O hotel Dolphin tinha um concierge. Era um jovem de óculos que estava lendo um romance em brochura, cuja capa mostrava uma rosa e uma arma.
— Eu preciso encontrar uma pessoa — explicou Fat Charlie. — Aqui na ilha.
— Quem?
— Uma senhora chamada Callyanne Higgler. Ela veio da Flórida. É uma velha amiga da família.
O jovem fechou o livro com uma expressão pensativa e olhou para Fat Charlie, apertando os olhos. Em romances, é o tipo de olhar que dá uma impressão imediata de alerta inquietante, mas nesse caso fazia parecer que o rapaz estava se esforçando para não cair no sono.
— Você é o homem do limão?
— Como?
— O homem do limão?
— É, acho que sou, sim.
— Posso ver?
— Meu limão?
O jovenzinho fez que sim, com expressão séria.
— Não dá. Ficou no meu quarto.
— Mas você é o homem do limão.
— Você pode me ajudar a encontrar a Sra. Higgler? Tem algum Higgler na ilha? Você teria uma lista onde eu pudesse procurar? Achei que haveria uma lista telefônica no quarto.
— E um nome meio comum, sabe? Uma lista não ajuda.
— Muito comum?
— Bem... Por exemplo, eu sou Benjamin Higgler. Ela, ali na recepção, é a Amerila Higgler.
— Ah. Certo. Um monte de Higglers na ilha. Entendi.
— Ela está aqui por causa do festival de música?
— Quê?
— Vai durar a semana toda.
Ele entregou um panfleto a Fat Charlie anunciando que Willie Nelson (cancelado) encabeçaria o Festival de Música de St. Andrews.
— Por que ele cancelou?
— Pelo mesmo motivo que Garth Brooks cancela. Eles nem ficam sabendo do evento.
— Não acho que ela esteja aqui pro festival de música. Preciso encontrá-la. Ela tem algo que estou procurando. Olha, se você fosse eu, como faria pra encontrá-la?
Benjamin Higgler tirou um mapa de uma gaveta.
— Nós estamos aqui, ao sul de Williamstown... — começou, marcando o papel com uma caneta hidrográfica. Dali ele começou a fazer um plano de campanha para Fat Charlie: dividiu a ilha em segmentos que podiam ser facilmente cobertos em um dia por um homem de bicicleta e marcou cada café e bar com pequenas cruzes. E fez círculos ao redor das atrações turísticas.
No final, alugou uma bicicleta para Fat Charlie, que logo saiu pedalando na direção sul.
Havia canais de informação em Saint Andrews bastante inesperados para Fat Charlie, que considerava a idéia de palmeiras ao vento e celulares mutuamente excludentes. Não fazia a menor diferença com quem ele falava: velhos jogando damas à sombra, mulheres com seios como melões e traseiros tão grandes quanto poltronas, e que riam como um sabiá, uma jovem distinta no escritório de turismo, um rastafári barbudo, com um chapéu de tricô amarelo, verde e vermelho, vestindo o que parecia ser uma minissaia de algodão. Todos tinham a mesma resposta.
— Você é o cara do limão?
— Acho que sim.
— Me mostra o seu limão.
— Ficou no hotel. Escute. Estou tentando encontrar Callyanne Higgler. Ela tem mais ou menos 60 anos. Americana. Vive com uma caneca grande de café na mão.
— Nunca ouvi falar.
Fat Charlie logo descobriu os perigos de andar por Saint Andrews de bicicleta. O principal meio de transporte da ilha eram os microônibus: clandestinos, perigosos, sempre lotados, eles se jogavam pelas ruas da ilha apitando e castigando os freios, dobrando esquinas em duas rodas, confiando no peso dos passageiros para não capotar. Fat Charlie teria sido atropelado uma dúzia de vezes em sua primeira manhã nas ruas se não fosse pela batida grave de baixo e bateria que saía dos alto-falantes dos veículos. Ele podia senti-las na boca do estômago bem antes de ouvir o motor, o que lhe dava bastante tempo para conduzir a bicicleta ao outro lado da rua.
Muito embora as pessoas com quem Fat Charlie conversara não fossem de grande ajuda, elas foram bastante simpáticas. Ele parou várias vezes, em sua expedição rumo ao sul, para encher a garrafa d’água. Parou em cafés e em casas particulares. Todos pareciam muito felizes em vê-lo mesmo que não tivessem informações quanto à Sra. Higgler. Fat Charlie voltou ao hotel na hora do jantar.
No dia seguinte, partiu para o norte. Em seu caminho de volta para Williamstown, no final da tarde, parou em um topo de rochedo, desceu da bicicleta e seguiu empurrando-a até o portão de uma casa luxuosa e isolada que mirava a baía do alto. Pressionou o botão do interfone e disse alô, mas ninguém respondeu. Um grande carro negro estava parado na entrada, e Fat Charlie ficou pensando se a casa estaria deserta quando viu um leve tremor numa cortina de uma das salas do segundo andar. Pressionou o botão novamente.
— Alô? Só gostaria de saber se posso encher minha garrafa d’água aqui.
Não houve resposta. Talvez tivesse apenas imaginado ver alguém na janela. Fat Charlie parecia extremamente propenso a imaginar coisas naquele lugar: começou a sentir-se observado, não por alguém na casa, mas por alguém ou alguma coisa nos arbustos que ladeavam a estrada.
