A funcionária da imigração apertou os olhos observando o passaporte de Fat Charlie, como se estivesse desapontada por ele não ser um estrangeiro que ela poderia simplesmente impedir de entrar no país. Com um suspiro, fez sinal com a mão para que ele passasse.
Ele ficou pensando no que faria assim que passasse pela alfândega. “Alugar um carro”, pensou. “E comer.”
Saiu da van e atravessou a barreira de segurança, na direção da grande ala de lojas do aeroporto de Orlando. Não ficou nem um pouco surpreso ao ver a Sra. Higgler ali de pé, examinando o rosto dos que chegavam com uma enorme caneca de café na mão. Os dois se viram mais ou menos no mesmo instante, e ela foi até ele.
— Tá com fome? — perguntou.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Bom. Então tomara que goste de peru.
Fat Charlie ficou pensando se o carro da Sra. Higgler, a perua vermelho-escuro, era o mesmo de que ele se lembrava quando menino. Suspeitou que sim. Devia ter sido novo em alguma época, sem dúvida. Tudo no mundo foi novo em algum momento, afinal. O revestimento dos assentos era um couro rachado que estava se desfazendo. O painel era de madeira envernizada, coberta de pó.
Havia um saco de supermercado marrom entre eles, no assento.
Não havia suporte para copo no milenar carro da Sra. Higgler. Ela segurava a enorme caneca de café entre suas coxas enquanto dirigia. O carro parecia de uma época anterior ao ar-condicionado, e ela dirigia com as janelas abertas. Fat Charlie não se importava. Depois do friozinho úmido da Inglaterra, o calor da Flórida era bem-vindo. A Sra. Higgler dirigia para o sul, em direção à auto-estrada com pedágio. Ela falava sobre várias coisas enquanto dirigia: o último furacão, como ela levou o sobrinho Benjamim para o Sea World e o Walt Disney World e que todos os lugares turísticos haviam mudado para pior, o preço da gasolina, o que disse para o médico que sugeriu uma cirurgia para colocar uma prótese no osso do quadril, por que os turistas insistiam em alimentar os crocodilos e por que as pessoas recém-chegadas construíam casas perto da praia e sempre ficavam surpresas quando a praia ou a casa iam embora, ou quando os crocodilos comiam seus cães. Fat Charlie deixou-a falar. Só estava jogando conversa fora.
A Sra. Higgler diminuiu a velocidade e pegou o tíquete que a deixaria passar pelo pedágio. Parou de falar. Parecia estar pensando.
— Então cê conheceu o seu irmão.
— Sabe, a senhora poderia ter me avisado.
— Eu avisei que ele era um deus.
— Mas esqueceu de dizer que ele é simplesmente insuportável, intragável.
A Sra. Higgler fungou. Tomou um gole de café.
— Será que tem algum lugar onde a gente possa parar pra comer? — perguntou Fat Charlie. — Só serviram cereal com banana no avião. Sem colher. E o leite acabou antes de chegar à minha fileira. Aí se desculparam e nos deram uns vales-refeições para compensar. — A Sra. Higgler fez que não com a cabeça. — Eu podia ter usado o vale para comer um hambúrguer no aeroporto.
— Olha só — começou ela. — A Louella Dunwiddy fez um peru. Como você acha que ela vai ficar se a gente chegar lá e cê tiver enchido a barriga no McDonalds e estiver sem fome? Hein?
— Mas eu estou morrendo de fome. E a gente só vai chegar lá daqui a mais de duas horas.
— Não — discordou ela com firmeza. — Não comigo dirigindo.
Então ela acelerou. De vez em quando, quando a perua vermelho-escuro estremecia na estrada, Fat Charlie fechava bem os olhos e ao mesmo tempo apertava com o pé esquerdo um freio imaginário. Era exaustivo.
Em muito menos de duas horas chegaram à última saída da estrada de pedágio e passaram para a estrada local. Dirigiram-se à cidade. Passaram pela Barnes and Noble e pelo Office Depot. Olharam de passagem casas que valiam milhões de dólares, com seguranças na frente. Percorreram as ruas residenciais mais antigas, que Fat Charlie lembrava estarem mais bem cuidadas quando era pequeno. Viram a vendinha de comida indiana e o restaurante com bandeira jamaicana na janela, com cartazes escritos à mão fazendo propaganda dos pratos especiais do dia: arroz com rabada, cerveja caseira e frango ao curry.
Fat Charlie ficou com água na boca. Seu estômago roncou.
O carro deu uma guinada e balançou. Agora as casas eram mais velhas, e dessa vez tudo parecia familiar.
Os flamingos cor-de-rosa de plástico ainda faziam pose no jardim da frente da casa da Sra. Dunwiddy, embora o sol os tivesse deixado desbotados com o passar dos anos. Havia também uma bola de cristal espelhada e, quando Fat Charlie passou por ela e a viu, ficou com muito medo por um instante.
— As coisas estão muito ruins lá com o Spider? — perguntou a Sra. Higgler enquanto caminhavam para a porta de entrada.
— Vamos dizer assim: eu acho que ele está dormindo com a minha noiva. Algo que eu mesmo nunca fiz.
— Ah. Xiiii — fez a senhora Higgler. E tocou a campainha.
“É mais ou menos como Macbeth” , pensou Fat Charlie uma hora depois. Na verdade, se as bruxas em Macbeth fossem quatro velhinhas e se, em vez de remexerem um caldeirão e realizarem encantamentos, elas convidassem Macbeth e oferecessem a ele peru, arroz e ervilhas em pratos de porcelana branca, sobre uma toalha de mesa xadrez de plástico vermelho — para não mencionar também a torta de batata-doce e o repolho apimentado —, e o encorajassem a se servir uma segunda vez, e uma terceira, e, quando Macbeth declarasse que não, que já estava bem cheio, a ponto de explodir, e não poderia comer mais, e as bruxas insistissem para que ele provasse a receita especial de arroz-doce típico e uma grande fatia da famosa torta de abacaxi da Sra. Bustamonte, teria sido exatamente como Macbeth.
— Pois então — começou a Sra. Dunwiddy, limpando uma migalha de bolo de abacaxi do canto da boca. — Eu soube que o seu irmão foi ver você.
— Sim. Eu falei com uma aranha. Acho que foi culpa minha. Nunca achei que fosse acontecer alguma coisa.
Um coro de “xiii” e “tsc, tsc” percorreu a mesa enquanto a Sra. Higgler, a Sra. Dunwiddy, a Sra. Bustamonte e a Sra. Noles estalavam a língua e balançavam a cabeça.
— Ele sempre dizia que você era o filho mais bobo — observou a Sra. Noles. — O seu pai. Mas eu nunca acreditei nele.
— Ora, como eu ia saber? — protestou Fat Charlie. — Os meus pais nunca me disseram algo como: “Ah, filho, a propósito, você tem um irmão que você não conhece. Se convidá-lo para aparecer na sua vida, ele vai fazer a polícia ir atrás de você, dormir com a sua noiva e não vai apenas se mudar para sua casa como também vai criar uma casa nova para ele no quarto extra. E vai lhe fazer uma lavagem cerebral, obrigando você a ir ao cinema e passar a noite inteira tentando chegar em casa e...”
