Se havia alguma coisa agindo para fazer spider ir embora, ele não tinha consciência disso. Muito pelo contrário: estava se divertindo tanto se fazendo passar por Fat Charlie que ficou se perguntando por que não tivera essa idéia antes. Estava se divertindo mais que um bando de macacos fazendo macaquices. Muitos anos antes, Spider ficara extremamente desapontado com um bando de macacos. Os macacos não faziam nada particularmente engraçado além de emitir sons curiosos. Finalmente, depois que os barulhos pararam e os macacos já não faziam mais nada — exceto talvez desempenhar alguma função em nível orgânico —, ele precisou se livrar deles no meio da noite. A parte de ser Fat Charlie de que Spider mais gostava era Rosie.
Até o momento, Spider considerava as mulheres mais ou menos substituíveis. Não dava a elas um nome verdadeiro ou um endereço onde ficasse por mais de uma semana, é claro, ou qualquer coisa além de um número de celular temporário. As mulheres eram divertidas, decorativas, excelentes acessórios, mas sempre haveria mais mulheres por aí. Como tigelas de goulash sobre uma esteira rolante. Assim que você acabasse de desfrutar uma delas, simplesmente pegava a próxima e temperava com sour cream.
Mas Rosie...
Rosie era diferente.
Ele não saberia dizer por que ela era diferente. Tentou precisar a diferença, mas não conseguiu. Em parte, era o modo como ele se sentia quando estava com ela. Como se, ao olhar para si mesmo nos olhos dela, se transformasse numa pessoa melhor. Em parte era isso.
Spider gostava de saber que Rosie sabia onde poderia encontrá-lo. Sentia-se confortável com isso. Deliciava-se com suas curvas macias, com seu jeito de boa moça, com seu sorriso. Não havia nada de errado com Rosie — exceto, é claro, já que passara algum tempo com ela, descobrir que havia o problema da mãe dela. Nessa noite específica, enquanto Fat Charlie estava num aeroporto a 6.500 km de distância, no meio do processo de ser transferido para a primeira classe, Spider estava no apartamento da mãe de Rosie, na Wimpole Street, e começava a percorrer o caminho das pedras para conhecê-la.
Ele tinha o costume de distorcer um pouco a realidade, mas só um pouco, apenas o suficiente. Bastava mostrar a realidade quem é que mandava. Só isso. Isso posto, é bom dizer que nunca encontrara ninguém tão firmemente apoiado em sua própria realidade quanto a mãe de Rosie.
— Quem é esse? — perguntou ela, desconfiada, quando entraram no apartamento.
— Eu sou Fat Charlie Nancy — respondeu Spider.
— Por que ele está dizendo isso? Quem é ele? — insistiu a mãe de Rosie.
— Eu sou Fat Charlie Nancy, o seu futuro genro, e você gosta muito de mim — continuou Spider, com bastante convicção na voz.
A mãe de Rosie perdeu o prumo, piscou os olhos e ficou olhando para ele. E disse, meio indecisa:
— Talvez você seja o Fat Charlie, mas eu não gosto de você.
— Bom — respondeu Spider —, então deveria. E muito fácil gostar de mim. Poucas pessoas são tão adoráveis quanto eu. As pessoas reúnem-se em público só para falar o quanto gostam de mim. Já ganhei vários prêmios e uma medalha de um pequeno país da América do Sul, que é um tributo por eu ser tão adorado por todos e por ser tão maravilhoso. Não estou com ela aqui, é claro. Guardo as medalhas na gaveta de meias.
A mãe de Rosie fungou. Não sabia o que estava acontecendo, mas, o que quer que fosse, não estava gostando nada daquilo. Até o momento, sentia que conseguira entender perfeitamente Fat Charlie. Admitiu que talvez tivesse dado alguns passos em falso no começo. Seria bem possível que Rosie não tivesse se apegado a Fat Charlie com tamanho entusiasmo se, depois do primeiro encontro entre seu namorado e sua mãe, sua mãe não tivesse expressado sua opinião de maneira tão veemente. Ele era um fracassado na vida, dizia a mãe de Rosie, porque conseguia sentir o cheiro do medo como um tubarão sentia cheiro de sangue. Mas não conseguiu fazer com que Rosie o largasse. Agora sua estratégia era controlar o planejamento do casamento, deixando Fat Charlie o mais infeliz possível, para depois contemplar as estatísticas nacionais de divórcio com certa satisfação sombria.
Algo diferente estava acontecendo, e ela não gostava nada disso. Fat Charlie não parecia mais uma pessoa vulnerável. Essa nova criatura, tão esperta, a confundia.
Spider, por sua vez, estava tendo trabalho. A maioria das pessoas não presta atenção nas outras. Mas não a mãe de Rosie. Ela percebia tudo. Naquele momento, dava golinhos em sua água quente, em sua xícara fina de porcelana. Sabia que acabara de perder uma batalha, mesmo sem saber do que se tratava. Então concentrou seu ataque em outra frente.
