Os pássaros estavam agitados. Grasnavam, gritavam e conversavam na copa das árvores. “Está mais perto”, pensou Spider, e disse um palavrão. Sentia-se esgotado, acabado. Não tinha mais forças. Nada além de cansaço, nada além de exaustão.
Pensou na possibilidade de deitar-se no chão e ser devorado. De modo geral, decidiu ele, aquele era um modo horrível de morrer. Nem tinha certeza se seria capaz de produzir outro fígado, mas tinha a certeza de que, o que quer que o estivesse perseguindo, afinal, não tinha a menor intenção de se contentar apenas com o fígado.
Começou a puxar a estaca. Contou até três e depois puxou os dois braços na própria direção, com a maior força possível, para que esticassem a corda e arrancassem a estaca. Depois contou até três e puxou de novo.
Isso teve o mesmo efeito que teria se ele tentasse empurrar uma montanha para o outro lado da estrada. Um, dois, três... força. E de novo. E de novo.
Ele se perguntava se o animal viria logo.
Um, dois, três... força. Um, dois, três... força.
Podia ouvir alguém, em algum lugar, cantando. A música fez Spider sorrir. Percebeu que queria ter uma língua: ele a mostraria para o tigre quando finalmente aparecesse. Essa idéia lhe deu ânimo.
Um, dois, três... força. E a estaca cedeu, balançou em suas mãos. Puxou mais uma vez e a estaca saiu do chão facilmente, como uma espada sendo retirada de uma rocha.
Puxou as cordas para si e segurou a estaca nas mãos. Media mais ou menos uns 90 centímetros. Uma das pontas fora afiada para ser fincada na terra. Puxou a estaca das cordas com suas mãos dormentes. As cordas pendiam, inúteis, de seus pulsos. Testou o peso da estaca com a mão direita. Resolveu que servia. E então percebeu que estava sendo observado. A coisa o estava observando já havia algum tempo, como um gato à espreita na toca de um rato.
E veio até ele em silêncio, ou quase, indo em sua direção como uma sombra movendo-se ao longo do dia. O único movimento perceptível para os olhos era a cauda, que balançava para lá e para cá, impaciente. Do contrário, poderia muito bem ser uma estátua ou um monte de areia que parecia, por causa da luz, um animal feroz. Seu pêlo tinha cor de areia, e seus olhos que nunca piscavam eram de um verde semelhante ao mar na época do inverno. A face parecia a face cruel e larga de uma pantera. Nas ilhas, chamavam qualquer grande felino de Tigre. Esse era todos os grandes felinos que já existiram. Era maior, mais feroz e mais perigoso que todos.
Os tornozelos de Spider ainda estavam presos às cordas, e ele mal podia andar. Suas mãos e seus pés formigavam. Ficou trocando de um pé para o outro, tentando parecer que fazia aquilo de propósito, como se fosse algum tipo de dança de ameaça, e não porque ficar de pé doía.
Queria agachar-se e desamarrar os tornozelos, mas não ousava tirar os olhos da fera.
A estaca era pesada e grossa, mas pequena demais para servir como uma lança, e grosseira e grande demais para ser outra coisa. Spider a segurava pela ponta mais fina, onde fora afiada, e olhou para longe, para o mar, intencionalmente evitando olhar para o lugar onde se encontrava o animal, confiando em sua visão periférica.
O que foi mesmo que ela disse? “Você vai chorar. Vai choramingar. O seu medo o deixará nervoso.”
Spider começou a choramingar. Então chorou, como se fosse um cabritinho ferido, perdido, indefeso, sozinho.
Um movimento rápido, cor de areia, sem dar tempo suficiente para registrar os dentes e as garras que iam em sua direção. Spider rodou a estaca como um bastão de beisebol, o mais forte que conseguia, e sentiu com satisfação ela se chocar contra o nariz da fera.
O Tigre parou, ficou olhando para ele como se não pudesse acreditar no que via e então fez um som gutural, um rugido queixoso. Depois andou, com as pernas rígidas, de volta para onde viera, para a vegetação, como se tivesse algo importante a fazer de que se desejava livrar logo. Olhou para Spider ressentido, por cima do ombro. Uma fera ferida, que lhe deu o olhar de um animal decidido a voltar.