— Sinto muito pelo incômodo — desculpou-se. Subiu nova mente na bicicleta. Todo o caminho até Williamstown era uma descida. Fat Charlie sabia que passaria por um ou dois cafés no caminho de volta, ou talvez por uma casa. Quem sabe, com um dono amigável.
Fat Charlie estava descendo a estrada — os rochedos haviam se tornado uma colina íngreme em direção ao mar — quando um carro negro apareceu atrás dele e acelerou com um rugido. Tarde demais, ele percebeu que o motorista não o tinha visto. Houve uma batida e um longo arranhar do carro contra os guidões da bicicleta. Fat Charlie foi arremessado para fora da estrada, colina abaixo. O carro negro seguiu em frente.
Fat Charlie recuperou-se no meio da descida.
— Podia ter sido um acidente feio — disse em voz alta. Os guidões estavam retorcidos. Ele carregou a bicicleta de volta para a estrada. Um grave ribombar de baixo e bateria o alertou para a aproximação de um microônibus, e ele fez sinal.
— Dá pra colocar minha bicicleta aí atrás?
— Não cabe — respondeu o motorista, para em seguida tirar várias cordas elásticas debaixo do banco. Ele as usou para prender a bicicleta no teto do veículo. E sorriu.
— Você deve ser o inglês do limão.
— Não trouxe o limão comigo. Deixei no hotel.
Fat Charlie espremeu-se para entrar no ônibus, onde o baixo tonitruante revelou ser a extremamente improvável “Smoke On The Water”, do Deep Purple. Fat Charlie apertou-se contra uma grande mulher com uma galinha no colo. Atrás deles, duas garotas brancas conversavam sobre as festas das quais haviam participado na noite anterior e os defeitos dos namorados temporários que haviam conseguido durante as férias.
Fat Charlie notou o carro negro — uma Mercedes — subindo de volta a estrada. Havia uma longa marca de arranhão de um lado. Ele se sentiu culpado e esperou que sua bicicleta não tivesse provocado um arranhão muito profundo na pintura. As janelas eram tão escuras que o carro poderia não ter ninguém dirigindo...
Uma das garotas cutucou o ombro de Fat Charlie e lhe perguntou se ele sabia de alguma festa legal para aquela noite. Quando respondeu que não sabia, ela começou a lhe contar sobre uma festa que acontecera duas noites antes, numa caverna com uma piscina, luzes, sistema de som e tudo o mais. Dessa forma, Fat Charlie não pôde reparar que a Mercedes negra agora seguia o microônibus em Williamstown, e que ela apenas seguiu em frente quando ele retirou a bicicleta do teto do ônibus (“da próxima vez, você devia trazer o limão”) e a carregou para o lobby do hotel.
Só então o carro voltou para a casa na colina.
Benjamin, o concierge, examinou a bicicleta e disse a Fat Charlie para não se preocupar, porque dava para consertar até a manhã seguinte.
Fat Charlie voltou ao seu quarto, que tinha a cor da água do mar, e lá estava o limão, como um pequeno Buda verde, em cima do balcão.
— Você não serve pra nada — disse à fruta.
Mas não era justo. Era apenas um limão. Não havia absolutamente nada de especial nele. Ele fazia o melhor que podia.
Historias sao teias conectadas fio a fio, e você deve seguir cada história até o centro, porque o centro é o final. Cada pessoa é um fio da história.
Daisy, por exemplo.
Daisy não teria durado tanto tempo como policial se não possuísse também um lado sensato em sua natureza, que as pessoas viam a maior parte do tempo. Ela respeitava leis e regras mesmo sabendo que muitas delas eram completamente arbitrárias — decisões sobre onde era permitido estacionar, por exemplo, ou em que horários as lojas poderiam funcionar —, porque regras desse tipo faziam parte de algo maior. Elas mantinham a sociedade e as coisas seguras.
A moça que morava com Daisy achava que ela ficara louca.
— Você não pode sair de repente e dizer que está de férias. Não funciona assim. Isso não é um filme policial. Não dá pra aparecer do nada em qualquer parte do mundo buscando uma pista.
— Bom... Sendo assim, não vou fazer isso — Daisy respondeu, mentindo. — Só vou sair de férias então.
Daisy soou tão convincente que a pequena policial sensata que vivia em sua mente ficou chocada, em silêncio, por alguns segundos, e depois começou a explicar a ela exatamente o que fazia de errado. Começou dizendo que Daisy estava largando o trabalho sem autorização — passível, murmurou a policial sensata, de ser indiciada por negligência ao dever —, e continuou daí em diante.
A policialzinha ainda explicou, no caminho até o aeroporto e por todo o Atlântico, que, mesmo se Daisy conseguisse evitar um dano irreparável ao seu currículo — isso sem mencionar ser expulsa da polícia —, mesmo se conseguisse encontrar Grahame Coats, não havia nada que pudesse fazer. A polícia de sua Majestade não via com bons olhos o rapto de criminosos, e muito menos prisões efetuadas no exterior. Daisy duvidava de que Grahame Coats estaria disposto a colaborar e retornar de boa vontade ao Reino Unido.
Apenas quando ela desceu do avião jamaicano e respirou o ar de Saint Andrews — úmido, com cheiro de terra e temperos, quase doce — a pequena policial certinha que vivia em sua mente parou de apontar a loucura absurda que cometia. Aí outra voz surgiu, sufo-cando-a. A outra voz cantava “Malfeitores, cuidado!”. “Fiquem espertos! Malfeitores, lá vou eu!”, e Daisy marchava no ritmo da música. Grahame Coats matara uma mulher em seu escritório, em Aldwych, e escapara ileso praticamente debaixo de seu nariz.
