3 No qual há uma reunião de família

Fat Charlie voltou de aviáo para casa, na inglaterra. De uma forma ou de outra, era o mais próximo de um “lar” que ele encontraria.

Rosie estava esperando por ele quando saiu da alfândega, carregando uma pequena mala e uma grande caixa de papelão selada com fita adesiva. Ela deu-lhe um grande abraço.

— E então? Como foi?

Ele deu de ombros.

— Poderia ter sido pior.

— Bom — respondeu ela —, pelo menos você não tem mais que se preocupar com ele aparecendo no seu casamento e fazendo você passar vergonha.

— Tem isso também.

— Minha mãe diz que a gente deveria adiar o casamento por alguns meses, em sinal de respeito.

— A sua mãe quer apenas cancelar o casamento e pronto.

— Besteira. Ela acha que você é um ótimo partido.

— Nem mesmo uma mistura de Brad Pitt, Bill Gates e príncipe William é um bom partido para a sua mãe. Ninguém sobre a face da Terra é bom o suficiente para ser o genro dela.

— Ela gosta de você — respondeu Rosie, moldando-se à situação, mas sem convicção na voz.

A mãe de Rosie não gostava de Fat Charlie, e todos sabiam disso. Ela era um amontoado de preconceitos arraigados, preocupações e rixas familiares. Morava num apartamento magnífico na Wimpole Street, com nada dentro da geladeira além de garrafas de água vitaminada e biscoitos de centeio. Havia frutas de cera nas tigelas sobre os aparadores de antiquário, que eram espanadas duas vezes por semana.

Em sua primeira visita à casa da mãe de Rosie, Fat Charlie deu uma mordida em uma das maçãs de cera. Ele estava muito nervoso, tão nervoso que pegou uma maçã — podemos dizer em sua defesa que era uma réplica perfeita de uma maçã de verdade — e deu uma mordida nela. Rosie havia sinalizado loucamente que não. Ele cuspiu o pedaço de cera na mão e pensou em fingir que gostava de fruta de cera ou que sabia o tempo todo que se tratava de uma maçã de cera e fizera aquilo de propósito, só para ser engraçado. No entanto a mãe de Rosie ergueu uma sobrancelha, caminhou até ele, pegou o resto da maçã, explicou com poucas palavras que as boas frutas de cera custavam muito caro hoje em dia, se é que era possível encontrá-las, e jogou na lata de lixo. Ele permaneceu sentado no sofá durante todo o restante da tarde, com gosto de vela na boca, enquanto a mãe de Rosie o observava para se certificar de que ele não tentaria dar outra mordida em suas preciosas frutas de cera ou abocanhar a perna de uma cadeira Chippendale do século XVIII.

Havia grandes fotografias coloridas em porta-retratos prateados sobre o aparador: fotografias de Rosie quando era criança e de seus pais. Fat Charlie estudou-as com afinco, procurando pistas para solucionar o mistério que era Rosie. O pai dela, que morrera quando Rosie tinha 15 anos, era um homem enorme. Primeiro fora um cozinheiro, depois virara um chef e, por último, dono de restaurante. Em todas as fotos, aparecia totalmente arrumado e equipado, como se tivesse alguém contratado especialmente para vesti-lo, rotundo e sorridente, com o braço sempre posicionado para que a mãe de Rosie o segurasse.

— Era um cozinheiro sensacional — dissera Rosie.

Nas fotografias, sua mãe era uma mulher sorridente e cheia de curvas. Agora, 12 anos mais tarde, parecia uma Eartha Kitt esquelética, e Fat Charlie nunca a viu sorrir.

— A sua mãe cozinha de vez em quando? — perguntou Fat Charlie depois daquela primeira visita.

— Não sei. Eu nunca a vi cozinhar nada.

— O que ela come? Quer dizer, ela não pode sobreviver à base de água e biscoito.

— Acho que ela pede comida.

Fat Charlie pensou ser bastante provável que a mãe de Rosie saísse à noite, na forma de um morcego, para sugar o sangue de inocentes que dormiam. Certa vez mencionou essa sua teoria a Rosie, mas ela não conseguiu ver graça naquilo.

A mãe dela havia dito que tinha certeza de que Fat Charlie queria se casar com ela por causa de seu dinheiro.

— Que dinheiro? — perguntara Rosie. Sua mãe fizera um gesto amplo na direção do apartamento, um gesto que englobava as frutas de cera, a mobília antiga, os quadros nas paredes, e então comprimiu os lábios. — Mas tudo isso é seu — dissera Rosie, que vivia à base de seu salário, trabalhando para um centro de caridade de Londres. E seu salário não era muito alto. Para complementá-lo, Rosie utilizava o dinheiro que seu pai lhe deixara no testamento. Ele serviu para comprar um pequeno apartamento, que ela dividia com uma sucessão de australianas e neozelandesas, e um carro usado, um Golf.

