Daisy acordou com o despertador. espreguiçou-se na cama feito um gatinho. Podia ouvir o barulho do chuveiro, o que significava que a moça que morava com ela já tinha acordado. Colocou um robe felpudo cor-de-rosa e foi até o corredor.
— Você quer mingau? — perguntou através da porta.
— Não estou muito a fim. Mas, se você fizer, eu como.
— Sem dúvida você sabe como fazer uma mulher se sentir desejada — disse. Foi para a cozinha americana e colocou o mingau para cozinhar.
Voltou para o quarto, colocou as roupas de trabalho e se olhou no espelho. Fez uma careta. Prendeu o cabelo num coque apertado, atrás da cabeça.
Sua colega de apartamento, Carol — uma mulher branca, nascida em Preston, de rosto fino —, pôs a cabeça para fora do quarto. Enxugava vigorosamente os cabelos com uma toalha.
— O banheiro é todo seu. Como está o mingau?
— Acho que precisa dar uma mexidinha.
— Onde você esteve noite passada? Disse que ia sair pra beber e comemorar o aniversário da Sybilla, mas não voltou mais.
— Não é da sua conta, ok? — Daisy foi até a cozinha e mexeu o mingau. Colocou um pouco de sal e mexeu um pouco mais. Pôs o mingau em duas tigelas e acomodou-as sobre o balcão. — Carol? O mingau vai esfriar.
Carol apareceu, sentou-se e ficou olhando para o mingau. Não estava completamente vestida.
— Isso não é um café-da-manhã de verdade, né? Se você quer saber, um café-da-manhã de verdade tem que ter frios, ovos fritos, salsichão e tomate grelhado — disse ela com seu forte sotaque do norte da Inglaterra.
— Se você fizer, eu como.
Carol salpicou uma colher de sobremesa cheia de açúcar no mingau. Olhou para ele. Colocou mais uma colher de açúcar. E disse:
— Não, não come. Você diz que come. Mas aí começa a falar em colesterol, que comida frita faz mal prós rins. — Daisy passou para ela uma xícara de chá. — Você e os seus rins. Na verdade, rim seria uma boa pedida. Já comeu rim, Daisy?
Uma vez. Se quer saber, dá pra obter o mesmo gosto grelhando um pouco de fígado e mijando em cima.
Carol fungou.
— Não precisa exagerar.
— Coma o seu mingau.
Terminaram de comer o mingau e tomar o chá. Colocaram as tigelas na máquina de lavar louça, que não foi ligada porque não estava cheia. Foram de carro para o trabalho. Carol, agora completamente vestida com seu uniforme, era quem dirigia.
Daisy foi até sua mesa, que ficava numa sala cheia de outras mesas vazias.
O telefone tocou, e ela se sentou.
— Daisy? Você está atrasada.
Ela olhou para o relógio de pulso.
— Não, não estou, não... senhor. Como posso ajudá-lo?
— Você pode ligar para um homem chamado Coats. Ele é amigo do chefão. Torce pro Crystal Palace. Só hoje de manhã, ele já me escreveu duas vezes falando sobre isso. Quem será que ensinou o chefão a escrever?
Daisy anotou os detalhes e fez a ligação. Adotou o tom de voz mais sério e eficiente que podia e disse:
— Aqui é a detetive Day. Como posso ajudá-lo?
— Ah — respondeu uma voz de homem. — Bom, eu contei umas coisas pro superintendente ontem à noite, um homem fantástico, velho amigo meu. Ótima pessoa. Ele sugeriu que eu falasse com alguém aí no escritório. Gostaria de fazer um relato. Bom, não tenho certeza de que houve um crime. Provavelmente há uma explicação para isso. Aconteceram certas irregularidades e, bom, para ser bem franco com você, dei ao meu contador umas duas semanas de folga até saber se é verdade que ele está envolvido com certas., humm... irregularidades financeiras.
— Eu preciso de detalhes. — disse Daisy. — Qual o nome completo do senhor? E do contador?
— Meu nome é Grahame Coats — respondeu o homem do outro lado da linha. — Da Agência Grahame Coats. O nome do meu contador é Nancy. Charles Nancy.
Ela anotou os dois nomes. Não lhe pareceram familiares.
Fat Charlie planejava ter uma briga com spider assim que ele voltasse para casa. Ensaiou a briga em sua cabeça várias e várias vezes, e sempre ganhava a discussão de modo justo e decisivo.
No entanto Spider não voltou para casa na noite anterior. Fat Charlie acabou dormindo na frente da TV, meio que assistindo a um game show vulgar para tarados que sofriam de insônia chamado Mostra o Bumbum! ou coisa do tipo.
Acordou no sofá quando Spider puxou as cortinas.
Está um lindo dia — disse ele.
Você! — acusou Fat Charlie. — Você beijou a Rosie! Não tente negar.
— Eu tive que beijar.
— Como assim, teve? Você não tinha que beijar.
— Ela pensou que eu era você.
— Ora, você sabia que não era eu. Não podia ter beijado a Rosie.
— Mas, se eu me recusasse a beijá-la, ela teria pensado que você não queria beijá-la.
— Mas não era eu.
— Mas ela não sabia disso. Eu só estava tentando ajudar.
— Tentando ajudar! — repetiu Fat Charlie, sentado no sofá. — Me ajudar geralmente inclui não beijar a minha noiva. Você podia ter dito que estava com dor de dente.
— Mas isso — começou Spider com um ar de santo — seria mentir.
— Mas você já estava mentindo! Estava fingindo que era eu!
— Bom, então seria aumentar a mentira, de qualquer maneira — explicou Spider. — Eu fiz isso apenas porque você não podia ir ao trabalho. Não. Eu não poderia mentir mais. Me sentiria péssimo.
— Bom, eu realmente me senti péssimo. Tive que ver vocês dois se beijando.
— Ah. Mas ela achou que estava beijando você.
— Pára de repetir isso!
— Você deveria se sentir lisonjeado. Quer almoçar?
— Claro que não. Que horas são?
— Hora do almoço. E você está atrasado de novo. Foi até bom eu não livrar a sua cara desta vez, já que é assim que você me agradece.
— Não, tudo bem. Eu tenho duas semanas de licença. E ganhei um bônus.
Spider ergueu uma sobrancelha.
— Olha — começou Fat Charlie, sentindo que era hora de ir para o segundo round da discussão. — Não é que eu queira me livrar de você, mas andei pensando.— Você pretende ir embora quando?
— Bom, quando eu cheguei, planejava ficar um dia. Talvez dois. O suficiente para conhecer meu irmãozinho e depois ir embora. Sou um homem muito ocupado.
— Então você vai embora hoje?
— Esse era o meu plano. Mas eu encontrei você. Não consigo acreditar que passamos quase a vida toda sem a companhia um do outro, meu irmão.
— Eu consigo.
— Os laços de sangue são mais fortes que a água.
— Água não é forte.
— Mais fortes que a vodca então. Ou que os vulcões. Ou amônia. Olha, o que quero dizer é que encontrar você é... bem, é um grande privilégio. Nunca fizemos parte da vida um do outro, mas isso é passado. Vamos começar uma nova vida hoje. Vamos deixar o passado para trás e fazer um novo pacto, o pacto da irmandade.
— Você está a fim da Rosie.
— Com certeza — concordou Spider. — O que você pretende fazer a respeito?
— Fazer a respeito? Ora, ela é minha noiva.
— Não se preocupe. Ela pensa que eu sou você.
— Quer parar de repetir isso?
Spider abriu os braços num gesto angelical, mas arruinou o efeito lambendo os lábios.
— O que você pretende fazer? — perguntou Fat Charlie. — Casar com ela fingindo que sou eu?
— Casar? — Spider parou e ficou pensando por um momento. — Mas. Que. Idéia. Horrível.
— Bom, eu estava bem disposto a casar, na verdade.
— Spider não se casa. Não sou do tipo que se casa.
— Então a minha Rosie não é boa o suficiente para você? É isso o que você está dizendo?
