Fat Charlie sentou-se no cobertor, sobre a cama de metal, e esperou que algo acontecesse. Mas nada aconteceu. Parecia que tinham se passado meses, bem lentamente. Tentou dormir, mas não lembrava como fazer isso.
Bateu na porta com força.
Alguém gritou:
— Fica quieto!
Ele não conseguiu distinguir se era um policial ou um companheiro de prisão.
Caminhou pela cela durante, numa estimativa que lhe parecia bem modesta, uns dois ou três anos. Então se sentou e deixou que a eternidade o engolisse. Dava para ver a luz do dia através de um bloco grosso de vidro na parte superior da parede que cumpria a função de janela. Teoricamente era a mesma luz que ele via quando a porta se fechou atrás dele naquela manhã.
Fat Charlie tentou lembrar o que as pessoas faziam na prisão para passar o tempo, mas só conseguia pensar em escrever diários secretos e esconder objetos na bunda. Ele não tinha papel para escrever e começava a sentir que uma maneira decisiva de constatar se alguém se dava bem na vida era saber se precisava esconder objetos na bunda.
Nada aconteceu. Nada continuava a acontecer. Mais Nada. O Retorno do Nada. O Filho do Nada. Nada Ataca Novamente. Nada, Abbott e Costello e o Lobisomem..
Quando a porta foi destrancada, Fat Charlie quase pulou de alegria.
— Hora do exercício. Você tem direito de fumar um cigarro se estiver precisando.
— Eu não fumo.
— É mesmo um mau hábito.
O campo de exercícios consistia num espaço aberto no meio da delegacia, cercado de muros por todos os lados e telas de arame na parte de cima. Fat Charlie andou por ali e decidiu que, se havia uma coisa de que não gostava no mundo, era estar nas mãos da polícia. Ele nunca gostara de policiais mas, até aquele momento, tinha conseguido de alguma forma se apegar à crença fundamental na ordem natural das coisas, uma convicção de que havia algum tipo de poder — um vitoriano talvez pensasse na Providência Divina — que assegurava que os culpados seriam punidos e os inocentes, libertados. Essa fé caiu por terra com os acontecimentos recentes, substituída pela suspeita de que passaria o resto da vida dizendo ser inocente para inúmeros juizes e torturadores implacáveis, muitos dos quais com a aparência de Daisy, e de que acordaria na cela seis na manhã seguinte e descobriria que havia se transformado numa barata. Sem dúvida fora transportado para o universo malévolo que transformava as pessoas em baratas...
Algo caiu do céu sobre a tela de arame acima dele. Fat Charlie olhou para cima. Um melro o observava com desprezo e indiferença. Ouviu-se mais bater de asas, e juntaram-se ao melro vários pardais e uma ave que Fat Charlie pensou se tratar de um tordo.
Os pássaros olhavam para ele. Ele olhava de volta.
Mais pássaros surgiram.
Teria sido difícil para Fat Charlie determinar exatamente quando a acumulação de pássaros sobre a tela de arame deixou de ser interessante e passou a ser assustadora. Deve ter sido mais ou menos quando apareceu a primeira centena deles. O problema é que não chilreavam, cantavam ou piavam. Apenas ficavam pousados ali, observando.
— Vão embora! — ordenou Fat Charlie.
Como se fossem um único pássaro, eles não foram embora. Em vez disso, falaram. Falaram o nome dele.
Fat Charlie foi até a porta no canto. Bateu nela com força. Disse “Ei!” algumas vezes e começou a gritar por socorro.
Um barulho metálico. A porta abriu-se, e um membro da polícia civil de Sua Majestade, de pálpebras pesadas, disse:
— É bom você ter algum motivo pra isso.
Fat Charlie apontou para cima. Não disse nada. Não era preciso. O policial ficou boquiaberto, com o queixo caído, mole. A mãe de Fat Charlie teria dito ao homem para fechar a boca senão uma mosca entraria.
A tela estava deformada sob o peso de milhares de pássaros. Pequenos olhinhos olhavam para baixo, sem piscar.
— Deus do céu — disse o policial, e pôs Fat Charlie para dentro às pressas, sem dizer mais nenhuma palavra.
Maeve Livingstone sentia dor. Estava deitada no cháo. Acordou e sentiu os cabelos e o rosto molhados, quentes. Então dormiu novamente e, quando acordou, seus cabelos e seu rosto estavam pegajosos e frios. Sonhou, acordou e sonhou de novo, e acordou por tempo suficiente para ter consciência do ferimento na parte de trás de sua cabeça. Como dormir era mais fácil, já que não sentia dor, ela permitiu que o sono a envolvesse como um cobertor quentinho.
Em seus sonhos, caminhava por um estúdio de televisão, procurando Morris. Às vezes o via rapidamente nos monitores. Ele sempre parecia preocupado. Tentou sair de lá, mas todos os caminhos levavam ao estúdio.
“Estou com tanto frio”, pensou, e percebeu que acordara mais uma vez. A dor porém tinha diminuído. “No geral”, pensou Maeve, “estou bem.”
Algo a preocupava, mas não sabia exatamente o quê. Talvez fosse outra parte de seu sonho.
Não sabia onde estava, mas aquele lugar era escuro. Parecia algum tipo de armário para vassouras. Estendeu os braços para não esbarrar em nada no escuro. Deu alguns passos nervosos com os braços estendidos e os olhos fechados, então abriu os olhos. Agora se encontrava numa sala que conhecia. Era um escritório.
O escritório de Grahame Coats.
Ela se lembrou. Ainda estava meio mole por ter acabado de acordar. Não conseguia pensar direito. Sabia que não acordava totalmente até tomar sua xícara de café pela manhã. Mesmo assim, o pensamento lhe sobreveio: a falsidade de Grahame Coats, sua desonestidade, sua criminalidade, sua...
“Ora”, pensou ela, “ele me atacou. Me agrediu.” E então pensou “A polícia. Tenho que chamar a polícia”.
Estendeu a mão para o telefone sobre a mesa e o pegou, ou tentou pegá-lo, mas ele parecia muito pesado, ou muito escorregadio, ou ambos, e ela não conseguia segurá-lo direito. Parecia um objeto esquisito em sua mão.
“Devo estar mais fraca do que imaginava”, decidiu. “Melhor pedir para mandarem um médico também.”
No bolso de seu paletó havia um pequeno celular prateado que tocava a música “Greensleaves” quando alguém ligava para ela. Ficou aliviada ao ver que o telefone ainda estava lá e que ela não encontrava dificuldade para segurá-lo. Enquanto esperava que atendessem, ficou imaginando por que ainda diziam discar um número, já que não havia mais discos nos telefones, coisa que existia quando era mais jovem. Depois disso, aqueles telefones tornaram-se aparelhos pesados que faziam um “triiiim” barulhento e tinham botões. Na adolescência, tivera um namorado que conseguia imitar, e o fazia repetidas vezes, o barulho desse tipo de telefone, uma habilidade — decidiu ela, pensando no passado — que constituía o único talento do rapaz. Ficou pensando no que teria acontecido com ele. Imaginou como um homem capaz de imitar o som de um telefone antigo conseguiria sobreviver num mundo em que os telefones tinham barulho de praticamente qualquer coisa...
— Pedimos desculpas pela demora para completar sua chamada — começou uma voz mecânica. — Por favor, aguarde.