— Eu não vou viver para sempre — dizia a mãe de Rosie, fungando de um jeito que implicava que tinha toda a intenção de viver para sempre, ficando cada vez mais difícil, mais magra e mais pétrea à medida que o tempo passava, comendo cada vez menos até ser capaz de viver à base de nada além de ar, saliva e frutas de cera.

Rosie, ao sair do aeroporto de Heathrow para levar Fat Charlie para casa, decidiu que era melhor mudarem de assunto. Então disse:

— Não tem água lá no meu apartamento. O prédio todo está sem água.

— O que houve?

— A Sra. Klinger, no andar de baixo. Ela disse que tem alguma coisa vazando.

— Talvez a própria Sra. Klinger.

— Charlie!. Então... eu estava pensando. Será que eu poderia tomar banho na sua casa hoje?

— Quer que eu ensaboe você?

— Charlie.

— Claro que pode. Sem problemas.

Rosie ficou olhando para a traseira do carro da frente. Ela tirou a mão do câmbio e apertou a enorme mão de Fat Charlie.

— A gente vai se casar logo, logo.

— Eu sei.

— Bom, o que eu quero dizer é que... teremos bastante tempo pra isso, não é?

— Bastante tempo.

— Sabe o que minha mãe falou pra mim um dia?

— Humm— Ela fez uma defesa da morte por enforcamento?

— Não. Disse que, se um casal recém-casado colocar uma moeda dentro de um pote todas as vezes em que fizer amor no primeiro ano e tirar uma todas as vezes que fizer amor nos anos seguintes, o pote nunca ficará vazio.

— E isso quer dizer que...?

— Bom. E interessante, não acha? Vou chegar à sua casa às oito, acompanhada do meu patinho de borracha. Como estão as suas toalhas?

— Ahm...

— Eu levo minha toalha então.

Fat Charlie não acreditava que seria o fim do mundo se eles, uma vez ou outra, colocassem uma moeda no pote antes de trocar as alianças e cortar o bolo de casamento, mas Rosie tinha suas próprias opiniões a respeito, e o assunto estava encerrado. O pote permanecia totalmente vazio.


“O problema”, pensou Fat Charlie assim que entrou em casa, “de chegar a Londres após uma breve viagem a outro país é que, se você chegar pela manhã, não há muita coisa para fazer no resto do dia.”

Fat Charlie era um homem que preferia sempre trabalhar. Ele considerava o ato de deitar-se num sofá e assistir a Countdownl (Tradicional game show da TV britânica, é uma espécie de instituição local. Exibido desde 1982, vai ao ar diariamente à tarde e já ultrapassou a marca de 4 mil programas) uma lembrança da época em que fizera parte do grupo dos desempregados. Decidiu que a coisa mais sensata a fazer seria ir um dia mais cedo para o trabalho. Nos escritórios da Agência Grahame Coats, em Aldwych, no quinto e último andar, ele se sentia parte do fluxo do mundo. Teria conversas interessantes com os colegas na sala de chá. Todo o espetáculo da vida se desdobraria perante seus olhos, majestoso em sua complexidade, implacável e inflexível em seu funcionamento. As pessoas iam gostar de vê-lo.

— Você só volta ao trabalho amanhã — disse Annie, a recepcionista, quando Fat Charlie entrou. — Eu disse às pessoas que você só voltaria amanhã. Quando elas ligaram.

Ela não parecia feliz com a situação.

— Não consegui ficar longe — observou Fat Charlie.

— Claro que não — respondeu ela com certo desdém. — Você precisa retornar a ligação de Maeve Livingstone. Ela liga todos os dias.

— Pensei que ela fosse assunto do Grahame Coats.

— Bom, ele quer que você fale com ela. Só um instante.

Ela atendeu ao telefone.

Era sempre assim que se referiam ao chefe, com os dois nomes: “Grahame Coats”. Não “senhor Coats”. Nunca apenas Grahame. Afinal de contas, era a agência dele, e representava as pessoas. Ficava com uma porcentagem do que elas ganhavam por ter exercido o direito de representá-las.

Fat Charlie foi até seu escritório, uma salinha minúscula que partilhava com um armário de arquivo. Havia um post-it amarelo na tela de seu computador com a mensagem: “Venha até minha sala. GC”. Ele atravessou o corredor até o escritório enorme de Grahame Coats. A porta estava fechada. Ele bateu e, sem saber ao certo se ouviu alguma resposta ou não, abriu a porta e enfiou a cabeça.

A sala estava vazia. Não havia ninguém lá.