Spider não respondeu. Saiu da sala.
Fat Charlie achou que tinha se saído bem, de alguma maneira, na discussão. Levantou-se do sofá, pegou as embalagens de alumínio que na noite anterior continham um chow mein de frango e bolinhos de carne de porco, e jogou-as no lixo. Foi para o quarto, onde tirou as roupas com as quais dormira e colocaria roupas limpas. Porém descobriu que, como não havia posto a roupa suja para lavar, não tinha roupas limpas. Então escovou vigorosamente as roupas do dia anterior, tirando vários pedacinhos de macarrão grudados, e colocou-as de volta.
Foi para a cozinha.
Spider estava sentado à mesa, comendo um filé grande o suficiente para duas pessoas.
— Onde você conseguiu isso? — perguntou Fat Charlie, embora já conhecesse a resposta.
— Eu perguntei se você queria almoçar — observou Spider gentilmente.
— Onde você conseguiu esse filé?
— Estava na geladeira.
— Este... — gritou Fat Charlie, apontando o dedo como um advogado de acusação prestes a dar o bote — este filé é o que eu comprei para o jantar de hoje. Para o meu jantar com a Rosie. Para o jantar que eu ia fazer para ela! Agora você está sentado aí como... como uma... uma... pessoa comendo um filé! E... e comendo... e...
— Não tem problema.
— Como assim, não tem problema?
— Bom, eu já liguei para a Rosie de manhã, e vou levá-la para jantar hoje à noite. Então você não precisaria do filé, de qualquer maneira.
Fat Charlie abriu a boca. E depois fechou.
— Quero que você saia daqui.
— Uma coisa boa para o desejo de um homem é superar-se em algum aspecto, alcançar alguma coisa, sei lá. Do contrário, de que serve o Paraíso? — perguntou Spider entre garfadas do filé de Fat Charlie.
— Mas que diabos você está falando?
— Estou dizendo que não vou a lugar nenhum. Gosto daqui. — Ele espetou outro pedaço de filé, pôs na boca e engoliu.
— Fora! — exclamou Fat Charlie. O telefone tocou. Ele suspirou, foi até o corredor e atendeu, irritado:
— Sim?
— Ah, Charles. Que bom ouvir sua voz. Sei que no momento você está desfrutando o seu honrado dinheiro, mas será que você poderia, dentro das suas possibilidades, aparecer aqui por— humm. meia hora, mais ou menos, amanhã de manhã? Digamos, por volta das dez?
— Sim. Claro. Sem problema.
— Que bom. Preciso que você assine alguns papéis. Bom, então até lá.
— Quem era? — perguntou Spider. Ele já havia limpado o prato e agora enxugava a boca com uma toalha de papel.
— Grahame Coats. Ele quer que eu apareça lá amanhã.
— Ele é um safado.
— E daí? Você também é.
— Um safado de outro tipo. Não é boa gente. Você devia arrumar outro emprego.
— Eu adoro o meu emprego!
Fat Charlie dizia a verdade. Conseguira esquecer por completo o quanto detestava seu trabalho, a Agência Grahame Coats e a presença desagradável de Grahame Coats, que sempre aparecia furtivamente atrás da porta.
Spider levantou-se e disse:
— Excelente filé. Eu coloquei as minhas coisas no seu quarto extra.
— Você o quê?
Fat Charlie correu até o fim do corredor, onde havia um quarto que tecnicamente caracterizava sua residência como um apartamento de dois quartos. O quarto continha diversas caixas de livros, um velho jogo de autorama, uma caixa de metal cheia de carrinhos Hot Wheels (a maioria sem rodas) e diversos outros restos destruídos da infância de Fat Charlie. Talvez fosse um quarto de bom tamanho para um gnomo ou um anão diminuto, mas para qualquer outra pessoa aquilo era um armário com janela.
Ou então era assim que o quarto costumava ser.
Fat Charlie abriu a porta e ficou parado no corredor, piscando.
Havia um quarto, é claro. Isso ainda era verdade. Mas um quarto enorme. Um quarto magnífico. Havia janelas na parede do fundo, enormes janelas que davam para o que parecia uma cachoeira. Por trás dela, o sol tropical estava baixo no horizonte e queimava tudo com sua luz dourada. Havia uma lareira grande o suficiente para assar uns dois bois, na qual a madeira crepitava. Havia uma rede de dormir, de um lado do quarto, ao lado de um sofá absurdamente branco e de uma cama com quatro colunas. Perto da lareira, havia algo que Fat Charlie, que só vira aquilo nas revistas, suspeitava ser um tipo de banheira de hidromassagem. Havia um tapete de zebra e uma pele de urso pendurada numa parede, e também um equipamento moderno de áudio que basicamente consistia num pedaço negro de plástico polido. Numa parede havia uma daquelas TVs de plasma do tamanho do quarto que deveria estar ali. E muito mais.
— O que você fez? — perguntou Fat Charlie. Ele não entrou no quarto.
— Bom, já que eu vou ficar uns dias aqui, pensei em trazer as minhas coisas.
— Suas coisas? “Trazer suas coisas” é trazer umas duas malas de roupa, uns jogos de Play Station e uma planta. Mas isso... isso é...
Ele não tinha palavras.
Spider deu um tapinha no ombro de Charlie enquanto entrava no quarto.
— Se você precisar de mim, estou aqui no meu quarto. — E fechou a porta.
Fat Charlie tentou abrir. Estava trancada.
Foi para a sala da TV, pegou o telefone do corredor e ligou para a Sra.Higgler.
— Quem é que esta ligando a essa hora da manhã? — perguntou ela.
— Sou eu. Fat Charlie. Me desculpe.
— Ce tá ligando por quê?
— Bom, estou ligando para pedir um conselho. É que o meu irmão apareceu.
— O teu irmão?
— Spider. A senhora me falou dele. Você disse para pedir a uma aranha se eu quisesse vê-lo. Eu fiz isso, e ele está aqui.
— Bom — começou ela num tom despreocupado —, isso é ótimo.
— Não, não é.
— Por que não? Ele é da sua família, não é?
— Olha, não posso contar com detalhes agora. Eu só quero que ele vá embora.
— Já tentou falar com ele educadamente?
— Já falamos sobre isso. Ele diz que não vai embora. Montou um quarto que mais parece a arena dos prazeres de Kublai Khan ali no quartinho de despensa, sendo que aqui é preciso permissão até mesmo para colocar vidros anti-ruído na janela. Ele tem uma cachoeira lá. Não lá dentro, do outro lado da janela. E está dando em cima da minha noiva.
— Como você sabe?
— Ele mesmo disse.
— Eu não consigo pensar direito sem tomar café antes.
— Eu só preciso saber como eu faço para ele ir embora.
— Eu não sei — respondeu a Sra. Higgler. — Vou conversar com a Sra. Dunwiddy a respeito.
E desligou.
Fat Charlie foi de novo até o fim do corredor e bateu na porta.
— Que foi dessa vez?
— Quero falar com você.
A porta fez um clique e ficou totalmente aberta. Fat Charlie entrou. Spider estava deitado, nu, dentro da banheira de água quente. Bebia algo que tinha mais ou menos a cor de eletricidade, num copo comprido e gelado. As enormes janelas estavam totalmente abertas, e o barulho da cachoeira contrastava com o jazz lento e líquido que saía das caixas de som ocultas em algum lugar do quarto.
— Olha, você precisa entender que este lugar é a minha casa.
Spider piscou.
— Este lugar? Este lugar aqui é a sua casa?
— Bom, não exatamente. Mas o princípio é o mesmo. Quer dizer, você está no meu quarto extra e você é um hóspede.
Spider tomou um golinho de seu drink e afundou-se confortavelmente na água quente.
— Dizem que hóspedes são como peixes. Começam a feder depois de três dias.
— É um bom argumento.