Daisy balançou a cabeça, recolheu sua bagagem, informou ao oficial de imigração que estava na ilha de férias e saiu para o ponto de táxi.
— Eu queria um hotel que não fosse caro, mas que também não fosse nojento — disse ao motorista.
— Então eu conheço o lugar certo pra você, querida. Pode entrar.
Spider abriu os olhos e percebeu que se encontrava deitado de bruços, amarrado pelos braços a uma grande estaca enfiada no chão à sua frente. Não podia mexer as pernas. Não dava para virar o pescoço o suficiente para ver o que tinha às suas costas, mas poderia apostar que as pernas estavam igualmente presas. O movimento de tentar se erguer da poeira para olhar atrás de si fez arder seus arranhões.
Ele abriu a boca, e o sangue escuro pingou no chão empoeirado, umedecendo-o.
Spider ouviu algo e virou a cabeça o quanto pôde. Uma mulher branca olhava para ele, curiosa.
— Você está bem? Ah, que pergunta idiota. E só olhar pro seu estado. Você deve ser outro duppy. Estou certa?
Spider pensou a respeito. Ele não achava que era um duppy. Balançou a cabeça.
— Se você for, não precisa ter vergonha. Também sou uma, pelo jeito. Eu não conhecia o termo, mas no meu caminho pra cá conheci um cavalheiro encantador que me disse tudo a respeito. Deixa eu ver se posso ajudar. — Ela se agachou perto dele e tentou afrouxar as cordas. Suas mãos atravessaram Spider. No entanto ele pôde sentir o leve roçar dos dedos da mulher, como fios de névoa, em sua pele. — Infelizmente não consigo tocá-lo. Pelo menos isso indica que você ainda está vivo. Então se anime.
Spider quis que essa mulher-fantasma esquisita fosse logo embora. Ele não conseguia pensar direito.
— De qualquer forma, quando compreendi a coisa toda, resolvi permanecer na Terra até me vingar do meu assassino. Expliquei isso ao Morris, que apareceu numa tela de TV em Selfridges. Ele disse que eu não estava percebendo o que há de mais importante nessa história toda de abandonar o corpo. Mas eu acho que, se eles esperavam que eu desse a outra face, sem dúvida há mais coisa por vir. Sei disso porque aconteceu com mais gente. E tenho certeza de que posso dar uma de fantasma que aparece onde não é chamado se tiver a chance. Você fala?
Spider sacudiu a cabeça, e o sangue pingou de sua testa em seus olhos. Ardeu. Ele pensou em quanto tempo levaria para nascer uma nova língua. Prometeu conseguia um fígado novo de um dia pro outro, e Spider tinha certeza de que um fígado era mais trabalhoso que uma língua. Fígados tinham todo um processo de reações químicas: bilirrubina, uréia, enzimas, tudo isso. E decompunham álcool também, o que por si só já era bem trabalhoso. Tudo o que línguas faziam era falar. Bom, e lamber, claro...
— Não consigo parar de falar — disse a mulher-fantasma de cabelo loiro. — Ainda tenho muito caminho pela frente, acho.
Ela começou a caminhar e a tornar-se mais indistinta enquanto se afastava. Spider levantou a cabeça e a viu deslizar de uma realidade para outra, como uma foto desbotando ao sol. Tentou chamá-la de volta, mas todos os sons que produzia eram abafados e incoerentes. Sem língua. De algum lugar, à distância, pôde ouvir o grito de um pássaro. Testou suas amarras, e elas não cederam.
Spider se viu pensando novamente na história que Rosie lhe contara, sobre o corvo que salva um homem de um leão da montanha. A história fazia sua mente cocar mais que as marcas de garras em seu rosto e peito. “Concentre-se.” O homem no chão, lendo ou se bronzeando. O corvo crocitando na árvore. E um grande felino nos arbustos— Então a história se remodelou, e Spider conseguiu capturá-la. Nada mudara — era só uma questão de como olhar os ingredientes.
“E se”, pensou Spider, “o pássaro não tivesse crocitado para alertar ao homem a aproximação do grande felino? E se ele estivesse chamando o leão da montanha, alertando-o para o fato de que havia um homem no chão, morto, dormindo ou morrendo? Que tudo o que o grande felino tinha a fazer era dar cabo do homem, e aí o corvo poderia banquetear-se com os restos.-”
Spider abriu a boca para gemer, e o sangue correu de sua boca para o chão de barro poeirento.
A realidade esgarçou-se. O tempo passou naquele lugar.
Spider, sem língua, furioso, ergueu a cabeça para ver os pássaros fantasmas que voavam ao seu redor, gritando.
Perguntou-se onde estaria. Ali não era o universo cor de cobre da Mulher Pássaro nem sua caverna, mas também não era o lugar que Spider havia se acostumara a chamar de mundo real. No entanto ficava bem perto do mundo real, tão perto que quase podia sentir-lhe o gosto, se pudesse sentir qualquer outra coisa que não o gosto de ferro do sangue em sua boca. Perto o suficiente para tentar tocá-lo, se não estivesse amarrado ao chão por uma estaca.