— Charles, meu querido, fale a respeito de sua prima Daisy. Fico preocupada, achando que pouca gente da sua família com parecerá. Você gostaria de dar a ela um papel maior na festa de casamento?
— Quem?
— Daisy — respondeu ela docemente. — A mocinha que encontrei na sua casa naquele dia, andando quase nua pela cozinha. Se é que ela era mesmo a sua prima, é claro.
— Mãe! Se o Charlie diz que era prima dele.
— Deixe que ele mesmo fale, Rosie — pediu a mãe de Rosie, e tomou outro golinho de sua xícara.
— Certo... Daisy...
Forçou-se a lembrar daquela noite com vinho, mulheres e música. Ele havia levado a mulher mais bonita e divertida com eles para o apartamento, depois de dizer-lhe que era idéia dela. Precisou de ajuda para trazer o peso semiconsciente de Fat Charlie para o andar de cima. Como já tinha desfrutado da atenção de várias mulheres durante aquela noite, trouxe aquela engraçadinha com ele do mesmo modo como alguém reserva um chocolatinho para comer depois do jantar, mas acabou descobrindo, após chegar em casa e colocar Fat Charlie, já limpo, para dormir, que não estava mais com fome. Era aquela.
— Ah, a minha doce priminha Daisy — continuou, sem pausa. — Estou certo de que ela adoraria se envolver com o casamento se estiver no país. Uma pena, ela é correspondente diplomática. Está sempre viajando. Um dia está aqui, e no outro já precisa entregar um documento confidencial em Murmansk.
— Você não tem o endereço dela? Ou telefone?
— Podemos procurá-la juntos, eu e a senhora — concordou Spider. — Procurar pelo mundo afora. Ela vive por aí.
— Então — começou a mãe de Rosie, como teria dito Alexandre o Grande ao ordenar o saque e a pilhagem de uma pequena vila na Pérsia —, da próxima vez que ela estiver na Inglaterra, convide-a para vir aqui. Eu a achei uma gracinha. Tenho certeza de que Rosie adoraria conhecê-la.
— Sim — respondeu Spider. — E verdade. Vou trazê-la, sem dúvida.
Cada pessoa que existiu, existe ou existirá possui sua música. Não é uma música escrita por outra pessoa. Ela tem sua própria melodia, sua própria letra. Poucas pessoas chegam a cantar sua própria música. A maioria de nós teme que não façamos jus a ela com nossa voz, ou que a letra seja muito boba, ou muito franca, ou muito estranha. Então, em vez disso, as pessoas vivem suas músicas.
Vejamos Daisy, por exemplo. Sua música, que esteve no fundo de sua mente durante grande parte da sua vida, tinha um ritmo que exprimia confiança, um ritmo de marcha, e a letra falava sobre proteger os mais fracos. O refrão começava com “Malfeitores, cuidado!” e, portanto, era muito boba para ser cantada em voz alta. Ela às vezes acompanhava a melodia, fazendo “hum-hum” no chuveiro enquanto se ensaboava.
Isso é basicamente tudo o que precisamos saber a respeito de Daisy. O resto são detalhes.
O pai de Daisy nasceu em Hong Kong. Sua mãe era da Etiópia, de uma família rica de exportadores de tapete. Tinham uma casa em Addis Ababa, e outra casa mais uns terrenos em Nazret. Os pais de Daisy conheceram-se em Cambridge. Ele estudava computação, antes mesmo de isso ser visto como uma carreira promissora, e ela devorava livros de química molecular e direito internacional. Eram dois jovens igualmente estudiosos, naturalmente tímidos e em geral ansiosos. Ambos sentiam saudade de casa, mas por motivos bem diferentes. No entanto ambos jogavam xadrez e encontravam-se nas tardes de quarta-feira no clube de xadrez. Como eram novatos, foram encorajados a jogar juntos e, no primeiro jogo, a mãe de Daisy derrotou facilmente o pai.
O pai de Daisy ficou irritado com isso, tanto que timidamente pediu que jogassem de novo na quarta-feira seguinte, e todas as quartas-feiras que se seguiram (com exceção das férias e dos feriados) nos dois anos seguintes.
A interação social dos dois aumentava, assim como as habilidades sociais de ambos e o inglês dela. Juntos, deram-se as mãos e fizeram parte de um protesto contra a chegada de enormes caminhões carregados de mísseis. Juntos, embora participassem de um grupo ainda maior, viajaram para Barcelona para protestar contra o fluxo interminável do capitalismo internacional e para deixar registrados seus protestos contra as hegemonias corporativas. Essa também foi a época em que oficialmente experimentaram o gás lacrimogêneo e o pulso do sr. Day foi torcido enquanto era empurrado pela polícia espanhola.
