1 O qual basicamente discorre a respeito de nomes e laços familiares

Esta história começa, assim como a maioria das coisas, com uma música.

Afinal de contas, no começo havia as palavras, e elas vinham acompanhadas de uma melodia. Foi assim que o mundo foi feito, que o vazio foi dividido e que a terra, as estrelas, os sonhos, os pequenos deuses e os animais vieram ao mundo.

Eles foram cantados.

Os grandes animais foram cantados para a existência depois que o Cantor já havia criado os planetas, as colinas, as árvores, os oceanos e os pequenos animais. Os penhascos que cercam a existência foram cantados, assim como os campos de caça e a escuridão.


As canções permanecem. Elas perduram. A canção certa pode fazer um imperador tornar-se motivo de chacota, pode arruinar toda uma dinastia. Uma canção pode permanecer depois de os acontecimentos e as pessoas nela descritos terem se transformado em pó, em sonhos e morrido. Esse é o seu poder.

Há outras coisas que podemos fazer com as músicas. Elas não apenas criam mundos ou recriam a existência. O pai de Fat Charlie Nancy, por exemplo, utilizou-as apenas para ter aquilo que esperava ser uma noitada maravilhosa.

Antes de ele entrar no bar, o barman achava que aquela noite de karaokê seria um fracasso total. Mas então o velhinho entrou requebrando no recinto e passou pela mesa em que estavam sentadas várias loiras recém-bronzeadas com seus sorrisos de turistas, perto do pequeno palco improvisado num canto. Cumprimentou-as com a aba do chapéu — ele usava um chapéu, um impecável chapéu panamá verde, e luvas verde-limão — e caminhou até a mesa. Elas deram risadinha.

— As moças estão se divertindo? — perguntou.

Elas continuaram a rir e disseram que estavam se divertindo, “sim, obrigada”, e que estavam ali de férias. Ele disse a elas que ficaria ainda melhor, bastava esperar.

Era mais velho que elas, bem mais velho, mas era o charme em pessoa, alguém que vinha de uma era remota em que os bons modos e a cortesia ainda valiam alguma coisa. O barman tranqüilizou-se. Com alguém assim no bar, aquela seria uma boa noite.

Teve karaokê. Teve gente dançando. O velho levantou-se para cantar no palco improvisado não apenas uma vez, mas duas. Tinha uma bela voz, um lindo sorriso e pés que produziam um som de sapateado enquanto ele dançava. Na primeira vez em que subiu ao palco, cantou “What’ s New Pussycat?” Na segunda, arruinou a vida de Fat Charlie.


Fat Charlie só tinha sido gordo durante alguns poucos anos, desde pouco antes de completar 10 anos de idade — quando sua mãe anunciou ao mundo que, se havia uma coisa que ela não agüentava mais (e, se o cavalheiro em questão tivesse alguma objeção, poderia enfiá-la você sabe muito bem onde), era o seu casamento com aquele bode velho com o qual tinha cometido o infeliz erro de se casar, e o qual ela abandonaria na manhã seguinte para ir a algum lugar muito, muito distante, e era melhor ele não segui-la — até seus 14 anos, quando cresceu um pouco e começou a fazer mais exercícios físicos. Ele não era gordo. Para falar a verdade, não era nem mesmo gordinho. Apenas tinha aquela aparência de quem tem a barriga meio mole. Mas o nome Fat Charlie grudou nele como chiclete na sola do sapato. Ele se apresentava como Charles ou, na época em que tinha 20 e poucos anos, como Chaz ou, quando escrevia, como C. Nancy, mas não adiantava: o nome infiltrava-se insidiosamente nas novas fases de sua vida como as baratas invadem as reentrâncias atrás da geladeira numa nova cozinha. Gostasse ou não — e ele não gostava —, voltava a ser Fat Charlie.

Ele sabia, em seu inconsciente, que isso acontecia porque havia sido seu pai quem lhe dera o apelido e, quando seu pai dava um nome às coisas, esse nome colava.

Na Flórida havia um cachorro que vivia na casa em frente, do outro lado da rua onde Fat Charlie cresceu. Era um boxer castanho, de pernas compridas e orelhas pontudas. Tinha um focinho que fazia você pensar que o animal havia dado de cara com uma parede quando era filhote. A cabeça era altiva, o pequeno rabo, ereto. Sem dúvida, um aristocrata entre os cães. Participara de competições caninas. Tinha medalhas de Melhor da Raça e Melhor da Classe e até mesmo uma medalha de Melhor da Competição. O nome do cão era Campbell s Macinrory Arbuthnot VII, e seus donos, depois de ganhar mais intimidade com ele, o chamavam de Kai. Isso durou até o dia em que o pai de Fat Charlie, sentado na cadeira de balanço de sua varanda mal-cuidada, tomando goles de sua cerveja, notou o cão enquanto ele andava calmamente para lá e para cá no quintal do vizinho, preso a uma coleira que se estendia desde uma palmeira até a cerca.

— Que cachorro mais pateta — disse o pai de Fat Charlie. — Igual àquele amigo do Pato Donald. Ô Pateta.

