4 Cujo desfecho é uma noite com vinho, mulheres e música

Fat Charlie acordou. Memórias de um sonho em que encontrava um irmão que era astro de cinema se misturavam com as de um sonho em que o presidente Taft fazia uma visita e virava seu hóspede, trazendo com ele todos os personagens do desenho animado do Tom e Jerry. Tomou uma chuveirada e pegou o metrô para o trabalho.

Durante todo o expediente, algo em sua mente o incomodava, mas ele não sabia o que era. Colocava coisas em lugares errados, esquecia de outras. Em certo ponto, começou a cantar em sua mesa, não porque estivesse feliz, mas porque se esquecera de não cantar. Só se deu conta do que fazia quando o próprio Grahame Coats colocou a cabeça dentro do escritório para repreendê-lo.

— Nada de rádios, walkmans, MP3 players ou objetos musicais desse tipo aqui no escritório — disse Grahame Coats, com seu olhar fixo e raivoso de furão. — Eles remetem a uma atitude preguiçosa, considerada abominável no mundo dos negócios.

— Não era o rádio — admitiu Fat Charlie, com as orelhas ardendo.

— Não? Então poderia me fazer o obséquio de dizer o que era?

— Era eu.

— Você?

— Sim, eu estava cantando. Desculpe..

— Eu poderia jurar que era um rádio. Mas estava errado. Deus do céu. Bom, com uma gama de talentos tão grande à sua disposição, com habilidades tão fantásticas, talvez você deva nos deixar para subir no palco, entreter as multidões, talvez fazer um show mambembe, em vez de entulhar de coisas uma mesa num escritório onde outras pessoas estão tentando trabalhar. Certo? Aqui é um lugar que administra a carreira de outras pessoas.

— Não. Eu não quero ir embora. Fiz isso sem pensar.

— Então — começou Grahame Coats — você deve aprender a conter a sua vontade de cantar. Deixe para cantar na banheira, no chuveiro ou talvez na arquibancada, quando estiver torcendo pro seu time. Eu mesmo torço pelo Crystal Palace. Ou então você vai ter que procurar emprego em outro lugar.

Fat Charlie sorriu, e então percebeu que sorrir não era, de forma nenhuma, o que queria fazer. Ele fez uma cara séria, mas Grahame Coats já tinha saído do escritório. Fat Charlie soltou um xingamento inaudível, cruzou os braços sobre a mesa e abaixou a cabeça.

— Era você quem estava cantando?

A pergunta vinha de uma das novas funcionárias do Departamento de Relações Artísticas. Fat Charlie nunca conseguia decorar o nome delas. Quando ele finalmente aprendia, elas já tinham ido embora.

— Receio que sim.

— O que você estava cantando? Era uma música bonita.

Fat Charlie deu-se conta de que não sabia. Disse:

— Não sei ao certo. Não estava prestando atenção.

Ela riu com a resposta, mas de jeito tímido. E acrescentou:

— Sabe, ele tem razão. Você devia gravar um disco, e não perder seu tempo aqui.

Fat Charlie não sabia o que dizer. Com as bochechas ardendo, começou a riscar números, escrever notas e pegar post-its já escritos e colocá-los na tela até ter certeza de que a moça tinha ido embora.

Maeve Livingstone telefonou: será que Fat Charlie poderia encarecidamente pedir a Grahame Coats para telefonar para seu gerente do banco? Ele disse que faria o possível. Ela disse com firmeza que ele deveria fazer o possível para fazer o possível.

Rosie ligou para ele de seu celular, às quatro da tarde, para avisá-lo de que a água em seu prédio havia voltado e para dizer que, olha só que boa novidade, sua mãe decidira interessar-se pelo iminente casamento e convidara Rosie para ir até lá à noite discutir o assunto.

— Bom — disse Fat Charlie —, se for ela quem vai preparar o jantar, vai economizar uma fortuna em comida.

— Isso não é uma coisa legal de dizer. Ligo pra você à noite para falar como foi.

Fat Charlie disse a ela que a amava e desligou o telefone. Alguém o observava. Ele se virou. Era Grahame Coats.

— Aquele que plantar chamadas telefônicas pessoais durante o período de trabalho colherá tempestades. Sabe quem disse isso?

— Você?