— Mas é difícil. E difícil quando você passou a vida toda sem ver o seu irmão. Difícil quando ele nem mesmo sabia que você existia. Ainda mais difícil quando você finalmente o encontra e percebe que, para ele, você não vale mais que um peixe morto.
— Mas...
Spider esticou-se na banheira.
— Vou dizer uma coisa: eu não posso ficar aqui pra sempre. Então não esquenta. Vou embora e você nem vai perceber. Da minha parte, jamais pensaria em você como um peixe morto. Entendo que nós estamos passando por uma fase muito estressante. Então não vamos mais falar do assunto. Por que você não sai para almoçar, não vai ao cinema? Não esqueça de deixar a chave de casa.
Fat Charlie pôs o paletó e resolveu sair. Colocou a chave de casa ao lado da pia. O ar fresco estava maravilhoso, embora o dia estivesse cinzento e cuspindo uma garoa fina. Comprou um jornal Parou numa barraquinha e comprou um saco grande de batatas fritas e um salsichão saveloy para o almoço. A chuvinha fina parou. Ele sentou-se num banco em frente a uma igreja, leu o jornal e comeu as fritas e o salsichão.
Estava com muita vontade de ver um filme.
Andou até o Odeon e comprou uma entrada para a primeira sessão que houvesse. Era um filme de ação e aventura, e já tinha começado quando ele entrou. Coisas explodiam. Foi ótimo.
Na metade do filme, ocorreu-lhe que havia algo de que ele não conseguia se lembrar. Estava ali na sua cabeça, em algum lugar, cocando, uns dois centímetros atrás dos olhos, e aquilo distraía sua atenção.
O filme terminou.
Fat Charlie percebeu que, embora tivesse gostado, não conseguia se lembrar muito bem do filme que acabara de ver. Então comprou um saco grande de pipoca e viu tudo de novo. Foi até melhor da segunda vez.
E da terceira.
Depois disso, achou que talvez devesse ir para casa, mas havia uma sessão dupla no fim da noite, em que passariam Eraserhead: Histórias Reais. Ele não vira nenhum dos dois, então assistiu a ambos, embora já sentisse, àquela altura, muita fome. Isso fez com que, no fim da sessão, não entendesse o propósito de Eraserhead ou o que a mulher fazia dentro do aquecedor. Ficou pensando se não o deixariam assistir de novo, mas explicaram a ele pacientemente, e diversas vezes, que precisavam fechar o cinema durante a noite, e perguntaram se ele não tinha para onde ir. Será que já não era hora de ir para casa e dormir?
Claro, ele precisava dormir, e já era hora de dormir, embora ele tivesse esquecido do fato por alguns instantes. Voltou a pé para Maxwell Gardens e ficou um pouco surpreso ao ver que a luz do seu quarto estava acesa.
Ao se aproximar da casa, viu as cortinas fechadas. Havia duas silhuetas à janela, movimentando-se. Pensou ser capaz de reconhecer ambas.
Elas se aproximaram e se fundiram numa única sombra.
Fat Charlie deu um grito alto e terrível.
Na casa da Sra. Dunwiddy havia um monte de animais de plástico. A poeira movia-se lentamente pelo ar, como se estivesse acostumada com os raios de sol de uma era mais preguiçosa e não conseguisse se adaptar a essa luz rápida dos dias de hoje. Havia um plástico transparente cobrindo o sofá e cadeiras que faziam barulho quando a gente se sentava nelas.
Na casa da Sra. Dunwiddy havia papel higiênico áspero com cheiro de pinho — rolos de papel não-absorvente, brilhoso, desconfortável ao toque. A Sra. Dunwiddy acreditava que era bom economizar, e papel higiênico áspero com cheiro de pinho era o máximo que ela se permitia gastar. Ainda é possível encontrar papel higiênico áspero se você procurar bastante e estiver preparado para pagar pelas conseqüências.
A casa dela tinha cheiro de água de violeta. Era uma casa velha. As pessoas esquecem que os filhos dos colonos da Flórida já eram velhos e velhas quando os austeros puritanos chegaram a Plymouth Rock. A casa não era tão velha assim. Fora construída na década de 20, durante um plano de desenvolvimento da Flórida, para ser uma casa-modelo, representar as casas hipotéticas que outros compradores descobririam ser incapazes de construir nos terrenos cheios de pântanos com crocodilos que lhes vendiam. A casa da Sra. Dunwiddy sobrevivera a furacões sem perder uma única telha.
Quando a campainha tocou, a Sra. Dunwiddy estava recheando um pequeno peru. Fez “tsc” com a língua, chateada, lavou as mãos e andou pelo corredor até a porta da frente, olhando o mundo com seus óculos de lentes bem grossas, com a mão esquerda passando pelo papel de parede.
Ela abriu uma fresta da porta e olhou para fora.
— Louella? Sou eu — disse Callyanne Higgler.
— Entra.
A Sra. Higgler seguiu a Sra. Dunwiddy de volta à cozinha. A Sra. Dunwiddy abriu a torneira, pôs as mãos embaixo d’água e continuou a pegar montes de recheio úmido de farinha de milho e enfiar bem fundo dentro do peru.
— Está esperando visita?
A Sra. Dunwiddy fez um ruído evasivo.
— É sempre bom a gente ficar preparada. Que tal me dizer o que tá acontecendo?
— O filho do Nancy. Charlie.
— O que tem ele?
— Bom, eu falei pra ele do irmão quando veio aqui na semana passada.
A Sra. Dunwiddy tirou a mão de dentro do peru.
— Não é o fim do mundo.
— Eu contei pra ele como entrar em contato com o irmão.
— Aaaaah — exclamou a Sra. Dunwiddy. Ela mostrava reprovação com uma única sílaba. — E?
— E ele apareceu lá na Inglaterra. O menino tá ficando maluco.
A Sra. Dunwiddy pegou um bocado de farinha de milho úmida e meteu dentro do peru com tamanha força que teria feito a ave lacrimejar se ainda tivesse olhos.
— Não consegue fazer ele ir embora?
— Não.
Olhos astutos a observaram através de lentes bem grossas. E então a Sra. Dunwiddy disse:
— Eu fiz isso uma vez. Não posso fazer de novo. Não daquele jeito.
— Eu sei. Mas a gente precisa fazer alguma coisa.
A Sra. Dunwiddy suspirou.
— É verdade essa coisa que dizem. Se a pessoa vive o bastante, vai colher tudo o que plantou.
— Não tem outro jeito?
A Sra. Dunwiddy terminou de rechear o peru. Pegou um palito e fechou a pele do bicho. Cobriu tudo com papel alumínio.
— Acho que, se eu puser pra assar amanhã perto da hora do almoço, vai ficar pronto à tarde. Aí eu posso colocar de volta no forno quente no começo da noite, pra ficar pronto pro jantar.
— Quem vem pro jantar? — perguntou a Sra. Higgler.
— Você — respondeu a Sra. Dunwiddy. — Zorah Bustamonte. Bella Noles. E Fat Charlie Nancy. Quando aquele menino chegar aqui, vai estar morrendo de fome.
— Ele vai vir aqui?
— Você não tá escutando, menina? — perguntou a Sra. Dunwiddy. Só a Sra. Dunwiddy poderia chamar a Sra. Higgler de “menina” sem soar como algo absurdo. — Agora me ajuda a pôr esse peru na geladeira.
Seria correto dizer que Rosie tivera a noite mais maravilhosa de toda a sua vida: mágica, perfeita, excelente. Ela não conseguia parar de sorrir, mesmo se quisesse. A comida estava sensacional e, quando terminaram de comer, Fat Charlie levou-a para dançar. Era um salão de dança de verdade, com uma pequena orquestra e pessoas com roupas de tons claros que pairavam sobre a pista de dança. Ela se sentia como se tivesse viajado pelo tempo até uma época mais bonita. Rosie fizera aulas de dança desde os 5 anos de idade, mas nunca teve ninguém para dançar com ela.
— Eu não sabia que você sabia dançar — disse ela. — Há tantas coisas sobre mim que você não sabe.
