Charlie acordou com alguém batendo à porta. Desorientado, olhou em volta: estava num quarto de hotel. Diversos acontecimentos improváveis juntavam-se em sua mente como mariposas ao redor de uma lâmpada. Enquanto tentava pôr alguma ordem neles, seus pés o levantaram e o levaram até a porta do quarto de hotel. Ficou olhando e piscando para o diagrama grudado na porta, que informava aonde o hóspede deveria ir em caso de incêndio. Tentou lembrar-se dos acontecimentos da noite anterior. Então destrancou a porta e a abriu. Daisy olhou para ele e disse:
— Você dormiu com esse chapéu?
Charlie pôs a mão para cima e apalpou a cabeça. Sem dúvida, havia um chapéu nela.
— Sim. Acho que sim.
— Nossa. Bom, pelo menos você tirou os sapatos. Sabia que foi muito divertido ontem à noite, e você perdeu?
— É?
— Escove os dentes — sugeriu ela, prestativa. — E troque de camisa. É, você perdeu. Enquanto estava.. — Ela hesitou. Parecia muito improvável, se você pensasse a respeito, que uma pessoa desaparecesse durante uma sessão mediúnica. Essas coisas não acontecem. Não no mundo real. — Enquanto você não estava lá — continuou —, consegui fazer o chefe da polícia ir até a casa de Grahame Coats. As turistas estavam lá.
— Turistas?
— Foi o que ele falou para a gente no jantar. Algo a respeito de a gente ter enviado duas pessoas, as duas que estavam na casa. Eram a sua noiva e a mãe dela. Ele trancou as duas no porão.
— E elas estão bem?
— Estão no hospital.
— Ah.
— A mãe está bem mal. Mas acho que a sua noiva vai ficar bem.
— Será que pode parar de chamá-la de minha noiva? Ela não é mais minha noiva. Ela terminou o noivado.
— Sim. Mas você não, certo?
— Ela não me ama. Bom, agora vou escovar os dentes e trocar de camisa. Preciso de um pouco de privacidade.
— Aproveite e tome um banho. Esse chapéu tem cheiro de charuto.
— E herança de família — respondeu ele.
Entrou no banheiro e trancou a porta.
O hospital ficava a dez minutos de caminhada do hotel. Spider estava sentado na sala de espera, segurando uma edição da revista Entertainment Weekly cheia de orelhas como se a lesse de fato.
Charlie tocou-lhe no ombro, e Spider teve um sobressalto. Olhou para cima, ansioso, mas, ao ver o irmão, relaxou. Mas não muito.
— Me disseram para esperar aqui. Porque eu não sou membro da família e tal.
Charlie ficou espantado.
— Ué, por que você simplesmente não disse a eles que era um parente? Ou um médico?
Spider pareceu incomodado.
— Bom, é fácil fazer essas coisas quando você não se importa. Se eu não me importo em poder entrar lá ou não, é fácil entrar. Mas agora eu me importo, e odiaria atrapalhar ou fazer algo errado... Quer dizer... E se eu tentasse e eles dissessem “não”, e aí... Por que você está sorrindo?
— Nada de mais. É que isso me soa meio familiar. Vamos. Vamos entrar e falar com a Rosie. Sabe — continuou ele, dirigindo-se a Daisy —, existem dois meios de uma pessoa entrar num hospital sem ser identificada. Ou você tenta parecer que é do lugar... Olha só, Spider. Olha ali um jaleco, pendurado na porta. Do seu tamanho. Como eu ia dizendo— Ou você tenta parecer tão deslocado que ninguém vai reclamar da sua presença. Sempre vão deixar o trabalho de averiguar isso para outra pessoa.
E aí Charlie começou a fazer um “hum-hum” ritmado.
— Que música é essa? — perguntou Daisy.
— O nome é “Yellow Bird” — respondeu Spider.
Charlie empurrou o chapéu para trás. Eles entraram no quarto de Rosie.
Ela estava sentada na cama, lendo uma revista, e parecia preocupada. Quando viu os três entrarem, pareceu ainda mais preocupada. Seus olhos pulavam de Spider para Charlie, e de volta para Spider.
— Vocês estão bem longe de casa, não?
Foi tudo o que ela disse.
— Todos nós — respondeu Charlie. — Bom, você já conhece o Spider. Essa é a Daisy. Ela é da polícia.
— Não sei se ainda sou — corrigiu Daisy. — Provavelmente me meti numa grande enrascada.
— Era você quem estava lá ontem à noite? A policial que fez a polícia da ilha ir até a casa? — perguntou Rosie. Depois de uma pausa, continuou: — Já teve notícias de Grahame Coats?
— Ele está na UTI, assim como a sua mãe.
— Bom, se ela acordar antes dele, espero que o mate — replicou Rosie. — Eles não falam nada sobre a condição da minha mãe. Só dizem que é muito grave e que vão falar comigo somente quando houver algo a dizer.
Olhou para Charlie com olhos tranqüilos e disse:
— Ela não é tão má quanto você acha que é, sabe. Não quando você passa um tempo com ela para conhecê-la melhor. A gente teve bastante tempo para conversar, trancadas no escuro. Ela é legal.
Assoou o nariz. Continuou:
— Eles acham que ela não vai sobreviver. Não me disseram isso diretamente, mas meio que disseram isso sem dizer, sei lá. Engraçado. Sempre achei que ela sobreviveria a qualquer coisa.