Ele parou de falar. Era o modo como elas olhavam para ele.
Todas suspiraram. O suspiro passou da Sra. Higgler para a Sra. Noles, e da Sra. Noles para a Sra. Bustamonte, e da Sra. Bustamonte para a Sra. Dunwiddy. Era um efeito um tanto perturbador, meio assustador, mas a Sra. Bustamonte arrotou e quebrou o clima.
— Então o que você deseja? — perguntou a Sra. Dunwiddy. — Diga o que quer.
Fat Charlie pensou sobre o que queria, ali, na pequena sala de jantar da Sra. Dunwiddy. Lá fora a luz do dia gentilmente cedia lugar à noite.
— Ele está tornando a minha vida um inferno — respondeu Fat Charlie. — Eu só quero que vocês façam com que ele vá embora. Mais nada. Vocês podem fazer isso?
As três senhoras mais jovens não disseram nada, apenas olharam para a Sra. Dunwiddy.
— A gente na verdade não pode fazê-lo ir embora — disse ela. — A gente já— — e então se calou. — Bom, a gente fez tudo o que podia.
Devemos dar crédito a Fat Charlie por ele não ter, por mais que quisesse, começado a chorar ou se desmanchar como um suflê que não assou direito. Ele simplesmente assentiu com a cabeça. E disse:
— Bom... Desculpem a chateação. Obrigado pelo jantar.
— A gente não pode mandá-lo embora — repetiu a sra Dunwiddy, com os olhos castanhos parecendo quase pretos por trás de seus óculos de lentes muito grossas. — Mas a gente pode indicar alguém que pode fazer isso.
Era início de noite na Flórida, o que significava que era tarde da noite na Inglaterra. Na grande cama de Rosie, onde Fat Charlie nunca estivera, Spider estremeceu.
Rosie apertou-o contra si, sua pele contra a dele.
— Charles, você está bem? — Ela podia sentir a pele dos braços dele arrepiada.
— Estou. Só uma sensação esquisita, de repente.
— Algum espírito deve ter passado por aqui — brincou ela.
Ele a puxou para si e a beijou.
Daisy estava sentada na pequena sala de sua casa em Hendon, usando uma camisola verde-claro e chinelos felpudos cor-de-rosa. Estava na frente do computador, balançando a cabeça e clicando o mouse.
— Você ainda vai demorar muito? — perguntou Carol. — Sabe, se você deixar, um computador pode fazer esse seu serviço aí, não precisa ser você.
Daisy fez um muxoxo. Não era um ruído que queria dizer sim, muito menos não. Era do tipo eu-sei-que-alguém-acabou-de-falar-comigo-e-se-eu-responder-qualquer-coisa-talvez-a-pessoa-pare-de-me-encher.
Carol já ouvira aquele muxoxo antes. Disse:
— Ei, bunda grande. Você vai demorar muito ainda? Eu preciso postar no meu blog.
Daisy processou as palavras. Duas delas tinham mais peso.
— Você disse que a minha bunda é grande?
— Não — respondeu Carol com seu forte sotaque. — Estou dizendo que está ficando tarde e eu tenho que atualizar o blog. Vou fazer ele transar com uma dessas supermodelos num banheiro de alguma boate de Londres.
Daisy suspirou:
— Tá. E que isso aqui é muito suspeito.
— O quê?
— Um caso de fraude. Eu acho. Pronto, já saí. E todo seu. Mas você sabe que pode se dar mal por se fazer passar por um membro da família real.
— Não enche.
Carol tinha um blog no qual se fazia passar por um membro da família real britânica, um jovem descontrolado. Já havia gente na imprensa discutindo se aquilo era ou não verdade, muitos salientando que a pessoa que escrevia só poderia saber daquelas coisas se fosse mesmo um membro da família real britânica, ou então alguém que tivesse o costume de ler revistas de fofoca.
Daisy saiu da frente do computador pensando nos assuntos financeiros da Agência Grahame Coats.
Grahame Coats dormia profundamente em seu quarto, numa casa grande mas não muito chamativa em Purley. Se houvesse alguma justiça no mundo, estaria gemendo e suando, tendo pesadelos, com a consciência lhe dando ferroadas furiosamente como um escorpião. Portanto é doloroso admitir que Grahame Coats dormia como um bebê cheirando a leite que acabou de mamar muito e não sonhava nada.
Em algum lugar na casa de Grahame Coats, um daqueles relógios grandes, com pêndulo e coluna de madeira, indicou as horas educadamente, 12 vezes. Era meia-noite em Londres. Na Flórida, eram sete da noite.
Seja como for, era a hora em que as bruxas saem de suas tocas.
A Sra. Dunwiddy tirou e guardou a toalha de mesa xadrez de plástico vermelho. Disse:
— Quem trouxe as velas pretas?
— Fui eu — respondeu a Sra. Noles. Ela tinha uma sacola de supermercado aos pés, da qual, depois de vasculhar um pouco, retirou quatro velas. Eram pretas quase que por inteiro. Uma era alta e decorada. As outras três tinham o formato de um pingüim de desenho animado, preto e amarelo, com o pavio saindo da cabeça. — Só achei essas — disse, desculpando-se. — E eu tive que ir a três lojas até achar.
A Sra. Dunwiddy não disse nada, só balançou a cabeça. Arrumou as quatro velas nos quatro cantos da mesa, usando a única vela preta que não tinha formato de pingüim para colocar na ponta da mesa onde estava sentada. Ela pegou uma grande caixa de sal grosso, abriu o lacre e derramou algumas pedrinhas em cima da mesa, formando um montinho. Depois ficou olhando intensamente pro sal e empurrando as pedrinhas com um dedo indicador murcho e enrugado, formando montinhos menores e espirais.
A Sra. Noles voltou da cozinha com uma grande tigela de vidro, que colocou no centro da mesa. Destampou uma garrafa de xerez e derramou uma quantidade generosa da bebida dentro da tigela.
— E agora — começou a Sra. Dunwiddy —, a grama das Bermudas, o jalapão e o amaranto.
A Sra. Bustamonte vasculhou a sacola de supermercado e tirou de lá um pequeno pote de vidro.
— São ervas mistas — explicou. — Achei que não teria problema.
— Ervas mistas! Ervas mistas!— exclamou a Sra. Dunwiddy.
— Tem problema? — perguntou a Sra. Bustamonte. — É o que eu sempre uso quando a receita diz manjericão, orégano, essas coisas, e eu não consigo achar as ervas. Pra mim, é tudo ervas mistas. A Sra. Dunwiddy suspirou.
— Põe aí.
Ela derramou metade do frasco de ervas mistas dentro do xerez. As folhinhas secas flutuavam sobre a superfície.
— Agora — continuou a Sra. Dunwiddy —, os quatro punhados de terra. Espero — ela escolheu as palavras com cuidado — que ninguém vá me dizer que não conseguiu achar a terra e que a gente vai ter que se transformar em uma pedrinha, uma água-viva, um ímã de geladeira e uma barra de sabão.