— Certamente fui eu — respondeu Grahame Coats. — Sim, de fato fui eu. E ninguém jamais disse algo tão verdadeiro. Considere essa a sua primeira advertência.

E então sorriu o tipo de sorriso satisfeito que fazia Fat Charlie ponderar os possíveis resultados de enfiar um murro na barriga de Grahame Coats. Decidiu que seria uma difícil decisão entre ser despedido e ser processado por agressão. “De qualquer modo”, pensou, “seria algo bonito de ver...”

Fat Charlie não era, por natureza, um homem violento. Ainda assim, podia sonhar. Seus devaneios costumavam ser modestos, mas davam uma sensação de conforto. Imaginava ter bastante dinheiro para comer em bons restaurantes sempre que quisesse.

Ter um emprego em que ninguém lhe diria o que fazer. Poder cantar sem se sentir embaraçado, em um lugar em que nunca haveria ninguém por perto para ouvi-lo.

Naquela tarde no entanto seus devaneios assumiam uma forma diferente: ele podia voar, balas ricocheteavam em seu tórax forte enquanto descia pelo céu e resgatava Rosie de bandidos que a seqüestravam. Ela o abraçava bem forte enquanto voavam na direção do pôr do sol, na direção de sua Fortaleza Fantástica, onde ela ficaria tão grata que tomaria entusiasticamente a decisão de não ligar mais para essa coisa do vamos-esperar-até-depois-do-casamento e veria se eles conseguiriam encher o pote de moedas o mais rápido possíveL.

O devaneio aliviava todo o estresse que havia na Agência Grahame Coats, a exigência de ter que avisar às pessoas que seus cheques já foram enviados, de exigir o dinheiro que deviam à agência.

Às seis da tarde, Fat Charlie desligou seu computador e desceu os cinco andares do prédio de escada até chegar a rua. Não havia chovido. Lá em cima, as estrelas pairavam e piscavam: eram como o coro da noite na cidade. Todos na calçada andavam rápido. A maioria deles, como Fat Charlie, subia a Kingsway para pegar o metrô na estação Holborn. Andavam cabisbaixos e pareciam querer muito chegar em casa.

No entanto havia uma pessoa na calçada que não estava indo a lugar nenhum. Ele estava ali, de pé, encarando Fat Charlie e os outros transeuntes, e o colarinho de sua jaqueta de couro balançava ao vento. Não estava sorrindo.

Fat Charlie o viu já do final da rua. À medida que caminhava na direção do homem, tudo se tornava irreal. O dia se desfez em sua mente, e ele se deu conta do que esteve tentando se lembrar durante todo aquele tempo.

— Oi, Spider — cumprimentou Fat Charlie ao se aproximar dele.

Spider parecia ter uma tempestade dentro de si. Talvez estivesse prestes a chorar. Fat Charlie não saberia dizer. Havia emoção demais em seu rosto, tanto que as pessoas na rua evitavam olhar para ele, envergonhadas.

— Eu fui até lá — disse. Sua voz não tinha força. — Eu vi a Sra. Higgler. Ela me levou até o túmulo. Meu pai morreu, e eu não sabia.

— Ele era meu pai também, Spider. — Ele ficou se perguntando como fora capaz de esquecer Spider, como pudera achar que era apenas um sonho.

— É verdade.

O céu do fim do dia estava cheio de pequenas estrelas. Elas deslizavam e saltavam de telhado em telhado. Spider estremeceu e ficou mais ereto, como se tivesse tomado uma decisão.

— Você tem toda a razão. Nós temos que fazer isso juntos.

— Exatamente — concordou Fat Charlie. Depois perguntou: — Fazer o quê?

Mas Spider já tinha chamado um táxi.

— Somos homens com problemas — disse Spider para o mundo. — Nosso pai morreu. Nosso coração está pesado. A tristeza pesa sobre nós como o pólen pesa numa epidemia de alergia. A escuridão é o nosso fardo, e a infelicidade, nossa única companhia.

— Certo, senhores — interrompeu o motorista de táxi, animado. — Para onde vão?

— Para um lugar onde possamos encontrar os três remédios para a cura da alma — respondeu Spider.

— Talvez a gente devesse ligar para o restaurante indiano e pedir algo com curry— sugeriu Fat Charlie.

— Existem três coisas, e três coisas apenas, que podem tirar a dor da mortalidade e suavizar as tragédias da vida. E essas coisas são vinho, mulheres e música.