— Eu também. Sempre achei que, se houvesse uma guerra nuclear, ainda restariam as baratas e a sua mãe — concordou Charlie.
Daisy pisou no pé de Charlie, repreendendo-o, e perguntou:
— Já sabem o que houve com a sua mãe?
— Eu falei pra eles. Havia um animal naquela casa. Talvez fosse o Grahame Coats. Quer dizer, era ele, mas também era outra coisa. Ela conseguiu distrair a fera, e aí foi atacada...
Ela tinha explicado os acontecimentos para a polícia naquela manhã da melhor maneira que podia. Decidiu que não falaria sobre a mulher fantasma. Às vezes nossa mente cede à pressão da situação. Concluiu que era melhor que as pessoas não soubessem que isso acontecera com ela.
Então Rosie caiu no choro. Olhava para Spider como se acabasse de se lembrar de quem ele era.
— Eu ainda te odeio, sabia?
Spider não disse nada, mas uma expressão de dor surgiu em seu rosto. Aí ele não parecia mais um médico. Agora parecia alguém que pegou um jaleco branco detrás de uma porta e estava preocupado se alguém descobriria.
Ela falou num tom sonhador:
— Só que.. Só que, quando eu estava lá, no escuro, achei que você estivesse me ajudando. Que você ajudava a manter o animal longe de mim. O que aconteceu com o seu rosto? Está todo arranhado.
— Ah, um bicho me arranhou.
— Sabe, agora que eu estou vendo vocês dois juntos, acho que não se parecem nem um pouco.
— É que eu sou mais bonito — interrompeu Charlie, e o pé de Daisy pressionou os dedos do pé dele mais uma vez. Daisy disse, baixinho:
— Deus do céu! — Depois, um pouco mais alto: — Charlie? Tem uma coisa que eu quero falar com você lá fora. Agora.
Saíram para o corredor do hospital, deixando Spider no quarto.
— Que foi? — perguntou Charlie.
— Que foi o quê?
— O que você quer falar comigo?
— Nada.
— Então por que saímos do quarto? Você ouviu o que ela disse. Ela o odeia. A gente não devia ter deixado os dois juntos. Ela deve estar matando o Spider neste momento.
Daisy olhou para ele com a mesma expressão com a qual Jesus Cristo talvez teria olhado para alguém que tivesse acabado de explicar que não sabia se era alérgico a pão e peixe, então será que Ele não poderia fazer uma saladinha básica de frango? Era uma expressão de pena, e também de uma compaixão quase infinita.
Pôs o dedo em riste perto dos lábios e o puxou de volta para a porta. Ele olhou para dentro do quarto do hospital: não parecia que Rosie estivesse matando Spider. Muito pelo contrário, aliás.
— Ah... — disse Charlie.
Eles estavam se beijando. Dito dessa maneira, ninguém poderia culpar uma pessoa que observasse a cena se pensasse que era um beijo normal, com contato dos lábios, da pele, talvez um pouco de língua. Talvez nem todos perceberiam como Spider sorria, como seus olhos brilhavam. Quando o beijo acabou, nem todos notariam o modo como estava ali, de pé, como se fosse um homem que acabara de descobrir a arte de ficar em pé e que também descobrira como fazer isso melhor do que todas as outras pessoas.
Charlie voltou-se para o corredor e viu Daisy conversando com diversos médicos e o policial que tinham conhecido na noite anterior.
— Bom, a gente sempre desconfiou que ele fosse um mau elemento — dizia o policial a Daisy. — Porque, francamente, esse tipo de comportamento só pode vir de estrangeiros. As pessoas daqui nunca fariam essas coisas.
— Sim... claro.. — respondeu Daisy.
— Sou muito, muito grato a vocês — agradeceu o chefe da polícia, dando tapinhas amigáveis no ombro de Daisy de um jeito que a fez querer morrer. — Esta mocinha aqui salvou a vida daquela mulher — continuou o policial para Charlie, aproveitando para dar também um tapinha condescendente no ombro dele antes de sair com os médicos pelo corredor.
— E então? O que está acontecendo?
— Bom, Grahame Coats morreu — respondeu ela. — Quer dizer, mais ou menos. Também não há muita esperança para a mãe de Rosie.
— Entendo.
Pensou sobre o assunto. Quando terminou de pensar, chegou a uma decisão.
— Você me dá um segundinho para falar com o meu irmão? Acho que eu e ele precisamos conversar.
— Eu preciso voltar ao hotel, de qualquer maneira. Ver se chegou algum e-mail pra mim. Talvez precise fazer ligações e me desculpar eternamente ao telefone. Descobrir se ainda tenho uma carreira pela frente.
— Mas você é uma heroína, não?
— Não acho que sou paga para cometer atos de heroísmo — observou ela, um tanto desanimada. — Me encontre no hotel quando terminar.
Spider e Charlie caminharam pela rua principal de Williamstown, à luz do sol da manhã.
— Sabe, esse chapéu é bem legal — disse Spider.
— Você acha?
— Sim. Posso experimentar?
Charlie deu a Spider o panamá verde. Spider colocou o chapéu e olhou seu reflexo na vitrine de uma loja. Fez uma careta e deu o chapéu de volta a Charlie. E disse, desapontado:
— Bom., pelo menos fica legal em você.