— Eu consegui a terra — disse a Sra. Higgler. Pegou seu saco de papelão e tirou dele quatro saquinhos Ziploc contendo o que parecia ser areja ou argila seca de diferentes cores. Esvaziou cada um em um dos quatro cantos da mesa.
— Ainda bem que pelo menos uma pessoa está fazendo direito — observou a Sra. Dunwiddy.
A Sra. Noles acendeu as velas e, enquanto o fazia, comentava o quanto as velinhas de pingüim acendiam facilmente e como eram bonitinhas e engraçadinhas.
A Sra. Bustamonte serviu um copo do restante do xerez para cada uma das quatro mulheres.
— Não vou beber também? — perguntou Fat Charlie, mas na verdade não queria beber. Não gostava de xerez.
— Não — respondeu a Sra. Dunwiddy com firmeza. — Não vai. Você precisa ficar alerta.
Ela pegou a bolsa e tirou de lá uma pequena caixinha dourada para guardar comprimidos. A Sra. Higgler apagou a luz. Os cinco sentaram-se à mesa, à luz das velas.
— E agora? — perguntou Fat Charlie. — A gente dá as mãos e entra em contato com os mortos?
— Não — sussurrou a Sra. Dunwiddy. — E não quero ouvir mais nenhuma palavra.
— Desculpe — respondeu Fat Charlie, e depois desejou que não tivesse falado nada.
— Escuta — começou a Sra. Dunwiddy —, você vai prum lugar onde podem te ajudar. Mesmo assim, nunca dê a eles nada que você possua, e não faça nenhuma promessa. Entendeu? Se tiver que dar alguma coisa pra alguém, então veja se vai receber algo do mesmo valor em troca. Certo?
Fat Charlie quase respondeu “sim”, mas parou a tempo e apenas assentiu com a cabeça.
— Ótimo.
Com isso, a Sra. Dunwiddy começou a cantarolar com os lábios fechados, pelo nariz, de um jeito desafinado, com sua voz de velha, tremida e fraca.
A Sra. Noles começou a fazer o mesmo, mas de um jeito um pouco mais melódico. A voz dela era mais alta, mais forte.
A Sra. Bustamonte não fez o mesmo. Ela fazia um “shhhh” parecido com o de uma cobra, ininterrupto, que parecia encorpar-se ao ritmo do “hum-hum” das outras e fluir acima e abaixo daquele som.
A Sra. Higgler também começou a fazer um ruído, e o dela não era nem um “hum-hum” nem um “shhh”. Ela fazia um zumbido, como o de uma mosca batendo numa janela, criando um som vibrante com a língua e os dentes, de um jeito tão estranho que era como se tivesse um monte de abelhas zangadas dentro da boca, zumbindo, tentando sair de lá.
Fat Charlie se perguntou se deveria acompanhá-las, mas não tinha a menor idéia do que teria que fazer. Então se concentrou apenas em ficar sentado e não se irritar com aquela barulheira toda.
A Sra. Higgler jogou uma pitada de terra vermelha dentro da tigela com xerez e ervas. A Sra. Bustamonte jogou uma pitada de terra amarela. A Sra. Noles jogou terra marrom, e a Sra. Dunwiddy inclinou-se lentamente, com dificuldade, e jogou um pedaço de lama preta.
Depois tomou um pequeno gole do xerez. Então, com dedos cheios de artrite remexendo na caixinha de comprimidos, tirou algo de lá e jogou na chama da vela. Por um instante, a sala ficou com cheiro de limão, mas logo ficou apenas com cheiro de algo queimado.
A Sra. Noles começou a batucar na mesa. Não tinha parado de fazer o “hum-hum”. As chamas das velas estremeceram, lançando grandes sombras sobre as paredes. A Sra. Higgler começou a batucar na mesa também, criando com os dedos um ritmo diferente daquele da Sra. Noles, mais rápido, mais percussivo, e as duas batidas formavam um ritmo só.
Na mente de Fat Charlie, tudo aquilo começou a se fundir e formar um único som estranho. O hum-hum, o shhhh, o zumbido as batidas. Começou a se sentir meio zonzo. Nos barulhos que mulheres faziam, começava a ouvir os sons de uma floresta, o crepitar de enormes fogueiras. Sentia seus dedos esticados, moles, e os pés como se estivessem muito longe do resto do corpo.
Parecia pairar sobre elas, sobre tudo, e que abaixo dele havia cinco pessoas em volta de uma mesa. Uma das mulheres à mesa fez um gesto e derramou algo na tigela que havia no centro da mesa. Aquilo ficou com uma luz tão forte que cegou Fat Charlie por alguns instantes. Ele fechou os olhos e percebeu que de nada adiantava. Mesmo com os olhos fechados, a luz continuava muito forte.
Esfregou os olhos, à luz do dia. Olhou em volta.
Uma parede rochosa se estendia até o céu, por trás dele: era uma montanha. À sua frente havia um fosso profundo: um penhasco íngreme. Foi até a beira do penhasco e olhou com cuidado. Viu algumas coisinhas brancas que pensou serem ovelhas até se dar conta de que eram nuvens: grandes, brancas, fofas, bem distantes dele. Por trás das nuvens, não havia mais nada. Ele podia ver o céu azul. Parecia que, se continuasse olhando, veria o espaço e, além dele, nada além do brilho frio das estrelas.
Deu um passo para trás.
Virou-se e caminhou em direção às montanhas, tão altas que ele não conseguia ver o topo, tão altas que teve a impressão de que cairiam sobre ele, que o soterrariam para sempre. Forçou-se a olhar novamente para baixo, a manter os olhos no chão e, ao fazer isso, notou buracos na rocha que pareciam cavernas naturais.
O lugar entre as montanhas e o penhasco, onde ele estava, deveria ter, em sua avaliação, menos de 400 metros de largura. Era uma estrada de areia cheia de seixos grandes, com plantinhas e árvores marrons aqui e ali. A estrada parecia circundar as montanhas até desaparecer numa névoa distante.
“Tem alguém me observando”, pensou Fat Charlie.
— Olá — gritou, virando a cabeça. — Tem alguém aí?
O homem que saiu da caverna mais próxima tinha a pele bem mais escura que a de Fat Charlie, mais escura até que a de Spider. Seu cabelo comprido era de um tom amarelo alaranjado e circundava o seu rosto como se fosse uma crina. Usava uma pele amarelada e esfarrapada de leão em volta da cintura, com a cauda para trás. O rabo espantou uma mosca que havia em seus ombros.
O homem piscou os olhos dourados.
— Quem é você? — perguntou com uma voz poderosa. — E quem lhe deu autoridade para andar neste lugar?
— Meu nome é Fat Charlie Nancy. Meu pai era Anansi, a Aranha.
O homem assentiu com sua enorme cabeça.
— E o que faz aqui, ó filho de Compé Anansi?
Eles estavam sozinhos ali, Fat Charlie imaginava. Ainda assim, tinha a sensação de que havia muitas pessoas ouvindo, muitas vozes que nada diziam, muitos ouvidos atentos. Fat Charlie falou alto para que todos pudessem escutar:
— É o meu irmão. Ele está tornando a minha vida um inferno. Não tenho o poder de mandá-lo embora.
