chuvisco causado pela cachoeira, viu um bando de flamingos voando. A luz do sol tingia suas asas de rosa e branco. Eram majestosos, incontáveis, e aquilo era a coisa mais linda que Rosie vira na vida. Olhou de volta para Spider e, ao olhar para ele, não conseguia compreender como acreditara que esse homem era Fat Charlie, uma pessoa cordata, aberta, atrapalhada. Esse homem era como um chicote prestes a estalar.
— Você não é mesmo Fat Charlie, certo?
— Eu já disse que não sou.
— Então... Com quem eu.... eu... Com quem... com quem eu dormi?
— Esse aí seria eu mesmo.
— Imaginei.
Deu-lhe um tapa no rosto com o máximo de força que conseguia. Ele sentiu seu lábio recomeçar a sangrar.
— Acho que eu mereço.
— Claro que merece.
Ela fez uma pausa. Então disse:
— Fat Charlie sabia disso tudo? Sabia sobre você? Que você estava saindo comigo?
— Bom, sim, mas ele...
— Vocês são doentes. Dois homens vis, doentes. Espero que apodreçam no inferno.
Lançou mais uma vez um olhar confuso para o quarto enorme, para a janela, observando as árvores tropicais, a enorme cachoeira e os flamingos, e saiu pelo corredor.
Spider sentou-se no chão com um fino fio de sangue escorrendo de seu lábio inferior, sentindo-se um idiota. Ouviu a porta da frente bater. Foi até a banheira de água quente, mergulhou a ponta de uma toalha na água, torceu-a e colocou na boca.
— Eu não preciso de nada disso.
Disse isso em voz alta. E mais fácil uma pessoa mentir para si mesma quando diz em voz alta.
— Não precisava de nenhum de vocês há uma semana e também não preciso mais. Não to nem aí. Pra mim chega.
Os flamingos atingiram as janelas como se fossem balas de canhão cor-de-rosa. O vidro quebrou. Fragmentos de janela voaram pelo quarto, espalhando-se e fincando nas paredes, no chão, na cama. O ar ficou repleto de corpos cor-de-rosa inquietos, uma confusão de asas enormes e bicos negros e curvados. O barulho da cachoeira invadiu o quarto.
Spider ficou encostado à parede. Havia flamingos entre ele e a porta, centenas deles: pássaros de 1,5 metro de altura que pareciam feitos somente de pernas e pescoço. Ficou de pé e deu vários passos através daquele campo minado de pássaros cor-de-rosa, raivosos, cada um deles o olhando com ódio através de seus olhos insanos. De longe, até pareciam bonitos. Um deles atacou a mão de Spider. Não chegou a perfurar a pele, mas doeu.
O quarto era grande, mas se enchia rapidamente de flamingos, que aterrissavam ali sem cuidado. E havia uma nuvem escura no céu azul, acima da cachoeira, que parecia ser outro grupo de flamingos a caminho.
As aves o bicavam, usavam as garras e batiam as asas perto dele. Spider sabia que isso não era exatamente o problema. O problema seria ser sufocado por um cobertor macio e cor-de-rosa de penas, com bicos como acessório. Seria uma maneira extremamente indigna de morrer, esmagado por pássaros — e nem mesmo eram pássaros inteligentes.
“Pense”, disse a si mesmo. “São flamingos. Pássaros estúpidos. Você é uma aranha.”
“E daí?”, pensou em resposta. “Como se você não soubesse disso.”
Os flamingos, no chão, o cercavam. Os que estavam no ar vinham em sua direção. Cobriu a cabeça com a jaqueta, e os flamingos que voavam começaram a atacá-lo. Era o mesmo que ter alguém lançando galinhas contra você. Ele titubeou e abaixou-se. “Ora, arrume um jeito de enganá-los, seu idiota.”
Spider ficou de pé e com dificuldade atravessou aquele oceano de asas e bicos até chegar à janela, que agora era uma abertura de vidro quebrado, pontiagudo.
— Pássaros imbecis — disse, vitorioso. Subiu no parapeito da janela.