— Curry também é legal — acrescentou Fat Charlie, mas ninguém prestava atenção nele.

— Em que ordem? — perguntou o motorista.

— Vinho primeiro — anunciou Spider. — Um rio, um lago, um oceano de vinho.

— Eu tenho uma sensação bem ruim quanto a isso — comentou Fat Charlie, prestativo.

Spider assentiu com a cabeça.

— Sensação ruim. Sim. Ambos estamos nos sentindo mal. Esta noite partilharemos nossas sensações ruins e encararemos nossos problemas. Ficaremos de luto. Secaremos o poço amargo da mortalidade. A dor, quando partilhada, meu irmão, não é dobrada, e sim dividida. Nenhum homem é uma ilha.

— Nunca perguntes por quem os sinos dobram — citou o motorista. — Pois eles dobram por ti.

— Opa! — disse Spider — Você arranjou um koan matador, amigo.

— Obrigado — disse o motorista.

— E é assim que tudo termina mesmo. O senhor tem um ar de filósofo. Meu nome é Spider. Este é o meu irmão, Fat Charlie.

— Charles — corrigiu Fat Charlie.

— Steve — apresentou-se o motorista. — Steve Burridge.

— Senhor Burridge, o senhor gostaria de ser nosso motorista particular por esta noite?

Steve Burridge explicou que estava no fim do expediente e levaria o táxi para casa. A Sra. Burridge e os pequenos Burridges o esperavam para o jantar.

— Você ouviu isso? — comentou Spider. — Um homem de família. Olha, o meu irmão e eu somos tudo o que restou da família. E essa é a primeira vez que nos encontramos.

— Parece uma história e tanto. Vocês brigaram?

— Não, nada disso. Ele simplesmente não sabia que tinha um irmão — respondeu Spider.

— E você sabia? — perguntou Fat Charlie.

— Talvez eu soubesse — respondeu Spider. — Mas às vezes a gente esquece essas coisas.

O motorista encostou o táxi na calçada.

— Onde estamos? — perguntou Fat Charlie. Eles não tinham ido muito longe. Fat Charlie achou que estivessem só um pouco além da Fleet Street.

— Onde ele pode conseguir o que queria — respondeu o motorista. — Vinho.

Spider saiu do táxi e observou a fachada de um velho bar, feita de carvalho sujo e vidros embaçados.

— Perfeito. Pague o homem, irmão.

Fat Charlie pagou o táxi. Eles entraram. Desceram uma escada de madeira até chegar a um porão onde advogados rubicundos bebiam lado a lado com pálidos administradores de fundos do mercado financeiro. Havia serragem no chão e uma lista de vinhos escrita com giz, de modo ilegível, num quadro negro atrás do balcão.

— O que você vai beber? — perguntou Spider.

— Só uma taça de vinho tinto da casa, por favor — respondeu Fat Charlie.

Spider olhou para ele com ar sério e disse:

— Nós somos os últimos herdeiros da linhagem Anansi. Não vamos beber à memória de nosso pai com vinho tinto da casa.

— Ahm. Certo. Bom, então vou tomar o que você tomar.

Spider foi até o bar, passando pelo monte de pessoas como se elas não estivessem lá. Depois de vários minutos, voltou carregando duas taças, um saca-rolhas e uma garrafa de vinho extremamente empoeirada. Abriu a garrafa com uma facilidade que impressionou profundamente Fat Charlie, que sempre deixava cair fragmentos de cortiça dentro da garrafa. Spider serviu o vinho, tão escuro que quase chegava a ser negro. Encheu as duas taças e colocou uma delas diante de Fat Charlie.

— Um brinde. À memória do nosso pai.

— Ao nosso pai — respondeu Fat Charlie. Ele tocou sua taça na taça de Spider (milagrosamente sem derramar nenhuma gota) e provou do seu vinho. Era bastante amargo, com um toque de ervas, salgado.

— O que é isso?

— Vinho funerário, o tipo que se bebe em homenagem aos deuses. Não o produzem mais há muito tempo. E temperado com aloés e alecrim, e com as lágrimas de virgens infelizes no amor.

— E eles vendem isso num bar na Fleet Street?

Fat Charlie pegou a garrafa, mas o rótulo estava muito apagado e empoeirado para ler.

— Nunca ouvi falar.