E o que certa vez havia sido o Melhor da Competição perdeu de repente seu charme. Para Fat Charlie, era como se visse o cão através dos olhos de seu pai. E aquele era um cachorro bem pateta se você reparasse bem. Quase desastrado.

Não demorou muito para que o nome se espalhasse por toda a rua. Os donos de Campbell s Macinrory Arbuthnot VII lutaram contra o nome, mas era como discutir com um furacão em vez de correr. Estranhos acariciavam a antes orgulhosa cabeça do cão e diziam: “Oi, Pateta. Como vai esse garoto?”. Os donos pararam de inscrevê-lo nas competições caninas logo depois. Não tinham coragem. “Ele tem um jeito meio abobalhado”, comentavam os jurados.

Os nomes que o pai de Fat Charlie dava às coisas pegavam. Era assim e pronto.

Mas isso estava longe de ser a pior coisa a respeito dele.

Durante a infância de Fat Charlie, surgiram várias candidatas ao posto de pior coisa a respeito de seu pai: seus olhos estavam sempre ávidos por outras mulheres, e o mesmo acontecia com seus dedos, pelo menos de acordo com as jovens do local, que reclamavam para a mãe de Fat Charlie — e aí ele ficava em maus lençóis; as cigarrilhas pretas que fumava, as quais ele chamava de charutos e deixavam um cheiro que se impregnava em tudo o que ele tocasse; seu apreço por um peculiar estilo de sapateado arrastado, que devia ter sido moda, pensava Fat Charlie, por no máximo meia hora no Harlem na década de 20; sua absoluta e imutável ignorância sobre os assuntos contemporâneos do mundo, aliada à sua aparente convicção de que os seriados de comédia da TV eram um jeito de vivenciar por meia hora a vida e os problemas de pessoas reais. De acordo com Fat Charlie, essas não eram, pelo menos isoladamente, as piores coisas a respeito de seu pai, embora cada uma delas contribuísse para a pior coisa.

A pior coisa a respeito do pai de Fat Charlie era simplesmente isso: ele era constrangedor.

Claro, todos os pais são constrangedores. Faz parte. A natureza deles é nos deixar constrangidos simplesmente por existirem, assim como é a natureza das crianças de certa idade se retorcerem de constrangimento, vergonha e mortificação caso seus pais simplesmente lhes dirijam a palavra na rua.

O pai de Fat Charlie, é claro, fazia disso uma arte, e se divertia com isso, assim como se divertia com suas “pegadinhas”, desde as mais simples — Fat Charlie jamais se esqueceria da primeira vez em que encontrara o lençol de sua cama dobrado de modo a não deixá-lo esticar as pernas — até as mais absurdamente complexas.

-Tipo o quê? — perguntou certa noite Rosie, a noiva de Fat Charlie, quando ele, que geralmente não falava sobre o pai, tentou de maneira desastrada explicar por que acreditava que o simples fato de convidar seu pai para o casamento seria uma péssima déia. Estavam um pequeno bar-adega no sul de Londres. Já fazia algum tempo que Charlie acreditava que 6 mil quilômetros e o Oceano Atlântico seriam excelentes obstáculos entre ele e seu pai.

— Bem — ele respondeu, lembrando-se das diversas situações constrangedoras por que passou, cada uma delas fazendo com que involuntariamente contraísse os dedos dos pés. Decidiu contar uma delas. — Bom, quando eu mudei de escola, ainda criança, meu pai fez questão de me dizer que sempre ficava ansioso pelo Dia do Presidente quando era menino, porque a lei dizia que no Dia do Presidente as crianças que iam à escola vestidas como seu presidente favorito ganhavam um saco cheio de doces.

— Ah. É uma lei bacana — opinou Rosie. — Seria bom ter algo assim aqui na Inglaterra.

Rosie nunca havia saído do Reino Unido, sem contar as pequenas férias passadas em uma ilha que — ela tinha quase certeza — ficava no Mediterrâneo. Tinha olhos de um castanho vivido e um bom coração, ainda que geografia não fosse seu forte.

— Não é uma lei bacana — discordou Fat Charlie. — Nem ao menos é uma lei. Ele inventou isso. Na maioria dos estados, não tem nem aula no Dia do Presidente. E, mesmo se tiver, não existe tradição nenhuma de ir para a escola fantasiado como seu presidente favorito. As crianças fantasiadas de presidente não ganham sacos de doces graças a uma lei do Congresso. E a popularidade dos alunos nos anos seguintes, do ginásio até o colegial, não é decidida com base na fantasia de presidente que escolheram. As crianças comuns não se vestem como os presidentes mais óbvios, e as que se tornam populares não se vestem como John Quincy Adams, Warren Gamali o ele dizia que dava.

— Os meninos e as meninas se fantasiam de presidente?

— Ah, sim. Os meninos e as meninas. Então eu passei a semana anterior ao Dia do Presidente lendo tudo sobre os presidentes na World Book Encyclopedia, tentando escolher o melhor deles.

— Você não desconfiou que ele estivesse de brincadeira?

Fat Charlie fez que não com a cabeça.

— Não é uma coisa que passa pela sua cabeça quando o meu pai começa a enganar você. Ele é o melhor mentiroso do mundo. E bastante convincente.