Maeve sentia-se estranhamente calma, como se nada de mal jamais pudesse acontecer a ela novamente. Uma voz de homem atendeu: — Alô? A voz soava bastante prestativa.
— Eu preciso falar com a polícia.
— Você não precisa falar com a polícia. Todos os crimes serão solucionados pelas autoridades adequadas e implacáveis.
— Olha, acho que liguei para o número errado.
— Mesmo assim, no fim das contas, todos os números estão corretos. São apenas números, e portanto não podem estar certos ou errados.
— Que bom você me informar disso — respondeu Maeve. — Mas eu realmente preciso falar com a polícia. Talvez eu também precise de uma ambulância. E sem dúvida disquei o número errado.
Concluiu a chamada. Talvez, pensou ela, o 999 não funcionasse de um celular. Consultou a agenda de telefones do celular e ligou para a irmã. O telefone tocou uma vez, e uma voz familiar disse:
— Vou deixar claro: não estou dizendo que você ligou para o número errado de propósito. O que estou dizendo é que todos os números são, por sua natureza, corretos. Bom, exceto o pi, é claro. Eu não entendo o pi. Tenho dor de cabeça só de pensar nele, um número que continua, continua, continua, continua...
— Vou dizer uma coisa, Morris: se você ficar com esse tipo de atitude, eu mesma vou resolver o assunto. Não tem jeito de eu esquecer isso. Pra você, está tudo bem, você está morto. Não precisa se preocupar com essas coisas.
— Você também está morta, querida.
— Isso não vem ao caso — retrucou ela. E completou, surpresa: — Eu estou o quê? — E, antes que ele pudesse responder: — Morris, eu disse que ele tentou me matar. Não que conseguiu.
— Ahm.... — o finado Morris Livingstone parecia procurar as palavras certas. — Maeve, querida— Sei que isso pode ser meio chocante pra você, mas a verdade é que..
O telefone fez um barulho e surgiu na tela o sinal de bateria fraca.
— Não consigo te ouvir, Morris. Acho que a bateria está acabando.
— Você não tem bateria. Nem mesmo tem um telefone. É tudo uma ilusão. Estou tentando te dizer isso, que você transcendeu o vale do sei-lá-o-quê e agora está se tornando— ahm... é como o que acontece com os vermes e as borboletas, querida. Você sabe.
— Lagartas — corrigiu Maeve. — Lagartas e borboletas, você quer dizer.
— Ahm, isso mesmo. Lagartas. Foi o que eu quis dizer. Então no que os vermes se transformam?
— Eles não se transformam em nada, Morris — respondeu Maeve, meio irritada. — São vermes, só isso.
O telefone emitiu um som baixinho, como se fosse um arroto eletrônico, mostrou a figura de uma bateria fraca de novo e desligou.
Maeve fechou o celular e colocou-o de volta no bolso. Andou até a parede mais próxima e experimentou pressioná-la com o dedo. Parecia gelatinosa, fria, úmida. Exerceu um pouco mais de pressão, e a mão inteira atravessou a parede.
— Ai, meu Deus — disse, e começou a se apalpar. Pela enésima vez em sua existência, desejou que tivesse dado ouvidos a Morris, que, enfim admitiu, sabia mais a respeito da morte do que ela. “Ai, ai”, pensou, “estar morto deve ser mais ou menos como tudo na vida: você vai aprendendo com o tempo e se vira com o resto.”
Saiu pela porta da frente e percebeu que atravessava a parede no fundo da sala, entrando no prédio novamente. Tentou mais uma vez, e o resultado foi o mesmo. Então entrou na agência de viagens que ocupava o andar térreo do prédio e tentou atravessar a parede oeste.
Atravessou e viu que estava mais uma vez no hall de entrada, entrando pelo leste. Era como estar dentro de um aparelho de TV e tentar sair da tela. Em termos topográficos, o prédio parecia ter se tornado o seu universo.
Subiu as escadas para ver o que os detetives estavam fazendo. Observavam uma mesa para ver o que Grahame Coats tinha deixado para trás enquanto arrumava suas coisas.
— Sabe — começou Maeve, tentando ajudar —, estou numa salinha atrás da estante de livros. Estou lá dentro.
Eles a ignoraram.
A mulher agachou-se e começou a remexer no cesto de lixo.
— Arrá — exclamou, e de lá puxou uma camisa branca masculina com manchas de sangue. Colocou a camisa num saco plástico.
O homem gordo pegou o celular.
— Me tragam a perícia — pediu.
Fat Charlie agora via sua cela como um refúgio, não uma prisão. As celas ficavam bem no fundo do prédio, afinal de contas, bem longe até dos pássaros mais ousados. E seu irmão não estava ali. Ele não se importava mais com o fato de que nada acontecia na cela seis. Nada era infinitamente melhor que as inúmeras coisas que encontrara. Mesmo um mundo feito exclusivamente de castelos, baratas e gente que se chamava “K” era preferível a um mundo cheio de pássaros malignos que sussurravam seu nome em coro.
A porta abriu.
— Vocês não têm o costume de bater? — perguntou Fat Charlie.
— Não — respondeu o policial. — Pra falar a verdade, não temos, não. O seu advogado finalmente chegou.
— O senhor Merryman? — perguntou Fat Charlie. E parou de falar. Leonard Merryman era um cavalheiro rotundo, com óculos pequenos, dourados, e o homem de pé atrás do policial definitivamente não tinha essa aparência.
— Está tudo bem — disse o homem que não era seu advogado. — Pode nos deixar.
— Toque a campainha quando terminar — avisou o policial, e fechou a porta.
Spider pegou Fat Charlie pela mão e disse:
— Vou tirar você daqui.
— Mas eu não quero sair daqui. Não fiz nada.
— Uma ótima razão para sair daqui.
— Mas, se eu sair, aí é que terei feito. Serei um prisioneiro em fuga.
— Você não é um prisioneiro — disse Spider alegremente. —
Ainda não te acusaram de nenhum crime. Você só está ajudando com a investigação. Diga, está com fome?
— Um pouco.
— O que você quer? Chá? Café? Chocolate quente?
Chocolate quente pareceu-lhe extremamente apetitoso.
— Eu adoraria tomar um chocolate quente.
— Certo — concordou Spider. Pegou a mãe de Fat Charlie e continuou. — Feche os olhos.
— Por quê?
— É mais fácil.
Fat Charlie fechou os olhos, embora não tivesse certeza de que isso facilitaria as coisas. O mundo aumentou, diminuiu, e Fat Charlie sentiu-se enjoado. Então sua mente se acalmou, e ele sentiu uma brisa morna soprar no rosto.
Abriu os olhos.
Estavam a céu aberto, numa praça de um grande mercado, num lugar que não parecia nada britânico.
— Onde estamos?
— Acho que o nome é Skopsie. Uma cidadezinha na Itália ou coisa do tipo. Comecei a vir para cá há anos. O chocolate quente daqui é fantástico. O melhor que já tomei na vida.
Sentaram-se a uma mesa pequena, de madeira, pintada em vermelho vivo. Um garçom aproximou-se e disse alguma coisa numa língua que não pareceu italiano para Fat Charlie. Spider disse “Dos Chocolatos, amigo”. O homem assentiu com a cabeça e foi embora.