— Ahm... oi? — arriscou Fat Charlie, não muito alto. Ninguém respondeu. Havia, no entanto, uma certa desordem na sala: a estante de livros estava perto da parede formando um ângulo e, do espaço por trás dela, podia-se ouvir o som de batidas, como se fossem de um martelo.

Ele fechou a porta do jeito mais suave possível e voltou para sua mesa.

O telefone tocou. Ele atendeu.

— Aqui é Grahame Coats. Venha me ver.

Dessa vez, Grahame Coats estava sentado à mesa, e a estante de livros, alinhada à parede. Ele não convidou Fat Charlie para se sentar. Era um homem branco de meia-idade, com cabelo bem claro, já ficando careca. Se você visse Grahame Coats e imediatamente pensasse num furão albino vestindo um terno caro, não seria a primeira pessoa a ter essa impressão.

— Vejo que está de volta — disse Grahame Coats. — Por assim dizer.

— Sim — respondeu Fat Charlie. Como Grahame Coats não parecia particularmente feliz com a volta antecipada de Fat Charlie, acrescentou: — Me desculpe.

Grahame Coats pressionou os dois lábios com os dedos, olhou para um papel sobre a mesa e voltou os olhos novamente para Fat Charlie.

— Deram a entender que você não estaria de volta até amanhã. Meio cedo para voltar, não?

— Nós., quer dizer, eu cheguei esta manhã. Da Flórida. Achei que fosse bom vir para cá. Muita coisa a ser feita. Para mostrar boa vontade. Se estiver tudo bem.

— Absolutotalmente — concordou Grahame Coats. A palavra, praticamente um acidente automobilístico entre “absolutamente” e “totalmente”, sempre fazia Fat Charlie se contorcer. — Como quiser.

— Foi o funeral do meu pai.

Grahame mexeu o pescoço feito um furão.

— Ainda assim, isso será descontado de um dos seus dias de licença.

— Certo.

— Maeve Livingstone. Viúva desconsolada de Morris. Precisa ser consolada. Palavras bonitas, promessas gentis. Roma não foi construída num só dia. Todo o processo de fazer o inventário dos bens de Morris Livingstone e passar o dinheiro para ela continua a todo vapor. Ela me liga praticamente todo dia só para ser consolada. Então eu passo a tarefa a você.

— Certo. Então... ahm. Os que trabalham nunca descansam.

— Quem trabalha sempre colhe — respondeu Grahame Coats, mexendo o dedo.

— Mãos à obra? — sugeriu Fat Charlie.

— Arregaçar as mangas — disse Grahame Coats. — Bom, foi ótimo conversar com você. Mas ambos temos muito trabalho a fazer.

Havia alguma coisa na presença de Grahame Coats que sempre fazia Fat Charlie: a) falar usando clichês e b) ter devaneios imaginando enormes helicópteros negros primeiro atirando e depois despejando baldes de napalm nos escritórios da Agência Grahame Coats. Fat Charlie não se encontrava na agência quando imaginava a cena. Estaria sentado numa cadeira do lado de fora de um pequeno café, no outro lado de Aldwych, tomando um café cremoso e de vez em quando vibrando de alegria ao ver a precisão com que um helicóptero jogava o balde de napalm.

Com isso você pode supor que não há nada para saber quanto ao trabalho de Fat Charlie, com exceção de que se sentia infeliz — e com razão. Fat Charlie tinha facilidade com números, o que o mantinha em seu emprego, e uma falta de jeito e uma timidez que o impediam de dizer às pessoas o que fazia de fato, e o quanto fazia. Ao seu redor, Fat Charlie via pessoas ascendendo implacavelmente aos níveis da incompetência, enquanto ele permanecia com o nível de aplicação com que havia entrado, desempenhando tarefas essenciais até o dia em que voltava ao grupo dos desempregados e começava a ver televisão novamente. Nunca ficou sem trabalho durante muito tempo, mas isso tinha acontecido vezes demais na última década para que Fat Charlie se sentisse totalmente seguro em qualquer emprego. Mas ele não levava as coisas para o lado pessoal.

Telefonou para Maeve Livingstone, mulher de Morris Livingstone, que fora o mais famoso comediante baixinho oriundo de Yorkshire em toda a Inglaterra e que era cliente da Agência Grahame Coats havia muito tempo.

— Alô? Aqui é Charles Nancy, do departamento de contabilidade da Agência Grahame Coats.

Ah — disse a mulher do outro lado da linha. — Pensei que o próprio Grahame ligaria para mim.

— Ele está um pouco ocupado. Então ele., ahm — delegou a tarefa. A mim. Então — Posso ajudar?