Então, certa quarta-feira, no começo de seu terceiro ano em Cambridge, o pai de Daisy derrotou a mãe de Daisy no xadrez. Ele ficou tão feliz, sentiu-se tão triunfante que, cheio de alegria e ousadia pela vitória, pediu sua mão em casamento. A mãe de Daisy, que no fundo tinha medo de que tão logo ele ganhasse uma partida perdesse o interesse nela, disse sim, é claro.
Ficaram na Inglaterra e continuaram a vida acadêmica. Tiveram uma filha, a quem deram o nome de Daisy porque na época tinham (e com a qual de fato andavam por aí, para a diversão de Daisy, muito tempo depois) uma bicicleta do tipo “tandem”. Uma bicicleta para duas pessoas. (Referência a uma canção popular chamada “A Bicycle Built for Two”, cujo refrão é o seguinte: Daisy, Daisy, /Give me your answer do! / I m half crazy, /All for the love of you/It won t be a stylish marriage, /I can ‘t afford a carriage, / But you ll look sweet on the seat/Of a bicycle built for two! N.T.)
Mudaram-se de universidade para universidade, por toda a Inglaterra: ele dava aulas de ciência da computação, enquanto sua esposa escrevia livros que ninguém queria ler, sobre hegemonias corporativas internacionais, e livros que muita gente queria ler, sobre xadrez, sua história e estratégias. Assim, num ano bom, ela conseguia ganhar mais dinheiro que ele, mas nunca era o bastante. O envolvimento de ambos com a política foi arrefecendo à medida que envelheciam. Quando se aproximavam da meia-idade, tinham se transformado num casal feliz, sem grandes interesses além de si próprios, do xadrez, de Daisy e da reconstrução e dos métodos para eliminar bugs de sistemas operacionais havia muito esquecidos.
Nenhum dos dois entendia Daisy. Nem um pouquinho.
Culpavam-se por não terem colocado um freio na fascinação que a filha sentia pela polícia quando isso começou a se manifestar, mais ou menos à época em que começou a falar. Daisy apontava os carros da polícia na rua com a mesma excitação com que outras garotinhas apontam para pôneis. Seu sétimo aniversário foi comemorado de modo a permitir que ela usasse seu uniforme de policial júnior. Ainda há fotografias dela, tiradas no andar de cima da casa dos pais, com sua carinha de menina de 7 anos, demonstrando a mais perfeita alegria ao olhar para seu bolo de aniversário: sete velinhas circundando uma sirene azul.
Daisy tornou-se uma adolescente esforçada, alegre e inteligente, que deixou os pais felizes quando foi estudar direito e computação na Universidade de Londres. Seu pai sonhava que ela se tornasse professora de direito. A mãe sonhava que ela fosse advogada do Conselho da Coroa, talvez até mesmo juíza, para usar a lei para esmagar as hegemonias corporativas sempre que aparecessem. Mas aí Daisy estragou tudo fazendo os testes de admissão para a polícia, que a recebeu de braços abertos: por um lado, havia as diretrizes de que era preciso aumentar a diversidade no corpo policial; por outro, os crimes por meio de computador e as fraudes tecnológicas eram cada vez mais comuns. Eles precisavam de Daisy. Na verdade, precisavam de um exército de Daisies.
Naquele momento, quatro anos mais tarde, seria justo dizer que a carreira na polícia não correspondia às expectativas de Daisy. Não porque, como advertiram seus pais repetidas vezes, a polícia era um monólito institucionalmente racista e sexista que esmagaria sua individualidade, faria dela algo uniforme e sem alma, algo que a transformaria em parte daquela cultura de massa, como café instantâneo. Não. A parte frustrante do trabalho era fazer os outros policiais entenderem que ela também era uma policial. Chegou à conclusão de que, para a maioria dos agentes, o trabalho da polícia era algo feito para proteger o inglês médio das pessoas assustadoras, de origem social suspeita, que provavelmente só pensavam em roubar seus celulares. Do ponto de vista de Daisy, era algo bem diferente. Daisy sabia que um moleque em casa, na Alemanha, poderia mandar um vírus capaz de fazer parar um hospital, causando mais estrago que uma bomba. Daisy achava que os verdadeiros vilões nos dias de hoje sabiam o que eram sites FTP, conheciam os métodos complicados de encriptação e o funcionamento dos celulares descartáveis pré-pagos. E não estava certa de que os mocinhos sabiam tudo isso.
Tomou um pequeno gole do café de um copo plástico e fez uma careta. Enquanto via páginas e páginas na tela, o café esfriou.
Ela analisou toda a informação que Grahame Coats lhe dera. Sem dúvida, havia motivo para achar que tinha algo errado ali. Entre outras coisas, havia um cheque de 2 mil libras que supostamente Charles Nancy escrevera para si mesmo na semana anterior.