Aquilo a deixou feliz. Logo, logo se casaria com aquele homem. Havia coisas sobre ele que ela desconhecia? Que ótimo. Teria uma vida inteira para descobri-las. Todo tipo de coisas.
Ela percebeu o modo como outras mulheres, e outros homens, olhavam para Fat Charlie enquanto andava ao seu lado, e ficou feliz por ser a mulher que o acompanhava.
Caminharam pela Leicester Square, e Rosie podia ver as estrelas sobre eles, a luz delas brilhando, apesar da luz forte da rua.
Por um breve momento, ficou pensando por que nunca tinha se sentido daquele jeito com Fat Charlie. Às vezes, lá no fundo, Rosie suspeitava que talvez só continuava a namorar Fat Charlie porque sua mãe não gostava nem um pouco dele. Que somente havia dito sim quando ele a pediu em casamento porque a mãe teria preferido que dissesse não...
Fat Charlie certa vez a levara ao West End. Foram ao teatro. Era uma surpresa de aniversário, mas houve confusão na bilheteria — na verdade, os bilhetes tinham sido emitidos para a apresentação do dia anterior. A gerência foi compreensiva e bastante Prestativa, e conseguiu achar para Fat Charlie um assento atrás de uma pilastra, lá na frente, enquanto Rosie ficou lá em cima, atrás de um grupo de mulheres de Norwich que não paravam de rir. Não foi o que se pode chamar de um sucesso se você considerar esses detalhes.
Mas esta noite tinha sido mágica. Rosie não tivera muitos momentos perfeitos em sua vida, mas, qualquer que fosse o número total deles, tinha acabado de subir mais um.
Adorava o modo como se sentia quando estava com ele.
Quando acabaram de dançar, depois que saíram pela noite, embriagados pelo movimento e pelo champanhe, Fat Charlie — e por que ela pensava nele como Fat Charlie? Afinal, não era nem um pouquinho gordo — colocou o braço em volta dela e disse:
— Agora vamos voltar para a minha casa.
Falou isso numa voz tão profunda e real que fez o estômago dela tremer. Ela não comentou nada sobre ter que trabalhar no dia seguinte nem sobre ter tempo suficiente para aquele tipo de coisa quando se casassem. Não disse absolutamente nada, na verdade. O tempo todo, pensava no quanto não queria que aquela noite acabasse, no quanto queria— Não, no quanto precisava beijar aquele homem na boca e abraçá-lo.
Então, lembrando-se de que deveria dizer alguma coisa em resposta, disse sim.
No caminho, dentro do táxi, ficaram de mãos dadas, e ela se debruçou sobre ele quando a luz dos carros e dos postes iluminou seu rosto.
— Você tem uma orelha furada. Como eu não notei antes que você tem uma orelha furada?
— Ei — disse ele, sorrindo, com sua voz sonora e profunda como um baixo —, como você acha que eu me sinto se você nunca notou algo assim, mesmo a gente estando junto por— quanto tempo mesmo?
— Um ano e seis meses.
— Um ano e seis meses.
Ela se debruçou sobre ele e aspirou seu cheiro.
— Eu adoro o seu cheiro. Você está usando algum perfume?
— É só o meu cheiro.
— Ah, então você devia engarrafar e vender.
Ela pagou o táxi enquanto ele abria a porta da frente. Subiram as escadas juntos. Quando chegaram ao topo, ele parecia se dirigir para o fim do corredor, na direção do quarto dos fundos.
— Ei, o quarto é aqui, seu bobo. Aonde você vai?
— Lugar nenhum. Eu sei que o quarto é aí.
Entraram no quarto de Fat Charlie. Ela fechou as cortinas. Ficou olhando para ele, feliz.
— E então? — perguntou ela, após alguns instantes. — Não vai tentar me beijar?
— Acho que vou — respondeu ele, e a beijou. A dimensão do tempo derreteu, esticou, curvou-se. Ela poderia tê-lo beijado por alguns instantes, por uma hora ou por uma vida inteira. Não saberia dizer. E então...
— Que barulho foi esse?
— Eu não ouvi nada — disse ele.
— Parecia alguém gritando de dor.
— Gatos brigando, talvez.
— Parecia uma pessoa.
— Pode ser uma dessas raposas que vêm pra cidade. Elas fazem um barulho bem parecido com o de gente.
Ela ficou lá, parada, com a cabeça inclinada para um lado, ouvindo atentamente.
— Já parou — disse. — Humm. Quer saber uma coisa estranha?
— Arrã — respondeu ele, com os lábios agora roçando pelo pescoço dela. — Claro, pode me falar a coisa estranha. Mas eu já fiz ela ir embora. Não vai mais perturbar você.
— A coisa estranha é que parecia você.
Fat Charlie vagueou pelas ruas, tentando pôr a cabeça no lugar. O curso de ação mais óbvio seria bater em sua própria porta até Spider descer e deixá-lo entrar e depois falar para os dois tudo o que ele pensava. Isso era óbvio. Perfeita e completamente óbvio.
Só precisava voltar a sua casa, explicar tudo para Rosie e humilhar Spider até fazê-lo ir embora. Só precisava fazer isso. Não era muito difícil, certo?
Mais difícil do que deveria, com certeza. Não sabia ao certo por que fora embora dali. E tinha menos certeza ainda sobre qual o caminho de volta. As ruas que conhecia, ou achava que conhecia, pareciam estar dispostas de uma nova maneira. Ficou dando de cara com becos sem saída, explorando infinitas ruas particulares e tropeçando pelo emaranhado de vias residenciais de Londres.
Às vezes via a avenida principal. Havia semáforos nela, e os luminosos das cadeias de fastfood. Sabia que, se chegasse à avenida principal, conseguiria achar o caminho de volta até sua casa.
No entanto, sempre que caminhava em direção à avenida, acabava em outro lugar.
Seus pés começaram a doer. Seu estômago roncava violentamente. Sentia raiva e, à medida que caminhava, ela aumentava.
A raiva clareou seus pensamentos. As teias de aranha em sua mente começaram a desaparecer. A teia de ruas na qual caminhava começou a ficar menos intricada. Virou uma esquina e percebeu que estava na avenida principal, perto da New Jersey Fried Chicken. Comprou uma embalagem tamanho família de frango frito, sentou-se e comeu tudo sem a ajuda de parente nenhum. Quando terminou, ficou de pé na calçada esperando que um táxi com a luz de “desocupado” passasse por ali. Fez sinal para um grande carro preto, que parou perto dele. A janela desceu.
— Para onde?
— Maxwell Gardens — respondeu Fat Charlie.
— Tá de brincadeira, né? — perguntou o motorista. — Fica logo ali na esquina.
— Pode me levar até lá? Dou cinco libras a mais. De verdade.
O motorista suspirou alto por entre os dentes. Um som parecido com o que um mecânico faria antes de perguntar a você se tinha um apego muito grande ao motor do carro.
— Cê que sabe. Entra aí.
Fat Charlie entrou. O táxi arrancou, esperou a luz do semáforo ficar verde e fez a curva.
— Aonde mesmo você queria ir? — perguntou o motorista.
— Maxwell Gardens — respondeu Fat Charlie. — Número 34.
Logo depois da loja de bebidas.
Fat Charlie estava usando as roupas do dia anterior, mas preferia que não fosse assim. Sua mãe sempre lhe dissera para usar roupa de baixo limpa, caso tivesse um acidente de carro, e para escovar os dentes, caso alguém precisasse identificá-lo pela arcada dentária.
— Eu sei onde fica — comentou o motorista. — E logo antes de Park Crescent.
— Isso mesmo — concordou Fat Charlie. Ele estava adormecendo no banco de trás.
— Acho que peguei a rua errada — disse o motorista. Parecia irritado. — Vou desligar o taxímetro, ok? Vamos deixar por cinco.
— Claro — assentiu Fat Charlie, aconchegando-se no banco de trás do táxi. Adormeceu. O táxi rodava pela noite tentando simplesmente virar a esquina.