Os flamingos não são conhecidos por sua inteligência nem por sua capacidade de solucionar problemas. Se confrontado com um arame e uma garrafa com algo comestível dentro, um corvo pode tentar transformar o arame numa ferramenta para puxar o que está dentro da garrafa. Um flamingo, por outro lado, tentará comer o arame se ele se parecer com um camarão, ou mesmo se não se parecer, porque nunca se sabe se é um tipo de bicho diferente. Portanto, se havia algo levemente suspeito ou absurdo quanto ao homem que estava de pé no parapeito da janela, insultando-os, os flamingos não perceberam. Ficaram olhando para ele com seus olhos vermelhos enlouquecidos, como coelhinhos assassinos, e voaram em sua direção.
O homem pulou da janela na direção da cachoeira e centenas de flamingos lançaram-se contra ele, no ar — muitos caindo no chão como pedras, já que os flamingos precisam correr um pouco antes de conseguir impulso para voar.
Logo o quarto estava repleto apenas de flamingos mortos ou feridos: os que quebraram as janelas, os que se chocaram contra as paredes, os que foram esmagados por outros flamingos. Os sobreviventes viram a porta do quarto abrir-se, aparentemente sozinha, e fechar-se de novo. Mas, como eram flamingos, não prestaram atenção nisso.
Spider estava no corredor de Fat Charlie, tentando recuperar o fôlego. Concentrou-se em permitir que o quarto deixasse de existir, algo que odiava fazer, em grande parte porque gostava muito de seu aparelho de som, mas também porque era ali que ele mantinha suas coisas.
Só que ele sempre conseguia mais coisas.
No caso de Spider, tudo o que precisava fazer era pedir.
A mãe de Rosie não era uma mulher dada a demonstrações de escárnio perante a má sorte dos outros. Quando a filha começou a chorar, sentada no sofá Chippendale, ela esforçou-se para não celebrar, cantar e fazer uma dancinha da vitória, sacolejando pela sala. Um observador cuidadoso no entanto perceberia o brilho de triunfo em seus olhos.
Ofereceu a Rosie um copo grande de água vitaminada e um cubo de gelo, e ouviu a litania chorosa da filha, que falava de sua mágoa e decepção. Quando terminou, o brilho de triunfo dera lugar a um olhar confuso. Ela sentia que sua cabeça estava a mil.
— Então — Fat Charlie não é realmente Fat Charlie? — perguntou.
— Não. Quer dizer, sim. Fat Charlie /Fat Charlie, mas na última semana eu andei saindo com o irmão dele.
— Eles são gêmeos?
— Não. Eu nem acho que são parecidos. Não sei. Estou tão confusa.
— Com qual dos dois você terminou?
Rosie assoou o nariz.
— Eu terminei com o Spider. O irmão de Fat Charlie.
— Mas você não estava noiva dele.
— Não, mas achava que sim. Achava que ele era Fat Charlie.
— Então você também terminou com Fat Charlie?
— Mais ou menos. Ainda não falei com ele sobre isso.
— Ele— sabia disso, dessa coisa do irmão? Foi algum tipo de conspiração pervertida o que fizeram com a minha pobre menininha?
— Acho que não. Mas não importa. Não posso me casar com ele.
— Não — concordou a mãe. — Sem dúvida não pode. De jeito nenhum.
Em sua mente, a mãe de Rosie fazia uma dancinha da vitória e lançava fogos de artifício.
— Arranjaremos um bom marido para você, não se preocupe. Aquele Fat Charlie— Eu sabia que havia algo ruim nele. Soube desde o momento em que o vi. Comeu a minha maçã de cera. Sabia que ele tinha problemas. Onde ele está agora?
— Não tenho certeza. Spider disse que talvez tenha sido levado pela polícia.
— Rá! — exultou a mãe, que elevou os fogos de artifício de sua mente ao nível da comemoração de Ano-Novo na Disneylândia e, de quebra, sacrificou uns 12 touros em celebração. Mas tudo o que disse em voz alta foi o seguinte:
— Talvez ele esteja agora na prisão. É o melhor lugar para ele. Eu sempre dizia que esse rapaz terminaria lá.