— São esses lugares mais antigos que têm coisas boas se você pedir — respondeu Spider. — Ou pelo menos eu acho que têm.

Fat Charlie tomou outro gole de seu vinho. Era forte e tinha um gosto acre.

— Não é um vinho de degustação — disse Spider. — É um vinho para lamentar a morte de alguém. Você bebe de uma vez. Assim. — Tomou um gole grande e fez uma careta. — Assim ele fica com gosto melhor também.

Fat Charlie hesitou um instante, e então deu um grande gole naquele vinho estranho. Conseguia imaginar que podia sentir o gosto de aloés e alecrim. Ficou pensando se o gosto salgado vinha mesmo de lágrimas.

— Eles põem alecrim para a auxiliar a memória — observou Spider, e começou a encher as taças até a borda. Fat Charlie tentou explicar que não estava com muita vontade de tomar vinho naquela noite e que tinha que trabalhar no dia seguinte, mas Spider o interrompeu. — É a sua vez de fazer um brinde.

— Ahm. Certo. À nossa mãe.

Beberam à memória da mãe. Fat Charlie percebeu que começava a apreciar o gosto amargo do vinho. Sentia os olhos ardendo, e uma sensação de perda, profunda e dolorosa, apoderou-se dele. Sentiu falta de sua mãe. Sentiu saudades da infância. Até sentiu saudades do pai. Do outro lado da mesa, Spider balançava a cabeça. Uma lágrima correu por seu rosto e caiu no vinho. Ele pegou a garrafa e serviu mais vinho para ambos.

Fat Charlie bebeu.

A tristeza apoderou-se dele enquanto bebia, enchendo sua cabeça e seu corpo com o sentimento de perda e com a dor da ausência, engolfando-o como ondas no oceano.

Suas próprias lágrimas corriam pela face, caindo no vinho. Procurou um lenço nos bolsos. Spider serviu o restante do vinho para ambos.

— Eles vendem mesmo esse vinho aqui?

— Eles tinham uma garrafa, mas não sabiam que tinham. Eles só precisavam de alguém que os lembrasse.

Fat Charlie assoou o nariz.

— Eu nunca soube que tinha um irmão.

— Eu sabia — respondeu Spider. — Eu sempre quis procurar você, mas me distraí com outras coisas. Sabe como é.

— Acho que não sei.

— As coisas me impediam.

— Que tipo de coisas?

— Coisas. Elas surgiam. E o que as coisas fazem. Elas surgem. Não é justo que eu seja obrigado a ter o controle de todas elas.

— Ora, me dê um exemplo.

Spider bebeu um pouco mais.

— Está bem. Da última vez que decidi que a gente devia se encontrar, passei dias planejando. Queria que tudo saísse perfeito. Escolhi as roupas que usaria. Depois tive que decidir o que dizer a você quando nos encontrássemos. O encontro de dois irmãos costuma ser assunto de histórias épicas, certo? Decidi que a única maneira de tratar o assunto com a seriedade que ele exigia seria com versos. Mas que tipo de versos? Devo cantar como um rap? Devo declamá-los? Quer dizer, claro que não ia cumprimentar você com uma riminha boba. Então. Precisava ser algo sombrio, poderoso, ritmado, épico. E então consegui pensar numa coisa. O primeiro verso, perfeito: O sangue clama pelo sangue como sereias clamam no escuro. Ele diz muita coisa. Eu sabia que conseguiria colocar tudo em versos. As pessoas morrendo em vielas, o suor, os pesadelos, o poder invencível dos espíritos livres. Tudo caberia ali. Então eu tinha que inventar um segundo verso, e a coisa toda ruiu. O melhor que eu consegui foi Pã-parã-papã-parã-papã quase caiu duro.

Fat Charlie piscou.

— Mas quem é Pá-parã-papã-parã-papã?

— Não é ninguém. Só está aí para mostrar aonde vão as palavras. Mas eu nunca fui além disso, e não podia aparecer apenas com um único verso inicial, uns parã-pãs e três palavras de um poema épico, certo? Seria um acinte.

— É...

— Pois é. Então eu tirei uma semana de folga e fui pro Havaí.

Como eu disse, as coisas apareciam.

Fat Charlie bebeu mais vinho. Estava começando a gostar. Às vezes os gostos mais fortes caem bem com emoções fortes, e essa era uma dessas ocasiões.