— Não sei ao certo. Eu queria saber... bom, o gerente do banco é que queria saber... quando o resto do dinheiro dos bens do Morris vai aparecer. O Grahame Coats explicou para mim da última vez... bom, eu acho que foi da última vez em que nos falamos... que o dinheiro foi investido... quer dizer, eu entendo que essas coisas levam tempo... ele disse que caso contrário eu perderia muito dinheiro...

— Bom, eu sei que ele está cuidando do problema. Mas essas coisas realmente levam tempo.

— Sim — disse ela. — Suponho que levam tempo mesmo. Liguei para a BBC e eles disseram que realizaram vários pagamentos desde a morte de Morris. Sabia que lançaram toda a série Morris Livingstone, I Presume em DVD? E vão lançar as duas séries de Short Baek and Sides no Natal.

— Eu não sabia — admitiu Fat Charlie. — Mas tenho certeza de que Grahame Coats sabe. Ele sempre está a par dessas coisas.

— Eu tive que comprar meu próprio DVD — disse, melancólica. — Mesmo assim, tudo voltou. O pessoal se maquiando nos bastidores, aquela atmosfera do clube da BBC. E eu vou te contar uma coisa, me fez sentir falta de estar sob um holofote. Foi assim que eu conheci o Morris. Eu era dançarina. Tinha minha própria carreira.

Fat Charlie disse a ela que informaria Grahame Coats de que o gerente do banco da sra. Livingstone estava um pouco preocupado e depois desligou.

Ficou se perguntando como alguém pode sentir falta de estar sob os holofotes.

Nos piores pesadelos de Fat Charlie, um holofote brilhava sobre ele, proveniente de um céu escuro, sobre um grande palco, e figuras ocultas tentavam forçá-lo a ficar sob a luz do holofote e cantar. Por mais rápido que ele corresse, ou para mais longe, por melhor que se escondesse, sempre o encontravam e o arrastavam de volta para o palco, diante de dezenas de pessoas ansiosas por um espetáculo. Ele sempre acordava antes de reamente cantar, suando e tremendo, com o coração batendo feito um tambor no peito.

O dia de trabalho passou. Fat Charlie trabalhava ali havia quase dois anos. Estava na empresa havia mais tempo que todo mundo, com exceção do próprio Grahame Coats. A rotatividade na agencia era grande. Mesmo assim, ninguém gostava muito de vê-lo por ali.

Fat Charlie às vezes sentava-se à sua mesa e ficava olhando através da janela enquanto a chuva cinzenta e insensível lá fora batia contra o vidro. Então se imaginava numa praia tropical, com as ondas de um mar impossivelmente azul arrebentando sobre a areia impossivelmente dourada. Muitas vezes se perguntava se as pessoas na praia, na sua imaginação, observando os dedos brancos das ondas acariciando a areia, ouvindo os pássaros tropicais assobiando nas palmeiras, não sonhavam estar na Inglaterra, na chuva, numa sala do tamanho de um caixote, no quinto andar de um escritório, a uma distância segura do tédio que representava areia a dourada e da chatice infernal de um dia tão perfeito que nem mesmo um drink cremoso com excesso de rum e um guarda-chuvinha de papel vermelho poderia fazer alguma coisa para melhorar os ânimos. E isso o consolava.


No caminho para casa, parou na loja de bebidas e comprou uma garrafa de vinho branco alemão, uma vela com cheiro de patchouli no pequeno supermercado ao lado e pegou uma pizza na pizzaria ali perto.

Rosie ligou durante sua aula de ioga, às 7h30, para avisar que se atrasaria um pouco, depois de seu carro, às 8h, para avisar que estava presa no trânsito, e finalmente às 9hl 5, para avisar que estava virando a esquina, mas aí Fat Charlie já tinha bebido quase toda a garrafa de vinho sozinho e consumido apenas um solitário pedaço de pizza.

Mais tarde, ele se perguntaria se tinha sido o vinho que o fizera dizer aquilo.

Rosie chegou às 9h20, com toalhas, um saco de supermercado cheio de xampus, sabonetes e um grande pote de creme para o cabelo. Ela recusou, de modo vigoroso mas bem-humorado, a taça de vinho e o pedaço de pizza oferecidos por Fat Charlie. Explicou que tinha comido enquanto estava presa no tráfego. Tinha pedido pelo telefone. Fat Charlie sentou-se na cozinha, serviu-se da última taça de vinho branco e catou o queijo e o pepperoni da cobertura da pizza fria enquanto Rosie foi até o banheiro e começou, de repente, a gritar muito alto.

Fat Charlie chegou ao banheiro antes que o primeiro grito morresse no ar, no exato momento em que Rosie enchia os pulmões para soltar outro grito. Estava convencido de que a encontraria ensopada em sangue. Para sua surpresa e alívio, ela não estava sangrando. De calcinha e sutiã azuis, apontava para a banheira, no centro da qual havia uma aranha de jardim grande e marrom.