Rosie tomou um pequeno gole de seu Chardonnay.

— E você foi à escola vestido como qual presidente?

— Taft. Ele foi o 21º presidente. Eu usei um terno marrom que o meu pai encontrou sei lá onde, com as pernas das calças enroladas e um travesseiro enfiado na frente. Também tinha um bigode pintado na cara. O meu pai me levou à escola naquele dia. Eu entrei todo orgulhoso. As outras crianças ficaram gritando e apontando para mim, então eu me tranquei num cubículo no banheiro dos meninos e chorei. Não me deixaram ir para casa trocar de roupa. Passei o dia todo daquele jeito. Foi como estar no inferno.

— Você devia ter inventando alguma desculpa. Que você ia a uma festa à fantasia depois, algo do tipo. Ou então ter dito a verdade a eles.

— É — concordou Fat Charlie, de um jeito triste, relembrando o fato.

— O que o seu pai disse quando você voltou pra casa?

— Ah, ele caiu na gargalhada. Começou dando risadinhas, depois ficou rindo bem alto, ria, ria até engasgar. Então me disse que talvez as pessoas não estivessem mais fazendo essa coisa do Dia do Presidente. Por que, em vez de fazer isso, ele não me levou à praia para procurar sereias?

— Procurar sereias?

— A gente ia até a praia e ficava caminhando pela areia. Ele era mais constrangedor que qualquer ser humano sobre a face da Terra. Começava a cantar e fazer uma espécie de dança arrastada sobre a areia, e falava com as pessoas enquanto dançava. Pessoas que ele não conhecia, que nunca tinha visto na vida. Eu odiava aquilo, menos quando ele me dizia que havia sereias no Oceano Atlântico e, se eu olhasse bem rápido e para o lugar certo, conseguiria ver uma delas.

“Ali!”, ele dizia. “Você viu? Era uma ruiva bem grande, com uma cauda verde.” Eu olhava e olhava, mas nunca via uma sereia.

Fat Charlie balançou a cabeça. Então pegou um punhado de nozes sortidas da tigela sobre a mesa e começou a jogá-las na boca, triturando-as como se cada uma fosse uma vergonha passada 20 anos antes que jamais pudesse ser apagada.

— Bom — começou Rosie, de um jeito animado —, ele parece uma pessoa muito querida, uma figura! A gente precisa convidá-lo pro nosso casamento. Ele seria a alma da festa.

Fat Charlie enfim explicou, depois de engasgar por um instante com uma castanha-do-pará, que essa era exatamente a última coisa que ele queria em seu casamento. O pai aparecendo e sendo a alma da festa. Afirmou que seu pai era, sem sombra de dúvida, a pessoa mais constrangedora sobre a face da Terra. Acrescentou que se sentia muito feliz por não ver o velho havia anos e que deixar seu pai e vir morar na Inglaterra com a tia Alanna fora a melhor coisa que sua mãe fizera. Salientou o que dizia afirmando categoricamente que de jeito nenhum, nenhum mesmo, convidaria seu pai. Na verdade, disse por fim, a melhor coisa de se casar era que não convidaria o seu pai para o casamento.

Então Fat Charlie viu a expressão no rosto de Rosie e o ar gelado em seus olhos sempre gentis e corrigiu apressadamente o que disse, explicando que aquela seria a segunda melhor coisa de se casar, mas já era tarde.

— Você vai ter que se acostumar com a idéia — respondeu Rosie. — Afinal, um casamento é sempre uma excelente oportunidade para entrar em contato com as pessoas. E a sua oportunidade de mostrar que não guarda rancores.

— Mas eu guardo rancores — explicou Fat Charlie. — E muitos.

— Você tem o endereço dele? — perguntou Rosie. — Ou o telefone? Talvez você deva ligar. Uma carta é meio impessoal demais quando o único filho está se casando. Você é filho único, não é? Ele tem e-mail?

— Sim, sou filho único. Não tenho a mínima idéia se ele tem e-mail. Provavelmente não.

“Uma carta seria uma boa idéia”, pensou. “A carta poderia ser extraviada pelo correio.”

— Bom, você deve ter algum endereço ou telefone.

— Não tenho — respondeu com sinceridade. Talvez seu pai tivesse se mudado. Talvez tivesse saído da Flórida e ido a algum lugar onde não houvesse telefones. E endereços.

— Bom — disse Rosie, com certa rispidez. — Então quem tem?

— A Sra. Higgler — respondeu Fat Charlie, perdendo completamente a vontade de lutar contra a noiva.

Rosie sorriu docemente.

— E quem é a Sra. Higgler?

— Uma amiga da família. Quando eu era criança, ela era nossa vizinha.

Ele falara com a Sra. Higgler muitos anos antes, quando sua mãe estava à beira da morte. A pedido dela, telefonara para a Sra. Higgler para dar o recado ao pai e pedir que entrasse em contato. Vários dias depois, lá estava uma mensagem na secretária eletrônica de Fat Charlie, deixada enquanto ele estava no trabalho, com uma voz que sem dúvida era de seu pai, mesmo que soasse bastante envelhecida e um pouco bêbada.