Charlie colocou o chapéu de volta. Alguns chapéus só podem ser usados se você quer passar um ar de desenvoltura. Colocar o chapéu num determinado ângulo e andar com passos leves, como se estivesse prestes a sair dançando. São chapéus que exigem muito de quem os usa. E esse chapéu era um deles, e Charlie aceitava o desafio.
— A mãe de Rosie está morrendo — contou.
— É.
— Eu nunca, nunca gostei dela.
— Eu não a conhecia tão bem quanto você. Mas, com o tempo, tenho certeza de que eu também não gostaria dela nem um pouco.
— Precisamos salvar a vida dela, não?
Charlie disse isso sem entusiasmo, como se dissesse que precisa marcar consulta com o dentista.
— Não sei se podemos fazer esse tipo de coisa.
— O papai fez isso pela nossa mãe. Fez ela melhorar por um tempo.
— Mas isso foi ele. Não sei como a gente faria isso.
— O lugar no fim do mundo. O das cavernas.
— Começo do mundo, não fim. O que é que tem?
— Não podemos simplesmente ir pra lá? Sem aquela abobrinha toda de velas e ervas?
Spider ficou em silêncio. E então assentiu com a cabeça.
— Acho que sim.
Viraram-se juntos, para uma direção que nem sempre estivera ali, e caminharam para longe da rua principal de Williamstown.
Agora o sol se erguia, e Charlie e Spider caminhavam por uma praia cheia de crânios. Não eram exatamente crânios humanos. Cobriam a areia como se fossem pedrinhas amarelas. Charlie evitava pisar neles o máximo que podia, enquanto Spider andava por cima deles, esmagando-os. Chegando ao fim da praia, pegaram uma saída à esquerda que dava para tudo, e as montanhas do começo do mundo erguiam-se à frente deles, e o penhasco lá embaixo.
Charlie lembrou-se da última vez que estivera ali. Parecia que tinha sido mil anos antes.
— Onde estão todos? — perguntou bem alto, e sua voz ecoou contra as rochas. — Alguém aí?
E lá estavam eles, observando-o. Todos eles. Pareciam mais altivos agora. Menos humanos, mais animalescos, mais selvagens. Deu-se conta de que os vira como pessoas da última vez porque esperava encontrar pessoas. Mas não eram pessoas. Dispostos sobre as pedras, acima deles, estavam o Leão e o Elefante, o Crocodilo e a Serpente, o Coelho e o Escorpião, e todos os outros, centenas deles. Eles os observavam com olhos sérios: animais, sem dúvida. Animais que nenhuma pessoa viva seria capaz de identificar. Todos os animais que já apareceram nas histórias. Todos os animais com que as pessoas já sonharam, adoraram religiosamente ou foram capazes de estabelecer relações.
Charlie viu todos eles.
“Uma coisa é cantar para salvar a própria pele, num salão cheio de gente jantando, de impulso, com alguém apertando uma arma contra a barriga da moça que você—, da moça que você— Ah. Bom”, pensou Charlie, “vou pensar nisso depois.”
Naquele momento, a única coisa que queria era pôr a cabeça num saco de papel ou então desaparecer.
— Deve haver centenas deles — comentou Spider, admirado.
Houve um movimento rápido no ar, sobre uma rocha perto deles, o qual se transformou na Mulher Pássaro. Ela cruzou os braços e ficou olhando para eles.
— O que quer que você pense em fazer, é melhor fazer logo. Eles não vão esperar pra sempre — observou Spider.
A boca de Charlie estava seca.
— Certo.
— Então— Ahm.... O que devemos fazer agora?
— Vamos cantar para eles.
— Quê?
— E assim que resolvemos as coisas. Eu descobri. Nós cantamos, eu e você.
— Não entendo. Cantar o quê?
— A canção. Você canta essa canção e resolve tudo — a voz de Charlie soava desesperada. — A canção.
Os olhos de Spider estavam vazios como poças com água da chuva. Charlie viu neles coisas que não vira antes: afeição, talvez. Confusão também. E, em grande parte, arrependimento.
— Eu não sei do que você está falando.
O Leão os observava do lado de uma pedra que saía do chão. O Macaco os observava de uma árvore. E o Tigre..
Charlie viu o Tigre. Ele caminhava alegremente. Sua face estava inchada, ferida, mas havia um brilho em seus olhos. Parecia que ficaria mais do que feliz em empatar o placar com Charlie e Spider.
Charlie abriu a boca. Saiu um som baixinho, um coaxado, como se ele tivesse engolido uma rã nervosa.
— Não adianta. Foi uma idéia idiota, não foi? — sussurrou para Spider.
— É.
— Você acha que dá para a gente simplesmente ir embora?
O olhar nervoso de Charlie varreu a encosta da montanha e as cavernas, vendo cada uma das centenas de criaturas, totens que existiam antes do começo de tudo. Havia uma figura que não vira da última vez, e que olhou para eles: um homem pequeno, com luvas verde-limão e um bigodinho fino, mas sem chapéu panamá para cobrir seu cabelo já ralo.
Quando Fat Charlie olhou para ele, o velho piscou.
Não era muito, mas foi o suficiente.
Charlie encheu os pulmões e começou a cantar. “Meu nome é Charlie”, cantou. “Sou filho de Anansi. Ouçam a minha canção. Ouçam a minha vida.”
Cantou para eles a música sobre o menino que era metade deus e metade gente e foi dividido em dois por uma velha ressentida. Cantou sobre o pai, cantou sobre a mãe.