A detetive day, atualmente encarregada de uma missão com duração de um ano pelo Batalhão da Fraude, chegou ao escritório da Agência Grahame Coats às 9h30 da manhã. Grahame Coats a esperava na recepção e a acompanhou até seu escritório.
— Gostaria de tomar um café? Chá?
— Não, obrigada.
Ela pegou um caderninho de anotações e sentou-se, olhando para ele, esperando.
— Bom, não sei como deixar ainda mais claro que a discrição deve ser a essência da sua investigação. A Agência Grahame Coats tem uma reputação de integridade e justiça. Aqui o dinheiro de um cliente é sacrossanto. Devo dizer a você que, quando comecei a suspeitar de Charles Nancy, logo tirei aqueles pensamentos da cabeça. Não iria desconfiar de um homem decente e trabalhador dessa maneira. Se você me perguntasse há uma semana o que eu achava de Charles Nancy, eu lhe diria que ele é uma pessoa de caráter admirável.
— Estou certa disso. Então... Quando o senhor se deu conta de que havia dinheiro sendo desviado das contas dos clientes?
— Bom. Não tenho muita certeza ainda. Hesito em lançar uma suposição assim ao léu. Ou jogar a primeira pedra. Não julgueis, para que não sejais julgados.
“Na televisão”, pensou Daisy, “eles sempre dizem algo como ‘limite-se aos fatos’.” Ela queria dizer isso, mas não conseguia. Não gostava daquele homem.
— Eu imprimi todas as transações anômalas aqui — disse ele. — Como você pode ver, todas foram feitas do computador de Nancy. Devo ressaltar mais uma vez que a discrição é fundamental: entre os clientes da Grahame Coats, estão vários figurões públicos e, como informei ao seu superior, considero um favor pessoal se esse assunto for tratado da maneira mais discreta possível. A discrição deve ser sua palavra de ordem. Se por acaso pudermos persuadir o sr. Nancy a simplesmente devolver o dinheiro roubado, ficarei perfeitamente satisfeito em fazer o assunto morrer aí. Não tenho nenhum interesse em processá-lo.
— Farei o possível, mas, no final de tudo, nós recolhemos toda a informação e a repassamos ao Serviço Jurídico da Coroa. — Ela ficou imaginando quanta influência ele tinha sobre o chefão. — O que levou o senhor a suspeitar dele?
— Ah, sim. Francamente, com toda a honestidade, foram certas peculiaridades no comportamento. Coisinhas. O cachorro que deixou de latir à noite, o quanto a salsa afundava na manteiga do prato. Nós, detetives, encontramos sentido nas menores coisas, não é, senhorita Day?
— Ahm, o nome é detetive Day, na verdade. Bom, se o senhor puder me passar os arquivos impressos e outros documentos, como extratos bancários e coisas assim.... Talvez nós precisemos pegar o computador dele para ver o disco rígido.
— Absolutotalmente — concordou ele. O telefone na mesa tocou. — Com licença. — Atendeu e ouviu. — Ah, é? Nossa, diga a ele para me esperar na recepção. Irei vê-lo num instante.
Grahame desligou o telefone e disse a Daisy:
— Isso é o que se poderia chamar, no âmbito policial, de entregar-se de bandeja.
Daisy ergueu uma sobrancelha.
— E o próprio Charles que está aí para me ver. Vamos lá encontrá-lo? Se você precisar, pode usar meu escritório como sala de interrogatório. Acho que até tenho um gravador aí que você pode usar.
Daisy respondeu:
— Não será necessário. A primeira coisa a fazer é examinar a documentação.
— Certo, certo. Que tolo eu sou. Ahm.. você., gostaria de conhecê-lo?
— Não sei no que isso ajudaria.
— Ah, mas eu não diria que você o estaria investigando — assegurou Grahame Coats. — Do contrário, ele já estaria longe da costa-del-crime antes de termos tempo de pronunciar as palavras “provaprimafacie”. Para ser sincero, gosto de acreditar que sou uma pessoa que compreende perfeitamente os problemas da investigação policial hoje em dia.
Daisy pegou-se pensando que qualquer pessoa que roubasse dinheiro desse homem não poderia ser de todo má, o que, ela sabia, não era o jeito certo de um policial pensar.
— Eu a acompanho até a porta.
Na sala de espera, havia um homem sentado. Tinha a aparência de alguém que dormira com as roupas que estava usando. Não tinha feito a barba e parecia meio confuso. Grahame Coats deu uma cutucadinha em Daisy e inclinou a cabeça na direção do homem. Bem alto, disse:
— Charles! Deus do céu, homem, olha só o seu estado. Você está horrível.
Fat Charlie olhou para ele com olhos embaçados.
— Não consegui chegar em casa ontem à noite. Um problema com o táxi.
— Charles, essa é a detetive Day, da Polícia Metropolitana. Ela está aqui fazendo uma investigação de rotina.
Fat Charlie percebeu que havia mais uma pessoa ali. Tentou focalizar o olhar e viu roupas austeras, que mais pareciam um uniforme. Então viu o rosto. E murmurou:
— Ahm...
— Bom dia — cumprimentou Daisy. Isso foi o que a boca dela disse. Mas, em sua mente, só dizia drogadrogadrogadrogadrogadroga repetidas vezes.
— Prazer em conhecê-la — respondeu Fat Charlie. Confuso, fez algo que nunca fizera antes: imaginou a policial sem roupa e percebeu que sua imaginação lhe dera uma imagem precisa da jovem com a qual acordou na manhã antes do sonho com o pai. As roupas sérias a tornavam um pouco mais velha, mais séria e muito mais assustadora. Mas era ela, sem dúvida nenhuma.
Como todos os seres conscientes, Fat Charlie tinha um limite para a esquisitice. Nos últimos dias, o esquisitômetro estava batendo no vermelho, às vezes quase no limite. Agora havia explodido. A partir desse momento, ele suspeitou, nada o deixaria surpreso. Não haveria mais nenhuma maneira de fazê-lo achar algo esquisito. Era o limite.
Ele estava errado, é claro.
Fat Charlie observou enquanto Daisy ia embora e seguiu Grahame Coats até o escritório dele.
Grahame Coats fechou a porta. Apoiou o traseiro na mesa e sorriu como uma doninha que acabava de descobrir que ficaria acidentalmente presa a noite toda dentro de um galinheiro.
— Vamos logo ao assunto. Vamos pôr as cartas na mesa. Nada de enrolação. Vamos pôr tudo em pratos limpos.
— Tudo bem — disse Fat Charlie. — Vamos lá. Você disse que tinha uns papéis para eu assinar?
— Não é mais isso. Esqueça isso. Vamos discutir algo que você falou comigo alguns dias atrás. Você me alertou a respeito de algumas transações suspeitas que estavam acontecendo aqui.
— Alertei?
— Quando um não quer, Charles, dois não brigam. Naturalmente o meu primeiro impulso foi investigar. Por isso tivemos a visita da detetive Day hoje de manhã. E o que eu descobri, imagino, não o deixará nem um pouco surpreso.
— Não?
— Certamente não. Existem, como você mesmo disse, indicadores de que definitivamente houve alguma irregularidade nas finanças. Mas, o que é uma pena, o caprichoso dedo da suspeita aponta sem dúvida para apenas uma direção.
— Uma direção?
— Uma direção.
Fat Charlie estava completamente perdido.
— Para onde?
Grahame Coats tentou parecer preocupado, ou pelo menos parecer que tentava parecer preocupado. Ele fez uma cara que, nos bebês, sempre indica que precisam arrotar.
— Para você, Charles. A polícia considera você o principal suspeito.
— Sim. Mas é claro. Combina com o resto do dia.
E Fat Charlie foi para casa.
Spider abriu a porta da frente. Fat Charlie estava ali, na chuva, de pé, amarrotado e molhado.
— Então, não tenho permissão para entrar na minha casa, é isso?