O pai dizia que não era uma boa hora, que não podia deixar os EUA porque tinha negócios a resolver. E disse que a mãe de Fat Charlie era uma mulher fantástica. Vários dias depois, um vaso de flores sortidas chegou à ala do hospital. A mãe de Fat Charlie deu uma risadinha de desprezo quando leu o cartão.

— Ele acha que consegue se livrar assim tão fácil? Está aprontando mais alguma coisa, garanto pra você.

Mas então ela pediu à enfermeira que pusesse as flores num bom lugar perto da cama dela e, depois disso, perguntou diversas vezes a Fat Charlie se ele sabia de alguma coisa, se por acaso sabia se seu pai viria visitá-la antes que ela morresse.

Fat Charlie respondeu que não sabia de nada. Passou a odiar a pergunta e a resposta que dava, e também a expressão no rosto da mãe quando ele dizia que não, o pai não viria.

O pior dia, na opinião de Fat Charlie, foi quando o médico, um homenzinho ríspido, o levou para fora do quarto e disse que a mãe não duraria muito, que tudo se resumia a uma questão de confortá-la até o fim.

Fat Charlie assentiu com a cabeça e voltou ao quarto. Ela segurava sua mão e perguntava se ele se lembrara de pagar a conta do gás quando o barulho no corredor começou. Um barulho com sopro, percussão, cordas, pratos batendo e pés marchando, o tipo de barulho que não costuma ser ouvido em hospitais, onde há placas nas escadas pedindo silêncio e os olhares gelados das enfermeiras reforçam o pedido.

O barulho ficava cada vez mais alto.

Durante um segundo, Fat Charlie pensou que talvez fossem terroristas. Sua mãe no entanto abriu um débil sorriso ao ouvir aquela cacofonia.

— “Yellow Bird” — sussurrou.

— Quê? — perguntou Fat Charlie, com medo de que ela já estivesse delirando.

— “Yellow Bird” — ela disse mais alto. — E o que estão tocando.

Fat Charlie foi até a porta e olhou para fora do quarto.

Percorrendo o corredor do hospital, ignorando os protestos das enfermeiras e os olhares dos pacientes de pijama e de seus familiares, avançava o que parecia ser uma pequena banda de jazz estilo New Orleans. Tinha saxofone, tuba e trompete. Havia um homem enorme segurando o que parecia ser um baixo pendurado no pescoço. Outro tocava um tambor. E, liderando o grupo, vestindo um elegante terno xadrez, usando um chapéu panamá e luvas verde-limão, estava o pai de Fat Charlie. Ele não tocava nenhum instrumento, mas fazia uma dancinha suave e arrastada no lustroso chão de linóleo do hospital, tirando o chapéu e cumprimentando cada um dos membros da equipe médica, dando a mão e cumprimentando qualquer um que chegasse perto o suficiente para falar com ele ou tentar reclamar.

Fat Charlie mordeu o lábio e rezou para quem quer que o ouvisse, pedindo para se esconder num buraco no chão ou, se isso não fosse possível, sofrer um misericordioso e fulminante ataque cardíaco. Mas não teve sorte. Ainda estava vivo, a banda de jazz continuava a seguir pelo corredor e seu pai continuava a dançar, cumprimentar e sorrir.

“Se houver justiça neste mundo”, pensou Fat Charlie, “meu pai vai continuar andando pelo corredor, vai passar direto por nós e vai para a ala de doenças do trato urinado.” Porém não havia justiça no mundo, e seu pai chegou até a porta da ala de oncologia e parou.

— Fat Charlie — exclamou alto o bastante para que todo mundo naquela ala, naquele andar, naquele hospital, pudesse compreender que ele era alguém que conhecia Fat Charlie. — Fat Charlie, abra caminho. Seu pai chegou.

Fat Charlie abriu caminho.

A banda se espremeu pela ala e chegou até a cama da mãe de Fat Charlie. Ela olhou para eles quando se aproximaram e sorriu.

— “Yellow Bird” — disse com voz fraca. — É minha música favorita.

— E que tipo de homem eu seria se me esquecesse de uma coisa dessas? — perguntou o pai de Fat Charlie.

Ela balançou a cabeça lentamente, esticou a mão e apertou a mão enluvada de verde-limão.

— Com licença — interrompeu uma pequena mulher branca, segurando uma prancheta —, essas pessoas estão com vocês?

— Não — respondeu Fat Charlie com o rosto ardendo. — Não estão, não. Não mesmo.

— Mas essa é a sua mãe, não? — perguntou a mulher com um olhar reptílico. — Devo pedir a essas pessoas que saiam da ala sem provocar maiores distúrbios.

Fat Charlie resmungou alguma coisa.

— Como é?

— Eu disse que tenho certeza de que não posso fazer nada a respeito — disse Fat Charlie.

Ele se consolava pensando que não havia maneira de as coisas piorarem. Foi então que seu pai pegou uma bolsa plástica com o sujeito que tocava tambor e começou a dar latas de cerveja escura para os membros da banda, para as enfermeiras, para os pacientes. Depois acendeu um charuto.

— Com licença, meu senhor — disse a mulher com a prancheta quando viu a fumaça, atravessando o quarto na direção do pai de Fat Charlie como se fosse um míssil.