Cantou sobre nomes, palavras, as estruturas sob a realidade, os mundos que faziam os mundos, as verdades por trás de como as coisas são. Cantou a respeito do destino adequado e de fins justos para aqueles que o machucassem ou machucassem sua família.
Cantou o mundo.
Era uma boa música, e era a sua música. Algumas vezes havia palavras, outras não se ouvia palavra alguma.
Enquanto cantava, todas as criaturas que o ouviam começaram a bater palmas, a bater os pés e a cantarolar junto. Charlie sentia-se como um fio condutor para uma fantástica canção que englobava a todos. Cantou sobre os pássaros, sobre a magia que era olhar para cima e vê-los voando, e o brilho do sol sobre a pena de uma asa à luz da manhã.
Os totens agora dançavam, cada um fazendo a dança de sua espécie. A Mulher Pássaro fazia os passos da dança arrastada dos pássaros, exibindo as penas da cauda, jogando a cabeça para trás.
Havia uma única criatura perto da montanha que não dançava.
O Tigre agitava a cauda. Não batia palmas, não cantava nem dançava. Seu rosto estava roxo, ferido, e seu corpo, coberto de picadas e pontos inchados. Ele desceu com passos de veludo pelas pedras, um passo de cada vez, até ficar perto de Charlie.
— As músicas não são suas — grunhiu.
Charlie olhou para ele e começou a cantar sobre o Tigre, sobre Grahame Coats, sobre aqueles que faziam dos inocentes suas vítimas. Virou-se e viu Spider olhando para ele com admiração. O Tigre rugiu de raiva. Charlie pegou o rugido e o cobriu com sua canção. Então ele mesmo rugiu, exatamente como o Tigre. Bom, o rugido começou exatamente como o rugido do Tigre, mas então Charlie o modificou, de modo a fazer dele um rugido abobalhado. Todas as criaturas que observavam sobre as pedras começaram a rir. Era impossível não rir. Charlie fez o rugido abobalhado de novo. Como toda imitação, como toda caricatura perfeita, isso teve o efeito de tornar aquilo que imitava intrinsecamente ridículo. Ninguém jamais ouviria o Tigre rugir de novo sem ouvir o rugido do Charlie junto. “Que rugido mais abobalhado!”, diriam.
O Tigre deu as costas para Charlie. Andou com passos rápidos pela multidão, rugindo enquanto corria, o que apenas provocou risos ainda mais altos. O Tigre voltou para sua caverna, aborrecido. Spider fez um gesto com as mãos, um movimento rápido. Ouviu-se um som de pedras rolando, e a entrada da caverna do Tigre ficou coberta com as pedras que caíram. Spider pareceu satisfeito. Charlie continuou a cantar.
Cantou sobre Rosie Noah e a também a canção da mãe de Rosie: cantou desejando uma longa vida para a Sra. Noah e também toda a felicidade que ela merecia.
Cantou sobre sua vida, sobre a vida de todos eles. Em sua canção, viu o modo de vida que levavam como se fosse uma teia em que caíra uma mosca. Com sua canção, envolveu a mosca, impedindo-a de fugir, enquanto consertava a teia com novos fios. Agora a canção chegava, em seu ritmo natural, ao fim. Charlie deu-se conta, muito surpreso, de que gostou de cantar para outras pessoas. Naquele momento soube que aquilo era o que ele faria pelo resto da vida. Ele cantaria. Não canções grandes e mágicas, que criavam mundos ou recriavam a existência, mas canções pequenas, que deixariam as pessoas felizes por algum tempo, que as fariam dançar e se esquecer, mesmo que por pouco tempo, de seus problemas. Ele sabia que sempre teria medo antes de cantar. O medo de subir num palco, que nunca iria embora. Mas também compreendeu que seria como pular dentro de uma piscina: a água seria fria e desagradável apenas por alguns segundos, mas o desconforto passaria e ele se sentiria bem...
Nunca tão bem assim. Nunca mais. Mas se sentiria bem, sem dúvida.
Então ele terminou. Charlie abaixou a cabeça. As criaturas sobre o penhasco deixaram as últimas notas morrerem no ar. Pararam de bater os pés, pararam de bater palmas, pararam de dançar. Charlie tirou o chapéu verde de seu pai e com ele abanou o rosto.
Spider sussurrou:
— Isso foi fantástico.
— Você poderia ter feito a mesma coisa — observou Charlie. — Acho que não. O que estava acontecendo, afinal? Senti como se você estivesse fazendo alguma coisa, mas não consegui descobrir o quê.
— Eu resolvi as coisas. Para a gente. Eu acho. Não tenho certeza— E não tinha mesmo. Agora que a música acabara, o conteúdo da letra se dissipava, como um sonho pela manhã.
Apontou para a boca da caverna que estava bloqueada pelas pedras.
— Foi você que fez aquilo?
— Sim — respondeu Spider. — Achei que era o mínimo que eu poderia fazer. Mas o Tigre alguma hora vai conseguir sair. Eu queria ter feito algo pior do que deixá-lo preso, pra falar a verdade.
— Não se preocupe. Eu fiz algo bem pior.
Observou enquanto os animais se dispersavam. O pai não estava lá, e isso não o surpreendeu.
— Vamos. Precisamos voltar.
Spider voltou ao hospital para ver Rosie no horário de visitas. Levava consigo uma caixa grande de bombons, a maior que conseguira comprar na lojinha de presentes do hospital.