— Mas nem sempre havia um segundo verso de poema épico para impedir você — observou Fat Charlie.

Spider colocou sua mão delgada sobre a grande mão de Fat Charlie.

— Chega de falar sobre mim. Vamos falar de você.

— Não há muito o que dizer. — Contou ao irmão sobre sua vida. Sobre Rosie e a mãe dela, sobre Grahame Coats e a Agência Grahame Coats, e seu irmão assentia com a cabeça. Agora que Fat Charlie colocava tudo em palavras, não parecia uma vida muito excitante. — Mesmo assim — complementou com ar filosófico —, existem aquelas pessoas que aparecem nas páginas de fofocas dos jornais. E elas sempre dizem o quanto sua vida é chata, vazia e sem sentido.

Segurou a garrafa de vinho sobre sua taça, na esperança de que houvesse pelo menos o suficiente para mais um gole, mas não havia nem uma gota. A garrafa estava vazia. Havia durado mais do que se poderia esperar de uma garrafa, mas agora não havia mais nada.

Spider levantou-se e disse:

— Eu conheci essas pessoas. Essas das revistas. Já convivi com elas. Eu vi, em primeira mão, sua vida vazia, imatura. Eu as observei, escondido nas sombras, quando pensavam estar sozinhas. E digo uma coisa pra você: acho que não existe uma única dessas pessoas capaz de trocar de vida com você, mesmo sob a mira de um revólver, meu irmão. Vamos.

— Hã? Aonde você vai?

— Nós vamos. Já cumprimos a primeira parte da nossa missão trina da noite. Bebemos vinho. Existem duas tarefas a cumprir.

— Ahm — Fat Charlie seguiu Spider até saírem do bar, esperando que o ar fresco da noite clareasse seus pensamentos. Mas não funcionou. Parecia que sua cabeça sairia flutuando por aí, como se não estivesse presa ao corpo.

— Agora, as mulheres. E depois música.


Talvez seja bom deixar claro que as mulheres simplesmente não apareciam no mundo de Fat Charlie. Seria preciso que alguém o apresentasse a elas. Você tinha que tomar coragem para falar com elas. Era preciso encontrar um assunto para conversar com elas. E, assim que você conseguisse passar por tudo isso, havia desafios ainda maiores. Você tinha que ousar perguntar a elas se tinham planos para o sábado à noite e, quando perguntava, a maioria precisava lavar o cabelo, atualizar o diário, cuidar do papagaio ou simplesmente esperar em vão, perto do telefone, a ligação de outro homem.

Mas o mundo de Spider era diferente.

Andaram na direção do West End e pararam quando chegaram a um pub cheio de gente. Os clientes se derramavam pela calçada. Spider parou e cumprimentou o que parecia ser um grupo festejando o aniversário de uma moça chamada Sybilla, a qual ficou muito lisonjeada quando ele insistiu em pagar uma rodada de bebidas para ela e seus amigos, em comemoração à data. Ele contou piadas (“então o bêbado parou no velório e ouviu alguém dizer ‘coitado, morreu feito um passarinho! e, quando perguntaram para o bêbado do que o sujeito tinha morrido, ele respondeu: ‘ah, pelo que eu ouvi, foi de pedrada “) e ria das próprias piadas, uma risada alta, alegre. Conseguia lembrar o nome de todas as pessoas ao seu redor. Falava com elas e ouvia o que tinham a dizer. Quando anunciou que era hora de ir para outro pub, todo o grupo que celebrava o aniversário decidiu, como se fosse uma única mulher, que iria com ele.

Quando chegaram ao terceiro pub, Spider parecia um desses astros em videoclipes de rock. Estava rodeado de garotas. Elas o abraçavam. Muitas o beijavam, meio de brincadeira, meio a sério. Fat Charlie observava com um misto de horror e inveja.

— Você é o guarda-costas dele? — perguntou uma das moças.

— Como?

— O guarda-costas dele. Você é ou não é?

— Não. Sou o irmão dele.

— Nossa. Não sabia que ele tinha um irmão. Eu acho ele fantástico.

— E, eu também — concordou outra moça, que passara algum tempo agarrada a Spider até ser forçada a sair dali pela pressão exercida por outros corpos com a mesma intenção. Ela notou a presença de Fat Charlie pela primeira vez.