Fat Charlie aproveitou a deixa para sair dali. Parecia a coisa mais certa a fazer.

Ficou em casa à noite, sentado, esperando o telefone tocar ou alguém bater à porta, com o ar de um homem ajoelhado numa guilhotina esperando a lâmina chegar ao seu pescoço. Mas a campainha não tocou.

Ele mal conseguiu dormir e chegou ao hospital na manhã seguinte preparado para o pior.

Sua mãe, na cama, parecia feliz e satisfeita de uma forma que não ficava havia meses.

— Ele já foi embora — disse a Fat Charlie quando ele entrou no quarto. — Não podia ficar. Olha, Charlie, eu queria que você não tivesse ido embora daquele jeito. Acabamos fazendo uma festinha aqui. Nos divertimos pra valer.

Fat Charlie não conseguia pensar em nada pior do que participar de uma festa comandada por seu pai e uma banda de jazz na ala de cancerosos de um hospital. Ele não disse nada.

— Ele não é má pessoa — observou a mãe de Fat Charlie com um brilho nos olhos. Então franziu a testa. — Bom, isso não é totalmente verdade. Ele certamente não é uma boa pessoa. Mas me fez um bem danado na noite passada — e abriu um sorriso de verdade. Por alguns instantes, parecia jovem novamente.

A mulher com a prancheta estava de pé à porta e chamou Fat Charlie com o dedo. Ele saiu pela ala às pressas, em direção a ela, pedindo desculpas antes mesmo que estivesse numa distância suficiente para ser ouvido. À medida que chegava mais perto, percebeu que o olhar dela não era mais o de uma serpente com dor de barriga. Agora tinha um ar definitivamente brincalhão.

— O seu pai — começou.

— Me desculpe — antecipou-se Fat Charlie. Era o que dizia desde criança sempre que seu pai era mencionado.

— Não, não, não. Não tem por que pedir desculpas. Eu só estava pensando... O seu pai. Se precisarmos entrar em contato com ele... Não temos um telefone ou endereço nos nossos arquivos. Eu deveria ter perguntado a ele ontem à noite, mas me esqueci completamente.

— Eu acho que ele não tem telefone. A melhor maneira de encontrá-lo é ir até a Flórida e seguir pela rodovia Al A. É a rodovia perto da costa, que atravessa grande parte do leste do estado. A tarde, você o encontra pescando numa ponte. A noite, ele fica no bar.

— E um homem encantador — ela observou, pensativa. — O que ele faz da vida?

— Eu já disse. Ele diz que é o milagre dos pães e dos peixes. Ela o fitou sem dizer nada, e ele se sentiu idiota. Quando o pai dizia isso, as pessoas riam. Acrescentou:

— Ahm, como na Bíblia. O milagre dos pães e dos peixes. O meu pai costumava dizer que comia pão e pescava, e que era um milagre que tivesse dinheiro. Era tipo uma piada.

Um olhar sonhador por parte dela.

— Sim. Ele contou piadas engraçadíssimas. — Ela fez um “tsc” chateado com a língua, resignada, e depois voltou a falar de questões práticas. — Preciso que o senhor esteja de volta às 5h30.

— Por quê?

— Para buscar sua mãe. E as coisas dela. O dr. Johnson não lhe disse que ela recebeu alta?

— Ela vai voltar pra casa?

— Sim, senhor.

— Mas... e o câncer?

— Parece que foi um alarme falso.

Fat Charlie não conseguia entender como aquilo poderia ser um alarme falso. Na semana anterior, falavam sobre mandar sua mãe para um hospital para doentes terminais. O médico usava frases como “semanas, não meses” e “confortá-la ao máximo até que aconteça o inevitável”.

Mesmo assim, Fat Charlie voltou às 5h30 para pegar sua mãe, que não parecia surpresa por ter sido informada de que não estava mais morrendo. No caminho para casa, ela contou a Fat Charlie que iria usar suas economias para viajar pelo mundo.

— Os médicos diziam que eu tinha três meses de vida. E eu lembro que pensei: “Se eu sair dessa cama, vou visitar Paris, Roma, lugares assim. Vou de novo a Barbados, a Saint Andrews. Talvez eu vá à África. E à China. Eu gosto de comida chinesa”.

Fat Charlie não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas, o que quer que fosse, sabia que a culpa era de seu pai. Conduziu a mãe e sua mala pesada até o aeroporto de Heathrow e acenou para ela do portão de embarque internacional. Ela tinha um enorme sorriso no rosto quando passou pelo portão segurando o passaporte e a passagem. Parecia mais jovem do que ele se lembrava em muito tempo.

Enviou cartões-postais de Paris, Roma, Atenas, Lagos e Cidade de Cabo. O postal de Nanquim dizia que ela definitivamente não gostava daquilo que diziam ser comida chinesa na China e mal conseguia esperar para voltar a Londres e comer comida chinesa de verdade.

Morreu enquanto dormia num hotel em Williamstown, na ilha caribenha de Saint Andrews.