— Pra você.
— Obrigada.
— Disseram que talvez a minha mãe sobreviva. Parece que ela abriu os olhos e pediu mingau. O médico disse que é um milagre.
— Sim. A sua mãe pedindo comida. Parece um milagre, sem dúvida.
Rosie deu um tapa no braço dele, aproveitando para deixar a mão ali mesmo.
— Sabe — começou após alguns instantes —, talvez você ache isso bobo. Mas quando eu estava lá, no escuro, com a minha mãe, achei que você estava me ajudando. Eu senti como se você estivesse afastando a fera. Que, se você não tivesse feito o que quer que fez, ela teria nos matado.
— E... talvez eu tenha ajudado.
— Sério?
— Eu não sei. Acho que sim. Eu também estava em apuros, e aí pensei em você.
— Situação muito complicada?
— Sim. Muito.
— Será que você pode me servir um copo d’água, por favor?
Ele serviu.
— Spider...O que você faz?
— O que eu faço?
— Pra ganhar a vida.
— Ah, o que eu estiver a fim de fazer.
— Acho que vou ficar aqui mais um tempo. As enfermeiras dizem que precisam muito de professores na ilha. Eu gostaria de fazer alguma diferença.
— Pode ser divertido.
— E o que você faria se eu ficasse?
— Ah... Bom, se você ficasse por aqui, eu certamente acharia alguma coisa para me manter ocupado.
Os dois entrelaçaram os dedos, deixando as mãos tão apertadas quanto um nó de marinheiro.
— Você acha que a gente vai dar certo?
— Acho que sim — respondeu Spider, sério. — E, se eu me encher de você, posso ir embora e arranjar outra coisa pra fazer. Então não se preocupe.
— Ah. Não estou preocupada.
E não estava. Por baixo da doçura em sua voz, havia uma dureza de aço. Dava pra ver de onde vinha a dureza de sua mãe.
Charlie encontrou Daisy na praia, numa cadeira de praia. Pensou que ela tivesse adormecido ao sol. Quando sua sombra a cobriu, ela disse:
— Oi, Charlie.
Não abriu os olhos.
— Como você sabia que era eu?
— O seu chapéu tem cheiro de charuto. Você vai se livrar dele rapidinho, né?
— Não. Eu já falei. E herança de família. Quero usá-lo até morrer, e depois deixar para os meus filhos. E então... Você ainda tem o seu emprego como policial?
— Mais ou menos. O meu chefe me falou que decidiram que eu estava sofrendo de esgotamento nervoso por causa do trabalho. Portanto estou de licença médica até me sentir bem para voltar.
— Ah;; E quando será isso?
— Não tenho certeza. Pode me passar o bronzeador?
Ele tinha uma caixinha no bolso. Tirou a caixinha e colocou sobre o braço da cadeira de praia.
— Num instante. Ahm... — Ele fez uma pausa. — Sabe, a gente já fez a parte super embaraçosa disso à queima-roupa. — Abriu a caixinha. — Mas esse é um presente meu para você. Bom, a Rosie me devolveu. A gente pode trocar por uma que você goste. Escolha uma diferente. Talvez nem sirva no seu dedo. Mas é seu. Se você o quiser. E... ahm.. se me quiser.
Ela pegou a caixinha e tirou de lá a aliança de noivado.
— Humpf. Tudo bem. Desde que você não esteja fazendo isso só pra ter o limão de volta.
O Tigre caminhava com seu andar predatório. A cauda agitava-se, irritada, de um lado para o outro enquanto andava para lá e para cá, perto da entrada da caverna. Seus olhos brilhavam como tochas de esmeralda na escuridão.
— O mundo todo, todas as coisas, tudo era meu. A lua, as estrelas, o sol, as histórias. Eu era dono de tudo isso.
— Creio ser de grande importância chamar à sua atenção que você já disse isso — observou uma vozinha no fundo da caverna.
O Tigre parou de andar. Virou-se e foi até o fundo da caverna, fluindo como se fosse um tapete de pêlos sobre molas hidráulicas. Caminhou até chegar perto da carcaça de um boi e, com voz calma, disse:
— Como é que é?
Ouviu-se um som de algo cavando dentro da carcaça. A ponta de um focinho surgiu das costelas.
— Na verdade — começou o ser —, eu estava concordando com você, por assim dizer. Era o que eu estava fazendo. — Pequenas mãos branquinhas puxaram uma faixa fina de carne seca dentre duas costelas, revelando um animal que tinha a cor de neve suja. Talvez fosse um suricato albino, ou algum tipo bastante peculiar de doninha, em sua pelagem de inverno. Tinha olhos de bichinho que comia carniça. — O mundo todo, todas as coisas, tudo era meu. A lua, as estrelas, o sol, as histórias. Eu era dono de tudo isso — continuou o bichinho. — E poderia ser meu de novo.
O Tigre ficou olhando para o pequeno animal. Então, sem aviso, uma de suas enormes patas desceu sobre ele, esmagando as costelas da carcaça, quebrando-a em pequenos fragmentos fétidos, prendendo o animalzinho ao chão. Ele se contorcia, mas não conseguia escapar.
— Você só está aqui — ameaçou o Tigre, seu enorme focinho bem perto da pequenina cabeça do animal branco — porque eu permito. Você entendeu? Porque, da próxima vez que você disser algo que me irrite, eu arranco a sua cabeça.