Se Spider não estivesse perfeitamente seguro de sua sanidade, seguro naquele nível que só é encontrado nas pessoas que pensam ser Júlio César e ter sido enviadas ao mundo para salvá-lo, poderia achar que estava enlouquecendo. Primeiro uma loira que dizia ser uma duppy. Agora ele ouvia vozes. Bem, uma voz, pelo menos. A de Rosie. E ela dizia:
— Eu não sei. Achava que seriam só férias, mas ver essas crianças sem nada é de cortar o coração. Precisam de tanta coisa.
Enquanto Spider tentava decifrar o significado disso, ela disse:
— Quanto tempo mais ela vai levar no banho? Que bom que você tem água quente o bastante aqui.
Spider imaginava se as palavras de Rosie tinham algum significado importante, se seriam a chave para sair dessa encrenca. Ele duvidava. Ainda assim, escutou com atenção, ponderando se o vento carregaria mais palavras de um mundo ao outro. Além do quebrar de ondas nos recifes, bem abaixo e atrás dele, não havia nada além de silêncio. Mas um tipo específico de silêncio. Há, de acordo com o que Fat Charlie acreditava, muitos tipos de silêncio. Túmulos são silenciosos à sua maneira, o espaço é silencioso de outra forma, e os topos das montanhas têm outro tipo de silêncio. Ali o silêncio era assombrado. Um silêncio que vigiava. Nesse silêncio, algo se movia com patas suaves e aveludadas, com músculos que pareciam molas de aço estendidas sob uma pelagem macia. Algo que tinha a cor de sombras na grama. Algo que tomava cuidado para que você não ouvisse nada além do estritamente necessário. Era um silêncio se movendo de um lado ao outro diante de Spider, lento e inexorável, e cada vez mais e mais perto.
Spider ouvia aquilo no silêncio, e os pêlos na sua nuca se arrepiaram. Ele cuspiu sangue no pó e esperou.
Em sua casa na colina, Grahame Coats andava de um lado ao outro. do quarto para o estúdio, depois descendo as escadas para a cozinha e de volta para a biblioteca, e de lá para o quarto de novo. Estava zangado consigo mesmo: como poderia ter sido tão estúpido a ponto de achar que a visita de Rosie era uma coincidência?
Compreendera isso quando o interfone tocou e ele pôde ver no circuito fechado de TV o rosto insípido de Fat Charlie. Não havia dúvida. Era uma conspiração.
Ele agira como um tigre entrando no carro, certo de que conseguiria forjar facilmente um caso de atropelamento e fuga: se encontrassem um ciclista em pedaços na estrada, todos pensariam que havia sido um microônibus. Infelizmente não imaginara que Fat Charlie estaria pedalando tão perto da lateral da estrada. Grahame Coats não quis levar o carro mais para a beirada do declive, às margens do caminho, e agora se arrependia disso. Não, Fat Charlie enviara as duas mulheres que agora estavam no depósito de carne. Elas eram espiãs e haviam se infiltrado em sua casa. Por sorte, conseguira pôr um fim àquele plano. Sem dúvida, teve a intuição de que havia algo errado com elas.
Enquanto pensava nas mulheres, Grahame Coats lembrou-se de que ainda não as havia alimentado. Ele devia lhes dar algo para comer. E um balde. Elas precisariam de um balde, provavelmente, após 24 horas. Ninguém poderia dizer que ele era um animal sem coração.
Grahame Coats havia comprado uma arma em Williamstown na semana anterior. Era fácil comprar armas em Saint Andrews — era bem esse tipo de lugar. A maior parte das pessoas não se dava ao trabalho de comprar armas, e era bem esse tipo de lugar também. Grahame Coats retirou a arma da gaveta ao lado da cama e desceu para a cozinha. Pegou um balde de plástico do armário debaixo da pia e jogou dentro tomates, um inhame cru, um pedaço meio comido de queijo cheddar e uma caixa de suco de laranja. Satisfeito por haver pensado nisso, pôs ali também um rolo de papel higiênico.
Desceu para a adega. Nenhum barulho vinha do depósito de carne.
— Eu estou armado. E não tenho medo de usar a arma. Vou abrir a porta agora. Por favor, vão para o fundo da sala, virem-se e fiquem com as mãos na parede. Eu trouxe comida. Cooperem e vocês serão libertadas sem nenhum ferimento. Cooperem e ninguém se machucará. Ou seja, nada de gracinhas — disse ele, felicíssimo por ter usado uma enorme cadeia de clichês.
Acendeu as luzes e puxou os ferrolhos. As paredes da sala eram feitas de rocha e tijolo. Correntes enferrujadas pendiam dos ganchos no teto.
Elas estavam no fundo da sala. Rosie encarava a rocha, e sua mãe olhava por cima do ombro para Grahame Coats como um rato encurralado, furiosa e cheia de ódio.
Grahame Coats pôs o balde no chão. Ele não abaixou a arma.
— Comida legal, aqui. E, antes tarde do que nunca, um balde. Vejo que vocês têm usado ali o canto. Aqui tem papel higiênico também. Não digam que não faço nada por vocês.
— Você vai matar a gente, não vai? — perguntou Rosie.
— Não o enfrente, sua idiota — disse a mãe. — Então, dando uma espécie de sorriso, completou: — Obrigada pela comida.
— Claro que não vou matar vocês — respondeu Grahame Coats. Somente ao ouvir as palavras saindo de sua boca ele admitiu a si próprio que sim, claro, teria que matá-las. Que outra opção ele tinha? — Vocês não me disseram que o Fat Charlie tinha mandado vocês pra cá.