— Então você quer a nossa ajuda? — perguntou o leão.
— Sim.
— Este seu irmão. Ele é como você, tem sangue de Anansi?
— Ele não se parece em nada comigo — respondeu Fat Charlie. — Ele é um de vocês.
Um movimento fluido, dourado: o homem-leão saiu de um jeito leve, preguiçoso, da boca da caverna, percorreu as pedrinhas cinzentas e cobriu uns 50 metros em alguns segundos. Agora estava ao lado de Fat Charlie. Sua cauda fazia um movimento impaciente.
Com os braços cruzados, olhou para baixo, para Fat Charlie, e disse:
— Por que você mesmo não resolve o assunto?
Fat Charlie sentia a boca seca, como se a garganta estivesse cheia de poeira. A criatura que o encarava, muito mais alta que qualquer homem, não tinha cheiro de gente. As pontas de seus dentes caninos pressionavam seu lábio inferior.
— Não consigo — respondeu Fat Charlie com a voz esganiçada.
De uma caverna ao lado, surgiu um homem imenso. Sua pele era de um tom cinza, meio marrom, suas pernas eram gordas, muito gordas, e sua pele, enrugada.
— Se você e o seu irmão brigam, então você deve pedir ao seu pai que julgue a situação. Submeta-se à vontade do chefe da família. Essa é a lei.
Depois ele jogou a cabeça para trás e fez um barulho, pelo nariz e pela garganta, um barulho poderoso. Fat Charlie soube então que olhava para o Elefante.
Engoliu em seco.
— Meu pai morreu — disse, e agora sua voz estava novamente audível, muito mais do que esperava. Ela ecoava da parede do penhasco, voltava para ele após ecoar em centenas de cavernas, centenas de formações rochosas. Morreu morreu morreu morreu morreu, dizia o eco. — Por isso eu vim para cá.
O Leão disse:
— Não gosto nem um pouco de Anansi, a Aranha. Certa vez, há muito tempo, ele me amarrou num tronco e fez um jumento me arrastar pelo chão até o trono de Mawu, que fez todas as coisas. — Então rosnou de raiva, lembrando-se do fato, o que fez Fat Charlie querer sumir dali. — Continue andando. Deve haver alguém aqui que queira ajudá-lo, mas essa pessoa não sou eu.
E o Elefante:
— Eu também não. O seu pai me enganou e comeu a gordura da minha barriga. Ele me disse que estava fazendo alguns sapatos para mim, mas me cozinhou e ficou rindo enquanto se empanturrava. Não me esquecerei disso.
Fat Charlie caminhou.
Na caverna seguinte havia um homem usando um terno verde de bom caimento e um chapéu elegante, com uma faixa de pele de cobra ao redor. Usava botas de pele de cobra e um cinto do mesmo material. Fez um barulho sibilante quando Fat Charlie passou por ele.
— Continue andando, ó filho de Anansi — disse a Cobra, e sua voz ressoava de maneira seca e áspera. — A sua família só traz problemas. Não vou me meter nos seus problemas.
A mulher na caverna seguinte era muito bonita, e seus olhos pareciam gotas negras de petróleo. Seus bigodes de gato eram muito brancos em comparação a sua pele. Tinha quatro seios.
— Eu conheci o seu pai. Há muito tempo. Siiiim. — Ela balançou a cabeça, lembrando-se, e Fat Charlie teve a sensação de estar lendo a correspondência de alguém. Assoprou um beijo na direção de Fat Charlie, mas balançou a cabeça quando ele tentou se aproximar.
Ele continuou a andar. Uma árvore morta surgiu do chão à sua frente como um monte de velhos ossos cinzentos. As sombras ficavam mais compridas à medida que o Sol descia lentamente pelo céu infinito, por trás do penhasco, até o fim do mundo. O Sol era uma gigantesca bola laranja e dourada, e todas as nuvenzinhas por trás dele se tingiram de dourado e púrpura.
“O assírio sucumbiu como um lobo num aprisco”, pensou Fat Charlie, o verso do poema surgindo em sua mente de alguma lição de inglês havia muito esquecida. “E suas coortes brilhavam em púrpura e dourado.” Tentou lembrar o que era “coorte”, mas não conseguiu. Provavelmente, decidiu, algum tipo de carruagem.
Algo se mexeu ao seu lado, e ele se deu conta de que o que antes tomara por uma pedra marrom, debaixo da árvore morta, era um homem cor de areia, com as costas cheias de pintas, como se fosse um leopardo. Seu cabelo era muito longo, muito negro. Quando sorria, seus dentes se mostravam enormes como os de um felino. Ele sorriu apenas por um instante. Era um sorriso pouco amigável, que não indicava amizade ou alegria. Disse:
— Eu sou o Tigre. O seu pai me prejudicou centenas de vezes e me insultou outras milhares. O Tigre não se esquece.
— Sinto muito — desculpou-se Fat Charlie.
— Acompanharei você em seu passeio. Por alguns instantes. Você disse que Anansi morreu?
— Sim.
— Ora, ora, ora. Ele me fez de bobo tantas vezes. Certa vez, tudo pertenceu a mim. As histórias, as estrelas, tudo. Ele roubou tudo de mim. Talvez agora, depois de morto, as pessoas parem de contar essas histórias dele. As que riem de mim.
— Estou certo disso. Eu nunca ri do senhor.
Os olhos cor de esmeralda do Tigre brilharam, e ele disse:
— Sangue é sangue. Os herdeiros de Anansi têm o sangue de Anansi.
— Eu não sou o meu pai — discordou Fat Charlie.
O Tigre arreganhou os dentes. Dentes bem pontudos. Explicou:
— Você não sai por aí fazendo as pessoas rirem de tudo. O mundo lá fora é grande, muito sério. Não é para rir dele. Nunca. Você deve ensinar as crianças a sentir medo, a sentir muito medo. Ensiná-las a ser cruéis. Ensiná-las a ser um perigo oculto nas sombras. A esconder-se nas sombras e então pular, arranhar, atacar, sempre matar. Você sabe qual o verdadeiro sentido da vida?
— Ahm. Seria o amor ou outra coisa?
— O sentido da vida é o sangue quente da sua presa sobre a sua língua, a carne que cede aos seus dentes, o cadáver de seu inimigo abandonado ao sol para que os animais carniceiros terminem o serviço. Isso é a vida. Eu sou o Tigre, e sou mais forte do que Anansi jamais será. Sou maior, mais perigoso, mais poderoso, mais cruel, mais sábio...
Fat Charlie não queria estar ali, conversando com o Tigre. Não que o Tigre fosse louco. Era apenas bastante convicto de suas crenças, e suas crenças eram todas desagradáveis. Além disso, ele lembrava alguém e, embora Fat Charlie não conseguisse descobrir quem, sabia que era alguém de quem não gostava.
— O senhor me ajuda a me livrar do meu irmão?
O Tigre tossiu como se tivesse uma pena, ou um pássaro inteiro, arranhando sua garganta.
— Quer que eu pegue um pouco d’água?
O Tigre olhou para Fat Charlie desconfiado.