Rosie começou a chorar, até mais do que antes. Puxou outro lenço de papel da caixa e assoou o nariz com um barulho muito alto. Engoliu o choro, numa demonstração de bravura. Então chorou mais um pouco. A mãe lhe dava tapinhas consoladores na mão, do jeito mais consolador que conseguia. E disse:
— Mas é claro que você não pode se casar com ele. Você não pode se casar com um condenado à prisão. Por outro lado, se ele estiver preso, você pode facilmente terminar o noivado. — A sombra de um sorriso ameaçava aparecer no canto dos lábios enquanto ela continuava: — Eu posso ligar para ele se você quiser. Ou ir até lá em dia de visita e dizer que ele não presta e que você não quer vê-lo nunca mais. Podemos conseguir uma medida cautelar também.
— N-não— Não é por isso que eu não posso me casar com ele.
— Não? — perguntou a mãe, erguendo uma sobrancelha delineada perfeitamente com lápis.
— Não— Eu não posso me casar com Fat Charlie porque não estou apaixonada por ele.
— Claro que não. Eu sempre soube disso. Foi só uma paixãozinha boba, mas agora você está vendo a verdadeira...
— Estou apaixonada pelo Spider. O irmão dele — continuou Rosie, como se a mãe não estivesse falando. A expressão que tomou conta do rosto da mãe de Rosie parecia a de alguém num piquenique que vê um enxame de abelhas se aproximar. — Tudo bem. Eu também não vou me casar com ele. Já falei pra ele que não quero vê-lo mais.
A mãe de Rosie contraiu os lábios e disse:
— Bom— Não vou fingir que entendo o que está acontecendo, mas também não vou dizer que seja uma notícia ruim. — Aí a mãe de Rosie mudou de marcha em sua mente, e as roldanas de seus pensamentos se encaixaram de maneiras novas, diferentes: lingüetas se encaixavam e molas se retorciam. — Sabe qual seria a melhor coisa para você fazer num momento desses? — perguntou. — Já pensou em tirar umas férias? Ficarei feliz em pagar por tudo, já que estou economizando tanto dinheiro para o seu casamento— — Talvez não fosse a coisa correta a dizer. Rosie começou a soluçar novamente em seus lenços de papel. A mãe continuou: — De qualquer forma, será o meu presente. Sei que você não usou o período de férias do trabalho. E disse que agora as coisas estão tranqüilas por lá. Em épocas como essa, tudo o que uma mulher precisa é esquecer de tudo e relaxar.
Rosie ficou pensando se havia feito uma imagem errada da mãe durante todos esses anos. Fungou, engoliu o choro e respondeu:
— Isso parece legal.
— Então estamos combinadas. Eu vou com você, para cuidar da minha filhinha.
Em sua cabeça, por baixo do grande final da apresentação de fogos de artifício, ela acrescentou: “E para garantir que minha filhinha só se envolva com o tipo certo de homem”.
— Para onde a gente vai? — perguntou Rosie.
— A gente vai fazer um cruzeiro.
Fat Charlie não foi algemado. O que era uma coisa boa. Todo o resto foi ruim, mas ao menos não foi algemado. A vida se tornara um borrão confuso, cheia de detalhes: o sargento que cocava o nariz e preenchia seu cadastro — “A cela seis está vazia” — atrás de uma porta verde e o cheiro das celas, um fedor horrível que nunca sentira antes, mas que imediata e horrivelmente parecia familiar; uma névoa persistente de vômito, desinfetante, fumaça, cobertores sujos, privadas sem dar descarga, desespero. Era o cheiro do fundo do poço, o qual Fat Charlie parecia ter atingido.
— Se quiser dar descarga no vaso — começou o policial que o acompanhava pelo corredor — pressione o botão na sua cela. Um de nós uma hora vai aparecer para puxar a cordinha pra você. Isso impede que você dê descarga nas provas.
— Provas do quê?
— Deixa disso, amigo.