— Mmmmmf— disse o bicho que se parecia com uma doninha.
— Você não quer que eu morda a sua cabeça e a arranque, certo?
— Nggk— negou o bichinho. Seus olhos eram de um azul pálido, duas lascas de gelo, e brilhavam enquanto se contorcia, incomodado com o peso da pata gigante.
— Então prometa que vai se comportar e ficar quieto — grunhiu o Tigre. Ergueu um pouco a pata para permitir que o animal falasse.
— Sem dúvida — concordou a Coisinha branquela, de um jeito muitíssimo educado. Com um movimento ágil, contorceu-se e enfiou os dentinhos afiados na pata do Tigre. O Tigre urrou de dor e fez um movimento rápido com a pata, o que fez o animalzinho voar pelos ares. Ele bateu no teto de pedra, quicou sobre uma pedra que saía da parede e, de lá, saiu como uma flecha, um vulto branco, encardido, para a parte mais funda da caverna, onde o teto era muito baixo e próximo ao chão, e onde havia muitos lugares para um pequeno animal esconder-se, lugares que um animal maior não conseguiria alcançar.
O Tigre caminhou para o fundo da caverna o mais fundo que pôde.
— Você acha que eu não posso esperar? Você terá que sair daí mais cedo ou mais tarde. E eu não vou a lugar nenhum.
O Tigre deitou-se. Fechou os olhos e logo começou a fazer ruídos de quem dormia, bastante convincentes.
Depois de mais ou menos meia hora de ronco do Tigre, a pálida criatura saiu com cuidado das pedras e foi sorrateiramente de sombra a sombra, tentando alcançar um grande osso que ainda tinha bastante carne, se você não se importasse com a carne rançosa — e o bichinho não se importava. Mesmo assim, para chegar ao osso, teria que passar pela enorme fera. O bicho se escondeu nas sombras. Então se aventurou a chegar perto, com suas patinhas silenciosas.
Quando passou pelo Tigre que dormia, uma pata dianteira ergueu-se e as garras fincaram-se sobre a cauda da criatura, prendendo-a ao chão. A outra segurava o bichinho pelo pescoço. O enorme felino abriu os olhos.
— Pelo jeito, parece que temos que suportar um ao outro. Então tudo o que eu peço é que você se esforce um pouquinho. Nós dois podemos nos esforçar. Duvido que possamos ser amigos, mas talvez sejamos capazes de tolerar um ao outro.
— Compreendo o seu ponto de vista — disse o furãozinho. — Como dizem, a necessidade é a mãe da invenção.
— Isso aí é um exemplo do que eu estou falando — respondeu o Tigre. — Você precisa aprender a ficar com a boca fechada.
— Toda rosa tem seu espinho — continuou o bichinho.
— Agora você está me irritando de novo. Estou tentando explicar. Não me irrite. Assim eu não arranco a sua cabeça.
— Você vive usando essa expressão, “arrancar a cabeça”. Mas, quando diz que vai arrancar a minha cabeça, suponho que na verdade é algum tipo de metáfora. Que você está dizendo que irá, digamos, ralhar comigo?
— Significa arrancar a sua cabeça. Esmagá-la. E comê-la. E depois engolir — respondeu o Tigre. — Nenhum de nós pode sair até que o filho de Anansi esqueça que estamos aqui. E, do jeito que aquele desgraçado planejou tudo, mesmo se eu matar você pela manhã, lá pela tarde você estará reencarnado de novo nessa caverna maldita. Então não me irrite.
— Bom, como dizem, nada como um dia..
— Se você disser “após o outro”, eu ficarei irritado e haverá sérias conseqüências. Não. Diga. Nada. Irritante. Entendeu bem?
Houve um breve silêncio naquela caverna, no fim do mundo. O silêncio foi quebrado por uma vozinha de doninha:
— Absolutotalmente.
Então a voz começou a dizer “aaaau”, mas de repente foi silenciada de vez.
E já não havia mais nada naquele lugar além do som da mastigação.
Algo que nunca nos dizem sobre caixões nos livros, porque sem dúvida não é uma vantagem para as pessoas que os compram, é que são muito confortáveis.
O sr. Nancy estava muito satisfeito com o seu. Agora que toda a agitação acabara, voltou ao seu caixão e tirou um cochilo bem gostoso. De vez em quando, acordava e se lembrava de onde estava. Então virava para o lado e voltava a dormir.
A cova, como já foi dito, é um ótimo lugar. Além disso, proporciona privacidade. E portanto um lugar excelente para relaxar. Sete palmos abaixo da terra, sem dúvida o melhor lugar que há. “Depois de uns 20 anos, mais ou menos”, pensou, “pensaria em sair de lá.”
Abriu um olho quando o funeral começou.
Conseguia ouvi-los lá em cima: Callyanne Higgler e a Sra. Bustamonte, e a outra, a magrinha, sem mencionar a pequena horda de netos, bisnetos e tataranetos, todos cantando, gemendo e chorando baldes por causa da falecida Sra. Dunwiddy.
O sr. Nancy pensou em erguer uma mão através da grama e agarrar o tornozelo de Callyanne Higgler. Era algo que ele sempre quis fazer desde que viu o filme Carrie num drive-in, 30 anos antes. Mas, agora que a oportunidade estava à sua frente, resistiu à tentação. Ela sem dúvida iria gritar, teria um ataque do coração e morreria. Aí aquele Jardim do Repouso ficaria ainda mais cheio do que já estava.