Spider observou enquanto ia embora.
Então se sentou e pôs-se a tirar as amarras de seus tornozelos.
Caminhou, um pouco cambaleante, ao longo da beira do penhasco, seguindo para baixo. Logo havia um riacho cruzando seu caminho, correndo para a beirada do penhasco, numa cachoeira brilhante. Spider ajoelhou-se, pôs as mãos em concha e começou a beber a água fresca.
Depois começou a apanhar pedras. Pedras pesadas, do tamanho de seu punho. Colocou todas empilhadas, como bolas de neve.
— Você não comeu nada — disse Rosie.
— Coma você. Precisa ficar forte — retrucou a mãe. — Eu comi um pouco do queijo. Já é o bastante.
Fazia frio naquele lugar, e estava escuro. Não é o tipo de escuro ao qual você consegue acostumar os olhos. Não havia nenhuma luz. Rosie andou por toda a área do depósito de carne, seus dedos contra o cimento, as pedras e os tijolos, procurando algo que pudesse ajudar, mas não encontrou nada.
— Você costumava comer. Quando o papai estava vivo — observou Rosie.
— O seu pai também costumava comer. E veja que fim levou. Um ataque cardíaco aos 41 anos de idade. Em que mundo vivemos?
— Mas ele adorava a comida que fazia.
— Ele adorava tudo — concordou a mãe com voz amarga. — Adorava comida, adorava as pessoas, adorava a filha. Adorava cozinhar. E me adorava. O que ele ganhou com isso? Só uma morte prematura. Você não devia sair amando coisas por aí desse jeito. Eu te avisei.
— É. Acho que avisou.
Caminhou em direção da voz da mãe, com a mão na frente do rosto para não bater numa das correntes penduradas no meio do depósito. Encontrou o ombro ossudo da mãe, e a envolveu com o braço.
— Eu não estou com medo — disse Rosie no escuro.
— Então você está maluca — respondeu a mãe.
Rosie largou a mãe e voltou para o meio do depósito. Ouviu-se um barulho súbito, de algo rachando. Poeira e pó de gesso caíram do teto.
— Rosie? O que você está fazendo?
— Balançando na corrente.
— Cuidado. Se essa corrente se soltar, você vai cair no chão e arrebentar a cabeça quando menos esperar. — Não houve resposta da filha. A Sra. Noah continuou: — Eu te disse. Você está maluca.
— Não. Não estou. Só não estou mais com medo. Acima delas, na casa, a porta da frente bateu.
— O Barbazul chegou — disse a mãe de Rosie.
— Eu sei, eu ouvi. Mas mesmo assim não estou com medo.
As pessoas continuavam a dar tapas nas costas de Fat Charlie e a pagar bebidas com guarda-chuvas dentro para ele. Além disso, recebeu cinco cartões de visita de pessoas que trabalhavam com música e estavam na ilha para ver o festival.
Em todo o salão, as pessoas sorriam para Charlie. Ele tinha um braço em torno de Daisy e podia senti-la tremendo. Ela aproximou os lábios do seu ouvido:
— Você é completamente doido, sabia?
— Funcionou, não funcionou?
Ela olhou para ele.
— Você é cheio de surpresinhas.
— Vamos. Ainda não acabou.
Ele andou na direção da maitre.
— Com licença. Havia uma mulher aqui enquanto eu cantava. Ela entrou e encheu de novo a caneca dela naquela cafeteira ali no balcão. Para onde ela foi?
A gerente piscou e encolheu os ombros. Disse:
— Não sei.
— Ah, sabe sim.
Ele se sentia seguro de si, esperto. Sabia que logo se sentiria ele mesmo de novo, mas tinha cantado uma música para uma platéia e gostado da idéia. Fizera isso para salvar a vida de Daisy e a sua própria, e conseguiu ambas as coisas.
— Vamos conversar lá fora.
Era a música. Enquanto cantava, tudo ficara perfeitamente claro. E continuava claro. Ele andou na direção do saguão, e Daisy e a maitre o seguiram.
— Qual o seu nome? — perguntou para a maitre.
— Clarissa.