— Certo — começou Fat Charlie. — Agora você me deixou numa situação ainda mais difícil. Eles vão começar a me caçar por aí, só isso. Vai até aparecer no jornal.
— O que eles podem fazer? — perguntou Spider, sorrindo. — Mandar você pra prisão?
— Ah, não começa.
O chocolate quente chegou. O garçom o serviu em xícaras pequenas. A bebida tinha mais ou menos a mesma temperatura de lava derretida, e a consistência variava entre sopa de chocolate e creme de chocolate. O cheiro era maravilhoso.
Spider.então falou:
— Olha, a gente transformou essa nossa reunião de família numa tremenda bagunça, né?
— A gente? — Fat Charlie controlou muito bem sua raiva. — Não fui eu quem roubou minha noiva. Não fui eu quem fez com que eu fosse despedido do trabalho. Não fui eu quem causou a minha prisão..
— Não, não foi. Mas foi você quem colocou essa coisa dos pássaros no meio, não foi?
Fat Charlie tomou um pequeno gole de seu chocolate quente.
— Ai! Acho que queimei minha boca.
Olhou para o irmão e viu sua própria expressão olhando de volta: preocupado, cansado, assustado.
— Sim, fui eu quem fez os pássaros aparecerem. E agora, o que a gente faz?
— Eles fazem uma sopa de macarrão ótima aqui, aliás.
— Tem certeza de que estamos na Itália?
— Não muita.
— Posso fazer uma pergunta?
Spider fez que sim.
Fat Charlie tentou encontrar as palavras mais adequadas.
— Essa coisa dos pássaros. Em que eles aparecem como se tivessem escapado de um filme do Hitchcock. Você acha que isso só acontece na Inglaterra?
— Por quê?
— Porque eu acho que aqueles pombos ali estão olhando pra gente.
Apontou para o ponto mais distante da praça.
Os pombos não estavam se comportando como pombos costumam se comportar. Não estavam beliscando migalhas de sanduíches ou meneando a cabeça à procura de comida deixada pelos turistas. Estavam bem quietos, observando. Houve um rufar de asas, e a eles se juntou outra centena de pássaros, a maioria pousando sobre a estátua de um homem gordo com um chapéu enorme no centro da praça. Fat Charlie olhava para os pássaros, e os pássaros olhavam de volta.
— Então—, qual a pior coisa que pode acontecer? — perguntou a Spider, com voz baixa. — Eles fazerem cocô em cima da gente?
— Não sei. Mas acho que podem fazer coisa pior. Termine o seu chocolate quente.
— Mas está muito quente.
— Então a gente vai precisar de umas garrafinhas d’água, né? Garçon?
Um ruído baixo de asas batendo. Barulho de mais pássaros chegando. Por baixo de tudo, chilreios baixos, ocultos.
O garçom lhes trouxe as garrafas d’água. Spider, que mais uma vez usava sua jaqueta de couro preta e vermelha, colocou as garrafas nos bolsos.
— São apenas pombos — disse Fat Charlie, mas sabia que não era só isso. Não eram apenas pombos. Eram um exército. A estátua do homem gordo tinha quase desaparecido por baixo das penas cinzas e roxas. — Acho que eu preferia os pássaros antes de eles começarem a nos atacar — completou.
— E estão em todos os lugares. — Spider pegou a mão de Fat Charlie. — Feche os olhos.
Os pássaros ergueram-se como se fossem um único pássaro. Fat Charlie fechou os olhos.
Os pombos desceram sobre eles como uma matilha de lobos...
Fazia silêncio, como se estivessem num lugar distante. “Estou dentro de um forno”, pensou Fat Charlie. Abriu os olhos e se deu conta de que era isso mesmo — um forno com dunas vermelhas que iam até o horizonte, até sumirem de encontro ao céu cor de madrepérola.
— Um deserto — explicou Spider. — Pareceu uma boa idéia. Uma zona livre de pássaros. Um lugar para terminar a conversa.
Toma.
Deu a ele uma garrafa d’água.
— Obrigado.
— E então? Não quer me dizer de onde vieram os pássaros?
— De um lugar aí. Eu fui até lá. Tinha várias pessoas-animais lá. Eles... ahm... Todos conheciam o nosso pai. Uma delas era uma mulher, um tipo de mulher-pássaro.
Spider olhou para ele.
— “Um lugar aí”? Isso não ajuda muito.
— Lá tem uma montanha, e cavernas na montanha. E uns penhascos que dão para o nada. Como se fosse o fim do mundo.
— É o começo do mundo — corrigiu Spider. — Já ouvi falar nessas cavernas. Uma moça uma vez me contou tudo sobre elas. Mas nunca fui até lá. Então você encontrou a Mulher Pássaro e...?
— Ela se ofereceu para fazer você ir embora. E... ahm... Bem, eu aceitei a oferta dela.
— Isso foi uma coisa muito idiota de se fazer — comentou Spider, com seu sorriso de galã de cinema.
— Eu não disse a ela pra te machucar.
— E o que você achou que ela ia fazer pra se livrar de mim? Me mandar uma carta?
— Eu não sei. Não pensei nisso. Estava chateado.
— Ótimo. Bom, se ela fizer as coisas do jeito dela, você vai ficar chateado, e eu vou morrer. Você poderia simplesmente ter me pedido para ir embora, não?
— Mas eu pedi!
— Ahm-. E o que eu disse?
— Que você gostava da minha casa e não iria a lugar nenhum.
Spider bebeu um pouco da água.
— E o que você disse exatamente a ela?
Fat Charlie tentou se lembrar. Agora, pensando a respeito, parecia uma coisa estranha de se dizer.
— Só disse que daria a linhagem de Anansi para ela — respondeu, relutante.
— Você o quê?.
— Foi o que ela me pediu para dizer.
Spider parecia não acreditar no que ouvia.
— Mas isso não diz respeito só a mim. Diz respeito a mim e a você.
A boca de Fat Charlie ficou repentinamente seca. Ele tinha esperança de que fosse efeito do ar do deserto e tomou um gole d’água.
— Espere. Por que o deserto? — perguntou Fat Charlie.
— Eu já disse, não tem pássaros aqui.
— Então o que é aquilo?
Fat Charlie apontou. No começo, pareciam pequenos. Depois você se dava conta de que isso acontecia apenas porque estavam a uma grande altitude. Faziam círculos, batendo as asas.
— Abutres. Eles só atacam coisas mortas — argumentou Spider.
— Ah, claro. E pombos têm medo de gente.
Os pontos no céu começaram a fazer círculos mais baixos, e os pássaros pareciam crescer à medida que desciam.
— Entendi — disse Spider. — Merda.
Eles não estavam sozinhos. Alguém os observava de cima de uma duna ao longe. Um observador qualquer teria pensado se tratar de um espantalho.
— Vá embora! — gritou Fat Charlie. Sua voz foi amortecida pela areia. — Eu retiro o que eu disse! Nosso pacto não vale mais! Deixe a gente em paz!
Um sobretudo farfalhou no vento quente e, de repente, não havia ninguém sobre a duna.
— Ela foi embora! Quem diria que seria tão simples?
Spider tocou seu ombro e apontou adiante. Agora a mulher de casaco vermelho estava de pé sobre o montinho de areia mais próximo, tão perto deles que Fat Charlie podia ver seus olhos negros, que brilhavam como pedras polidas.