Exceto que... exceto que ela não tinha um bom pressentimento.
Caminhou pelo corredor e bateu na porta do superintendente.
— Pode entrar.
Camberwell fumara seu cachimbo à mesa durante 30 anos, até que foi instituída no prédio a política de proibição de fumo. Agora ele se virava com massinha de modelar, que transformava em bola, amassava, cutucava. Quando era um homem com um cachimbo na boca, era calmo, bem-humorado e, na opinião de seus subordinados, uma excelente pessoa. Agora, um homem com massinha de modelar na mão, era sempre irascível, nervoso. Num bom dia, conseguia ficar somente um pouco irritado.
— Sim?
— O caso da Agência Grahame Coats.
— Mm?
— Não tenho muita certeza quanto a ele.
— Não tem muita certeza? Mas do que diabos você precisa ter certeza?
— Bom, acho que talvez seja melhor eu abdicar do caso.
Ele não pareceu impressionado. Ficou olhando para ela. Sobre a mesa, sem testemunha, seus dedos trabalhavam a massinha azul no formato de um cachimbo.
— E por quê? — perguntou.
— Eu tive contato social com o suspeito.
— É? Você saiu de férias com ele? É madrinha dos filhos dele? O quê?
— Não. Eu o encontrei só uma vez. Passei a noite na casa dele.
— Então o que você está dizendo é que vocês fizeram aquilo?
Ele soltou um longo suspiro no qual o cansaço, a irritação e a vontade imensa de fumar um pouco de Condor apareciam em partes iguais.
— Não, senhor. Nada disso. Eu só dormi lá.
— E esse é o seu envolvimento com ele?
— Sim, senhor.
Ele amassou o cachimbo de massinha, fazendo-o virar uma bola disforme.
— Você percebe que está me fazendo perder o meu tempo, não?
— Sim, senhor. Desculpe.
— Faça o que tem que fazer. Não me perturbe.
Maeve Livingstone foi até o quinto andar de elevador.
A subida lenta e sacolejante deu a ela bastante tempo para ensaiar mentalmente o que diria a Grahame Coats quando chegasse ao escritório.
Carregava uma maleta marrom, que pertencera a Morris: era uma maleta bastante masculina. Usava uma blusa branca, uma saia jeans e, por cima, um casaco cinza. Suas pernas eram compridas, sua pele, muito branca, e seu cabelo permanecia, com apenas o mínimo de assistência química, tão loiro quanto na época em que Morris Livingstone casara-se com ela, 20 anos antes.
Maeve amara muito seu marido. Quando ele morreu, não apagou o número dele de seu celular, nem mesmo depois de ter cancelado a conta e devolvido o aparelho. Seu sobrinho tirara a foto de Morris que havia em seu celular, e ela não queria perdê-la. Gostaria de poder ligar para Morris agora, pedir um conselho seu. Lá embaixo, dissera seu nome no interfone, para abrirem a porta. Quando entrou na recepção, Grahame Coats já a esperava.
— Ora, como vai a minha bela dama?
— Precisamos conversar em particular, Grahame. Agora.
Grahame Coats sorriu de um jeito afetado. Estranhamente, suas fantasias mais íntimas sempre começavam com Maeve dizendo algo bem parecido antes de proferir coisas como “Eu preciso de você, Grahame. Tem que ser agora” e “Ah, Grahame, eu fui uma menina tão tão tão tão má, você precisa me corrigir” e, em algumas raras ocasiões, “Grahame, você é muito especial para ter uma mulher só, então vou apresentar você à minha irmã gêmea idêntica, que está sempre nua: Maeve II”.
Entraram no escritório dele.
Maeve, para o leve desapontamento de Grahame Coats, não disse nada parecido com precisar de sexo ali, naquele instante. Ela não tirou o casaco. Em vez disso, abriu a maleta, tirou de lá uma pilha de papéis e a colocou sobre a mesa.
— Grahame, seguindo a sugestão do gerente do meu banco, eu contratei os serviços de uma auditoria contábil para examinar os dados que você me passou nos últimos dez anos. Desde quando Morris ainda estava vivo. Você pode examinar os papéis se quiser. Os números não batem. Nenhum bate. Achei melhor falar com você sobre isso antes de entrar em contato com a polícia. Achei que devia isso a você, pela memória de Morris.
— Certamente deve — concordou Grahame Coats, escorregadio feito uma cobra deslizando em manteiga. — Deve sim, de fato.
— Bom... e então?
Maeve Livingstone ergueu uma sobrancelha perfeita. A expressão em seu rosto não era muito animadora. Grahame Coats preferia a versão de sua imaginação.