E Rosie disse:
— Nós viemos num cruzeiro. Nesta noite, deveríamos estar em Barbados, para comer peixe frito. O Fat Charlie está na Inglaterra. Não acho que ele saiba onde estamos. Eu não disse a ele.
— O que você diz não importa — respondeu Grahame Coats. — Eu tenho uma arma.
Ele fechou a porta e a trancou. Antes de se afastar, pôde ouvir a mãe de Rosie dizendo:
— O bicho! Por que você não perguntou sobre o bicho?
— Porque você só está imaginando, mãe, eu já disse. Não tem bicho nenhum aqui. Ele é louco, provavelmente concordaria com você. Deve ver tigres invisíveis o tempo todo.
Sentindo-se ofendido pelas palavras de Rosie, Grahame Coats apagou as luzes. Apanhou uma garrafa de vinho e subiu as escadas, batendo a porta atrás de si.
Na escuridão sob a casa, Rosie partiu o pedaço de queijo em quatro pedaços e comeu um tão devagar quanto pôde.
— O que ele disse sobre o Fat Charlie? — perguntou ela à mãe depois que o queijo se dissolvera em sua boca.
— Esse seu maldito Fat Charlie. Não quero saber nada a respeito dele. É por causa dele que estamos aqui.
— Não, nós estamos aqui porque esse Coats é totalmente pirado. Um maluco com uma arma. Não é culpa do Fat Charlie.
Rosie tentava não pensar em Fat Charlie, porque isso a fazia inevitavelmente pensar também em Spider...
— Voltou — começou a mãe. — O animal voltou. Eu ouvi. Consigo sentir o cheiro daqui.
-Tá, mãe.
Rosie ficou sentada no chão de concreto e pensou em Spider. Sentia falta dele. Quando Grahame Coats voltasse a si e as deixasse ir embora, tentaria achar Spider. Saberia se poderiam tentar de novo. Tinha consciência de que era apenas um devaneio tolo, mas era um bom sonho, e a confortava.
Rosie se perguntou se Grahame Coats iria matá-las no dia seguinte.
Separado daquele mundo por milímetros, Spider se encontrava amarrado a uma estaca, esperando pela fera. Era fim de tarde, e o sol descia atrás dele.
Spider empurrava algo com seu nariz e lábios: terra seca que sua saliva e sangue haviam umedecido e que agora tinha a forma de uma bola de lama, uma esfera avermelhada de argila embaixo da qual ele tentava enfiar o nariz. Lançou o rosto para o alto tentando levantar a bola, mas nada aconteceu, da mesma forma como não havia acontecido em suas outras incontáveis tentativas. Vinte? Cem? Spider não contava, apenas continuava tentando, empurrando o rosto na poeira, enfiando o nariz debaixo da bola de barro, lançando o rosto para a frente e para cima...
Nada aconteceu. Nada aconteceria. Era preciso usar outra tática.
Fechou os lábios ao redor da bola e aspirou ar pelo nariz tão forte quanto pôde. Soprou ar pela boca, e a bola voou de seus lábios como uma rolha de champanhe. Aterrissou a uns 40 centímetros de distância.
Agora Spider girava sua mão direita, amarrada pelo pulso com a corda atando-a à estaca. Ele puxou a mão e a girou. Seus dedos se esticaram na direção da bola de lama, sem sucesso.
Estava tão perto...
Spider tomou outro longo fôlego, mas se engasgou com a terra seca e começou a tossir. Tentou novamente, girando a cabeça para um lado, e encheu os pulmões. Rolou de lado e começou a soprar na direção da bola, expulsando o ar dos pulmões com o máximo de força que conseguia.
A bola de lama rolou — menos de três centímetros, mas era o bastante. Ele se esticou, e logo a tinha entre os dedos. Começou a amassar a superfície da bola, fazendo pequenas pontas. Oito delas. Repetiu o processo, dessa vez apertando a massinha um pouco mais forte. Uma das pontas caiu na poeira, mas as outras ficaram seguras. No final, Spider tinha nas mãos uma pequena bola de barro com sete pontas saindo da superfície, como uma representação do Sol feita por uma criança.
Ele olhou para a bola com orgulho: dadas as circunstâncias, sentiu tanto orgulho dela como uma criança se orgulharia de um trabalho escolar.
A palavra seria a parte mais difícil. Fazer uma aranha ou algo parecido a partir de sangue, cuspe e barro, aquilo era fácil. Até deuses menores da traquinagem, como Spider, sabiam fazer. Mas a parte final da Criação seria a mais difícil. Você precisa de uma palavra para dar vida a alguma coisa. Você precisa dar nome a ela. Spider abriu a boca.
— Hrrurrrurrr — disse com sua boca sem língua. Nada aconteceu.
Tentou novamente.
— Hrrurrurr!
E a massinha lá parada, como um torrão inerte, em sua mão. O rosto de Spider caiu na poeira novamente. Ele estava exausto. Cada movimento que fazia rachava as cascas de suas feridas, que supuravam, queimavam e — o pior — coçavam. “Pense!”, disse a si próprio. Tinha que haver um modo de fazer isso... De falar sem língua.
Ainda havia uma camada de barro sobre os lábios de Spider. Ele os sugou e umedeceu tão bem quanto pôde. Depois suspirou profundamente e deixou o ar passar por seus lábios, concentrando-se bastante e dizendo a palavra com tanta segurança que nem mesmo o universo poderia discordar dele. Spider descreveu a coisa que estava em sua mão e lhe deu seu próprio nome, que era a melhor magia que conhecia:
— Hhssspphhhrrriiivver.