Os abutres fizeram sombras negras esfarrapadas sobre a areia e depois pousaram. Tinham o pescoço e o alto da cabeça vermelhos e sem penas, porque assim é muito mais fácil pôr a cabeça dentro de carcaças em putrefação. Estenderam o pescoço e ficaram olhando miopemente os irmãos, como se ponderassem se seria melhor esperar até morrerem ou se deveriam fazer algo para acelerar o processo.
— Havia algo mais no trato?
— Hã?
— Vocês combinaram mais alguma coisa? Ela deu alguma coisa a você para selar o acordo? Às vezes essas coisas são uma troca.
Os abutres avançavam, um passo de cada vez, cada vez mais perto, cercando-os. Havia mais sombras negras no céu, crescendo, voando na direção deles. A mão de Spider agarrou a de Fat Charlie.
— Feche os olhos.
O frio atingiu Fat Charlie como um soco no estômago. Respirou fundo e sentiu como se o gelo invadisse seus pulmões. Tossiu e tossiu, e o vento uivava como um lobo.
Abriu os olhos.
— Posso saber onde estamos desta vez?
— Antártida — respondeu Spider. Fechou o zíper da sua jaqueta de couro e não parecia se incomodar com o frio. — Acho que está meio friozinho aqui.
— Você não tem meio-termo? Direto do deserto para o gelo?
— Não tem pássaros aqui.
— Não seria mais fácil ficar dentro de um prédio seguro, sem pássaros? A gente poderia almoçar.
— Tá. Agora você vai começar a reclamar. Só porque está meio friozinho.
— Não está “friozinho”. Deve estar uns 40 abaixo de zero. De qualquer maneira, dá uma olhada ali. — Fat Charlie apontou para o alto. Uma onda pálida, como se fosse uma letra “m” em miniatura escrita a giz no céu, permanecia imóvel, pairando no ar frio.
— Um albatroz — disse.
— E uma fragata — respondeu Spider.
— Como?
— Não é um albatroz. É uma fragata. Talvez ela nem tenha nos notado.
— Talvez não, mas eles notaram.
Spider virou-se e disse algo que parecia um palavrão. Talvez não houvesse 1 milhão de pingüins rebolando, deslizando e escorregando de barriga na direção dos irmãos, mas sem dúvida essa parecia a quantidade. Como regra geral, as únicas coisas que ficam aterrorizadas com a aproximação de pingüins são pequenos peixes, mas quando há um número enorme de pingüins...
Fat Charlie segurou a mão de Spider sem que ele pedisse. Fechou os olhos.
Quando os abriu novamente, estava em algum lugar mais quente, embora abrir os olhos não fizesse nenhuma diferença. Tudo tinha a cor da noite.
— Eu fiquei cego? — perguntou.
— Estamos numa mina de carvão desativada. Vi uma foto desse lugar numa revista há alguns anos. A não ser que aqui existam bandos de pássaros cegos que se adaptaram à escuridão e que comem carvão, nós ficaremos bem.
— Você está brincando, certo? Sobre essa coisa aí de pássaros cegos?
— Mais ou menos.
Fat Charlie soltou um suspiro, que ecoou pela caverna subterrânea.
— Sabe, se você apenas tivesse ido embora, se tivesse ido embora da minha casa quando eu pedi, nós não estaríamos nessa confusão toda.
— Dizer isso não ajuda muito.
— As coisas não deveriam acontecer assim. Sabe-se lá como vou explicar tudo para a Rosie.
Spider pigarreou e disse:
— Acho que você não precisa mais se preocupar com isso.
— Por quê?
— Ela terminou com a gente.
Houve um longo silêncio. Depois Fat Charlie disse:
— Mas é claro que terminou.
— Eu acho que acabei me atrapalhando um pouco com essas coisas.
Ao dizer isso, Spider soava transtornado.
— Mas e se eu explicar pra ela? Quer dizer, se eu falar que eu não era você, que você estava fingindo ser eu...
— Eu já fiz isso. Foi aí que ela decidiu que não queria ver nenhum de nós dois nunca mais.
— Eu também?
— Receio que sim. Olha, eu nunca quis... Quer dizer, quando fui visitar você, só queria dizer “oi” e tal. Não queria— Ahm... Eu estraguei tudo, não foi?
— Você está tentando me pedir desculpas?
Silêncio.
— Acho que sim. Talvez.
Mais silêncio.
— Bom, então eu também peço desculpas por pedir pra Mulher Pássaro que se livrasse de você.
O fato de não poder enxergar Spider enquanto conversavam tornava as coisas mais fáceis, de certo modo.
— Tá. Tudo bem. Eu só queria saber como me livrar dela.
— A pena ! — lembrou-se Fat Charlie.
— Hã?
— Você perguntou se ela me deu alguma coisa para selar o pacto. Ela deu. Ela me deu uma pena.
— E onde ela está?
Fat Charlie tentou se lembrar.
— Não tenho certeza. Eu estava com ela quando acordei na sala da Sra. Dunwiddy. Mas não estava mais comigo quando entrei no avião. Suponho que a Sra. Dunwiddy ainda esteja com ela.
O silêncio que se seguiu foi longo, escuro, ininterrupto. Fat Charlie começou a se preocupar, a pensar se Spider havia ido embora e o abandonado naquela escuridão embaixo da terra. Finalmente disse:
— Você ainda está aí?
— Ainda aqui.
— Que alívio. Se você me abandonasse aqui embaixo, eu não saberia como sair.
— Não me dê idéias.
Mais silêncio.
— Em que país estamos?
— Polônia, acho. Como eu disse, vi a foto desse lugar. Só que na foto havia luz.
— Você precisa ver a foto de um lugar antes de ir pra lá?
— Preciso saber onde fica.
Fat Charlie ficou pensando no quanto era impressionante o silêncio dentro da mina. O lugar tinha um silêncio especial, todo seu. Começou a pensar sobre silêncios. Será que o silêncio dentro do túmulo era diferente do silêncio, digamos, do espaço sideral?
E Spider disse:
— Eu me lembro da Sra. Dunwiddy. Ela cheira a violeta. — Muita gente já disse a frase “Já era, nós vamos morrer” com mais entusiasmo.
— Isso mesmo. Pequenininha, bem velhinha. Óculos bem grossos. Acho que a gente precisa ir lá e pegar a pena com ela. Aí nós damos a pena de volta para a Mulher Pássaro. E então ela acaba com esse pesadelo.
Fat Charlie bebeu o resto da garrafinha d’água que havia trazido para lá de uma pequena praça, em algum lugar que não era a Itália. Colocou de novo a tampa na garrafa e pôs a garrafa vazia no chão, na escuridão, pensando se aquilo poderia ser considerado jogar lixo em lugar proibido, já que ninguém jamais veria a garrafinha.
— Então vamos nos dar as mãos e ver a Sra. Dunwiddy — sugeriu Fat Charlie.
Spider soltou um ruído. Não parecia o som de alguém corajoso, mas de alguém temeroso, desconfiado. Fat Charlie imaginou Spider murchando na escuridão, como um sapo ou um balão cheio havia uma semana. Fat Charlie queria que Spider descesse um pouquinho de seu pedestal. Mas não queria ouvi-lo fazer o som que uma criança de 6 anos morta de medo faria.