— Infelizmente tive um empregado aqui da Agência que não era muito honesto, Maeve. Eu mesmo chamei a polícia, na semana passada, quando me dei conta de que havia algo errado. Eles já estão investigando. Devido à natureza ilustre de vários clientes da Agência Grahame Coats, inclusive você, a polícia está mantendo o máximo de discrição. O que é melhor, não? — Ela não parecia ter ficado tão tranqüila quanto ele esperava. Tentou outro caminho: — Eles têm grandes esperanças de recuperar boa parte do dinheiro, senão tudo.
Maeve assentiu com a cabeça. Grahame Coats relaxou, mas só um pouco.
— Posso saber que empregado é esse?
— Charles Nancy. Digo a você que eu confiava nele plenamente. Foi um grande choque.
— Ah. Ele é um doce de pessoa.
— As aparências enganam — salientou Grahame Coats.
Ela então sorriu. Era um sorriso muito doce.
— Olha, isso não vai colar, Grahame. Isso já vem de muito tempo. Desde antes de Charles Nancy começar a trabalhar aqui. Provavelmente bem antes da minha época. Morris confiava completamente em você, e ainda assim você roubou o dinheiro dele. Agora você está tentando me dizer que está armando para cima de um funcionário seu ou culpando algum colega. Bom, não vai colar.
— Não — respondeu Grahame Coats com a voz contrita. — Desculpe.
Ela pegou a pilha de papéis.
— Só para saber, quanto é que você conseguiu roubar de Morris e de mim durante todos esses anos? Eu chuto uns 3 milhões de libras.
— Ah — disse ele, sem sorrir. Sem dúvida era uma quantia maior que aquilo, mas mesmo assim... — Deve ser mais ou menos isso.
Ficaram olhando um para o outro, e Grahame Coats ficou pensando a todo vapor. Ele precisava de tempo. Era disso que precisava.
— E se... E se eu pagasse a você essa quantia agora, em dinheiro? Com juros. Digamos, 50% sobre o valor em questão.
— Você está me oferecendo 4,5 milhões de libras? Em espécie?
Grahame Coats sorriu para ela da mesma maneira como cobras não costumam sorrir.
— Absolutotalmente. Se você avisar a polícia, eu negarei tudo e contratarei excelentes advogados. Na pior das hipóteses, após um julgamento bem longo, durante o qual serei forçado a jogar o bom nome de Morris na lama o máximo que eu puder, pegarei no máximo uns dez, 12 anos de prisão. Talvez fique por lá apenas uns cinco anos, se apresentar bom comportamento. E eu serei um prisioneiro modelo. Já que há gente demais nas prisões, eu serviria grande parte da sentença em regime semi-aberto, ou até mesmo aberto. Não vejo isso como um problema. Por outro lado, posso garantir que, se você avisar a polícia, não conseguirá de volta um único centavo do dinheiro de Morris. A alternativa seria ficar calada e conseguir todo o dinheiro que puder enquanto eu consigo um pouco mais de tempo para... para fazer a coisa certa. Se é que me entende.
Maeve pensou.
— Eu adoraria ver você apodrecer na prisão. — Ela suspirou, e assentiu com a cabeça: — Certo. Fico com o dinheiro. Nunca terei que lidar com você, vê-lo de novo na minha frente. E todos os cheques dos direitos autorais no futuro virão diretamente para mim.
— Absolutotalmente. O cofre fica aqui.
Havia uma estante de livros na parede dos fundos, sobre a qual havia edições da mesma coleção, com capa de couro, de Dickens, Thackeray, Trollope e Austen. Nenhuma delas fora lida. Ele remexeu um livro, e a estante foi para um lado, revelando uma porta da mesma cor da parede.
Maeve pensou que talvez o cofre tivesse um segredo, mas não: era apenas uma porta com uma pequena fechadura, a qual foi destrancada por Grahame Coats com uma chave de cobre. A porta abriu-se.
Ele pôs a mão lá dentro e acendeu a luz. Era uma sala estreita, alinhada com prateleiras mal colocadas. Ao fim da salinha, havia um armário de arquivo pequeno, à prova de fogo.
— Você pode levar em dinheiro, em jóias, ou uma mistura dos dois — disse ele, secamente. — Eu recomendo a segunda opção. Tem muita jóia de ouro antiga aqui. E fácil de carregar. — Ele destrancou várias gavetas e mostrou o conteúdo. Anéis, gargantilhas e pingentes brilharam e refulgiram. Maeve ficou boquiaberta. — Dê uma olhada — sugeriu, e ela chegou mais perto. Era um verdadeiro tesouro.
Tirou uma gargantilha com um pingente dourado e ergueu-a pela mão. Ficou olhando para aquilo, maravilhada.
— E lindo. Deve valer...