Em sua mão, onde havia um torrão de barro, agora estava uma gorda aranha cor de argila vermelha, com sete patas delgadas.
“Me ajude”, pensou Spider. “Consiga ajuda.”
A aranha o encarou com olhos que brilhavam à luz do sol, pulou para o chão e caminhou meio torta até a grama, com um traquejo trêmulo e irregular.
Spider a observou até que sumisse de vista. Então apoiou a cabeça na poeira e fechou os olhos.
O vento mudou, e Spider sentiu no ar o leve cheiro de amônia de um felino macho. Acabara de marcar seu território...
Lá no alto, Spider podia ouvir pássaros crocitando, triunfantes.
O estômago de Fat Charlie roncou. Se tivesse dinheiro sobrando, procuraria algum lugar para jantar, só pra ficar longe do hotel. Mas estava quase sem dinheiro, e as refeições noturnas faziam parte do pacote. Sendo assim, tão logo deram as sete horas, Fat Charlie desceu para o restaurante.
A maitre tinha um sorriso radiante e lhe disse que abririam o restaurante dentro de alguns minutos. Tinham que dar tempo à banda para a passagem de som. Ela olhou para ele. Fat Charlie já sabia dizer o que significava aquele olhar.
— Você.... — começou ela.
— Sim — Fat Charlie disse, resignado. — Eu até trouxe comigo. — Tirou o limão do bolso e o mostrou a ela.
— Muito legal. É mesmo um limão, isso que você tem aí. Mas eu ia perguntar se você vai querer o menu à la carte ou o bufê.
— O bufê — respondeu Fat Charlie. Era grátis. Ele ficou no salão em frente ao restaurante, segurando seu limão.
— Espere só um momento — pediu a maitre.
Uma mulher pequena veio descendo o corredor, às costas de Fat Charlie. Ela sorriu para a maitre e perguntou:
— O restaurante já está aberto? Estou faminta.
Ouviram-se o tum-bum-dum do baixo e o toque do piano elétrico. A banda largou os instrumentos e acenou para a maitre, que disse:
— Está aberto, venham.
A mulher pequena encarou Fat Charlie com uma expressão de grande surpresa.
— Oi, Fat Charlie! Para que serve o seu limão?
— É uma longa história.
— Bem — respondeu Daisy. — Nós temos todo o jantar pela frente. Por que você não me conta tudo a respeito?
Rosie se perguntava se a loucura seria contagiosa. Nas trevas cegas sob a casa da colina, ela sentira algo passar roçando por ela. Algo macio e esbelto. Algo grande. E que rosnava suavemente ao rodeá-la em círculos.
— Você ouviu também? — perguntou ela.
— Claro que ouvi, sua sonsa — respondeu sua mãe. E completou: — Ainda tem suco de laranja?
Rosie tateou no escuro pela caixa de suco e a passou para sua mãe. Ela ouviu o som de alguém bebendo, e sua mãe disse:
— Não será esse animal que matará a gente. Ele é quem vai.
— Grahame Coats. É.
— Ele é um homem mau. Algo o está domando como se fosse um cavalo. Mas um cavalo ruim. Um homem ruim.
Rosie estendeu o braço e segurou a mão ossuda de sua mãe, sem dizer nada, porque não havia muito a dizer.
— Sabe — começou a mãe depois de um tempo —, estou muito orgulhosa de você. Você foi uma boa filha.
— Oh.. — disse Rosie.
A idéia de não ser uma decepção para sua mãe era algo novo para ela. Rosie não tinha certeza de como se sentia a respeito.
— Talvez você devesse ter se casado com o Fat Charlie. Aí não estaríamos aqui.
— Não. Eu não deveria me casar com o Fat Charlie, eu não o amo. Portanto você não estava totalmente enganada.
Elas ouviram uma porta bater no alto.
— Ele saiu — observou Rosie. — Rápido. Enquanto ele está fora. Vamos cavar um túnel.
Primeiro ela deu risadinhas. Depois começou a chorar.
Fat Charlie tentava entender o que Daisy estava fazendo na ilha. Daisy também se esforçava para entender o que Fat Charlie estava fazendo por lá, mas nenhum dos dois parecia ter muito sucesso. Uma cantora, num longo vestido vermelho, boa demais para cantar música ao vivo às sextas-feiras no pequeno restaurante de um hotel, apresentava-se no pequeno palco no canto da sala, cantando “I ve Got You Under My Skin”.
Daisy disse:
— Você está procurando pela mulher que vivia do lado da sua casa quando era pequeno porque ela pode ajudar você a encontrar o seu irmão.
— Eu recebi uma pena. Se ainda estiver com ela, posso trocá-la pelo meu irmão. Vale a pena tentar.
Daisy piscou lenta e pensativamente, nem um pouco impressionada, e beliscou a salada.
— Bom, você está aqui porque acha que Grahame Coats veio pra cá depois de matar Maeve Livingstone. Mas não veio como policial. Veio por conta própria, caso ele esteja aqui mesmo. Mas, se ele estiver aqui, não há nada que você possa fazer a respeito.
Daisy lambeu uma sementinha de tomate de seus lábios e pareceu meio desconfortável.
— Eu não vim como policial. Estou aqui como turista.
— Mas você só abandonou o emprego e veio pra cá atrás dele. Eles podem prender você por isso, ou coisa do tipo, acho.
— Então é bom que Saint Andrews não tenha tratados de extradição, não é?