No funeral, num crematório no sul de Londres, Fat Charlie esperava ver o pai. Talvez o velho aparecesse liderando uma banda de jazz, ou seguido pelo corredor por uma trupe de palhaços ou meia dúzia de chimpanzés fumando charuto e andando de triciclo. Mesmo durante o cerimonial, Fat Charlie às vezes olhava para trás, sobre o ombro, para a porta da capela. Mas seu pai não estava lá — apenas os amigos de sua mãe e familiares mais distantes, a maioria mulheres gordas usando chapéus pretos, assoando o nariz, enxugando os olhos com um lenço e meneando a cabeça.

Durante o hino final, depois que o botão foi pressionado e a mãe de Fat Charlie descia pela esteira até sua recompensa final, Fat Charlie notou um homem que aparentava ter sua idade no fundo da capela. Não era seu pai, obviamente. Era alguém que ele não conhecia, alguém que talvez nem tivesse notado, ali no fundo, nas sombras, caso não estivesse procurando seu pai... Lá estava aquele estranho, usando um terno preto elegante, olhos baixos, uma mão sobre a outra.

Fat Charlie deixou seu olhar se demorar um pouco além do necessário, e o estranho o viu e sorriu para ele sem alegria. Era o tipo de sorriso que sugeria que eles estavam passando por aquilo juntos. Não era o tipo de expressão que você vê no rosto de estranhos, mas ainda assim Fat Charlie não conseguia lembrar quem era. Voltou-se para a frente da capela. Cantaram “Swing Low, Sweet Chariot”, um hino religioso que Fat Charlie tinha certeza de que sua mãe sempre detestara, e o reverendo Wright os convidou para ir até a casa da tia-avó de Fat Charlie, Alanna, para comerem um pouco.

Não havia ninguém na casa da tia Alanna que ele já não conhecesse. Durante anos após a morte de sua mãe ele se perguntava quem era aquele estranho, por que ele estava ali. Às vezes Fat Charlie achava que havia sido apenas sua imaginação...

— Então — disse Rosie, bebendo seu Chardonnay. — Você liga para a Sra. Higgler e dá a ela o número do meu celular. Diga a data do casamento— Acha que nós devemos convidá-la?

— Sim, se a gente quiser. Não acho que ela virá. Ela é uma velha amiga da família. Conhece o meu pai há muito tempo.

— Então dê uma sondada. Para ver se a gente deve mandar um convite.

Rosie era uma boa pessoa. Havia nela um pouco da essência de um Francisco de Assis, de um Robin Hood, de um Buda, da bruxa boa do Mágico de Oz e, na opinião dela, saber que reuniria seu verdadeiro amor e o pai que há muito não via dava ao casamento uma dimensão extra. Não era mais apenas um casamento: era praticamente uma missão humanitária. Fat Charlie conhecia Rosie havia tempo suficiente para saber que jamais deveria impedir sua noiva de exercitar sua necessidade de Fazer o Bem.

— Vou ligar para a Sra. Higgler amanhã — disse ele.

— Quer saber — começou Rosie, enrugando o nariz de um jeito adorável —, ligue para ela hoje à noite. Não é tão tarde lá nos Estados Unidos, afinal de contas.

Fat Charlie fez que sim com a cabeça. Saíram do bar-adega juntos, Rosie com passinhos leves, Fat Charlie com passos de alguém prestes a ser enforcado. Ele dizia a si mesmo para que não se preocupasse à toa. A Sra. Higgler talvez tivesse se mudado ou estivesse com o telefone cortado. E possível. Tudo é possível.


Foram até o apartamento de Fat Charlie, no andar de cima de uma pequena casa em Maxwell Gardens, perto da Brixton Road.

— Que horas são agora na Flórida? — perguntou Rosie.

— Fim da tarde.

— Bom. Vamos lá então.

— Talvez devêssemos esperar um pouco. Caso ela esteja fora de casa.

— Ou talvez a gente deva ligar agora, antes de ela se ocupar com o jantar.

Fat Charlie achou seu velho caderninho de endereços e, na letra H, havia um pedaço de envelope, com a letra de sua mãe, com um número de telefone e, embaixo dele, o nome Callyanne Higgler.

O telefone tocou e tocou.

— Ela não está em casa — disse a Rosie. Porém, naquele exato momento, atenderam ao telefone do outro lado da linha, e uma voz feminina disse:

— Alô? Quem fala?

— Ahm, é a senhora Higgler?

— Quem está falando? Se for mais um daqueles vendedores de telemarketing, pode me tirar da tua lista agora ou eu processo você. Eu conheço os meus direitos.

— Não, sou eu. Charles Nancy. Eu era seu vizinho.

— Fat Charlie? Mas olha só que surpresa. Procurei o teu telefone a manhã inteira. Revirei a casa toda, e nada de achar! Acho que eu escrevi o número no meu livro de contabilidade velho. Revirei a casa. Aí eu pensei: “Callyanne, esta é uma ótima hora pra rezar e pedir ao Senhor que te ouça e te veja”. Eu me ajoelhei, mas meus joelhos já não estão lá essas coisas, então só juntei as mãos, mas mesmo assim não achei teu telefone. E olha só você me ligando. Isso é bem melhor, de certo ponto de vista, principalmente porque dinheiro não dá em árvore e eu não tenho como ficar ligando pro estrangeiro, mesmo numa situação dessas, mas eu ia te ligar, não se preocupe, por causa das circunstâncias..