— Desculpe — choramingou. — Me pegou de surpresa.

— Acontece — disse Fat Charlie. — Vou abrir a torneira e deixar a água levá-la embora.

— Não ouse fazer uma coisa dessas! — ameaçou Rosie com firmeza. — É um ser vivo. Leve para fora.

— Certo.

— Vou esperar na cozinha. Me avise quando terminar.

Quando você bebe um garrafa inteira de vinho branco, fazer uma aranha de jardim bastante tímida entrar num copo de plástico transparente usando apenas um cartão de aniversário velho torna-se uma tarefa mais difícil para a coordenação entre os olhos e a mente do que de costume. E uma tarefa em nada auxiliada por uma noiva parcialmente nua, à beira de um ataque histérico, e que, apesar de anunciar que esperaria na cozinha, está debruçada sobre o seu ombro, dando palpites.

Apesar da ajuda, ele logo conseguiu colocar a aranha dentro do copo, cuja boca permanecia firmemente coberta por um cartão de aniversário enviado por um velho amigo dos tempos de escola que dizia: VOCÊ TEM A IDADE QUE SENTE TER (e que, do lado de dentro, acrescentava jocosamente à mensagem ENTÃO PÁRA DE FICAR SENTINDO O QUE VOCÊ TEM NO BOLSO, SEU TARADO! — FELIZ ANIVERSÁRIO).

Ele levou a aranha escada abaixo, saiu pela porta da frente e foi para o pequeno jardim frontal, que consistia numa cerca viva utilizada pelos transeuntes para vomitar e diversas pedras com grama entre elas. Ergueu o copo. Sob a luz de sódio amarelada, a aranha ficava negra. Imaginou que ela o estivesse encarando.

— Desculpe o que aconteceu — disse em alto e bom som à aranha, com o vinho branco percorrendo seu corpo.

Colocou o cartão e o copo numa pedra rachada, ergueu o copo e esperou a aranha sair correndo dali. Em vez disso, ela ficou simplesmente parada, imóvel, sobre a face do feliz ursinho de pelúcia desenhado no cartão. Homem e aranha ficaram se observando.

Lembrou-se de algo que a Sra. Higgler havia lhe dito, e as palavras saíram de sua boca antes que pensasse nelas. Talvez fosse alguma influência demoníaca. Talvez fosse o álcool.

— Se você vir o meu irmão — disse Fat Charlie para a aranha —, diga para me fazer uma visitinha.

A aranha ficou parada no mesmo lugar. Ergueu uma perna, quase como se estivesse pensando no que lhe foi dito, e depois saiu correndo pela pedra na direção da cerca viva. Então desapareceu.


Rosie tomou seu banho, deu um beijo estalado demorado na bochecha de Fat Charlie e foi para casa.

Fat Charlie ligou a TV, mas logo começou a cochilar. Desligou o aparelho e foi para a cama, onde teve um sonho tão vivido e peculiar que se lembraria dele pelo resto da vida.

Uma maneira de saber se o que você vê é um sonho é tentar perceber se está em algum lugar em que nunca esteve na vida real. Fat Charlie nunca fora à Califórnia. Nunca estivera em Beverly Hills. Mas já a vira em filmes e na televisão o suficiente para sentir que reconhecia o lugar. Havia uma festa ali.

As luzes de Los Angeles brilhavam e piscavam lá embaixo.

As pessoas na resta pareciam se dividir entre aqueles que carregavam bandejas prateadas cobertas com canapés perfeitos e aqueles que pegavam ou recusavam o que havia nas bandejas prateadas. Os que estavam sendo alimentados andavam pela enorme casa fofocando, sorrindo, conversando, cada um certo de sua relativa importância no mundo hollywoodiano, como se fossem cortesãos da corte do Japão antigo — exatamente como na corte do Japão antigo, cada um deles tinha certeza de que, se subisse mais um degrau na escala, estaria salvo. Havia atores que desejavam ser astros, astros que queriam ser produtores independentes, produtores independentes que queriam ter a segurança de um trabalho em estúdio, diretores que queriam ser astros, chefões de estúdio que queriam ser chefes de outros estúdios não tão precários, advogados de estúdios que desejavam que os outros gostassem deles por seus próprios méritos ou, se isso não fosse possível, simplesmente ser admirados.

No sonho de Fat Charlie, ele se via do lado de dentro e do lado de fora ao mesmo tempo, e não era ele mesmo. Em seus sonhos ele geralmente só ficava sentado fazendo uma prova de Escrituração Contábil de Partidas Dobradas para a qual esquecera de estudar, em circunstâncias que lhe davam certeza absoluta de que, quando finalmente se levantasse da cadeira, descobriria que de alguma maneira havia se esquecido, quando se vestira pela manhã, de colocar qualquer roupa para cobrir a parte de baixo do corpo. Em seus sonhos, Fat Charlie era ele mesmo, só que mais atrapalhado.