E parou de falar. No ouro polido do pingente, viu algo se movendo por trás dela. Virou-se, o que fez com que o martelo não a atingisse exatamente na parte de trás da cabeça, como Grahame Coats tencionava, mas passasse raspando pelo seu rosto.
— Seu merda! — exclamou, e deu-lhe um chute. Maeve tinha pernas fortes e um chute poderoso, mas ela e o agressor estavam próximos demais.
O pé de Maeve acertou a canela dele. Ela tentou agarrar o martelo que ele segurava. Grahame Coats dava golpes com ele: dessa vez deu certo, e Maeve cambaleou para o lado. Não conseguia focalizar nada. Ele a acertou novamente, bem no topo da cabeça, e mais uma vez, e de novo, e de novo, e ela caiu no chão.
Grahame Coats queria ter uma arma naquele momento. Uma boa pistola. Com um silenciador, como nos filmes. Sinceramente, se lhe tivesse ocorrido que precisaria matar alguém em seu escritório, teria se preparado. Teria até mesmo arranjado vários tipos de veneno. Isso seria mais sensato. Não precisaria daquela bagunça toda.
Havia sangue e fios de cabelo loiros grudados no martelo. Largou a ferramenta com nojo e, andando cuidadosamente para não pisar na mulher no chão, pegou as caixas do cofre que continham as jóias. Despejou tudo em sua mesa e recolocou as caixas no cofre, de onde tirou uma maletinha com vários maços de notas de 100 dólares e 500 notas de euro, além de um pequeno saquinho de veludo preto repleto de diamantes brutos. Por último, mas — como ele teria gostado de salientar — não menos importante, tirou da salinha secreta uma pequena maleta de couro contendo duas carteiras e dois passaportes.
Depois fechou a porta pesada, trancou e colocou a estante de livros no lugar em que estava.
Ficou ali, de pé, com a respiração um pouco alterada, recuperando o fôlego.
No geral, decidiu, sentia certo orgulho de si mesmo. “Bom trabalho, Grahame. Foi um bom desempenho.” Teve que improvisar com o que tinha à mão e conseguiu sair-se bem: blefou, foi ousado, criativo. Disposto, como disse o poeta, a arriscar tudo no lançar de uma moeda. Arriscou e venceu. Era quem comandava a bola. Um dia, em seu paraíso tropical, escreveria suas memórias, e as pessoas saberiam como ele derrotou uma mulher perigosa. “Apesar de que teria sido melhor”, pensou, “se ela tivesse de fato apontado uma arma para mim.”
“Provavelmente”, repensou, “ela de fato apontou uma arma para mim.” Tinha quase certeza de que a vira tentar pegar a arma. Teve muita sorte por ter o martelo ali, sorte por ter um kit de ferramentas na sala para os momentos em que precisasse se virar sozinho. Caso contrário, não teria conseguido agir em legítima defesa de modo tão rápido e eficaz.
Somente naquele momento ocorreu-lhe que devia trancar a porta que dava para seu escritório.
Notou que havia sangue em sua camisa, em sua mão, e na sola de um de seus sapatos. Tirou a camisa e limpou o sapato com ela.
Jogou-a na lixeira embaixo de sua mesa. Surpreendeu-se lambendo o sangue em sua mão, como um gato, com a língua vermelha.
Então bocejou. Pegou os papéis de Maeve da mesa e os passou pelo picotador de papel. Havia mais alguns documentos em sua maleta, e ele os picotou também. Passou os picotes mais uma vez pela máquina de picotar.
Ele tinha um armário no canto do escritório, com um terno, camisas, meias, cuecas e assim por diante. Nunca se sabe quando precisamos sair do escritório direto para um encontro, afinal de contas. E melhor estar preparado.
Vestiu-se com cuidado.
Também havia uma pequena mala com rodas no armário, pequena, do tipo que é considerada bagagem de mão. Colocou as coisas dentro dela, arrumando para caber mais.
Ligou para a recepção:
— Annie, será que você poderia comprar um sanduíche pra mim? Não da Prêt. Pensei naquele lugar novo, na Brewer Street. Estou terminando os negócios aqui com a Sra. Livingstone. Talvez eu a leve para almoçar de verdade, mas é melhor me prevenir.
Passou vários minutos usando o computador, rodando um programa do tipo que limpa o disco rígido e transforma os dados em zeros e uns aleatórios e depois amassa os dados bem amassadinhos antes de jogá-los no fundo do rio Tamisa com blocos de cimentos nos pés. Depois saiu pelo corredor puxando sua mala com rodinhas.
Pôs a cabeça dentro de um dos escritórios:
— Vou sair um pouco. Estarei de volta às três, caso alguém me procure.
Annie não estava na recepção, o que, pensou ele, era ótimo. As pessoas pensariam que Maeve Livingstone já teria ido embora, assim como esperariam que Grahame Coats voltasse a qualquer momento. Quando começassem a procurar por ele, já estaria bem longe.