— Espere aí. Você está com medo da Sra. Dunwiddy?
— Eu eu não consigo chegar perto dela.
— Bom, se serve de consolo, eu também tinha medo dela quando era criança. Quando a encontrei de novo, no funeral, ela não parecia assim tão má. Não mesmo. É só uma velhinha.
Lembrou-se dela acendendo as velas pretas e colocando as ervas na vasilha.
— Talvez um pouco estranha. Mas, quando você encontrar com ela, vai dar tudo certo.
— Foi ela que me fez ir embora. Eu não queria. Mas quebrei aquela bola do jardim dela. Uma bola de vidro bem grande, como se fosse uma bola gigante de árvore de Natal.
— Eu também fiz isso. Ela ficou bem chateada.
— Eu sei. — A voz no escuro soava pequena, confusa, preocupada. — Aconteceu ao mesmo tempo. Foi quando tudo começou.
— Bom... Olha... Não é o fim do mundo. Você me leva até a Flórida, eu vou e pego a pena de volta com a Sra. Dunwiddy. Eu não tenho medo. Você pode ficar do lado de fora.
— Eu não posso. Não posso ir até onde ela está.
— O que está querendo dizer? Que ela criou algum tipo de medida cautelar mágica que impede você de chegar perto?
— Mais ou menos. Sim. — Então Spider disse: — Sinto falta da Rosie. Me desculpe por ter. Você sabe.
Fat Charlie pensou em Rosie. Teve grande dificuldade de lembrar do rosto dela. Pensou como seria não ter a mãe de Rosie como sua sogra. Pensou nas duas silhuetas que viu através da cortina na janela do seu quarto. E então disse:
— Não se sinta mal por isso. Quer dizer, pode se sentir culpado se quiser, porque você se comportou como um grandessíssimo filho-da-mãe. Mas talvez tudo tenha acontecido por uma razão.
Fat Charlie sentiu uma pontada onde ficava seu coração, mas sabia que estava falando a verdade. E mais fácil dizer verdades no escuro.
— Sabe o que não faz sentido?
— Tudo?
— Não. Só uma coisa. Eu não entendo por que a Mulher Pássaro se envolveu nisso. Não faz sentido.
— O nosso pai a deixou fula da vida...
— O papai deixava todo mundo fulo da vida. Mas ela está errada. Se quer matar a gente, por que simplesmente não tenta?
— Eu dei a ela a nossa linhagem.
— Foi o que você disse. Mas não, tem alguma outra coisa por trás disso. E eu não entendo o que é. Silêncio. — E Spider continuou: — Segure a minha mão.
— Preciso fechar os olhos?
— Seria bom.
— Para onde vamos? Pra Lua?
— Vou levar você a um lugar seguro.
— Que bom. Eu gosto de lugares seguros. Para onde?
Então, sem precisar abrir os olhos, Fat Charlie soube. O cheiro entregava: pessoas sem tomar banho, privadas usadas sem dar descarga, desinfetante, cobertores velhos, apatia.
— Aposto que eu me sentiria igualmente seguro num quarto de algum hotel de luxo — disse em voz alta, mas não havia ninguém ali para ouvir. Sentou-se sobre a cama-prateleira da cela seis e cobriu os ombros com o cobertor fino. Sentia como se estivesse lá havia milênios.
Meia hora depois, alguém veio até sua cela e o levou para a sala de interrogatório.
— Oi — disse Daisy, com um sorriso. — Aceita um chá?
— Não precisa se preocupar. Eu vi filmes. Sei como é. Aquela coisa do policial malvado e do policial bonzinho, não é? Você me oferece uma xícara de chá e uns bolinhos, aí um sujeito grandalhão, durão e nervosão entra e começa a gritar comigo, a derramar o chá, a comer os meus bolinhos. Aí você o impede de me bater e devolve o meu chá e os bolinhos. Como símbolo de gratidão, eu digo a você tudo o que quer saber.
— A gente pode pular essa parte e você pode simplesmente me dizer o que queremos saber. De qualquer forma, não temos bolinhos.
— Eu já disse tudo o que sei. Tudo. Grahame Coats me deu um cheque no valor de 2 mil libras e me mandou tirar duas semanas de folga. Disse que ficara feliz por eu ter chamado sua atenção para algumas irregularidades financeiras. Aí pediu a minha senha e se despediu de mim. Fim da história.
— E você afirma que não sabe de nada sobre o desaparecimento de Maeve Livingstone?
— Acho que nunca falei direito com ela. Talvez uma vez, quando ela foi até o escritório. Nós nos falamos pelo telefone algumas vezes. Ela sempre queria falar com Grahame Coats. E ele sempre me dizia para dizer a ela que o cheque tinha sido enviado.
— E tinha sido?
— Não sei. Eu achava que sim. Olha, não é possível que você ache que eu tenho algo a ver com o desaparecimento dela.
— Não — respondeu ela num tom alegre. — Não acho.
— Porque honestamente eu não sei o que pode ter— você não acha o quê?
— Não acho que você tenha algo a ver com o desaparecimento de Maeve Livingstone. Também acredito que você não tem nada a ver com as irregularidades financeiras da Agência Grahame Coats, embora alguém tenha se esforçado bastante para fazer parecer que você tem algo a ver com isso. Para mim, é bem óbvio que as práticas contábeis bizarras e o desvio constante de dinheiro já aconteciam antes de você chegar à agência. Você só trabalha lá há dois anos.
— Mais ou menos isso — concordou Fat Charlie, e deu-se conta de que sua boca estava aberta. Fechou a boca.
— Olha, eu sei que os tiras, nos livros e nos filmes, costumam ser idiotas, principalmente se for aquele tipo de livro com um policial aposentado que combate o crime ou um detetive certinho. Peço desculpas por não podermos oferecer bolinhos. Mas nós, os policiais, não somos completamente imbecis.
— Mas eu não disse que eram.
— Não. Mas era o que estava pensando. Você está livre. Se for preciso, nos nós desculpamos.
— Onde foi que ela.. ahm... desapareceu?
— A Sra. Livingstone? Bom, na última vez que foi vista, estava acompanhando Grahame Coats até o escritório dele.
— Ah.
— Eu estava falando sério quando ofereci o chá. Aceita uma xícara?
— Sim. Obrigado. Ahm... Imagino que vocês já verificaram a salinha secreta no escritório dele. Aquela que fica atrás da estante.
— Acho que não...
Temos que dar crédito a Daisy por ter dito essa frase totalmente calma.
— Acho que ele não queria que ninguém soubesse dessa salinha, mas uma vez eu entrei lá no escritório e ele tinha empurrado a estante, e estava lá dentro. Aí eu saí. Eu não estava espionando nem nada do tipo.
— A gente pode comprar uns bolinhos a caminho do escritório — respondeu Daisy.
Fat Charlie nâo sabia ao certo se gostava da liberdade.
Afinal, significava estar ao ar livre.
— Tudo bem com você? — perguntou Daisy.
— Tudo bem.
— Você parece meio nervoso.
— Acho que sim. Talvez você ache isso bobo, mas eu tenho um pouco de... Bom, eu tenho essa coisa com pássaros.
— O quê, uma fobia?
— Tipo isso.
— Bom, qual é mesmo o termo usado para um medo irracional de aves...