Mas não nesse sonho.

Nesse sonho, Fat Charlie era uma pessoa ousada. Mais que ousada. Uma pessoa descolada, bacana, esperta, a única pessoa na festa sem bandeja prateada que não havia sido convidada. E (isso era uma fonte de espanto para o Fat Charlie que dormia, o qual não podia pensar em nada mais embaraçoso do que estar em algum lugar sem ser convidado) estava se divertindo muitíssimo.


A cada pessoa que perguntava, contava uma história diferente sobre quem era e por que estava ali. Depois de meia hora, metade da festa estava convencida de que ele era o representante de uma empresa de capital estrangeiro que tinha interesse em adquirir em breve um dos estúdios. Depois de mais meia hora, todos na festa sabiam que ele pensava em fazer uma oferta pelo estúdio Paramount.

Sua risada era rouca e contagiosa, e ele sem dúvida parecia se divertir mais do que as outras pessoas. Instruiu o barman a preparar um coquetel que batizou de “Double Entendre”, o qual, embora parecesse ter uma base de champanhe, na verdade era cientificamente não-alcoólico, de acordo com sua explicação. Continha um pouco disso e um pouco daquilo, até ficar com uma cor roxa vivida. Ele distribuiu seu coquetel às pessoas da festa, insistindo com alegria e entusiasmo que bebessem. Até mesmo as pessoas que estavam tomando água com gás ficariam satisfeitas engolindo aquela bebida arroxeada de uma só tragada.

Então, com a lógica dos sonhos, ele as levou até a piscina e propôs ensiná-las o truque de Caminhar sobre as Águas. Era tudo questão de fé, de atitude, de agressividade, de saber como se fazia a coisa. Para as pessoas da festa, pareceu que Caminhar sobre as Águas era um truque excelente para se aprender, algo que sempre souberam como fazer, bem no fundo da alma, mas haviam esquecido. Esse homem as faria se lembrar da técnica.

“Tirem os sapatos”, disse a todos. Eles obedeceram, deixando Sergios Rossis, Christians Louboutins e Renès Caovillas alinhados lado a lado com Nikes, Doe Martens e sapatos pretos de couro anônimos. Então os levou, numa fila de gente dançando conga, até a borda da piscina e, depois, sobre a superfície. A água estava fria ao toque e tremia como gelatina espessa sob seus pés. Algumas mulheres e muitos homens riram de nervosismo ao perceber aquilo, e dois agentes de relações públicas mais novinhos começaram a pular sobre a superfície da piscina como crianças num pula-pula. Lá longe, abaixo deles, as luzes de Los Angeles brilhavam através da névoa como se fossem galáxias distantes.

Logo cada centímetro da piscina foi tomado pelas pessoas da festa — de pé, dançando, tremendo ou pulando sobre a água. Havia uma multidão tão grande ali que o sujeito descolado, o Charlie-do-sonho, saiu da piscina e foi até a parte sólida de concreto pegar um sashimi numa bandeja de prata.

Uma aranha caiu de uma árvore de jasmim sobre o ombro do sujeito descolado. Ela desceu pelo seu braço e foi para a palma de sua mão. Ele a cumprimentou com um alegre “Ooooi!”

Houve um silêncio, como se ele estivesse ouvindo o que a aranha dizia, algo que só ele era capaz de escutar. A aranha disse “Peça e ser-lhe-á concedido. Não é verdade?”

Ele colocou a aranha com cuidado sobre uma folha de jasmim.

Naquele exato momento, cada uma das pessoas descalças sobre a piscina lembrou-se de que a água era líquida, não sólida, e de que havia um motivo para geralmente não caminharem, muito menos dançarem ou pularem, sobre a água. O motivo é o fato de isso ser impossível.

Essas pessoas faziam e aconteciam na máquina dos sonhos, e de repente caíam, completamente vestidas, na água com 1 a 3 metros de profundidade. Todas ficaram molhadas, aterrorizadas, balançando os braços.

Casualmente, como quem não quer nada, o sujeito descolado atravessou a piscina, pisando sobre a cabeça e as mãos das pessoas sem jamais perder o equilíbrio. Quando alcançou o outro lado da piscina, onde havia uma ladeira íngreme, deu um grande salto e mergulhou nas luzes noturnas e brilhantes de Los Angeles, que o engoliram como se fossem um oceano.

As pessoas na piscina debatiam-se para sair dali, furiosas, revoltadas, confusas, molhadas e, em alguns casos, quase afogadas.