E dava muito trabalho, de qualquer maneira. Havia ótimos sonhos que poderia ter naquele mundo sob o chão. “Vinte anos”, pensou. “Talvez uns 25. Quando chegar essa época”, pensou, “talvez até tenha netos. É sempre interessante ver como os netos saíram.”
Podia ouvir Callyanne Higgler gemendo e chorando acima dele. Então ela parou de soluçar, o suficiente para anunciar:
— Mesmo assim, não dá pra dizer que ela não teve uma vida longa e próspera. Essa mulher morreu aos 103 anos de idade.
— Cento e quatro! — corrigiu uma voz irritada, vinda do solo, perto dele.
O sr. Nancy esticou um braço imaterial e bateu na lateral do caixão novo.
— Fica quieta, mulher! Tem gente aqui querendo dormir.
Rosie deixou bem claro para Spider que esperava que ele tivesse um emprego fixo, do tipo que obriga a pessoa a acordar cedo e ir trabalhar.
Então, certa manhã, um dia antes de Rosie receber alta do hospital, Spider levantou-se bem cedo e foi até a biblioteca municipal. Acessou o computador, passeou pela Internet e, muito cuidadosamente, apagou as contas bancárias restantes de Grahame Coats. Aquelas que a polícia de diferentes continentes até o momento não conseguira encontrar. Pôs a fazenda de criação na Argentina à venda. Comprou uma pequena empresa já pronta, investiu algum dinheiro e preencheu o formulário para pedir empréstimo do governo. Enviou um e-mail no nome de Roger Bronstein contratando um advogado para administrar seus negócios, e sugeriu que entrasse em contato com a Sra. Rosie Noah, de Londres, mas atualmente residindo em Saint Andrews, e a contratasse para a parte filantrópica.
Rosie foi contratada. Sua primeira tarefa foi encontrar um lugar para o escritório.
Depois disso, Spider passou quatro dias inteiros caminhando pela praia (dormindo à noite) que circundava grande parte da ilha, experimentando a comida de cada um dos lugarzinhos que encontrava no caminho até chegar ao Dawsons Fish Shack. Experimentou o peixe-voador frito, os figos verdes aferventados, o frango grelhado e a torta de coco. Foi até a cozinha falar com o chef, que era o dono do lugar, e ofereceu-lhe dinheiro suficiente para ser seu sócio e para ter com ele aulas de culinária.
Agora o Dawsons Fish Shack é um restaurante, e o sr. Dawson aposentou-se. Algumas vezes Spider fica lá na frente; outras, na cozinha. Se você entrar lá e procurar por ele, irá encontrá-lo. A comida é a melhor da ilha. Ele está mais gordo do que antes, mas não tão gordo quanto ficará se continuar a provar tudo o que cozinha.
Não que Rosie se importe.
Ela dá aulas, ajuda um pouco, faz muita caridade e, se sente falta de Londres, não dá mostras disso. A mãe de Rosie, por outro lado, sente falta de Londres o tempo todo, e faz questão de dizer, mas encara qualquer sugestão de que talvez deva voltar para lá como uma tentativa de separá-la de seus netos ainda não nascidos (e, aliás, nem mesmo concebidos).
Nada daria a este autor um prazer maior do que assegurar ao leitor que, depois de voltar do vale da sombra da morte, a mãe de Rosie era outra pessoa: uma mulher alegre, sempre gentil com todos, e que sua vontade de comer só competia com sua vontade de viver a vida com tudo a que tinha direito. Mas o respeito pela verdade nos impede de ser desonestos, e a verdade é que, quando saiu do hospital, a mãe de Rosie ainda era ela mesma, tão desconfiada e egoísta como sempre fora, embora bem mais frágil, e agora com a mania de dormir de luz acesa.
Anunciou que venderia seu apartamento em Londres e se mudaria para onde quer que Spider e Rosie fossem para ficar perto dos netos. À medida que o tempo passava, começava a tecer comentários afiados sobre a inexistência de netos, sobre a quantidade e qualidade dos espermatozóides de Spider, sobre a freqüência e as posições das relações sexuais entre os dois e sobre como a fertilização in vitro era fácil, e nem era tão cara, até o ponto em que Spider começou a pensar seriamente em nunca mais fazer sexo com Rosie só para irritar sua mãe. Pensou nisso por uns dez segundos, certa tarde, enquanto a mãe de Rosie dava a eles fotocópias de uma artigo de revista o qual sugeria que Rosie deveria ficar de cabeça para baixo por meia hora depois de fazer sexo. Ele mencionou a Rosie, naquela noite, o que pensara, e ela riu e lhe disse que, de qualquer maneira, a sua mãe não poderia entrar no quarto deles, e que de jeito nenhum ela ficaria de cabeça para baixo depois de fazer amor.
A Sra. Noah agora tem um apartamento em Williamstown, perto da casa de Spider e de Rosie. Duas vezes por semana, uma das muitas sobrinhas de Callyanne Higgler dá uma olhadinha nela, passa o aspirador na casa, espana as frutas de vidro (as de cera derreteram no calor da ilha), faz um pouco de comida e deixa na geladeira. Às vezes a mãe de Rosie come, outras vezes não.