Desceu pelo elevador. Tudo acontecia antes do planejado, pensou ele. Seu aniversário de 50 anos seria dali a mais de um ano.
Mas os mecanismos de fuga já estavam em movimento. Ele simplesmente precisava pensar naquilo como uma excelente oferta de aposentadoria. Ou uma excelente oferta de trabalho.
E então, puxando a mala com rodinhas atrás de si, saiu pela porta da frente do prédio para a manhã ensolarada em Aldwych. E deixou a Agência Grahame Coats para sempre.
Spider dormiu tranqüilamente em sua cama enorme, em sua casa montada no quarto extra do apartamento de Fat Charlie. Começava a se perguntar vagamente se Fat Charlie desaparecera de vez. Resolveu que investigaria o assunto quando pudesse, a não ser que algo mais interessante o distraísse ou que esquecesse.
Ele foi dormir tarde. Estava a caminho de um encontro com Rosie, para almoçar. Ele a pegaria em seu apartamento, e iriam a algum lugar legal. Era um dia bonito, de início de outono, e a felicidade de Spider era contagiante. Isso porque Spider era meio que um deus. Quando você é um deus, as suas emoções são contagiantes — as outras pessoas podem pegá-las como um vírus. Quando havia pessoas perto de Spider num dia em que ele se sentia feliz, o mundo delas parecia um pouco melhor. Se ele cantarolasse uma canção, as pessoas ao redor começavam a cantarolar também, no mesmo ritmo, como se fosse uma cena de um musical. É claro que, se ele bocejasse, 100 pessoas perto dele bocejariam também e, quando se sentia mal, essa sensação alastrava-se como uma névoa, fazendo o mundo parecer ainda pior para todos em volta. Não era algo que ele fazia, mas o modo como ele era.
Naquele momento, a única coisa que não o deixava totalmente feliz era o fato de ter resolvido contar a verdade a Rosie.
Spider não se dava muito bem com essa coisa de contar a verdade. Ele considerava a verdade algo fundamentalmente maleável, mais ou menos uma questão de opinião. E conseguia fabricar algumas opiniões bastante impressionantes quando precisava.
Ser um impostor não era o problema. Ele gostava de ser um impostor. Havia algo de bom nisso. Algo que se encaixava em seus planos, algo bastante simples e que poderia ser resumido mais ou menos assim: a) ir a algum lugar; b) divertir-se e c) ir embora antes de se sentir entediado. Ele sabia, bem no fundo, que já era hora de ir embora. Para ele, o mundo era como uma lagosta num prato — o guardanapo estava no seu pescoço, havia um pote de manteiga derretida à sua disposição e um conjunto de talheres complicados mas adequados para comer lagosta repousava na sua frente.
Exceto que..
Exceto que não queria ir embora.
Começava a refletir sobre a questão, algo que considerava bastante desconcertante. Em geral, ele nem sequer pensava, quanto mais refletia sobre as coisas. A vida sem reflexão sempre fora perfeitamente agradável — o instinto, o impulso e uma sorte absurda sempre lhe caíram bem até aquele momento. No entanto até mesmo os milagres só levam as pessoas até determinado ponto. Spider andava pela rua, e as pessoas sorriam para ele.
Combinara com ela que a encontraria no seu apartamento. Portanto ficou agradavelmente surpreso por vê-la no fim da rua, esperando por ele. Sentia uma sensação desagradável, algo que talvez fosse o começo da culpa, e acenou para ela.
— Oi, Rosie! — Ela caminhou em sua direção, sobre a calçada, e começou a sorrir. Eles resolveriam tudo. Tudo ficaria bem. — Você está tão bonita. Lindíssima. O que quer comer?
Rosie sorriu e deu de ombros. Passaram por um restaurante grego.
— Tudo bem se for comida grega?
Ela assentiu com a cabeça. Desceram alguns degraus e entraram. O restaurante estava escuro e vazio, já que abrira recentemente. O proprietário os encaminhou para um cantinho no fundo.
Sentaram-se um na frente do outro, em uma mesa para apenas duas pessoas. Spider começou:
— Eu queria contar algo a você. — Ela ficou quieta. — Não é ruim. Mas também não é bom. Mas... Enfim... É algo que você precisa saber.
O proprietário perguntou-lhes se queriam pedir algo. Ele sugeriu café e Rosie assentiu com a cabeça, concordando.
— Dois cafés — pediu Spider. — E pode nos dar uns cinco minutinhos? Precisamos ficar a sós um tempinho.
O dono do restaurante retirou-se.
Rosie ficou olhando para Spider, esperando.
Ele deu um longo suspiro.