Era início de manhã no sul de Londres. A luz tinha um tom azul-acinzentado.

Fat Charlie saiu da cama, perturbado por seu sonho, e foi até a janela. As cortinas estavam abertas. Podia ver o sol nascendo, uma grande laranja avermelhada cercada de nuvens cinzentas tingidas de vermelho. O tipo de céu que faz com que até a pessoa mais prosaica do mundo descubra uma imensa vontade de começar a fazer pinturas a óleo.

Fat Charlie olhou para o sol nascente. “Vermelho ao nascente, chuva de repente”, pensou.

Tivera um sonho tão estranho. Uma festa em Hollywood. O segredo de Caminhar sobre as Águas. F aquele homem, que era ele e não era ao mesmo tempo...

Fat Charlie deu-se conta de que conhecia o homem do sonho de algum lugar e também de que, se permitisse, isso o deixaria irritado pelo resto do dia, como um pedacinho de fio dental preso entre dois dentes ou como a diferença exata entre as palavras lúbrico e lascivo — a dúvida permaneceria ali e o deixaria irritado.

Olhou pela janela.

Não eram nem seis da manhã, e o mundo estava em silêncio. Um passeador de cachorro no fim da rua encorajava um lulu da Pomerânia a defecar. Um carteiro ia lentamente de casa em casa e voltava à sua van vermelha. Então algo se moveu na calçada sob sua casa, e Fat Charlie olhou.

Um homem estava parado perto da cerca viva. Quando viu que Fat Charlie, de pijama, olhava para ele, sorriu e acenou com a mão. Houve um momento de reconhecimento que abalou profundamente Fat Charlie: o homem tinha um rosto familiar, tanto o sorriso como o gesto, embora não conseguisse descobrir exatamente como. Alguns elementos do sonho permaneciam na cabeça de Fat Charlie, fazendo o mundo parecer irreal, o que era desconfortável para ele. Esfregou os olhos e, quando os abriu, a pessoa perto da cerca viva havia desaparecido. Fat Charlie imaginava que o homem tinha saído dali e descido a rua até desaparecer no restinho da névoa da manhã, levando consigo qualquer elemento de esquisitice, irritação ou loucura que trazia.

E então a campainha tocou.

Fat Charlie colocou seu robe e desceu as escadas.

Nunca havia usado a corrente de segurança antes de abrir a porta, jamais em toda a vida, mas antes de girar a maçaneta colocou a corrente no lugar e só abriu uma fresta de uns 15 centímetros.

— Bom dia — cumprimentou, inseguro.

O sorriso que aparecia na fresta da porta seria capaz de iluminar uma cidade inteira.

— Você me chamou e eu vim — disse o estranho. — E então? Não vai abrir a porta para mim, Fat Charlie?

— Quem é você?

Enquanto dizia a frase, se deu conta de onde vira aquele homem antes: no funeral de sua mãe, na pequena capela do crematório. Foi a última vez que vira aquele sorriso. E sabia qual era a resposta para sua pergunta mesmo antes de obter uma resposta.

— Sou o seu irmão — informou o homem.

Fat Charlie fechou a porta. Tirou a corrente e escancarou a porta. O homem ainda estava ali.

Fat Charlie não tinha muita certeza sobre como cumprimentar um irmão potencialmente imaginário, em cuja existência tinha se recusado a acreditar. Eles ficaram ali, de pé, um de um lado da porta, o outro do outro, até que seu irmão disse:

— Você pode me chamar de Spider. Não vai me convidar para entrar?

— Sim. Vou. Claro. Por favor. Entre.

Fat Charlie levou o homem para o andar de cima.

Coisas impossíveis acontecem. Quando acontecem, a maioria das pessoas simplesmente dá um jeito de lidar com elas. Hoje, como em todos os outros dias, mais ou menos 5 mil pessoas sobre a face da Terra experimentarão uma dessas coisas que têm uma chance em um milhão de acontecer. Nenhuma delas se recusará a acreditar no que seus sentidos lhes dizem. A maioria dirá o equivalente à frase (em sua própria língua): “Que mundo estranho, não é?”; e seguirá adiante. Embora uma parte de Fat Charlie tentasse imaginar uma explicação lógica, sensata e racional para o que estava acontecendo, a maior parte dele simplesmente se acostumava com a idéia de que um irmão que ele não conhecia estava atrás dele subindo a escada para o andar de cima. Chegaram à cozinha e lá ficaram.

— Aceita um chá?

— Você tem café?

— Só instantâneo, infelizmente.

— Tudo bem.

Fat Charlie pôs a chaleira no fogo.

— Você vem de longe então? — perguntou.

— De Los Angeles.

— Como foi o vôo?