E ela parou de repente, talvez para tomar fôlego ou para tomar um gole da enorme caneca de café fumegante que sempre carregava na mão esquerda. Durante aquela breve interrupção, Fat Charlie disse:

— Eu quero convidar o meu pai para vir ao meu casamento. Eu vou me casar. — Houve silêncio do outro lado da linha. — Mas vai ser só no fim do ano. O nome da minha noiva é Rosie — acrescentou, tentando manter a conversação. Começou a pensar se a linha não tinha caído. As conversas com a Sra. Higgler em geral eram unilaterais, e muitas vezes ela falava por você. E lá estava ela, deixando Fat Charlie dizer três frases inteiras sem interrupção. Decidiu arriscar uma quarta. — A senhora pode vir também se quiser.

— Ai, ai, ai, meu Deus do céu. Ninguém te contou?

— Contou o quê?

Então ela contou tudo, longamente, detalhadamente, enquanto ele permanecia parado e não dizia nada. Quando terminou, ele disse “Obrigado, Sra. Higgler”. Escreveu algo num pedaço de papel e depois disse: “Obrigado. Não, tudo bem, obrigado” mais uma vez. E desligou o telefone.

— E aí? — perguntou Rosie. — Conseguiu o número dele?

— O meu pai não vai poder comparecer ao casamento — respondeu. E acrescentou: — Eu preciso viajar para a Flórida.

Tinha um tom monocórdico na voz, sem emoção. Ele podia muito bem estar dizendo algo como “preciso pedir mais um talão de cheques”.

— Quando?

— Amanhã.

— Por quê?

— Um funeral. O do meu pai. Ele morreu.

— Ah... Eu sinto muito. Eu sinto muito...

Ela o abraçou. Ele ficou entre seus braços como um manequim de vitrine.

— Como foi que ele... ele estava doente?

Fat Charlie fez que não com a cabeça.

— Eu não quero falar sobre isso.

Rosie o abraçou bem forte, depois assentiu com a cabeça, condoída, e o soltou. Achava que ele estava muito abalado pela perda para falar a respeito.

Mas ele não estava. Não era isso. Na verdade, estava com muita vergonha.


Deve haver umas 100 mil maneiras respeitáveis de morrer. Por exemplo, saltar de uma ponte para dentro de um rio para salvar uma criança que está se afogando ou virar uma peneira ao tentar invadir sozinho o esconderijo de criminosos. Maneiras perfeitamente respeitáveis de morrer.

Na verdade, existem até mesmo algumas maneiras pouco respeitáveis de morrer que não seriam tão ruins. Por exemplo, combustão espontânea. Os médicos dizem que é uma farsa, os cientistas dizem que é improvável. Ainda assim as pessoas persistem em morrer em chamas, deixando para trás nada além de uma mão tostada ainda segurando um cigarro por terminar. Fat Charlie leu a respeito da combustão espontânea numa revista. Ele não teria se importado se seu pai tivesse morrido assim. Ou mesmo se tivesse sofrido um ataque cardíaco correndo pela rua, perseguindo os homens que roubaram o dinheiro da sua cerveja.

O pai de Fat Charlie morreu assim.

Ele chegou ao bar cedo e começou a noite de karaokê cantando “What s New Pussycat?”, canção cantada bem alto, de acordo com a Sra. Higgler, que não estava no local. Cantou de um jeito que, se fosse Tom Jones, já estaria coberto de calcinhas jogadas pela platéia. Isso rendeu a ele uma cerveja de agradecimento, cortesia das várias turistas loiras de Michigan que o acharam a Coisinha mais fofa que já haviam visto na vida.

— Foi culpa delas — observou a Sra. Higgler, numa voz amarga.

— Elas encorajaram ele!

Eram mulheres que usavam tops tomara-que-caia apertados. Estavam todas vermelhas do sol por tentarem se bronzear rápido demais e tinham idade para ser filhas dele.

Não demorou para que ele se sentasse à mesa delas, fumando seus “charutos” e contando a lorota de que havia feito parte do Serviço de Inteligência do Exército durante a guerra, que ele tinha o cuidado de não dizer qual foi, e que podia matar um homem de várias maneiras diferentes com as próprias mãos, sem esforço nenhum.

Depois convidou a turista mais loira e mais peituda para dançar com ele enquanto uma das amigas dela cantava em falsete “Strangers in the Night” no palco. Ele parecia estar se divertindo muito, embora a turista fosse mais alta, fazendo com que seu sorriso ficasse na altura do busto dela.

Quando a dança terminou, ele anunciou que cantaria de novo. Aproveitando o fato de haver no mundo apenas uma coisa que você podia dizer com certeza a respeito dele — que ele não tinha nenhuma dúvida a respeito de sua heterossexualidade —, o pai de Fat Charlie cantou “I Am What I Am” para a platéia, especialmente para a turista mais loira na mesa, que estava logo abaixo dele. Deu tudo de si na música. Chegou ao ponto em que a letra explicava a todos os que ouviam que, pelo que ele sabia, sua vida não valia nada a não ser que pudesse dizer a todo mundo o que ele era. Foi quando fez uma cara esquisita, pressionou uma das mãos contra o peito, esticou a outra e tropeçou tão lenta e graciosamente quanto possível, caindo do palco improvisado até a turista mais loira, e depois dela para o chão.