— Certo. Ok. Deixa eu contar uma coisa pra você. Não é fácil, e não sei se consigo.. Certo. Olha. Eu não sou Fat Charlie. Sei que você pensa que eu sou, mas não sou. Sou o irmão dele, Spider. Você acha que eu sou ele porque nós somos meio parecidos. — Ela não disse nada. — Bem, na verdade não pareço muito com ele. Mas., sabe, isso não é fácil pra mim. Está bem! Não consigo parar de pensar em você. Sei que você é noiva do meu irmão, mas estou lhe pedindo., bem— Você consideraria largá-lo e ficar comigo?
Um bule de café chegou à mesa numa pequena bandeja prateada, com duas xícaras.
— É café grego — observou o dono do restaurante.
— Sim. Obrigado. Mas eu realmente preciso de uns minutinhos a sós...
— Está bem quente — continuou o homem. — Café bem quente. Forte. Grego. Não turco.
— Que bom. Olha, se você não se importa, pode nos dar cinco minutinhos, por favor?
O dono do restaurante deu de ombros e foi embora.
— Você provavelmente me odeia. Se eu fosse você, provavelmente também me odiaria. Mas é sério o que estou dizendo. Estou falando mais sério do que jamais falei em toda a minha vida. — Ela apenas olhava para ele, sem esboçar nenhuma reação. — Por favor — continuou ele. — Diga alguma coisa. Qualquer coisa.
Seus lábios se moveram, como se ela tentasse achar as palavras certas.
Spider aguardou.
A boca de Rosie abriu-se.
A primeira coisa que ele pensou foi que ela estava comendo alguma coisa, porque o que viu entre os dentes dela era marrom, e sem dúvida não era sua língua. Então a coisa moveu a cabeça e os olhos, olhinhos pequenos, redondos, pretos e brilhantes, e olhou para ele. Rosie abriu a boca de um jeito impossível, e os pássaros saíram.
Spider só teve tempo de dizer “Rosie?”, e o ar ficou repleto de bicos, penas, garras, um após o outro. Os pássaros saíam de sua garganta, cada um acompanhado de um pequeno ruído, como se ela estivesse tossindo ou sufocando, e voavam direto para Spider.
Ele ergueu um braço para proteger os olhos, e algo machucou seu pulso. Mexeu os braços histericamente, e algo voou para o seu rosto, direto para os olhos. Lançou a cabeça para trás, e o bico perfurou sua bochecha.
Então houve um momento de clareza horripilante: ainda havia uma mulher sentada do outro lado da mesa. Ele não conseguia entender como pôde tê-la confundido com Rosie. Para começar, o cabelo dela era impossivelmente negro, com mechas brancas aqui e ali. A pele não tinha o tom marrom quente da pele de Rosie, era negra como ébano. Usava um sobretudo esfarrapado de cor ocre. Ela sorriu e mais uma vez abriu bem a boca de um jeito absurdamente impossível. Agora conseguia ver dentro da boca dela os bicos cruéis e os olhos insanos das gaivotas.
Spider não parou para pensar. Resolveu agir. Agarrou a alça do bule e o ergueu com uma das mãos, enquanto com a outra tirava a tampa. Fez um movimento e lançou-o contra a mulher sentada à sua frente. O conteúdo do bule, café quente, escaldante, caiu em cima dela.
Ela sibilava de dor.
Pássaros chocaram-se e bateram suas asas no restaurante, mas não havia mais ninguém sentado à frente dele. Os pássaros voavam em todas as direções, batendo loucamente nas paredes.
O dono do restaurante veio até ele.
— O senhor está ferido? Eu sinto muito. Acho que vieram da rua.
— Tudo bem — respondeu Spider.
— O senhor está sangrando.
Ele deu a Spider um guardanapo, o qual ele pressionou contra a bochecha. O corte ardia.
Spider ofereceu-se para expulsar os pássaros para a rua. Abriu a porta, mas agora o lugar não continha mais pássaro nenhum. Encontrava-se exatamente como estava quando entrara.
Spider tirou do bolso uma nota de cinco libras.
— Tome. Pelo café. Preciso ir.
O dono do restaurante assentiu, agradecido.
— Pode ficar com o guardanapo.
Spider parou e pensou. Perguntou ao homem:
— Quando eu entrei, havia uma mulher comigo?
O proprietário parecia confuso. Talvez até mesmo assustado. Spider não sabia ao certo.
— Eu não me lembro.— — respondeu, como se estivesse aturdido. — Se o senhor estivesse sozinho, eu não o teria levado para aquela mesa ali. Mas eu não sei.
Spider foi para a rua. O dia ainda estava claro, mas a luz do sol não dava mais uma sensação de segurança. Olhou em volta. Viu um pombo virando e bicando uma casquinha de sorvete abandonada, um pardal sobre o parapeito de uma janela e, lá no alto, como um brilho de luz branca ao sol, com as asas estendidas, uma gaivota voava em círculos.