— Oi, Clarissa. Qual o seu sobrenome?
Daisy disse:
— Charlie, a gente não devia chamar a polícia?
— Um minuto. Clarissa de quê?
— Higgler.
— E qual a sua relação com Benjamim? O concierge.
— É o meu irmão.
— E qual exatamente é a relação de vocês dois com a Sra. Higgler? Callyanne Higgler?
— São meus sobrinhos, Charlie — interrompeu a Sra. Higgler, que estava na entrada. — Mas agora acho melhor você escutar a sua noiva e chamar a polícia. Não acha?
Spider estava sentado perto do riacho, no alto do penhasco, de costas para ele, com uma pilha de pedras à sua frente, quando um homem apareceu no gramado alto. Estava nu, exceto por uma tira de pele cor de areia em volta da cintura. Na parte de trás dela descia um rabo. Usava um colar de dentes afiados, brancos e pontudos. Seu cabelo era preto e comprido. Caminhava tranqüilamente na direção de Spider, como se só fizesse seu passeio matinal e a presença de Spider ali fosse uma surpresa agradável.
Spider pegou uma pedra do tamanho de um pomelo e sentiu o peso na mão.
— Olá, filho de Anansi — cumprimentou o desconhecido. — Eu estava passando e vi você. Pensei que talvez houvesse algo que eu pudesse fazer para ajudar.
Seu nariz parecia torto e machucado. Spider fez que não com a cabeça. Sentia falta da língua.
-Vendo você aí, acabo pensando: “pobre filho de Anansi, deve estar com tanta fome”. — O homem sorriu exageradamente. — Tenho comida o suficiente aqui para nós dois.
Ele trazia um saco em cima do ombro. Abriu-o e enfiou a mão direita nele, tirando um cordeirinho de rabo preto, recentemente abatido. Ele o segurou pelo pescoço. A cabeça do animal balançava.
— Seu pai e eu comemos juntos em muitas ocasiões. Há algum motivo para você e eu não fazermos a mesma coisa? Você pode acender o fogo. Eu vou limpar o cordeiro e arranjar uma vareta para girá-lo sobre a fogueira. Não dá até pra sentir o gosto?
Spider sentia tanta fome que estava tonto. Se ainda estivesse de posse da própria língua, talvez dissesse “sim”, seguro de sua habilidade de sair de qualquer situação complicada na base da conversa. Mas ele não tinha língua. Pegou uma segunda pedra com a mão esquerda.
— Então sejamos amigos e vamos celebrar, e que não haja mais desentendimentos... — disse o homem.
“Sei... e o abutre e o corvo limparão os meus ossos”, pensou Spider.
O homem deu mais um passo na direção de Spider, que por sua vez decidiu que era o momento de atirar a primeira pedra. Ele tinha uma boa mira e um braço excelente, e a pedra bateu onde queria que batesse, no braço direito do desconhecido, que deixou o cordeiro cair. A outra pedra atingiu o homem na lateral da cabeça. Spider apontara para um lugar entre os olhos demasiadamente separados, mas o desconhecido se moveu.
Então o homem correu, uma corrida saltitante, com o rabo esticado atrás dele. Às vezes parecia um homem, e às vezes, um animal.
Quando sumiu, Spider andou até o lugar onde ele estava para pegar o cordeiro de rabo preto. Ele estava se movendo quando Spider chegou lá. Durante um segundo, Spider achou que ainda estivesse vivo, mas então viu que a carne estava cheia de vermes. Ela fedia, e o fedor ajudou Spider a esquecer o quanto estava faminto, pelo menos por algum tempo.
Carregou o cordeiro com o braço esticado até a beira do penhasco e o jogou no mar. Depois lavou as mãos no riacho.
Não sabia quanto tempo ficara naquele lugar. O tempo esticava-se e encolhia ali. O sol baixava no horizonte.
“Depois que o sol se puser, e antes que a lua nasça”, pensou Spider. “A fera vai voltar.”
O sujeito que representava a força policial de Saint Andrews, uma pessoa absurdamente alegre, sentou-se no escritório, na parte da frente do hotel, com Daisy e Fat Charlie. Ouviu o que cada um deles tinha a dizer com um sorriso plácido mas pouco impressionado em seu rosto largo. Às vezes estendia um dedo e cocava o bigode.