— E qual seria o termo para um medo racional de aves?
Ele deu uma pequena mordida em seu bolinho.
Ficaram em silêncio, e Daisy finalmente disse:
— Bom... De qualquer forma, não tem nenhum pássaro aqui no carro.
Ela estacionou em um lugar proibido, perto da Agência Grahame Coats, e os dois entraram no prédio juntos.
Rosie estava deitada ao sol, perto da piscina, no deque de popa de um navio de cruzeiro coreano, com uma revista sobre a cabeça e sua mãe ao lado, tentando lembrar por que diabos tinha pensado que tirar férias com a mãe fosse uma boa idéia. O navio se chamava Sunny Archipelago (“Arquipélago Ensolarado”) até que um ataque de gripe estomacal tomasse conta do navio e chegasse ao noticiário internacional. Uma tentativa mal pensada de renomeá-lo sem mudar as iniciais, feita pelo capitão, que não falava inglês tão bem quanto imaginava, deixou o navio com o adorável nome de Squeak Attack (“O Ataque dos Ratos”).
Não havia jornais ingleses no navio, e Rosie não sentia nenhuma falta deles. Mas sentia falta de todo o resto. Em sua mente, fazer um cruzeiro era como passar por um purgatório flutuante, tolerável apenas pelas ilhas que visitavam diariamente, ou quase. Os outros passageiros desciam e faziam compras, ou então praticavam “parasail”, ou então enchiam a cara de rum ao fazer visitas turísticas a navios piratas. Rosie, por sua vez, gostava de andar e conversar com as pessoas.
Ela via pessoas com problemas, pessoas que pareciam famintas, miseráveis, e queria ajudar. Tudo parecia solucionável para Rosie. Bastava alguém para resolver a situação.
Maeve Livingstone esperava que a morte fosse um monte de coisas diferentes, mas irritante nunca passara por sua cabeça. E ela estava irritada, cansada de andarem através dela, cansada de ser ignorada e, acima de tudo, cansada de não conseguir sair do prédio de escritórios em Aldwych.
— Quer dizer, se eu preciso assombrar um lugar — dizia à recepcionista —, por que não posso assombrar Somerset House, subindo a rua? Um prédio bonito, uma vista maravilhosa do Tâmisa, traços arquitetônicos dignos de nota. Há uns restaurantezinhos ótimos também. Mesmo que a gente não precise mais comer, seria legal ficar observando as pessoas.
Annie, a recepcionista, cujo trabalho desde o desaparecimento de Grahame Coats se resumia a atender ao telefone com voz entediada e dizer “Infelizmente não sei informar” para praticamente todas as perguntas que lhe faziam e que, quando não desempenhava esse trabalho, ligava para as amigas para falar sobre o mistério, com sussurros animados, não respondeu ao que Maeve lhe dizia, assim como não respondera a nada que ela lhe dissera antes.
A monotonia foi quebrada pela chegada de Fat Charlie Nancy, acompanhado de uma policial.
Maeve sempre tivera certo apreço por Fat Charlie, mesmo quando sua função consistia em assegurar-lhe que o cheque logo seria enviado. Mas agora ela via coisas que nunca fora capaz: havia sombras que pairavam ao redor dele, sempre à distância. Um sinal de coisas ruins prestes a acontecer. Parecia um homem que fugia de alguma coisa, e isso a preocupou.
Ela os seguiu até o escritório de Grahame Coats e adorou quando viu que Fat Charlie foi direto na direção da estante de livros no fundo da sala.
— Então essa é a passagem secreta? — perguntou Daisy.
— Não é uma passagem secreta. É uma porta. Por trás da estante de livros, aqui. Eu não sei. Talvez exista uma alavanca secreta ou coisa do tipo.
Daisy olhou para a estante.
— O Grahame Coats já escreveu uma autobiografia? — perguntou a Fat Charlie.
— Não que eu saiba.
Ela empurrou a edição encadernada em couro do livro My Life by Grahame Coats. Ouviu-se um clique, e a estante afastou-se da parede, revelando uma porta trancada.
— Precisaremos de um chaveiro. E acho que não precisamos mais do senhor, sr. Nancy.
— Certo. Bom— foi— ahm— um prazer. — Então ele disse: — Será que você não gostaria de— sair para comer alguma coisa— comigo— um dia desses?
— Dim sum — respondeu ela. — Domingo, hora do almoço. A gente divide a conta. Você precisa estar lá quando abrirem as portas, às 1 lh30, senão a gente vai ter que esperar na fila por horas. — Escreveu o endereço do restaurante e entregou a Fat Charlie. — Tome cuidado com os pássaros no caminho de casa — aconselhou.
— Pode deixar. Até domingo.
O chaveiro desdobrou uma bolsa de tecido preto e tirou de lá vários instrumentos metálicos finos. Enquanto trabalhava, comentou:
— Sinceramente, eles nunca aprendem. Uma fechadura boa nem mesmo é cara. Quer dizer, olha só essa porta: uma maravilha. Muito sólida. Levaria metade de um dia para atravessá-la com um maçarico. Aí eles decepcionam colocando uma fechadura que uma criança de 5 anos conseguiria abrir com uma faca— Prontinho— Fácil como tirar doce de criança.
O chaveiro empurrou a porta. A porta abriu, e viram aquela coisa no chão.
— Deus do céu! — exclamou Maeve Livingstone. — Essa aí não sou eu.
Ela achou que teria mais afeição por seu corpo, mas não tinha. Parecia um animal morto em uma rodovia.
Logo a sala estava cheia de gente. Maeve, que nunca tivera muita paciência para draminhas de detetive, ficou logo entediada. Só se interessou pelo que acontecia quando sentiu que estava sendo empurrada, sem sombra de dúvida, para o térreo, e daí pela porta da frente, à medida que seu cadáver era levado, envolto em plástico azul discreto.
— Agora sim — disse.
Conseguiu sair.
Pelo menos tinha conseguido sair do prédio de escritórios em Aldwych.
Ela sabia que obviamente havia regras. Tinha que haver. O problema é que não tinha muita certeza de que regras eram essas.
Desejou ter sido mais religiosa em vida, mas nunca conseguira: quando era menina, não conseguia imaginar um Deus que detestasse alguém a ponto de sentenciar a pessoa a passar a eternidade sendo torturada no Inferno, em grande parte por não conseguir acreditar em Sua existência. Depois de crescida, suas dúvidas de infância se solidificaram na firme certeza de que a Vida, desde o nascimento até a morte, era tudo o que havia, e que todo o resto não passava de fruto da nossa imaginação. Era uma boa crença, que a permitiu levar a vida, mas agora se punha à prova.
Ela realmente não tinha certeza de que passar a vida indo à igreja certa a teria preparado para isso. Maeve rapidamente chegava à conclusão de que, num mundo bem organizado, a Morte deveria ser como férias de luxo, com todas as despesas pagas, daquelas em que você ganha um folheto no começo, cheio de ingressos para shows, cupons de desconto, programação e diversos números de telefone para os quais poderia ligar caso tivesse problemas.
Ela não andava. Ela não voava. Ela se movia como o vento, como um vento frio de outono que fazia as pessoas se arrepiarem quando passava, que remexia de leve as folhas caídas nas calçadas.