Fat Charlie murmurou:
-Ai, meu Deus.
O motivo de ter dito “Ai, meu Deus” era a cantora, que saíra do palco e agora caminhava pelas mesas com um microfone portátil. Naquele momento, perguntava a dois turistas alemães de onde eram.
— Por que ele viria pra este lugar? — perguntou Fat Charlie.
— Sigilo bancário. Terrenos baratos. Nada de tratados de extradição. Talvez adore frutas cítricas.
— Passei dois anos morrendo de medo desse homem. Vou pegar mais daquele negócio de peixe com banana verde. Você quer?
— Não, obrigada. Quero deixar espaço pra sobremesa.
Fat Charlie dirigiu-se ao bufê fazendo o caminho mais longo para evitar o olhar da cantora, que era mesmo muito bonita em seu vestido vermelho coberto de lantejoulas que refletiam a luz e brilhavam quando se movia. Era melhor que a banda. Fat Charlie queria que ela voltasse logo ao palco e continuasse a cantar seus clássicos. Ele tinha gostado da versão dela para “Night and Day” e de uma versão especialmente tocante de “Spoonful of Sugar”. Também queria que ela parasse de interagir com os clientes. Ou, pelo menos, que parasse de falar com as pessoas do mesmo lado da sala em que ele estava.
Fat Charlie abarrotou seu prato com mais da comida que ele havia gostado da primeira vez. Ficou pensando que pedalar pela ilha realmente abria o apetite.
Quando voltou para sua mesa, Grahame Coats, com algo que vagamente lembrava uma barba crescendo na parte de baixo de seu rosto, estava sentado perto de Daisy, sorrindo feito uma doninha que cheirou muita cocaína.
— Fat Charlie — começou Grahame Coats, e deu uma risadinha desconfortável. — Não é fantástico? Eu ando à sua procura, para um pequeno tête-à-tête, e quem eu acho de bônus? Esta glamourosa policialzinha aqui. Por favor, sente-se e tente não fazer uma cena.
Fat Charlie ficou paralisado como se fosse uma estátua de cera.
— Sente-se — repetiu Grahame Coats. — Eu tenho uma arma apontada aqui para a barriga da senhorita Daisy.
Daisy olhou para Fat Charlie com olhos suplicantes e fez que sim. Suas mãos se encontravam sobre a mesa, espalmadas. Fat Charlie sentou-se.
— Ponha as mãos onde eu possa vê-las. Espalmadas sobre a mesa, como as dela.
Fat Charlie obedeceu. Grahame Coats fungou.
— Eu sempre soube que você era um policial infiltrado, Nancy. Um agent provocateur, certo? Entra nos meus escritórios, arma pra cima de mim, me rouba de cara limpa.
— Eu nunca— — começou Fat Charlie, mas calou-se ao ver a expressão no rosto de Grahame Coats.
— Você se achou tão esperto — continuou Grahame Coats. — Vocês todos acharam que eu cairia nessa. Foi por isso que você enviou as outras duas antes, não foi? As duas lá em casa? Achou mesmo que eu acreditaria que elas estavam num cruzeiro? Você teria que se esforçar muito mais que isso pra passar a perna em mim. Pra quem mais você contou? Quem mais sabe?
Daisy disse:
— Não sei muito bem do que você está falando, Grahame.
A cantora terminava “Some of These Days”: era uma voz de cantora de blues, uma voz rica, e agitava no ar como se fosse um cachecol de veludo.
Some of these days
You’re going to miss me honey
Some of these days
You’re gonna be so lonely
You’ll miss me huggin’
You’ll miss my kissin!..
— Você paga a conta — ordenou Grahame. — Aí eu vou acompanhar você e a mocinha até o carro. De lá, vamos pra minha casa, pra conversarmos direito. Se fizerem uma gracinha, eu atiro nos dois. Capiche?
Fat Charlie “capichou” direitinho. Ele também “capichou” quem dirigia a Mercedes na outra tarde, e como escapara por pouco de morrer. Fat Charlie começava a “capichar” o quanto Grahame Coats era maluco e a chance mínima que Daisy e ele tinham de sair dessa vivos.
A cantora havia terminado a canção, e as pessoas espalhadas pelo restaurante aplaudiram. Fat Charlie mantinha suas mãos sobre a mesa e, olhando além de Grahame Coats, na direção da cantora, mandou-lhe uma piscada com o olho que Coats não podia ver. Ela estava cansada das pessoas que evitavam olhar em seus olhos, e a piscadela de Fat Charlie foi mais que bem-vinda.
Daisy disse:
— Grahame, obviamente eu vim aqui por sua causa, mas o Charlie só....
Ela parou e fez o tipo de expressão que as pessoas fazem quando têm uma arma sendo empurrada contra o estômago. Grahame Coats disse:
— Prestem atenção. Por causa das testemunhas inocentes aqui reunidas, somos todos bons amigos. Vou pôr a arma no bolso, mas ainda estarei apontando pra você. Nós vamos nos levantar. E vamos pro meu carro. E eu vou..
Ele parou. Uma mulher com um vestido vermelho brilhante e um microfone vinha para a mesa deles com um sorriso enorme no rosto, na direção de Fat Charlie. Ela perguntou, no microfone:
— Qual o seu nome, querido? — e pôs o microfone no rosto de Fat Charlie.
— Charlie Nancy — respondeu Charlie. Sua voz travou, hesitante.
— E você veio de onde, Charlie?
— Da Inglaterra. Eu e meus amigos somos todos da Inglaterra.