Eles contaram ao policial que um fugitivo da justiça chamado Grahame Coats se aproximara enquanto comiam e ameaçara Daisy com uma arma que, também foram forçados a admitir, ninguém a não ser Daisy vira de verdade. Depois Fat Charlie contou do incidente com a Mercedes preta e a bicicleta naquela tarde, e não, ele não enxergara realmente quem dirigia o carro. Mas sabia de onde o carro vinha. Contou ao policial sobre a casa no alto do penhasco.
O homem tocou seu bigode grisalho de modo pensativo.
— E verdade, tem uma casa no lugar que você descreve. Mas não pertence a esse homem, Coats. Longe disso. Você está descrevendo a casa de Basil Finnegan, um homem bastante respeitável. Há muitos anos o sr. Finnegan demonstra um saudável interesse pela lei e pela ordem. Ele deu dinheiro para escolas e, o que é ainda mais importante, contribuiu com uma quantia considerável para a construção da nova delegacia de polícia.
— Ele encostou uma arma no meu estômago — observou Daisy. — E me disse que ia atirar se a gente não fosse com ele.
— Se esse era o sr. Finnegan, mocinha, tenho certeza de que existe uma explicação perfeitamente simples.
Ele abriu a maleta e tirou um maço gordo de papéis.
— Vamos fazer o seguinte. Pensem bem no assunto. Durmam e vejam o que acham amanhã. Se pela manhã vocês ainda estiverem convencidos de que foi algo mais que um mero engano, vocês preenchem este formulário e deixam três cópias na delegacia de polícia. Perguntem onde fica a nova delegacia, nos fundos da praça central. Todo mundo sabe onde fica.
Apertou a mão dos dois e foi embora.
— Você devia ter dito a ele que também é da polícia — sugeriu Fat Charlie. — Talvez ele levasse você mais a sério.
— Não acho que faria diferença. Qualquer um que chama alguém de “mocinha” já a excluiu de sua lista mental de pessoas que valem a pena ouvir.
Saíram para o lobby do hotel.
— Para onde ela foi? — perguntou Fat Charlie.
— A tia Callyanne? Está esperando por vocês na sala de conferências — respondeu Benjamin Higgler.
— Agora sim — disse Rosie. — Eu sabia que ia conseguir se continuasse balançando.
— Ele vai matar você.
— Ele vai matar a gente de qualquer maneira.
— Não vai funcionar.
— Mãe-. Você tem uma idéia melhor?
— Ele vai ver você.
— Mãe.. A senhora pode por favor deixar de ser tão negativa? Se a senhora tiver alguma sugestão construtiva, por favor faça. Se não tiver nada pra dizer, não diz. Ok? Silêncio. Depois:
— Eu podia mostrar a minha bunda pra ele.
— Quê?
— Você ouviu.
— Ahm... No lugar de?
— Além de.
Silêncio. Então Rosie disse:
— Bom, mal não vai fazer.
— Olá. Sra. Higgler — cumprimentou Fat Charlie. — Eu quero a pena de volta.
— E por que cê acha que eu estou com a sua pena? — ela perguntou, com os braços cruzados sobre os seios volumosos.
— A Sra. Dunwiddy me contou.
A Sra. Higgler, pela primeira vez, pareceu surpresa.
— Louella disse a você que eu estou com a pena?
— Disse que a senhora está com ela.
— Estou guardando por segurança. — A Sra. Higgler fez um gesto em direção a Daisy com a caneca cheia de café. — Você não acha que eu vou começar a falar na frente dela, né? Eu não conheço ela.
— Esta é Daisy. A senhora pode dizer a ela qualquer coisa que diria para mim.
— Ela é a sua noiva. Eu ouvi.
Fat Charlie podia sentir suas bochechas começarem a arder.
— Ela não é a minha.. Na verdade não somos noivos. Eu tinha que dizer alguma coisa para afastá-la do homem com a arma.
Parecia a solução mais simples.
A Sra. Higgler olhou para ele. Atrás dos óculos grossos, seus olhos começaram a brilhar.