— Da última vez que Anansi me ofereceu água, acabei tentando comer a Lua refletida num pequeno lago e me afoguei.
— Eu só queria ajudar.
— Foi o que ele disse.
O Tigre inclinou-se na direção de Fat Charlie, olhou-o bem dentro dos olhos. Bem de perto, não parecia nada humano. Seu nariz era muito achatado, seus olhos dispunham-se na cabeça de um jeito diferente. Tinha cheiro de jaula de zoológico. A voz era um grunhido retumbante.
— Você pode me ajudar de uma maneira, filho de Anansi. Você e toda a sua família. Ficando bem longe de mim. Entendeu? Se quiser ter carne nos seus ossos.
Ele lambeu os lábios com uma língua vermelha, da cor de carne recém-abatida e muito mais comprida do qualquer língua humana.
Fat Charlie afastou-se certo de que, caso se virasse e corresse, sentiria os dentes do Tigre em seu pescoço. Não havia nada remotamente humano no Tigre agora. Era do tamanho de um tigre de verdade. Era todos os grandes felinos que comeram gente, todos os tigres que quebraram o pescoço de um ser humano como um gato doméstico se livra de um rato. Ele ficou olhando para o Tigre enquanto se afastava. Logo a criatura voltou para sua árvore morta, deitou-se sobre as rochas e desapareceu nas sombras. Apenas o movimento nervoso de sua cauda traía o disfarce.
— Não ligue para ele — disse uma mulher de dentro de uma caverna. — Venha aqui.
Fat Charlie não conseguia decidir se ela era atraente ou monstruosamente feia. Caminhou em sua direção.
— Ele faz essa pose de poderosão, mas tem medo da própria sombra. E tem mais medo ainda da sombra do seu pai. Não tem força nenhuma nas mandíbulas.
Havia algo canino em seu rosto. Não, não canino..
— Já eu — continuou, quando ele chegou perto — gosto de triturar os ossos. Ali é que está a coisa boa. É onde fica a parte mais gostosa, e ninguém sabe disso além de mim.
— Estou tentando achar alguém para me ajudar a fazer meu irmão ir embora.
A mulher jogou a cabeça para trás e riu. Uma risada insana, alta, longa. Fat Charlie se deu conta de quem era ela.
— Você não vai achar ninguém para ajudar você aqui. Todos sofreram quando contrariaram a vontade do teu pai. O Tigre odeia você e a sua raça mais do que qualquer coisa no mundo, mas mesmo ele não vai fazer nada enquanto seu pai estiver por aí afora, no mundo. Escute: siga por este caminho. Se quer saber, e eu tenho uma pedra profética atrás do meu olho, você não vai encontrar ninguém para ajudá-lo até achar uma caverna vazia. Aí você entra e fala com quem encontrar lá dentro. Entendeu?
— Acho que sim.
Ela riu. Não era uma boa risada. E disse:
— Não quer ficar aqui comigo um pouco primeiro? Posso educar você. Sabe o que dizem por aí. Ninguém é mais obsceno que a Hiena.
Fat Charlie balançou a cabeça e continuou andando, caminhando pelas cavernas à beira das montanhas do fim do mundo. Quando passava pela escuridão de cada caverna, dava uma olhada lá dentro. Havia gente das mais diversas formas e tamanhos, pessoas pequenas e altas, homens e mulheres. E, à medida que andava, quando se mexiam nas sombras, ele conseguia enxergar lombos ou escamas, chifres ou garras.
Às vezes ele as assustava quando passava por elas, e as criaturas iam para o fundo da caverna. Outras saíam, olhando para ele com curiosidade, de um jeito agressivo.
Algo saiu quicando das rochas acima de uma caverna e aterrissou no chão, ao lado de Fat Charlie.
— Olá — disse a criatura, sem fôlego.
— Olá — respondeu Fat Charlie.
Essa nova criatura era agitada, peluda. Seus braços e pernas pareciam muito esquisitos. Fat Charlie tentou adivinhar o que era aquilo. As outras pessoas-animais eram animais, claro, e pessoas também. Não havia nada estranho ou contraditório quanto a isso. Sua animalidade e humanidade combinavam-se como as listras de uma zebra e formavam outra coisa. Mas essa criatura parecia humana e também quase humana. Isso era um elemento de estranheza que fazia os dentes de Fat Charlie doerem. Então descobriu.
— Macaco. Você é o Macaco.
— Tem um pêssego aí? Uma manga? Um figo?
— Infelizmente não — respondeu Fat Charlie.
— Me dá alguma coisa pra comer, e eu sou seu amigo. — A Sra. Dunwiddy o alertara a respeito. Não dê nada a eles. Não faça nenhuma promessa. — Quem é você? O que você é? Parece só metade de alguma coisa. Você daqui ou de lá?
— Anansi era meu pai — explicou Fat Charlie. — Estou procurando alguém para me ajudar com o meu irmão, para fazê-lo ir embora.
— Isso pode deixar o Anansi com raiva. Péssima idéia. Se deixar o Anansi com raiva, nunca mais apareço em história nenhuma.
— Anansi está morto — respondeu Fat Charlie.
— Morto lá. Talvez. Mas morto aqui? Aí já são outros quinhentos.
— Então quer dizer que ele pode estar aqui?
Fat Charlie perscrutou com cuidado a montanha: a idéia de que seria possível encontrar o pai em alguma daquelas cavernas, sentado numa cadeira de balanço, o chapéu panamá verde enterrado na Cabeça, tomando goles de sua lata de cerveja e suprimindo um bocejo com suas luvas verde-limão parecia sem dúvida perturbadora.
— Quem? O quê?
— Você acha que ele está por aqui?
— Quem?
— O meu pai.
— O seu pai?
— Anansi.
O Macaco pulou para cima de uma pedra, aterrorizado, e ficou abraçando a pedra, com o olhar indo para lá e para cá, como se temesse a aproximação de um tornado.
— Anansi? Ele está por aqui? — perguntou o macaco.
— Foi isso o que eu perguntei.
O Macaco se balançou repentinamente e ficou de cabeça para baixo, pendurado pelos pés, olhando para Fat Charlie.
— Às vezes eu vou até o mundo. Eles dizem “Macaco, ó sábio Macaco, apareça, apareça. Venha comer os pêssegos que trazemos para você. E as nozes. E as migalhas. E os figos”.
— O meu pai está aqui? — insistiu Fat Charlie, paciente.
— Ele não tem uma caverna. Eu saberia se ele tivesse. Talvez tenha uma caverna, mas acabou esquecendo. Se você me desse um pêssego, eu conseguiria me lembrar.
— Mas eu não trouxe nada.
— Nenhum pêssego?
— Nada, infelizmente.
O Macaco se balançou e foi para o alto da pedra. E então sumiu.
Fat Charlie continuou a andar pelo caminho cheio de pedras. O sol tinha descido até ficar no mesmo nível do caminho, e queimava com uma cor alaranjada. Emitiu sua luz antiga até as cavernas e mostrou todas habitadas. Aquele deveria ser o Rinoceronte, com pele cinzenta, olhando para fora com seus olhos míopes. Mais à frente, da cor de um galho apodrecido em águas paradas, estava o Crocodilo, com os olhos negros e reluzentes.