— Era assim que ele sempre quis morrer — suspirou a Sra. Higgler.

Então ela contou a Fat Charlie como seu pai, com um gesto final, enquanto caía, esticou a mão e agarrou uma determinada coisa, que acabou sendo o top tomara-que-caia da turista loira, de modo que a princípio as pessoas pensaram que ele, dominado pela luxúria, apenas saltara do palco com o único propósito de expor os seios em questão. Lá estava ela, gritando, com os seios encarando a platéia, enquanto a música “I Am What I Am” continuava tocando, mas sem ninguém cantando junto.

Quando as pessoas se deram conta do que realmente acontecera, ficaram todas em silêncio por uns dois minutos. O pai de Fat Charlie foi carregado e colocado numa ambulância enquanto a turista loira tinha um ataque histérico no banheiro feminino.

Os seios eram o que Fat Charlie não conseguia tirar da cabeça. Ele fazia essa imagem mental em que os seios o perseguiam de um jeito acusatório pela sala, como os olhos de uma pessoa numa pintura. Continuava com aquela vontade de pedir desculpas a várias pessoas que nunca vira na vida. Saber que seu pai teria se divertido muitíssimo com a cena só fazia piorar sua mortificação. E muito pior quando você fica constrangido com uma coisa que nem mesmo presenciou: sua mente fica remoendo os acontecimentos, revirando tudo diversas vezes, examinando a situação de todos os ângulos. Bom, talvez a sua mente não seja assim, mas certamente a de Fat Charlie era.

Via de regra, Fat Charlie sentia o embaraço nos dentes e na boca do estômago. Se algo remotamente embaraçoso ameaçava aparecer na tela da televisão, ele dava um pulo e desligava o aparelho. Se isso não fosse possível, se outras pessoas estivessem presentes por exemplo, dava algum pretexto para sair da sala e esperava até ter certeza de que a cena embaraçosa tinha chegado ao final.

Fat Charlie morava no sul de Londres. Tinha chegado aos 10 anos de idade com um sotaque americano que era motivo de chacota incessante por parte das outras crianças. Ele se esforçou muito para perdê-lo, finalmente eliminando até a última consoante leve e os “Rs” enrolados enquanto aprendia o uso e o contexto corretos para a palavra innit[1].

Havia conseguido finalmente perder todo o seu sotaque americano quando completou 16 anos, na mesma época em que seus colegas descobriam que precisavam muito falar como se viessem do gueto. Logo todos eles (com exceção de Fat Charlie) falavam como pessoas que gostariam de imitar a maneira como Fat Charlie falava quando veio para a Inglaterra. Mas ele nunca poderia usar aquele linguajar em público sem que sua mãe lhe desse um tabefe na orelha.

Era tudo uma questão de como usar a voz.

Assim que a vergonha que sentia em relação à morte do pai começou a sumir, Fat Charlie sentiu-se apenas vazio.

— Eu não tenho família — disse a Rosie de um jeito quase orgulhoso.

— Você tem a mim — respondeu ela. Isso fez Fat Charlie sorrir. — E também a minha mãe — acrescentou, fazendo o sorriso de Charlie ficar pela metade. Deu-lhe um beijo na bochecha.

— Você podia passar a noite aqui — sugeriu ele. — Para me consolar e tal.

— Eu poderia — concordou ela —, mas não vou.

Rosie só dormiria com Fat Charlie depois do casamento. Dizia que era uma decisão sua, que tomara quando tinha 15 anos de idade. Ela não conhecia Fat Charlie na época, mas era o que tinha decidido. Então o abraçou mais uma vez, um longo abraço, e disse:

— Sabe, você precisa fazer as pazes com o seu pai.

Depois foi para casa.

Ele teve uma noite inquieta, dormindo um pouco, acordando, pensando e depois dormindo novamente.

Acordou com o nascer do sol. Quando as pessoas estivessem a caminho do trabalho, ele ligaria para a agência de viagens e perguntaria a respeito de descontos na passagem para a Flórida em caso de morte de um membro da família. Depois ligaria para a Agência Grahame Coats e diria que, em virtude de uma morte na família, teria que tirar uns dias de licença e que, sim, sabia que isso seria descontado dos seus dias reservados para faltas por motivo de doença ou de seu período de férias. Mas por enquanto se sentia satisfeito porque o mundo estava calmo.

Seguiu o corredor até o pequeno quarto extra no fundo da casa e observou o jardim lá embaixo. A movimentação do amanhecer já havia começado, e ele podia ver pássaros: melros, pequenos pardais saltitando pela cerca viva e um único tordo, de peito pintado, nos galhos de uma árvore próxima. Fat Charlie pensou que um mundo em que pássaros cantavam de manhã era um mundo normal, sensato, e não achava nada mau fazer parte desse mundo.

Tempos depois, quando pássaros seriam algo a temer, Fat Charlie ainda se lembraria daquela manhã como algo belo e agradável, mas também como o momento em que tudo começou. O momento antes da loucura, antes do medo.

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