Dirigiu-se ao primeiro lugar em que esteve ao chegar a Londres: Selfridges, a loja de departamentos na Oxford Street. Maeve trabalhara na seção de cosméticos da Selfridges quando era bem mais jovem, na época em que tinha empregos temporários como dançarina. Ela fazia questão de voltar lá sempre que podia para comprar produtos de maquiagem caros, como havia prometido a si mesma que faria.
Assombrou a seção de cosméticos até ficar entediada. Então resolveu dar uma olhada na parte de decoração. Ela não compraria uma nova mesa de jantar, mas que mal havia em dar uma olhadinha?
Passou pela seção de eletrônicos, cercada de telas de TV de todos os tamanhos. Algumas mostravam o noticiário. Todos os aparelhos estavam sem som, mas quem aparecia na tela era Grahame Coats. A repugnância surgiu dentro dela, queimando como se fosse lava. A imagem mudou e, agora ela via a si mesma: um clipe de imagens dela ao lado de Morris. Reconheceu a cena como o esquete “Give me a fiver and I ll snog you rotten”, de Morris Livingstone, I Presume.
Desejou arranjar um meio de recarregar o telefone. Mesmo se a única pessoa com que pudesse falar fosse aquela voz irritante, que parecia a de um pastor, ainda assim ela conversaria. Na verdade, queria falar com Morris. Ele saberia o que fazer. Desta vez conversaria com ele. Desta vez ouviria.
— Maeve?
O rosto de Morris, dentro de centenas de telas de TV, a observava. Por um instante, pensou ser apenas sua imaginação, ou então parte do noticiário. No entanto ele a olhava preocupado, e disse o nome dela mais uma vez. Então ela soube que era ele mesmo.
— Morris..?
Ele sorriu seu famoso sorriso. Cada rosto nas telas focalizou-se nela.
— Oi, querida. Eu já estava imaginando por que você demorou tanto para vir pro lado de cá.
— Lado de cá?
— O outro lado. O vale do além. Ou talvez aquém. Sei lá, essa coisa aí.
Ele estendeu uma centena de mãos, de centenas de telas de TV. Ela sabia que tudo o que precisava fazer era estender sua mão e pegar a mão dele. E se surpreendeu dizendo:
— Não, Morris. Melhor não.
Os inúmeros rostos pareceram perplexos.
— Maeve, meu amor. Você precisa esquecer o mundo material.
— Sim, claro que sim, querido. E vou. Prometo. Assim que estiver pronta.
— Maeve, você está morta. Não dá para estar mais pronta do que isso.
Ela suspirou.
— Ainda preciso fazer umas coisinhas.
— Por exemplo?
Maeve ficou bem ereta.
— Bom— Andei pensando naquela criatura, o Grahame Coats, e... Bom, vou fazer o que os fantasmas fazem. Eu poderia assombrá-lo, ou coisa do tipo.
Morris pareceu um pouco incrédulo:
— Você quer assombrar Grahame Coats? Mas por quê?
— Por que ainda não estou pronta.
Disse isso e ficou com os lábios comprimidos, o queixo erguido.
Morris Livingstone olhou para ela de dentro de uma centena de televisores e balançou a cabeça, numa mistura de admiração e exasperação. Ele se casara com ela porque era uma mulher dona de si, e a amava por isso, mas desejava poder, ao menos uma vez, persuadi-la. Em vez disso, falou:
— Bom, estarei te esperando, meu bem. Avise quando estiver pronta.
E Morris começou a desaparecer.
— Morris, você tem alguma idéia de como eu faço para encontrá-lo?
Porém a imagem de seu marido havia desaparecido completamente. Agora os televisores mostravam o canal do tempo.
Fat Charlie encontrou-se com Daisy no domingo para comer dim sum num restaurante mal iluminado, na pequena Chinatown de Londres.
— Você está bonita — disse ele.
— Obrigada. Estou me sentindo péssima. Me tiraram do caso Grahame Coats. Agora é uma investigação grandiosa de assassinato. Imagino que eu tenha que dar graças aos céus por ter ficado esse tempo todo com o caso.
— Bom — começou ele alegremente —, se você não tivesse participado do caso, não teria se divertido me prendendo.
— Tem isso também — disse ela, fazendo questão de parecer menos chateada.
— Já tem alguma pista?
— Mesmo se houvesse, eu não poderia dizer nada a respeito. — Um pequeno carrinho foi empurrado até a mesa deles, e Daisy selecionou vários pratos. Continuou: — Tem essa teoria de que Grahame Coats se jogou de uma barca, atravessando o canal. Seria a última compra com um de seus cartões de crédito, uma passagem para Dieppe.
— Acha que é provável?
Ela pegou um pedacinho de carne de seu prato com os palitos e pôs na boca.
— Não. Imagino que ele tenha ido para algum lugar de onde não possa ser extraditado. O Brasil, talvez. Matar Maeve Livingstone pode ter sido algo que fez sem planejar, mas todo o resto foi bastante meticuloso. Ele já tinha tudo planejado. O dinheiro entrava nas contas dos clientes. Grahame pegava os 15% do valor e tinha procurações que lhe permitiam pegar ainda mais.
Muitos cheques estrangeiros jamais chegaram às contas dos clientes. O impressionante é que ele manteve tudo em sigilo durante todo o tempo.
Fat Charlie mastigou um bolinho de arroz com algo doce por dentro e disse:
— Acho que você sabe onde ele está. — Daisy parou de mastigar. — Foi o jeito como você falou que ele foi para o Brasil. Como se soubesse que ele não está lá — completou.
— Isso é assunto da polícia. Infelizmente não posso falar a respeito. Como vai o seu irmão?
— Não sei. Acho que foi embora. O quarto dele não estava mais lá quando cheguei em casa.
— O quarto dele?
— As coisas dele. Ele levou as coisas embora. E não há sinal dele desde então. — Fat Charlie deu um gole em seu chá de jasmim e continuou: — Espero que ele esteja bem.
— Ele pode não estar bem?
— Bom, ele tem essa mesma fobia que eu tenho.
— Ah, a coisa dos pássaros. Certo — Daisy assentiu com a cabeça, demonstrando empatia. — E como vai a sua noiva? E a sogra?
— Ahm... Acho que atualmente elas não são nenhuma das duas coisas.
— Ah.
— Elas se foram.
— Por causa da sua prisão?
— Não que eu saiba.
Ela olhou para ele como uma pequena duendezinha piedosa.
— Sinto muito.
— Bom... No momento, estou desempregado. Não tenho namorada e, em grande parte graças aos seus esforços, os vizinhos estão convencidos de que eu sou um matador profissional. Alguns até começaram a atravessar a rua quando cruzam comigo.
Por outro lado, o moço da banca de jornal perto de casa quer que eu dê uma lição no sujeito que engravidou filha dele.
— E o que você disse?
— A verdade. Acho que ele não acreditou. Me deu de graça um saquinho de batata frita com salsa e uma embalagem de drops de menta, e me disse que daria mais se eu fizesse o trabalho.
— Com o tempo, isso passa.
Fat Charlie suspirou.
— É humilhante.
— Mas não é o fim do mundo.
Dividiram a conta, e o garçom deu a eles dois biscoitos da sorte com o troco.
— O que o seu diz?
— “Persista, e conseguirá” — leu ela. — E o seu?
— A mesma coisa. A boa e velha persistência.