— Eu não faria nada para impedi-lo — respondeu Spider — É a sua casa, afinal de contas. Onde você esteve a noite toda?
— Você sabe perfeitamente onde eu estive. Estava tentando chegar em casa, mas não conseguia. Não sei que tipo de magia você usou comigo.
— Não foi magia — observou Spider, ofendido. — Foi um milagre.
Fat Charlie passou por ele e subiu a escada com passos barulhentos. Entrou no chuveiro, tapou o ralo da banheira e abriu as torneiras. Debruçou-se na parede do corredor.
— Não interessa o nome. Você está lançando essa coisa sobre a minha casa e me impediu de vir para cá ontem à noite. — Ele tirou as roupas de anteontem. Colocou a cabeça do lado de fora da porta. — E a polícia está atrás de mim no trabalho. Você falou para o Grahame Coats que havia irregularidades financeiras?
— Claro que falei — respondeu Spider.
— Ha! Bom, agora ele suspeita que eu sou o culpado, só isso.
— Ah, eu acho que não.
— Você não sabe de nada. Eu conversei com ele. Até a polícia está envolvida. E tem a Rosie. Você e eu vamos ter uma longa conversa sobre a Rosie quando eu terminar o meu banho. Mas primeiro vou entrar na banheira. Passei a noite toda perdido por aí. Foi a primeira vez que dormi no banco de trás de um táxi. Quando acordei, eram cinco da manhã e o motorista estava virando o Travis Bickle de Táxi Driver. Ele falava sozinho. Disse a ele que era melhor a gente desistir de encontrar Maxwell Gardens e que obviamente não era uma boa noite para ir até lá. Ele acabou concordando. Nós fomos tomar café-da-manhã num desses lugares em que os taxistas comem pela manhã. Ovos, feijão, salsicha, torrada e um chá tão forte que dava para equilibrar a colher lá dentro. Quando ele disse prós outros motoristas que dirigiu a noite inteira tentando achar Maxwell Gardens, pensei que iam matá-lo. Não aconteceu, mas foi quase.
Fat Charlie parou para tomar ar. Spider fez uma cara de culpado.
— Depois— disse Fat Charlie. — Depois do meu banho. E fechou a porta do banheiro.
Entrou na banheira.
Fez um barulho de “uuuf”.
Saiu da banheira.
Desligou as torneiras.
Enrolou-se numa toalha e a abriu a porta do banheiro.
— Não tem água quente — disse de um jeito excessivamente calmo. — Você por acaso sabe por que não tem água quente?
Spider ainda estava no corredor. Não tinha se movido.
— É a minha banheira de água quente. Me desculpe.
Fat Charlie respondeu:
— Bom, pelo menos Rosie não... Quer dizer, ela não teria...
Então ele viu a expressão no rosto de Spider.
— Quero que você saia daqui. Quero que saia da minha vida. Da vida de Rosie. Para sempre.
— Eu gosto daqui.
— Você está acabando com a minha vida.
— Dureza, né?
Spider andou pelo corredor e abriu a porta que dava para o quarto extra de Fat Charlie. A luz tropical do sol inundou o corredor por um instante, e então a porta se fechou.
Fat Charlie lavou os cabelos com água fria. Escovou os dentes. Vasculhou o cesto de roupas sujas até encontrar uma calça jeans e uma camiseta que, por estarem no fundo, estavam quase limpas de novo. Colocou a roupa e um suéter roxo com um ursinho de pelúcia que sua mãe lhe dera e ele nunca usara, mas também não tivera a oportunidade de doar.
Caminhou até o fim do corredor.
Podia-se ouvir o bum-tchá-bum do som do baixo e da bateria através da porta.
Fat Charlie chacoalhou a maçaneta. A porta não cedeu.
— Se você não abrir essa porta, eu vou arrombá-la.
A porta abriu sem aviso, e Fat Charlie entrou correndo no quarto de despensa no fim do corredor. A vista na janela era a parte de trás da casa que havia nos fundos — o pouco que se podia ver dela através da chuva que castigava a vidraça.
Mesmo assim, de algum lugar, a somente uma parede de distância, havia um aparelho de som tocando música bem alto: tudo no quarto de despensa vibrava com um distante bum-tchá-bum.
— Certo — começou Fat Charlie, em tom casual. — Obviamente você tem consciência de que isso é uma declaração de guerra.
Era o grito tradicional de guerra do coelho, quando provocado. Há lugares em que as pessoas acreditam que Anansi foi um coelho que pregava peças. Elas estão erradas, é claro. Anansi era uma aranha. Talvez você pense que as duas criaturas não poderiam ser confundidas, mas isso acontece com mais freqüência do que você imagina.
Fat Charlie foi para seu quarto. Pegou o passaporte em uma gaveta perto da cama. Encontrou sua carteira onde a tinha deixado, no banheiro.
Desceu a avenida principal e, na chuva, fez sinal para um táxi.
— Para onde?
— Aeroporto de Heathrow — disse Fat Charlie.
— Certo. Qual terminal?
— Não faço a menor idéia — respondeu Fat Charlie, consciente de que deveria saber uma coisa dessas. Afinal de contas, fazia poucos dias. Perguntou ao motorista:
— De que terminal sai avião para a Flórida?
Grahame Coats começou a planejar sua saída da agência Grahame Coats na época em que John Major era primeiro-ministro (Sucessor de Margaret Thatcher, foi chefe do governo britânico entre 1990 e 1997). Afinal, nada que é bom dura para sempre. Mais cedo ou mais tarde, como o próprio Grahame Coats tinha o prazer de assegurar, mesmo se você tem um pato que bota ovos dourados, ele irá para a panela. Embora seu plano fosse bom — nunca se sabe quando é preciso ir embora de uma hora para outra, e ele estava ciente de que os acontecimentos formavam uma nuvem negra no horizonte —, resolveu adiar sua partida para o momento em que não pudesse mais adiá-la.
O mais importante, decidira havia muito tempo, não era ir embora, e sim desaparecer, evaporar, escafeder-se sem deixar rastro.
Num cofre oculto em seu escritório — um escritório espaçoso do qual se sentia bastante orgulhoso —, sobre uma prateleira que ele mesmo instalara e recentemente precisou ser recolocada no lugar depois que caiu, havia uma maletinha de couro com dois passaportes: um em nome de Basil Finnegan e outro em nome de Roger Bronstein. Cada um desses homens nascera havia 50 anos, assim como Grahame Coats, mas tinham morrido em seu primeiro ano de vida. Ambas as fotografias nos passaportes eram de Grahame Coats. A maletinha também continha duas carteiras, cada uma com um conjunto de cartões de crédito e documentos com fotos no nome do titular de cada um dos dois passaportes. Cada nome era signatário das contas nas Ilhas Cayman, as quais por sua vez desviavam dinheiro para outras contas nas Ilhas Virgens Britânicas, na Suíça e em Liechtenstein.
Grahame Coats planejava ir embora de vez no seu aniversário de 50 anos, que aconteceria dali a pouco mais de um ano. No momento, pensava sobre o problema de Fat Charlie.
Ele na verdade não esperava que Fat Charlie fosse para a prisão, embora não fizesse objeção a essa possibilidade, caso ocorresse. Queria que ele ficasse com medo, perdesse sua reputação, sumisse.
Grahame Coats sentia grande alegria em ludibriar os clientes da Agência Grahame Coats, e era bom nisso. Ficou bastante surpreso ao descobrir que, contanto que escolhesse sua clientela com cuidado, as celebridades e artistas que representava sabiam muito pouco sobre finanças e ficavam aliviadas ao descobrir que alguém os representaria, administraria seu dinheiro e as certificaria de que não havia com o que se preocuparem. Se às vezes havia cheques que demoravam a chegar em suas contas, ou se havia débitos diretos não-identificados nas contas dos clientes, Grahame Coats tinha uma grande rotatividade com seus funcionários, especialmente no departamento de contabilidade, e nada era mais fácil do que pôr a culpa na incompetência de um ex-funcionário ou fazer quem desconfiava mudar de idéia com uma caixa de champanhe e um cheque gordo como pedido de desculpas.