— E você trabalha com o quê, Charlie?
Tudo pareceu ficar mais lento. Era como pular de um rochedo para o mar. A única saída. Fat Charlie suspirou fundo e respondeu:
— No momento, estou desempregado. Mas sou cantor. Eu canto, que nem você.
— Que nem eu? O que você canta?
Fat Charlie engoliu em seco.
— O que vocês têm aí?
A cantora virou-se para os outros ocupantes da mesa de Charlie e perguntou, fazendo gestos com o microfone:
— Vocês acham que a gente consegue fazer ele cantar alguma coisa pra gente?
— Ahm... Melhor não. Não. Absolutotalmente fora de questão — respondeu Grahame Coats. Daisy deu de ombros, com as mãos ainda coladas à mesa.
A mulher de vestido vermelho se virou para o resto do salão.
— O que vocês acham? — perguntou.
Os outros fregueses aplaudiram, e os funcionários aplaudiram mais ainda. O barman gritou:
— Canta alguma coisa pra gente!
A cantora se inclinou para Fat Charlie, tapou o microfone e disse:
— E melhor uma música que o pessoal já conheça.
Fat Charlie perguntou:
— Eles conhecem “Under the Boardwalk”?
Ela fez que sim e anunciou Fat Charlie, passando-lhe o microfone.
A banda começou a tocar. A cantora levou Fat Charlie até o pequeno palco, e ele sentiu seu coração batendo rápido no peito.
Fat Charlie começou a cantar, e a platéia passou a escutar.
Tudo o que ele queria era conseguir mais algum tempo, mas Fat Charlie se sentia bem. Ninguém estava atirando coisas nele, e ele parecia ter bastante espaço mental para pensar. Notava cada um naquela sala: os turistas, os funcionários, as pessoas no bar. Fat Charlie podia ver tudo: o barman medindo um drinque, a senhora idosa no fundo da sala enchendo uma grande caneca de café. Ainda estava aterrorizado, aborrecido, mas pegou todo o terror e a raiva e os colocou na canção. Deixou que tudo se tornasse basicamente uma canção sobre ficar à toa, fazendo amor. Enquanto cantava, pensava.
“O que o Spider faria? O que o meu pai faria?”
Ele cantou. Na canção, informava a todos os seus planos sobre o que fazer embaixo da passarela, e os planos basicamente consistiam em fazer amor.
A cantora no vestido vermelho sorria e estalava os dedos, balançando o corpo com a música. Ela se aproximou do microfone do tecladista e começou a fazer harmonias.
“Eu estou mesmo cantando pra uma platéia”, pensou Fat Charlie. “Ah, dane-se.”
Ele mantinha os olhos em Grahame Coats.
Quando chegou ao segundo refrão, Fat Charlie começou a bater palmas acima da cabeça, e logo toda a sala o acompanhava, clientes e garçons e chefs, todos exceto Grahame Coats, cujas mãos permaneciam debaixo da toalha de mesa, e Daisy, cujas mãos continuavam espalmadas contra a mesa. Daisy olhava para Fat Charlie como se ele não apenas houvesse ficado louco de pedra, mas tivesse escolhido também um momento extremamente inadequado para descobrir o The Drifters que tinha dentro de si.
A platéia aplaudiu, e Fat Charlie sorriu e cantou. Ao cantar, ele sabia, sem sombra de dúvida, que tudo ficaria bem. Eles ficariam bem. Ele, Spider, Daisy e Rosie também, onde quer que estivesse, todos ficariam bem. Fat Charlie sabia o que deveria fazer. Era algo tolo e improvável, o ato de um idiota, mas funcionaria. E, quando as últimas notas da canção se dissiparam, ele disse:
— Há uma jovem dama na mesa onde eu estava sentado. O nome dela é Daisy Day. Ela também é da Inglaterra. Daisy, acena pro pessoal?
Daisy olhou para ele desesperada, mas levantou a mão da mesa e acenou.
— Tem uma coisa que eu quero dizer para a Daisy. Ela não sabia que eu ia dizer isso. — “Se isso não funcionar, ela já era. Você sabe disso, não sabe?”, sussurrou uma voz em sua cabeça. Fat Charlie continuou: — Mas tomara que ela diga sim. Daisy.. Você quer se casar comigo?
O salão ficou em silêncio. Fat Charlie ficou olhando para Daisy, querendo que ela entendesse, que entrasse no jogo.
Daisy fez que sim com a cabeça.
Os comensais aplaudiram. Isso sim é que era um show. O cantor, a maitre e várias garçonetes foram até a mesa, puseram Daisy de pé e a empurraram até o meio da pista de dança. Eles a empurraram para Fat Charlie e, enquanto a banda tocava “I Just Called to Say I Love You”, ele pôs o braço em volta dela.
— Você trouxe uma aliança pra ela? — perguntou a cantora.
Ele pôs a mão no bolso.
— Aqui — disse para Daisy. — Isso é pra você.
Colocou os braços à sua volta e a beijou. “Se alguém vai levar um tiro”, pensou, “esta é a hora.” Então pararam de se beijar, e as pessoas o cumprimentavam e o abraçavam. Um homem que dizia estar na cidade por causa do festival de música insistiu em dar seu cartão a Fat Charlie. Agora Daisy segurava o limão que Fat Charlie lhe dera com uma expressão muito estranha no rosto. Quando ele olhou de volta para a mesa a que estavam sentados, Grahame Coats não estava mais lá.