— Você é o empresário dele?

— Não. É irmão dele — respondeu a primeira moça. — Ele acabou de me dizer — acrescentou, enfática.

A segunda moça a ignorou. — Você também é americano? — perguntou. — Tem um pouco de sotaque.

— Quando eu era mais jovem — respondeu Fat Charlie —, a gente morava na Flórida. Meu pai era americano, minha mãe era... Bom, originalmente ela veio de Saint Andrews, mas ela foi criada-

Ninguém mais ouvia o que ele dizia.

Quando saíram dali, o que restava da comemoração de aniversário os acompanhou. As mulheres cercavam Spider, perguntando para onde estavam indo. Sugeriram restaurantes e casas noturnas. Spider simplesmente sorria e continuava a andar.

Fat Charlie os seguia, lá atrás, sentindo-se mais desprezado do que nunca.

Andaram por um mundo cheio de luzes de néon. Spider tinha os braços em volta de muitas mulheres. Ele as beijava enquanto caminhava, sem distinção, como um homem que dá uma mordida numa fruta tropical e depois experimenta outra. Nenhuma delas parecia se importar.

“Isso não é normal”, pensou Fat Charlie. “Não mesmo.” Ele nem tentava alcançá-los, apenas fazia o máximo para não ficar totalmente para trás.

Ainda sentia o gosto amargo do vinho na boca.

Deu-se conta de que havia uma moça caminhando ao seu lado. Era pequena, bonitinha, de um jeito delicado. Puxou a manga dele.

— O que nós vamos fazer agora? — perguntou. — Para onde estamos indo?

— Estamos de luto pelo meu pai. Eu acho.

— Isso é uma daquelas pegadinhas da TV?

— Espero que não.

Spider parou e virou-se. O brilho em seus olhos era perturbador.

— Chegamos — anunciou. — Chegamos. É o que ele gostaria que a gente fizesse.

Havia uma mensagem escrita à mão, numa folha de papel de um laranja bem gritante, sobre a porta do pub que dizia: “Hoje à noite, KARAOKÊ no andar de cima”.

— Música — disse Spider. E gritou: — Está na hora do show!

— Não — interrompeu Fat Charlie. Ele parou e ficou onde estava.

— É o que ele adoraria.

— Eu não canto. Não em público. E estou bêbado. E realmente acho que isso não é uma boa idéia.

— E uma excelente idéia! — Spider tinha um sorriso perfeitamente convincente. Se utilizado de maneira adequada, um sorriso daqueles poderia dar início a uma guerra santa. Fat Charlie no entanto não se convenceu.

— Olha... — começou, tentando esconder o pânico em sua voz. — Existem coisas que as pessoas não fazem. Certo? Algumas pessoas não conseguem voar. Outras não fazem sexo em público. Outras não se transformam em fumaça e saem por aí. Eu não consigo fazer nada disso, e também não consigo cantar.

— Nem mesmo pelo nosso pai?

— Especialmente nesse caso. Ele não vai conseguir me fazer passar vergonha depois de morto. Bem, pelo menos não mais do que já fez.

— Licença — disse uma das moças. — Com licença, a gente vai entrar? Porque eu estou ficando com frio, e a Sybilla precisa fazer xixi.

— A gente vai entrar — assentiu Spider, e sorriu para ela.

Fat Charlie quis protestar, fazer valer sua opinião, mas percebeu que o arrastaram para dentro, e se odiou por isso. Alcançou Spider nas escadas.

— Está bem, eu vou entrar. Mas não vou cantar.

— Você já entrou.

— Eu sei. Mas não vou cantar.

— Não faz muito sentido dizer que você não vai entrar se você já entrou.

— Eu não sei cantar.

— Então você está me dizendo que eu herdei também todo o talento musical?

— Eu estou dizendo que, se eu tiver que abrir a boca para cantar em público, eu vomito.

Spider apertou o braço dele para passar confiança.

— É só ver como eu faço.

A aniversariante e duas de suas amigas subiram, trôpegas, no palco e cantaram, entre risadinhas, “Dancing Queen”. Fat Charlie ficou tomando uma tônica com gim que alguém colocou na mão dele e fazia uma leve careta a cada nota desafinada que cantavam, a cada mudança de tom errada. Houve uma salva de palmas do restante do grupo da aniversariante.