Charlie hoje em dia é cantor. Perdeu muito das gordurinhas que tinha. Agora é um homem magro, elegante, e sua marca registrada é um chapéu panamá. Ele tem diversos chapéus panamás, de cores diferentes. Seu favorito é um verde.
Charlie tem um filho. Seu nome é Marcus. Tem 4 anos e meio e aquele ar sério e pensativo que só as criancinhas e gorilas da montanha são capazes de fazer.
Ninguém mais chama Charlie de “Fat Charlie” e, para falar verdade, às vezes ele sente falta disso.
Era uma manhã de verão, bem cedo, e já estava claro. Já era possível ouvir ruídos vindo do quarto ao lado. Charlie deixou Daisy dormindo. Saiu com cuidado da cama, pegou uma camiseta e um short e foi até a outra porta para ver o filho nu, no chão, brincando com um trenzinho de madeira. Puseram juntos suas camisetas, shorts e chinelos. Charlie pôs um chapéu. Eles foram até a praia.
— Papai — começou o menino. Sua mandíbula estava meio mole, e ele parecia pensar em alguma coisa.
— Sim, Marcus?
— Quem foi o presidente mais “curtinho”?
— Curtinho em altura, você quer dizer?
— Não. Em— dias. Quem foi menos tempo presidente.
— Harrison. Ele pegou pneumonia na posse e morreu. Foi presidente por quarenta e poucos dias, e passou grande parte do mandato morrendo.
— Ah. E quem foi mais tempo presidente?
— Franklin Delano Roosevelt. Ele teve três mandatos completos. Morreu no quarto. Vamos tirar os sapatos.
Colocaram os sapatos numa pedra e continuaram a caminhar em direção às ondas, os dedos sendo engolidos pela areia úmida.
— Como é que você sabe tanto sobre os presidentes?
— O meu pai achou que seria bom eu saber tudo sobre eles quando eu era criança.
— Ah.
Andaram dentro da água, na direção de uma pedra que podia ser vista na maré baixa. Depois de um tempo andando, Charlie pegou o menino e o pôs nos ombros.
— Papai?
— Sim, Marcus.
— A Piscila falou que você é famoso.
— E quem é Priscila?
— Da escola. Ela diz que a mãe dela tem todos os seus CDs. Ela diz que adora as suas músicas.
— Ah..
— E você é famoso?
— Não muito. Um pouquinho.
Colocou Marcus sobre a pedra e depois subiu nela.
— Pronto. Preparado pra cantar?
— To.
— E o que você quer cantar?
— A minha canção favorita.
— Não sei se ela vai gostar.
— Ela vai, sim.
Marcus tinha a autoconfiança dos muros, das montanhas.
— Ok. Um, dois, três...
Cantaram juntos “Yellow Bird”, que era a música favorita de Marcus naquela semana. Depois cantaram “Zombie Jamboree”, que era a segunda preferida. Depois “She’ll Be Corning Round the Mountain”, que era a terceira preferida. Marcus, que enxergava melhor que Charlie, pôde vê-la quando terminavam “She’11 Be Corning Round the Mountain” e começou a acenar.
— Olha lá ela, papai.
— Tem certeza? — A névoa da manhã tornava o céu e o mar um único borrão pálido. Charlie ficou olhando, com olhos apertados, para o horizonte. — Não to vendo nada.
— Ela mergulhou na água. Tá vindo pra cá.
Ouviu-se um “splash” na água, e ela surgiu bem abaixo deles. Deu um salto, requebrou e já estava sentada sobre a pedra, ao lado deles, com sua cauda prateada pendurada no Atlântico. Tinha gotículas brilhantes de água sobre as escamas. Seus cabelos eram vermelho-alaranjados, compridos.
Todos cantavam juntos, agora: o homem, o menino e a sereia. Cantaram “The Lady is a Tramp” e “Yellow Submarine”. Depois Marcus ensinou à sereia a letra da música-tema dos Flintstones.
— Ele me lembra você. Quando era pequeno — disse a sereia para Charlie.
— Você me conhecia?
Ela sorriu.
— Você e o seu pai costumavam andar pela praia. O seu pai era um autêntico cavalheiro.
E ela suspirou. Sereias suspiram melhor que ninguém. Continuou:
— E melhor vocês voltarem. A maré já vai subir.
Puxou seus longos cabelos para trás da cabeça e, com um movimento rápido, mergulhou no oceano. Ergueu a cabeça sobre as ondas, tocou os lábios com as pontas dos dedos e mandou um beijo para Marcus antes de desaparecer debaixo d’água.
Charlie colocou o filho sobre os ombros e caminhou pela água, de volta para a praia. Seu filho escorregou de seus ombros e foi para a areia. Charlie tirou o velho chapéu panamá e o colocou sobre a cabeça do filho. Era grande demais para o menino, mas ainda assim o fez sorrir.
— Ei, você quer ver uma coisa? — perguntou Charlie.
— Quero. Mas quero tomar café-da-manhã. Quero comer panqueca. Não, quero mingau de aveia. Não... quero panqueca.
— Olha só.
Charlie começou a fazer uma dancinha, descalço, passos arrastados pela areia.
— Eu sei fazer isso — disse Marcus.
— Sério?
— Fica olhando, pai.
Ele também conseguia.
Juntos, o homem e o menino dançaram pela areia, de volta para casa, cantando uma canção sem palavras que inventavam enquanto dançavam, a qual ficou no ar bem depois de entrarem para tomar o café-da-manhã.