Fat Charlie suspirou. Ele dava descarga em seus próprios excrementos desde que tinha idade suficiente para ter certo orgulho de poder fazer isso. A perda dessa habilidade, mais que a perda de sua liberdade, era sinal de que tudo mudara.
— É a sua primeira vez então — disse o policial.
— Desculpe.
— Drogas?
— Não, obrigado.
— Prenderam você por causa de drogas?
— Não sei por que me prenderam. Eu sou inocente.
— Crime de colarinho branco, hein? — perguntou o policial, balançando a cabeça. — Olha, vou te contar uma coisa que os caras de colarinho azul já nascem sabendo. Se você facilitar as coisas pra gente, a gente facilita as coisas pra você. Vocês de colarinho branco. Vocês sempre estão tentando defender os próprios direitos. Só dificultam as coisas pro seu lado.
O policial abriu a porta da cela seis.
— Lar, doce lar — disse.
O fedor era pior dentro da cela, cujas paredes tinham sido pintadas de um jeito rajado para resistir às pichações. Continha apenas uma cama tipo prateleira, perto do chão, e um vaso sanitário sem tampa, no canto.
Fat Charlie colocou o cobertor que lhe deram sobre a cama.
— Certo — começou o policial. — Bom... fique à vontade. Se ficar entediado, não pense em entupir a privada com o cobertor, por favor.
— Por que eu faria uma coisa dessas?
— Eu também me pergunto isso. Por que será? Talvez pra quebrar a monotonia. Sei lá. Como eu sou o tipo de pessoa que obedece a lei e com uma aposentaria de policial à minha espera, na verdade nunca tive que passar muito tempo nessas celas.
— Sabe, o que quer que seja, eu não fiz o que eles dizem que eu fiz.
— Que bom.
— Desculpe, mas será que eu poderia ter alguma coisa pra ler?
— Isso aqui parece uma biblioteca?
— Não.
— Quando eu era um policial mais novo, um camarada me pediu um livro. Aí arranjei pra ele o livro que eu tinha acabado de ler. Um livro de J. T. Edson, acho, ou talvez de Louis L’Amour. Aí o que ele fez? Entupiu a privada com o livro. Te digo que não vou fazer isso de novo.
O policial saiu e trancou a porta. Fat Charlie do lado de dentro, o policial do lado de fora.
Seu paisagista esperava por ele do lado de fora do aeroporto. Grahame Coats sentou-se no banco de trás de uma Mercedes preta e disse:
— Vamos para casa, por favor.
Da estrada que saía de Williamstown, a estrada que ia para sua residência no topo de uma colina, observou a ilha com um sorriso satisfeito, como se fosse dono daquilo.
Ocorreu-lhe que, antes de sair da Inglaterra, deixara uma mulher que considerava morta. Imaginou se não estaria viva, mas duvidou muito da possibilidade. Não se importava de ter matado. Na verdade, sentiu-se extremamente satisfeito, como se aquilo fosse algo que ele tivesse que fazer para se sentir completo. Ficou pensando se teria a oportunidade de matar novamente.
Ficou pensando se demoraria muito.
A coisa mais esquisita na opinião de Grahame Coats, que não era dado a exames de consciência, era o quanto se sentia normal, o quanto se sentia bem.
O comandante dissera a eles para apertar os cintos de segurança e que em breve estariam pousando em Saint Andrews. Saint Andrews era uma pequena ilha no Caribe que, ao declarar independência, em 1962, resolveu demonstrar que estava livre do regime colonial de várias maneiras, inclusive a criação de seu próprio sistema judiciário e uma peculiar ausência de tratados de extradição com o restante do mundo.
O avião aterrissou. Grahame Coats desembarcou e caminhou pela pista de pouso asfaltada, puxando sua malinha de rodas. Apresentou o devido passaporte — o de Basil Finnegan —, que foi carimbado. Pegou o resto da bagagem na esteira, saiu da alfândega vazia para o pequeno aeroporto e de lá para o sol glorioso que fazia. Usava short, camiseta e sandálias. Parecia um inglês em férias.