Fat Charlie amassou o papelzinho numa bola do tamanho de uma ervilha e o colocou no bolso. Depois acompanhou-a até a estação de metrô Leicester Square.
— Parece que hoje é o seu dia de sorte — disse Daisy.
— Como assim?
— Não tem nenhum pássaro.
Ao ouvi-la, Fat Charlie deu-se conta de que era verdade. Não havia nenhum pombo, nenhum estorninho. Nem mesmo pardais.
— Mas sempre há pássaros em Leicester Square.
— Não hoje. Talvez estejam ocupados.
Pararam no metrô e, por um tolo momento, Fat Charlie achou que ela lhe daria um beijo de despedida. Mas não deu. Apenas sorriu e disse “até mais”. Ele meio que acenou para ela, um movimento incerto com a mão que poderia ser tanto um aceno como um gesto involuntário. Então ela desceu as escadas e sumiu.
Fat Charlie caminhou de volta pela Leicester Square, na direção de Piccadilly Circus.
Tirou o papelzinho do biscoito da sorte de seu bolso e o desamassou. “Te encontro perto da estátua de Eros”, dizia o bilhete. Perto da frase havia um rabisco apressado de algo que parecia um grande asterisco, mas que supostamente poderia ser uma aranha.
Ficou observando os céus e os prédios enquanto andava, mas não havia nenhum pássaro, o que era bastante estranho, porque sempre havia pássaros em Londres. Sempre havia pássaros em tudo quanto é lugar.
Spider estava sentado embaixo da estátua, lendo o tablóide News of the World. Parou de ler quando Fat Charlie se aproximou e olhou para ele.
— Não é Eros, na verdade — começou Fat Charlie. — A estátua representa a Caridade Cristã.
— Então por que ele está nu, segurando o arco-e-flecha? Não me parece uma coisa particularmente caridosa ou cristã.
— Só estou reproduzindo o que eu li. Onde você estava? Fiquei preocupado.
— Eu estou bem. Só ando evitando os pássaros, tentando entender essa história.
— Você notou que não tem nenhum pássaro hoje?
— Notei. E não sei o que pensar a respeito. Mas andei pensando e... sabe... Tem alguma coisa errada nessa história.
— Tem mesmo. Tudo.
— Não. Quero dizer que não está certo a Mulher Pássaro querer nos machucar.
— Claro. É errado. É algo muito, muito ruim de se fazer. Você quer dizer isso a ela ou digo eu mesmo?
— Não é isso. Pense a respeito. Quer dizer, apesar do filme do Hitchcock, os pássaros não são a melhor coisa do mundo em termos de machucar gente. Talvez representem a morte alada para os insetos, mas não são muito bons para atacar gente. Há milhões de anos aprenderam que, no geral, as pessoas comem os pássaros antes. O instinto primário deles é nos deixar em paz.
— Nem todos — observou Fat Charlie. — Não os abutres. Ou os corvos. Eles aparecem no campo de batalha quando a guerra acaba. Ficam esperando você morrer.
— Hã?
— Eu disse que isso era verdade, exceto no caso de abutres e corvos. Não queria dizer nada importante...
— Não — respondeu Spider, tentando concentrar-se. — Agora já foi. Você me fez pensar numa coisa, e eu quase consegui dizer o que era. E aí, já entrou em contato com a Sra. Dunwiddy?
— Liguei para a Sra. Higgler, mas ninguém atendia.
— Bom, então vá até lá falar com elas.
— E muito cômodo para você dizer isso, mas estou completamente duro. Sem um centavo. No osso. Não dá para ficar indo e voltando, atravessando o Atlântico. Não tenho mais nem emprego. Eu...
Spider pôs a mão dentro de sua jaqueta preta e vermelha e tirou de lá uma carteira. Tirou um punhado de notas, em moedas de diferentes países, e colocou tudo na mão de Fat Charlie.
— Pronto. Isso aqui deve bastar para você ir e voltar. E só pegar a pena.
— Olha. Você já imaginou que talvez o nosso pai não tenha morrido, na verdade?
— Hein?
— Bom, eu fiquei pensando. Talvez seja uma das piadas dele. Parece o tipo de coisa que ele faria, não?
— Não sei. Pode ser.
— Tenho certeza — disse Fat Charlie. — E a primeira coisa que vou fazer. Vou até o túmulo dele e....
Não chegou a terminar a frase, porque os pássaros apareceram. Eram pássaros de cidade: pardais, estorninhos, pombos, corvos, milhares e milhares deles. Eles se moviam no ar como se fossem uma tapeçaria, formando uma parede de pássaros que vinha na direção de Fat Charlie e de Spider na Regent Street. Uma falange de penas grande como um prédio muito alto, perfeitamente lisa, perfeitamente impossível e em movimento, batendo as asas e costurando o céu. Fat Charlie viu aquilo, mas não conseguia acreditar. A imagem se recusava a entrar em sua mente. Olhou para cima e tentou entender o que via.
Spider pegou o cotovelo de Fat Charlie e gritou:
— Corre!
Fat Charlie virou-se para correr. Spider metodicamente dobrava o jornal e o colocava numa lata de lixo.
— Você também!
— Não, eles não querem você. Ainda não — disse Spider, e sorriu.
Era um sorriso que tinha, em outras oportunidades, persuadido mais pessoas do que é possível imaginar a fazer coisas que não queriam fazer, e Fat Charlie realmente quis correr. — Pegue a pena. Fale com o papai também se achar que ele ainda está por aí. Mas vá logo.
Fat Charlie saiu correndo.
A parede de pássaros ondulava, transformava-se e virou um redemoinho de pássaros que voava na direção da estátua de Eros e do homem embaixo dela. Fat Charlie entrou em algum lugar e observou enquanto a base daquele furacão escuro atingia Spider. Imaginou que podia ouvir os gritos de seu irmão por baixo do barulho ensurdecedor das asas. Talvez pudesse.
Então os pássaros se dispersaram, e a rua estava vazia. O vento brincou com algumas penas sobre a calçada cinzenta.
Fat Charlie ficou ali, de pé, e sentiu-se enjoado. Se algum dos transeuntes havia notado o que aconteceu, não esboçou nenhuma reação. De alguma maneira, tinha certeza de que ninguém além dele vira aquilo.
Havia uma mulher em pé, embaixo da estátua, perto de onde seu irmão estava. Seu casaco velho e marrom ondulava ao vento. Fat Charlie foi até ela.
— Olha, quando eu disse para fazê-lo ir embora, só queria que você o tirasse da minha vida. E não que fizesse seja lá o que você fez com ele.
Ela olhou para ele e não disse nada. Há uma certa loucura nos olhos de algumas aves de rapina, uma ferocidade extremamente assustadora. Fat Charlie tentou não ficar intimidado.
— Eu cometi um erro — continuou Fat Charlie. — E estou disposto a pagar por ele. Me leve no lugar dele. Traga-o de volta.
Ela continuava a olhar para ele. Então disse:
— Não duvide, chegará a sua vez, filho de Compé Anansi. Na hora certa.
— Por que você o quer?
— Eu não o quero. Por que iria querê-lo? Era uma obrigação que eu tinha para com outra pessoa. Agora vou entregá-lo, e minha obrigação não existirá mais.
O jornal balançou ao vento. Fat Charlie estava sozinho.