Fat Charlie ouviu um farfalhar atrás dele, algum ser que se arrastava contra a pedra, e virou-se bem rápido. O Macaco olhava para ele, com os dedos das mãos arrastando-se no chão.
— Eu realmente não tenho nenhuma fruta comigo. Se tivesse, eu daria.
— Sinto pena de você. Você talvez devesse ir pra casa. Esta é uma péssima, péssima, péssima, péssima idéia. Não?
— Não.
— Ah — respondeu o Macaco. — Certo. Certo certo certo certo.
Parou de se mover. Então correu, com passinhos balouçantes, passou por Fat Charlie e parou em frente a uma caverna não muito distante.
— Não entre ali — gritou. — E um lugar ruim.
Apontou para a abertura da caverna.
— Por que não? — perguntou Fat Charlie. — Quem fica ali dentro?
— Ninguém — respondeu o macaco, exultante. — Então não é a caverna que você busca, certo?
— Sim, é sim.
O Macaco ficou chilreando e saltitando, mas Fat Charlie passou por ele e subiu pelas rochas até chegar à entrada da caverna vazia, enquanto o sol avermelhado caía por trás do penhasco, no fim do mundo.
Ao andar pelo caminho que circunda as montanhas do começo do mundo (as montanhas só são do fim do mundo se você vier pela outra direção), a realidade parecia muito estranha, forçada. Essas montanhas e suas cavernas são feitas do material que compõe as mais velhas histórias (bem antes de os seres humanos surgirem, é claro — quem fez você imaginar que as pessoas foram os primeiros seres a contar histórias?) e, ao sair do caminho para entrar na caverna, Fat Charlie se sentiu como se tivesse entrando na realidade de outra pessoa. A caverna era muito funda. Seu chão estava repleto de fezes brancas de pássaros. Também havia penas no chão e, aqui e ali, como um espanador seco e abandonado, o cadáver de um pássaro, achatado e ressecado.
No fundo da caverna, nada além de escuridão.
Fat Charlie disse “Olá?”, e o eco de sua voz voltou para ele do interior da caverna. Olá olá olá olá olá. Continuou a andar. Agora a escuridão da caverna parecia quase palpável, como se algo fino e escuro cobrisse seus olhos. Caminhou lentamente, um passo de cada vez, com os braços esticados.
Algo se mexeu.
— Olá?
Seus olhos já se acostumavam à pouca luz que havia ali, e ele começou a enxergar. “Não é nada. Trapos, penas, só isso.” Deu outro passo, e o vento arrepiou as penas e fez esvoaçar os trapos no chão da caverna.
Algo passou voando ao seu redor, voou através dele, castigando o ar com o barulho das asas de um pombo.
Dando voltas. O pó entrou em seus olhos e cobriu seu rosto. Ele ficou piscando naquele vento frio e deu um passo para trás quando a criatura ergueu-se à sua frente, uma tempestade de pó, trapos e penas. O vento parou e, onde as penas voavam, havia uma pessoa, que fez um gesto com a mão para que Fat Charlie se aproximasse.
Ele teria dado um passo para trás, mas a coisa chegou mais perto e o puxou pela manga. O toque da criatura era leve, seco, e puxou Fat Charlie para si
Ele deu mais um passo para o fundo da caverna— e de repente estava em pé, ao ar fresco, num terreno plano, cor de cobre, sem arvores, sob um céu da cor de leite azedo.
As diferentes criaturas têm olhos diferentes. Os olhos humanos (ao contrário, digamos, dos olhos de um gato ou de um polvo) são feitos para ver apenas uma versão da realidade de cada vez. Fat Charlie via uma coisa com seus olhos, outra coisa com sua mente e, no espaço entre as duas coisas, a loucura o aguardava. Sentia o pânico começando a apoderar-se dele, então aspirou o ar profundamente e prendeu a respiração enquanto seu coração batia forte contra as costelas. Forçou-se a acreditar em seus olhos, e não em sua mente.
Portanto, embora soubesse que estava vendo um pássaro com olhos insanos, com trapos e penas, maior que qualquer águia, mais alto que um avestruz, o bico como a cruel arma de uma ave de rapina, as penas da cor de telha envernizada, fazendo um arco-íris escuro de tons roxos e verdes, ele se deu conta disso apenas por um breve instante, em algum lugar bem no fundo da mente. O que via com os olhos era uma mulher de cabelos muito negros, de pé onde a idéia do pássaro estivera. Não parecia jovem nem velha, e o olhava com um rosto que poderia ter sido esculpido em obsidiana, eras antes, quando o mundo ainda era jovem.
Observava Fat Charlie sem se mover. As nuvens passavam pelo céu cor de leite.
— O meu nome é Charlie. Charlie Nancy. Algumas pessoas, digo, a maioria das pessoas me chama de Fat Charlie. A senhora pode me chamar assim também se quiser.
Não houve resposta.
— Anansi era o meu pai.
Também sem resposta. Nenhum movimento, nenhum suspiro.
— Eu gostaria que a senhora me ajudasse a fazer o meu irmão sumir.
Com isso, ela inclinou a cabeça. O suficiente para mostrar que ouvia o que ele dizia, o suficiente para mostrar que estava viva.
— Não posso fazer isso sozinho. Ele tem poderes mágicos, essas coisas. Eu falei com uma aranha e aí o meu irmão apareceu. Agora não consigo mandá-lo embora.
A voz dela, quando falou, era tão áspera e profunda quanto a de um corvo.
— O que você deseja que eu faça? — perguntou.
— Talvez... me ajudar — sugeriu ele.
Ela pareceu pensar.
Mais tarde, Fat Charlie tentava em vão lembrar-se das roupas que ela usava. Às vezes achava que era uma capa de penas. Outras, que devia ser algum tipo de roupa em farrapos, talvez um sobretudo velho, do mesmo tipo que ela usava quando ele a viu em Piccadilly, tempos depois, quando as coisas começaram a ficar feias. Mas não estava nua: disso ele tinha certeza. Ele se lembraria se ela estivesse nua, certo?
— Ajudar você — repetiu ela.
— Me ajudar a me livrar dele.
Ela assentiu com a cabeça.
— Você quer que eu ajude a acabar com a linhagem Anansi.
— Eu só quero que ele vá embora, que me deixe em paz. Eu não quero fazer mal a ele nem nada do tipo.
— Então você deve prometer dar a mim a linhagem de Anansi.
Fat Charlie estava ali, em pé, naquela vasta planície cor de cobre, que de alguma maneira ficava dentro da caverna, nas montanhas do fim do mundo, e que por sua vez também estava, não sabia como, dentro da sala de estar com cheiro de violetas da Sra. Dunwiddy. Ele tentou entender o que ela pedia.
— Eu não posso dar nada. E não posso fazer promessas.
— Você quer que ele vá embora. Então diga. O meu tempo é precioso. — Ela cruzou os braços e ficou olhando para ele com um olhar insano. — Eu não tenho medo de Anansi — completou.
Ele lembrou-se da voz da Sra. Dunwiddy.