Não que gostassem de Grahame Coats ou que confiassem nele. Até mesmo os que eram representados por ele o consideravam um sujeito não confiável, uma doninha esperta. Mas acreditavam que conseguiam domar aquela doninha, fazê-la trabalhar para eles, e era aí que se enganavam.
Grahame Coats só trabalhava para si mesmo.
O telefone em sua mesa tocou, e ele atendeu.
— Sim?
— Senhor Coats? Maeve Livingstone está na linha. Eu sei que o senhor disse para transferi-la para o Fat Charlie, mas ele está de folga, e eu não sabia o que dizer. Digo que o senhor não está?
Grahame Coats pensou por alguns instantes. Antes que um ataque repentino do coração o levasse embora, Morris Livingstone, que fora certa vez o mais adorado comediante baixinho de Yorkshire do país, era a estrela de séries famosas da TV, como Short Back and Slidese seu programa de variedades do sábado, Morris Livingstone, I Presume. Até havia emplacado uma música entre “dez mais” na década de 80: “It s Nice Out (But Put It Away)”. Pessoa amigável e pacífica, não apenas deixara seus assuntos financeiros aos encargos da Agência Grahame Coats como também estabelecera, por sugestão de Grahame Coats, que o próprio Coats fosse fiduciário de seus bens.
Seria um crime não ceder a uma tentação dessas.
E havia também Maeve Livingstone. Seria justo dizer que ela havia aparecido por muitos anos, sem saber, em papéis principais e secundários nas mais diversas fantasias ocultas de Grahame Coats.
Grahame Coats disse à secretária:
— Sim, pode transferi-la. — E então, com voz solícita: — Maeve, como é bom falar com você. Como vai?
— Não muito bem.
Maeve Livingstone era dançarina quando conheceu Morris, e sempre foi mais alta que seu marido baixinho. Eles se adoravam.
— Bom, por que não me conta?
— Eu falei com Charles alguns dias atrás. Eu andei pensando. Bem, o gerente do meu banco andou pensando... O dinheiro de Morris. Você disse que nós receberíamos uma parte dele mais ou menos nesta época.
— Maeve — respondeu Grahame Coats com o que ele imaginava ser sua voz mais aveludada e profunda, a voz que acreditava atrair as mulheres —, o problema não é que o dinheiro não está na sua conta. E apenas uma questão de liquidez. Como eu já disse, Morris fez vários investimentos imprudentes no fim da vida e, embora ele também tenha feito alguns bons investimentos, seguindo meus conselhos, precisamos deixar que esses bons investimentos tenham tempo para amadurecer. Não podemos tirar o dinheiro agora sem perder tudo. Mas não vos preocupais, não vos preocupais. Faço qualquer coisa por uma boa cliente. Eu farei um cheque da minha própria conta bancária para deixá-la com saldo. Quanto é que o gerente quer?
— Ele diz que vai ter que começar a devolver cheques e a BBC me disse que vai enviar o dinheiro correspondente aos lançamentos dos shows antigos em DVD. Esse dinheiro não foi investido, né?
— Foi o que a BBC disse? Para falar a verdade, nós estamos atrás deles para que nos paguem. Mas eu não quero colocar toda a culpa na BBC. A nossa contadora está grávida, e as coisas por aqui estão bem confusas. E Charles Nancy, com quem você conversou, está um tanto abalado. O pai dele morreu, ele tem viajado muito para fora do país...
— Da última vez que nos falamos — interrompeu ela —, você disse que tinha problemas porque estava instalando computadores novos aí.
— E de fato estávamos. Por favor, nem me faça falar nesses malditos programas de contabilidade. Como é mesmo que dizem? Errar é humano, mas... ahm... para atrapalhar tudo mesmo, você só precisa de um computador. Algo do tipo. Vou investigar o caso a fundo, à mão se necessário, do jeito mais tradicional, e o seu dinheiro voltará para você. E o desejo de Morris.
— O meu gerente diz que eu preciso de 10 mil libras imediatamente só para os cheques pararem de voltar.
— E você terá 10 mil libras. Estou fazendo um cheque para você neste exato momento. — Ele desenhou um círculo em seu bloco de anotações, com uma linha saindo do topo. Parecia mais ou menos uma maçã.
— Fico muito grata — respondeu Maeve, e Grahame ficou todo orgulhoso. — Espero não estar atrapalhando você.
— Imagina, você nunca atrapalha — disse Grahame Coats. — De forma nenhuma.
Desligou o telefone. “A parte mais engraçada”, pensou Grahame Coats, “é que os personagens cômicos de Morris sempre foram uma paródia do típico homem teimoso de Yorkshire, orgulhoso por saber o paradeiro de cada centavo que tinha.”
“Foi uma bela jogada”, pensou Grahame Coats, e acrescentou dois olhos e duas orelhas à maçã. Agora o desenho se parecia, ele decidiu, mais ou menos com um gato. Logo seria a época de trocar toda uma vida dedicada ao roubo de celebridades mimadas por uma vida com muito sol, piscinas, excelentes refeições, bons vinhos e, se possível, muito sexo oral. Grahame Coats estava convencido de que as melhores coisas da vida poderiam sempre ser trocadas por dinheiro.
Desenhou uma boca no gato e a encheu de dentes afiados, de modo que agora o desenho parecia um pequeno leão da montanha. Enquanto desenhava, começou a cantar numa voz sibilante de tenor.
When I were a young man my father would say
It’s lovely outside, you should go out and play
But now that I m older, the ladies all say
It’s nice out, but put it away.[2]
Morris Livingstone, já morto, pagara pelo duplex em Copacabana e pela instalação da piscina na ilha de Saint Andrews, e ninguém deveria pensar que Grahame Coats não se sentia grato a ele.
It’s nice out, but put it awaaaaaaay
Spider sentia-se estranho.
Alguma coisa estava acontecendo: uma sensação esquisita alastrava-se como uma névoa, e aquilo arruinava o seu dia. Ele não conseguia identificar o que era e não gostava nada daquilo.
Se havia uma coisa que ele definitivamente não sentia, essa coisa era culpa. Simplesmente não era o tipo de sentimento que ele costumava ter. Sempre se sentiu o máximo. Sempre se sentiu no controle. Não se sentia culpado. Não se sentiria culpado nem se fosse pego em flagrante roubando um banco.
E lá estava, pairando sobre ele, uma nuvem de desconforto.
Até aquele momento, Spider acreditara que deuses eram diferentes: eles não tinham consciência, nem precisavam ter. A relação de um deus com o mundo, mesmo um mundo no qual vivia, tinha tanta ligação emocional quanto a ligação emocional existente no caso de alguém que conhece a estrutura geral de jogo de computador e se arma com vários códigos para burlar o jogo.
Spider sempre se divertia. Era o que sabia fazer. Essa era a parte importante. Não reconheceria o que é a culpa nem se alguém desse a ele um guia ilustrado com todas as partes explicadas num diagrama. Não que fosse irresponsável. Ele não estava presente no dia em que distribuíram o tal sentido de responsabilidade. Mas algo havia mudado dentro ou fora dele, não sabia ao certo, e isso o perturbava. Serviu-se de mais um drink. Fez um gesto com a mão, e a música ficou mais alta. Mudou o CD, de Miles Davis para James Brown. Ainda assim, não adiantou.
Deitou-se na rede, sob o sol tropical, ouvindo a música, divertindo-se com o fato de que era maravilhoso ser ele mesmo. Pela primeira vez, aquilo de alguma maneira não lhe bastava.
Levantou-se da rede e foi até a porta.
— Fat Charlie?
Não houve resposta. O apartamento parecia vazio. Do lado de fora havia um dia cinzento acompanhado de chuva. Spider gostava da chuva. Parecia adequada à situação.
Com um trilado suave, o telefone tocou. Spider atendeu.