Outra mulher foi para o palco. Era a mocinha pequenina que havia perguntado a Fat Charlie para onde iriam. A música começou — “Stand By Me” —, e ela foi atrás, pronunciando a letra da melhor maneira que conseguia para acompanhar a música. Não acertava uma nota, começava cada estrofe muito antes ou muito depois, e alterou grande parte da música. Fat Charlie ficou condoído.

Ela desceu do palco e foi até o bar. Fat Charlie planejava dizer algo para demonstrar empatia, mas ela vibrava de alegria.

— Foi o máximo! Sério, foi fantástico. — Fat Charlie pagou uma bebida para ela, um drink de vodca com laranja. — Foi tão divertido. Você vai cantar também? Vai lá. Você tem que cantar. Aposto que não é tão ruim quanto eu.

Fat Charlie deu de ombros de uma maneira, assim esperava, capaz de indicar que dentro dele havia um nível de ruindade bastante alto, ainda não descoberto.

Spider caminhou até o palco como se um holofote o seguisse.

— Aposto que ele vai cantar bem — disse a vodca-com-laranja. — Disseram que você é irmão dele, é verdade?

— Não — murmurou Fat Charlie, de um jeito meio rude. — Eu disse que ele era meu irmão.

Spider começou a cantar. A música era “Under the Boardwalk”.

Não teria acontecido se Fat Charlie não gostasse tanto da música. Quando tinha 13 anos, ele acreditava que “Under the Boardwalk” era a melhor música do mundo (na época em que tinha 14 anos e já sabia mais do mundo, a melhor música passou a ser “No Woman No Cry”, do Bob Marley). Agora Spider cantava a sua música, e cantava muito bem. No tom certo, como se as palavras fizessem sentido para ele. As pessoas pararam de beber, pararam de conversar e ficaram olhando para ele, ouvindo.

Ao final da apresentação, as pessoas vibraram. Se estivessem usando chapéus, teriam jogado para cima.

— Agora entendo por que você não quer cantar também — observou a vodca-com-laranja para Fat Charlie. — Quer dizer, não dá pra competir, né?

— Bom... — começou Fat Charlie.

— Quer dizer — emendou ela com um sorriso —, dá para ver quem herdou todo o talento da família.

E inclinou a cabeça enquanto dizia isso. Depois mexeu o queixo, fazendo uma cara piedosa. Foi essa mexida no queixo que pôs tudo a perder.

Fat Charlie caminhou até o palco, colocando um pé na frente do outro numa impressionante demonstração de destreza física. Ele suava.

Os minutos seguintes passaram como uma névoa. Ele falou com o DJ, escolheu uma música da lista — “Unforgettable” —, esperou o que pareceu ser uma pequena eternidade, e finalmente puseram um microfone em suas mãos.

Sua boca estava seca. Seu coração batia forte.

Na tela, apareceu a primeira palavra: Unforgettable...

Na verdade, Fat Charlie sabia cantar. Sua voz tinha alcance, força, expressão. Quando cantava, todo o seu corpo virava um instrumento.

A música começou.

Em sua cabeça, Fat Charlie estava pronto para abrir a boca e cantar “Unforgettable”. Cantaria para seu pai morto, para seu irmão, para a noite, para dizer-lhes que eram inesquecíveis.

Só que não conseguia. Havia pessoas olhando para ele. Mais ou menos umas 20 pessoas no andar de cima de um pub. Muitas eram mulheres. Diante de uma platéia, Fat Charlie não conseguia sequer abrir a boca.

Ele podia ouvir a música, mas ficou parado. Sentiu-se gelado. Seus pés pareciam muito distantes de seu corpo.

Forçou-se a abrir a boca.

— Eu acho — começou a dizer claramente ao microfone, por sobre a música, com sua voz ecoando de todas as paredes — que vou passar mal.

Não foi bonita sua saída do palco.

Depois disso, tudo ficou girando.


Há lugares míticos. Eles existem, cada um à sua maneira. Alguns pairam sobre o mundo. Outros existem sob o mundo, como o esboço de uma pintura.

Há montanhas. Um lugar rochoso que fica antes dos penhascos que delimitam o fim do mundo. Nessas montanhas há cavernas, cavernas profundas que já eram habitadas bem antes de o primeiro homem caminhar sobre a Terra.

E ainda são habitadas.

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