— Ahm... Eu não posso fazer nenhuma promessa. E preciso pedir algo de igual valor em troca. Quer dizer, precisa ser uma troca.
A Mulher Pássaro pareceu chateada, mas assentiu com a cabeça.
— Então darei a você algo de igual valor em troca. Dou a você a minha palavra.
Ela colocou a mão sobre a dele, como se lhe desse algo, e a apertou.
— Agora— diga.
— Dou a você a linhagem Anansi.
— Bom — disse uma voz, e com isso ela literalmente se desfez em pedaços.
Onde havia uma mulher, como se fossem dispersos por um disparo de uma arma, havia agora uma nuvem de pássaros voando em todas as direções. O céu ficou cheio de pássaros, mais pássaros do que Fat Charlie jamais imaginara ser possível. Pássaros negros e marrons planando e voando como uma nuvem de fumaça negra maior que os olhos humanos pudessem conceber, como uma nuvem do tamanho do mundo, composta por pequenas moscas.
— Então a senhora vai fazer ele ir embora? — gritou Fat Charlie para o céu leitoso, que ficava cada vez mais escuro. Os pássaros escorregavam pelo céu. Cada um deles se mexia apenas um pouco. Continuavam voando, mas de repente Fat Charlie via um rosto no céu, um rosto feito de pássaros. Era um rosto bem grande.
A aparição disse seu nome através gritos e chilreios de milhares de pássaros, e os lábios do tamanho de torres pronunciaram as palavras no céu.
Então o rosto se dissolveu no mais completo caos quando os pássaros que o compunham saíram daquele céu pálido e voaram em direção a Fat Charlie. Ele cobriu o rosto com as mãos, tentando se proteger.
A dor em sua bochecha foi violenta e súbita. Por um instante, acreditou que um dos pássaros talvez o tivesse machucado, ferido sua bochecha com o bico ou as garras. Então viu onde estava.
— Não me machuque de novo! Tudo bem, você não precisa me machucar!
Sobre a mesa, os pingüins estavam pequenos, derretidos. As cabeças e ombros haviam sumido. Agora as chamas queimavam dentro de bolhas negras disformes, em preto-e-branco, no que fora a barriga, e os pés permaneciam congelados em cera negra. Havia três velhas olhando para ele.
A sra. Noles jogou um copo d’água em seu rosto.
— Também não precisava fazer isso — disse Fat Charlie. — Eu voltei, não voltei?
A sra. Dunwiddy entrou na sala. Segurava, com ar triunfante, uma pequena garrafinha marrom.
— Sais para acordar. Tenho um pouco aqui. Comprei no ano de, sei lá, 67, 68. Nem sei se ainda prestam. Então olhou para Fat Charlie.
— Ele acordou! Quem acordou ele?
— Ele não estava respirando — explicou a sra. Bustamonte. — Então dei um tapa nele.
— E eu joguei água — emendou a sra. Noles. — Isso ajudou ele a voltar.
— Não preciso de sal para acordar. Já estou molhado e dolorido.
Mas, com suas mãos velhas, a sra. Dunwiddy já havia tirado a tampa do frasquinho e o enfiado sob o nariz de Fat Charlie. Ele respirou enquanto ia para trás, e inalou bastante amônia. Seus olhos lacrimejaram. Sentia-se como se tivesse levado um murro no nariz. Ficou com coriza.
— Pronto — disse a sra. Dunwiddy. — Tá se sentindo melhor?
— Que horas são?
— Quase cinco da manhã — respondeu a sra. Higgler. Ela tomou um gole de café de sua caneca gigante. — Ficamos tão preocupadas com você. Melhor contar pra gente o que aconteceu.
Fat Charlie tentou se lembrar. Não que as imagens se tivessem evaporado, como acontece nos sonhos. Foi como se a experiência das últimas horas tivesse acontecido com outra pessoa e ele devesse entrar em contato com essa pessoa com algum novo método de telepatia. Sua mente estava muito confusa. Toda a atmosfera colorida no estilo Mágico de Oz do outro lugar se dissolvia em tons sépia de realidade.
— Tinha umas cavernas. Eu pedi que me ajudassem. Tinha muitos animais lá. Ninguém quis ajudar. Todos tinham medo do meu pai. Aí uma disse que iria me ajudar.
— Uma?
— Alguns eram homens, outros eram mulheres. Foi uma mulher.
— Sabe dizer que bicho ela era? Crocodilo? Hiena? Rato?
Ele deu de ombros.
— Talvez conseguisse me lembrar se vocês não tivessem me batido e jogado água em mim. E enfiado sais no meu nariz. Isso me fez esquecer as coisas.
— Você se lembrou do que eu disse? De não dar nada, só fazer trocas? — perguntou a sra. Dunwiddy.
— Sim — respondeu ele, um pouco orgulhoso de si mesmo. — Sim. Havia um macaco que queria que eu lhe desse coisas, mas eu disse que não. Olha, acho que preciso beber alguma coisa.
A sra. Bustamonte pegou um copo de alguma coisa em cima da mesa.
— A gente achou que talvez você precisasse mesmo beber. Então coamos o xerez. Talvez tenha algumas ervinhas aí, mas nada de mais.
Fat Charlie estava com as mãos fechadas sobre o colo. Abriu a mão direita para pegar o copo. E então parou e ficou olhando para a própria mão.
— O quê? O que foi? — perguntou a sra. Dunwiddy.
Na palma de sua mão, negra e já sem forma, molhada de suor, havia uma pena. E então ele se lembrou. Lembrou-se de tudo.
A manhã cinzenta surgia. Fat Charlie entrou na perua da sra. Higgler e ocupou o assento do passageiro.
— Cê tá com sono? — perguntou ela.
— Não exatamente. Só me sentindo estranho.
— Era a Mulher Pássaro.
— Pra onde cê quer que eu te leve? Pra minha casa? Pra casa do teu pai? Prum hotel?
— Não sei.
Ela engatou a marcha e saiu com o carro para a rua.
— Aonde a senhora está indo?
Ela não respondeu. Bebeu um pouco de café da sua mega-caneca. E disse:
— Talvez o que a gente fez hoje de noite tenha sido pra melhor. Talvez não. Às vezes é melhor deixar esses assuntos de família para as próprias famílias resolverem. Você e o seu irmão... São tão parecidos. Acho que é por isso que vocês brigam.
— Deve haver um significado caribenho obscuro para a palavra “parecidos”. Talvez “totalmente diferentes”.
— Não vem fazer essa pose de britânico pra cima de mim. Eu sei do que to falando. Você e ele são farinha do mesmo saco. Eu lembro quando seu pai me falou “Callyanne, os meus meninos fazem mais besteira que...” Bom, não sei exatamente o que ele disse, mas o fato é que falou de vocês dois.
Um pensamento ocorreu-lhe.
— Ei, quando cê foi praquele lugar, onde ficam os deuses antigos, cê viu o seu pai?
— Acho que não. Eu teria me lembrado se tivesse visto.
Ela assentiu com a cabeça e ficou calada durante o resto do percurso.
Ela estacionou, e os dois saíram do carro.