O homem sentou-se à mesa da cozinha. Deu de ombros. Era o tipo de dar de ombros que poderia significar qualquer coisa.

— Ahm. Você planeja ficar muito tempo?

— Não pensei muito nisso ainda.

O homem — Spider — examinava a cozinha de Fat Charlie como se nunca tivesse visto uma cozinha na vida.

— Como você toma o seu café?

— Negro como a noite, doce como o pecado.

Fat Charlie colocou a caneca diante do homem e ofereceu-lhe o açucareiro.

— Sirva-se à vontade.

Enquanto Spider colocava colher após colher de açúcar em seu café, Fat Charlie ficou sentado do lado oposto da mesa, observando-o.

Havia certa semelhança entre os dois homens. Isso era indiscutível, embora não explicasse a intensa sensação de familiaridade que Fat Charlie sentia ao ver Spider. Seu irmão tinha a aparência que ele gostava de imaginar que teria, se não visse no espelho do banheiro com monótona regularidade um sujeito com uma aparência que deixava um tanto a desejar. Spider era mais alto, mais magro, mais interessante. Usava uma jaqueta de couro preta e vermelha e calças de couro pretas, e parecia sentir-se confortável nelas. Fat Charlie tentou se lembrar se o sujeito descolado estava vestido assim no sonho. Havia algo sobrenatural nele: simplesmente estar do outro lado da mesa, diante desse homem, fazia Fat Charlie se sentir esquisito, desajeitado e um tanto tolo. Não eram as roupas que Spider usava, e sim saber que se ele, Fat Charlie, as vestisse, pareceria alguém usando um disfarce não convincente. Não era o sorriso de Spider — um sorriso casual, alegre —, e sim a fria e incontornável certeza de que ele, Fat Charlie, poderia treinar sorrir na frente do espelho até o fim dos tempos que nunca conseguiria sorrir de um jeito tão encantador, tão confiante, tão espetacularmente afável.

— Você foi à cremação da mamãe — disse Fat Charlie.

— Eu pensei em falar com você depois do velório. Mas não sabia se era uma boa idéia.

— Teria sido uma boa idéia. — Fat Charlie se lembrou de alguma coisa. — Achei que você iria também ao funeral do nosso pai.

— Quê?

— O funeral dele. Na Flórida. Uns dois dias atrás.

Spider balançou a cabeça.

— Ele não está morto. Tenho certeza de que eu saberia caso ele estivesse.

— Ele morreu. Eu o enterrei. Quer dizer, enchi a cova de terra. Pergunte à Sra. Higgler.

— Como ele morreu?

— Ataque do coração.

— Isso não quer dizer nada. Só significa que ele morreu.

— Bom, pois é isso. Ele morreu.

Spider parou de sorrir. Agora olhava fixamente para seu café, como se pensasse que poderia achar uma resposta ali.

— Vou precisar verificar isso. Não é que eu não acredite em você. Mas quando se trata do próprio pai... Mesmo quando o seu pai é o meu pai. — Ele fez uma careta. Fat Charlie sabia o que aquela careta significava. Ele mesmo a fazia, internamente, diversas vezes, quando alguém falava sobre seu pai.

— Ela ainda mora no mesmo lugar? Na casa ao lado da nossa casa antiga? — perguntou Spider.

— A Sra. Higgler? Sim. Ainda está lá.

— Você por acaso teria alguma foto de lá? Um retrato?

— Eu trouxe uma caixa cheia.

Fat Charlie ainda não havia aberto a enorme caixa de papelão. Estava no hall de entrada. Levou a caixa para a cozinha e a colocou sobre a mesa. Pegou uma faca de cozinha e cortou a fita adesiva. Spider colocou as mãos de dedos finos dentro da caixa, mexendo nas fotografias como se fossem cartas de baralho, até que puxou uma foto de sua mãe e da Sra. Higgler sentadas na varanda da casa da antiga vizinha. Uma foto de 25 anos antes.

— Essa varanda ainda existe?

Fat Charlie tentou se lembrar.

— Acho que sim.

Mais tarde, ele não conseguia lembrar se a foto cresceu ou se Spider diminuiu. Poderia jurar que nenhuma dessas coisas aconteceu realmente. Apesar disso, era um fato indiscutível que Spider entrou na fotografia, cuja superfície brilhava e fazia ondas como se fosse líquida e acabou por engoli-lo.

Fat Charlie esfregou os olhos. Estava sozinho em sua cozinha, às seis da manhã. Havia uma caixa cheia de fotografias e papéis sobre a mesa, e uma caneca vazia, que ele colocou dentro da pia.

Caminhou pelo corredor até seu quarto, deitou-se em sua cama e dormiu até o despertador acordá-lo, às 7h15.

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