Era a voz de Rosie.
— É você?
— Oi, Rosie.
— Ontem à noite — começou ela. E depois não disse nada. Mas retomou: — Foi tão maravilhoso para você como foi para mim?
— Eu não sei. Para mim foi maravilhoso. Então imagino que a resposta seja “sim”.
— Humm. — Ficaram calados. — Charlie?
— Humm?
— Eu até gosto de ficar calada, sem falar nada. Só de saber que você está aí do outro lado da linha.
— Eu também.
Saborearam a sensação de não falar nada por mais alguns instantes, fazendo-a durar mais.
— Você quer vir me visitar hoje à noite aqui em casa? — perguntou Rosie. — Minhas colegas foram para as montanhas Cairngorms.
— Essa — começou Spider — talvez seja a frase mais bela jamais dita. Minhas colegas foram para as montanhas Cairngorms. Pura poesia. Ela riu.
— Seu bobo. Você traz... sua escova de dentes?
— Ah. Aaaah. Claro.
Depois de vários minutos de “você desliga o telefone” e “não, você desliga primeiro”, dignos da conversa de um casal de 15 anos de idade cheio de hormônios, o telefone finalmente foi desligado.
Spider sorriu como um santo. O mundo, desde que Rosie estivesse nele, era o melhor mundo que qualquer mundo poderia ser. A névoa passou, e o mundo voltou a ser alegre.
Nem mesmo ocorreu a Spider imaginar onde estaria Fat Charlie. Por que deveria se preocupar com coisinhas insignificantes? As moças que moravam com Rosie foram para as montanhas Cairngorms, e esta noite... Bem, esta noite ele levaria sua escova de dentes.
O corpo de Fat Charlie estava num aviáo a caminho da Flórida, dormindo espremido num assento no meio de uma fileira de cinco pessoas. Isso era bom — os banheiros do fim do corredor apresentaram um problema no funcionamento assim que o avião decolou. Embora os atendentes tivessem colocado avisos dizendo “enguiçado” nas portas, isso de nada adiantou para melhorar o cheiro, que se espalhava lentamente pelo fundo do avião como uma névoa química. Havia bebês berrando, adultos resmungando e crianças choramingando. Um grupo de passageiros a caminho do Walt Disney World, achando que o passeio já começava no avião, começou a cantar. Cantaram “Bibbidi-Bobbidi-Boo”, “The Wonderful Thing About Tigers”, “Under the Sea” e “Heigh, Ho, Heigh Ho, It’s Off To Work We Go” e até, pensando que também era uma canção da Disney, “Were Off to See the Wizard”.
Logo que o avião decolou, descobriu-se que, devido a uma confusão com o pessoal que cuidava da comida, nenhuma refeição para a classe econômica fora colocada a bordo. Em vez disso, só havia embalagens de café-da-manhã, o que significava que haveria pacotes individuais de cereal e banana para todos os passageiros, e eles teriam que comer com garfos e facas de plástico, porque infelizmente não havia colheres. Isso, por sua vez, até que era bom, já que logo não haveria leite para colocar no cereal.
Era um vôo infernal, e Fat Charlie dormia durante todo o tempo.
No sonho de Fat Charlie, ele estava num grande salão, usando fraque. Rosie estava perto dele, usando um vestido branco de noiva.
Do outro lado do galpão perto de Rosie, estava a mãe dela, absurdamente também vestida de noiva, embora seu vestido estivesse coberto de poeira e teias de aranha. Bem longe, no horizonte, que era o fim do salão, havia pessoas atirando para o alto e balançando bandeiras brancas.
— São as pessoas da mesa H — disse a mãe de Rosie. — Não dê atenção a elas.
Fat Charlie virou-se para Rosie. Ela sorriu para ele com seu sorriso doce e delicado e então lambeu os lábios.
— Bolo — disse Rosie em seu sonho.
Este era o sinal para que a orquestra começasse a tocar. Era uma banda de jazz estilo New Orleans, e eles tocavam uma marcha fúnebre.
A assistente do chef era uma policial. Ela segurava um par de algemas. O chef trouxe o bolo até o galpão numa mesa com rodinhas.
— Agora — disse Rosie para Fat Charlie, em seu sonho — corte o bolo.
As pessoas na mesa B — que não eram pessoas, e sim camundongos, ratos, jumentos e cavalos de desenho animado do tamanho de seres humanos — começaram a cantar músicas dos desenhos da Disney. Fat Charlie sabia que queriam que ele cantasse também. Mesmo dormindo, sentia o pânico tomar conta dele com a simples idéia de ter que cantar em público. Não conseguia sentir seus membros direito, os lábios formigavam.
— Eu não posso cantar com vocês — disse Fat Charlie aos bichos da mesa H, desesperado, tentando desculpar-se. — Eu preciso cortar o bolo.
Com isso, todo o salão ficou em silêncio. E, no silêncio, um chef entrou, carregando um carrinho com rodas que tinha alguma coisa em cima. O chef tinha a cara de Grahame Coats, e no carrinho havia um bolo de casamento branco, enorme, todo cheio de ornamentos, com muitos andares. Uma pequena noiva e um pequeno noivo estavam empoleirados, quase caindo, sobre o último andar do bolo, como duas pessoas tentando se equilibrar sobre um edifício Chrysler confeitado.
A mãe de Rosie colocou a mão embaixo da mesa e de lá tirou uma faca comprida, com cabo de madeira — quase um facão — e lamina enferrujada. Passou a faca para Rosie, que pegou a mão direita de Fat Charlie e colocou sobre a dela. Juntos, eles pressionaram a faca enferrujada sobre a espessa camada de confeito branco do andar superior do bolo, e a empurraram para dentro, entre o noivo e a noiva. O bolo ofereceu certa resistência de inicio, e Fat Charlie fez mais força, colocando todo o seu peso sobre a faca. Sentiu que o bolo começava a ceder. Empurrou afaça com mais força ainda.
A lamina cortou a camada mais alta do bolo de casamento. Ela escorregava e cortava todo o bolo, de cima a baixo, através de todos os andares e camadas, e, a medida que cortava, o bolo se abria...
Em seu sonho, Fat Charlie pensou que o bolo estivesse cheio de contas negras, bolinhas de vidro negro ou carvão mineral polido. À medida que elas calam, ele se dava conta de que as contas tinham pernas, cada uma com oito perninhas ágeis, e saíam de dentro do bolo formando uma onda negra. As aranhas avançaram e cobriram a toalha de mesa branca. Cobriram a mãe de Rosie e a própria Rosie, fazendo com que seus vestidos brancos ficassem tão negros quanto o ébano. Então, como se fossem controladas por alguma inteligência poderosa e maligna, vieram, centenas delas, para cima de Fat Charlie.
Ele tentou correr, mas suas pernas estavam presas a algum tipo de planta elástica, e ele caiu no chão.
Agora estavam sobre ele, suas perninhas andando sobre sua pele. Ele tentou se levantar, mas estava afundado em aranhas.
Fat Charlie queria gritar, mas sua boca estava cheia de aranhas. Cobriram seus olhos, e seu mundo ficou completamente escuro...
Fat Charlie abriu os olhos e não viu nada além de escuridão. Ele gritou, gritou, gritou e gritou mais ainda. Então se deu conta de que as luzes estavam apagadas, e as janelas, fechadas, porque as pessoas assistiam a um filme.
Já era um vôo infernal. Fat Charlie só deixou um pouco pior para todo mundo.
Ele se levantou e tentou sair de sua fileira, tropeçando nas pessoas enquanto passava. Depois, quando estava quase chegando ao corredor, ficou ereto e bateu a testa no armário sobre a cabeça dos passageiros, o que fez com que a porta abrisse e deixasse cair a bagagem de mão de alguém sobre a cabeça dele.
As pessoas ali perto, as que viam a cena, riram. Aquilo era uma excelente cena de comédia, no estilo pastelão, e elas se divertiram muitíssimo.