Fazia um pouco de frio naquela manhã da Flórida. O Cemitério Jardim do Repouso parecia um cenário de filme: havia uma pequena névoa, no nível do chão, que fazia tudo ficar levemente desfocado. A sra. Higgler abriu um pequeno portão. Ela e Fat Charlie caminharam pelo cemitério.
Onde havia apenas terra sobre a cova de seu pai, agora havia grama. Na cabeceira da cova havia uma placa de metal com um vaso de metal acoplado e, no vaso, uma única rosa amarela.
— Que Deus tenha piedade do pecador nesta cova — disse a Sra. Higgler com uma voz grave. — Amém, amém, amém.
Eles tinham uma platéia: as duas garças com penas vermelhas no topo da cabeça que Fat Charlie vira em sua visita anterior ao cemitério andaram na direção dos dois, com a cabeça balançando, como dois aristocratas que vão visitar conhecidos na prisão.
— Xô! — espantou a Sra. Higgler.
Os pássaros olharam para ela, indiferentes, e não se mexeram.
Uma das garças mergulhou a cabeça na grama e surgiu com uma lagartixa debatendo-se em seu bico. Abocanhou o bicho e mexeu a cabeça. Logo o bicho fazia um volume na garganta da garça.
O coro do amanhecer se preparava: melros, papa-figos e tordos cantavam no mato por trás do Jardim do Repouso.
— Vai ser bom voltar pra casa — disse Fat Charlie. — Com sorte, ele já vai ter sido expulso de lá quando eu voltar. E aí tudo fica bem. Vou poder resolver as coisas com a Rosie.
Uma onda de otimismo tomou conta dele. Aquele seria um ótimo dia.
Nas velhas histórias, Anansi vive como eu e você, em sua casa. Ele é egoísta, é claro, e cheio de luxúria, enganador, mentiroso. Também tem bom coração, sorte, e às vezes é até honesto. De vez em quando é bom, outras vezes é mau. Mas nunca é malévolo. Na maioria das vezes, você fica do lado dele. Isso acontece porque Anansi é o dono de todas as histórias. Mawu deu as histórias para ele, no começo, há muito tempo. Tomou as histórias do Tigre e deu todas a Anansi. Ele tece a teia das histórias de um jeito tão bonito...
Nas histórias, Anansi é uma aranha, mas também é um homem. Não é difícil imaginar as duas coisas ao mesmo tempo. Até uma criança consegue.
As histórias de Anansi são contadas pelas avós e tias da costa Oeste da África e do Caribe, e também no mundo todo. Chegaram até os livros infantis: o velho Anansi, sorridente, pregando suas pelo mundo afora. O problema é que as avós, as tias e os escritores de livros infantis tendem a deixar de fora certas informações. Existem histórias que não são mais apropriadas para criancinhas.
Esta é uma história que você não achará nos livros infantis. Eu a chamo de.
Anansi não gostava do Pássaro porque, quando o Pássaro sentia fome, ela — sim, ela, porque era um pássaro fêmea — comia muitas coisas. Uma das coisas que comia eram as aranhas, e o Pássaro estava sempre com fome.
Antigamente eles eram amigos. Mas agora não são mais.
Um dia, Anansi estava andando e viu um buraco no chão. Isso faz com que tenha uma idéia. Coloca madeira no fundo do buraco, faz uma fogueira, põe uma panela no buraco e, dentro dela, coloca raízes e ervas. Então começa a correr em volta da panela. Corre, dança e grita:
— Eu me sinto bem! Eu me sinto tãããão bem! Todas as minhas dores sumiram. Eu nunca me senti tão bem em toda a minha vida!
O Pássaro ouve aquela confusão. Desce dos céus para ver o que era aquilo. E pergunta:
— Por que você está cantando? Por que está agindo feito um louco, Anansi?
Anansi cantarola:
— Eu tinha uma dor no pescoço, mas ela sumiu. Minha barriga doía, agora não dói mais. Minhas juntas faziam barulho, mas agora estou maleável como uma palmeira, macio como a Cobra quando troca de pele. Eu me sinto feliz, cheio de energia, e agora serei perfeito, porque sei o segredo que ninguém mais sabe.
— Que segredo?
— O meu segredo. Todos vão me dar suas coisas mais preciosas e mais queridas só para saber o meu segredo. Uhu! Oba! Eu estou tão feliz!
O Pássaro vem um pouco mais pra perto e inclina a cabeça para o lado. E pergunta:
— Eu posso saber o seu segredo?
Anansi olha desconfiado para o Pássaro. Então fica escondendo a panela borbulhante sobre o buraco.
— Acho que não — responde Anansi. — Talvez não tenha suficiente. Melhor esquecer.
E o Pássaro responde:
— Olha, Anansi, eu sei que nem sempre nós fomos amigos. Mas eu digo uma coisa. Se você me contar o seusegredo, prometo que nunca mais nenhum pássaro vai comer aranhas. Vamos ser amigos até o fim dos tempos.
Anansi coca o queixo e balança a cabeça.
— E um segredo bem grande e importante, esse de fazer as pessoas jovens, cheias de vigor, sem sentir dor nenhuma.
O Pássaro limpa algumas penas com o bico. E diz:
— Ah, Anansi, você sabe que eu sempre achei você um homem muito bonito. Por que nós não nos deitamos ali na relva um pouco? Sei que posso fazer você deixar de lado essa sua desconfiança para me dizer o seu segredo.
Então eles se deitam sobre a relva e começam a se acariciar, a rir, a ficar alegres. Assim que Anansi consegue o que queria, o Pássaro diz:
— E agora, Anansi? E o seu segredo?
— Bom... eu não ia contar pra ninguém. Mas pra você eu conto. É um banho de ervas nesse buraco aí no chão. Olha só, eu coloco umas ervas e umas raízes. E quem entrar nessa água vai viver para sempre, sem sentir nenhuma dor. Eu tomei banho aí e agora estou me sentindo jovem como um filhotinho de gato. Mas acho que não é bom deixar mais ninguém tomar banho nessa água.
O Pássaro olha para aquela água borbulhante e, rápido como um raio, mergulha na panela.
— Está tão quente, Anansi!
— Tem que ser quente para as ervas fazerem efeito.
E então Anansi pega a tampa da panela e a cobre. E uma tampa pesada, e Anansi coloca uma pedra sobre ela para fazer ainda mais peso.
Bam! Bam! Bom! é o barulho que o Pássaro faz na tampa da panela.
E Anansi grita:
— Se eu deixar você sair agora, todo o efeito do banho borbulhante vai passar. Relaxe aí dentro, aí você vai começar a se sentir melhor.
Mas talvez o Pássaro não tenha ouvido, ou não tenha acreditado nele, porque o barulho dentro da panela e as tentativas de empurrar a tampa continuaram por mais algum tempo. E depois pararam.
Naquela noite, Anansi e sua família comeram uma deliciosa sopa de Pássaro, com Pássaro cozido. Não sentiram fome por muitos dias.
Desde essa época, os pássaros comem aranhas sempre que podem, e as aranhas e pássaros jamais voltarão a ser amigos.
Há outra versão da história, em que também convencem Anansi a entrar na panela. As histórias todas pertencem a Anansi, mas nem sempre ele leva a melhor.