— Eu sei disso. Foi durante a sua música. Na frente da platéia. — Ela sacudiu a cabeça do jeito como os velhos gostam de fazer quando estão pensando na tolice dos jovens. Abriu sua bolsa preta, tirou um envelope e deu a Fat Charlie. — Eu prometi pra Louella que ia guardar bem.
Fat Charlie tirou a pena semi-esmagada do envelope, a mesma que segurara forte na noite da sessão mediúnica.
— Ok. A pena. Ótimo. Agora — dirigiu-se à Sra. Higgler—, o que exatamente eu faço com ela?
— Você não sabe?
A mãe de Fat Charlie dissera a ele, quando era pequeno, para contar até dez antes de perder o controle. Ele contou, em silêncio e sem pressa, até dez, e então perdeu o controle.
— É claro que eu não sei o que fazer com isso, sua velha idiota! Nessas duas últimas semanas fui preso, perdi a minha noiva e o meu emprego, vi o meu irmão semi-imaginário ser comido por um muro de pássaros em Piccadilly Circus, voei pra lá e pra cá sobre o Atlântico, como se fosse uma bola de pingue-pongue transatlântica maluca, e hoje subi num palco na frente de uma platéia e eu, eu cantei porque o psicopata do meu ex-chefe tinha uma arma apontada para barriga da garota com que eu estava jantando. Tudo o que eu quero é entender a bagunça que a minha vida virou desde que você me deu a idéia de falar com o meu irmão. Então, não. Eu não sei o que fazer com essa bosta de pena. Queimar? Cortar em pedaços e comer? Fazer um ninho? Segurar ela bem firme e pular da janela?
A Sra. Higgler parecia séria.
— Você precisa perguntar a Louella Dunwiddy.
— Não sei nem se posso. Ela não parecia muito bem da última vez que a vi. E nós não temos muito tempo.
Daisy disse:
— Ótimo. Você já conseguiu a pena de volta. Agora, por favor, será que podemos falar sobre Grahame Coats?
— Não é só uma pena. E a pena que eu ganhei em troca do meu irmão.
— Então troca de volta e vamos em frente com as coisas. Temos que fazer alguma coisa.
— Não é tão simples assim — respondeu Fat Charlie. Depois ele parou e pensou no que ela dissera. Olhou para Daisy com admiração:
— Meu Deus, como você é esperta.
— Eu tento ser. Mas o que foi que eu disse?
Eles não tinham quatro velhinhas, mas tinham a Sra. Higgler, Benjamin e Daisy. O jantar estava quase no fim, então Clarissa, a gerente, pareceu ficar feliz em ir até lá e se juntar a eles. Não tinham punhados de terra de quatro cores diferentes, mas havia areia branca da praia atrás do hotel, terra preta dos vasos de flores na frente, lama vermelha do lado do hotel, areia multicolorida vendida em vidros na loja de suvenires. As velas que pediram emprestado no bar ao lado da piscina eram pequenas e brancas, não altas e pretas. A Sra. Higgler garantiu a eles que podia encontrar todas as ervas de que precisavam na ilha, mas Fat Charlie fez Clarissa pegar um saquinho de ervas mistas na cozinha.
— Acho que tudo é uma questão de autoconfiança — Fat Charlie explicou. — O mais importante não são os detalhes. É a atmosfera mágica.
No caso, a atmosfera mágica tinha dificuldade de acontecer por causa da tendência de Benjamin Higgler a olhar ao redor e explodir em gargalhadas histéricas, e também pelo fato de Daisy não parar de dizer que tudo aquilo era muito ridículo.
A Sra. Higgler derramou as ervas escolhidas numa taça de vinho branco que sobrara.
E então começou a fazer seu “hum-hum”. Levantou as mãos em sinal de encorajamento, e os outros começaram a cantarolar “hum-hum” com ela, como abelhas bêbadas. Fat Charlie ficou esperando que algo acontecesse.
Nada aconteceu.
— Fat Charlie — disse a Sra. Higgler. — Cante você também.
Fat Charlie engoliu em seco. “Não há motivo para ter medo”, disse a si mesmo. Cantara na frente de um monte de gente. Fizera uma proposta de casamento na frente de uma platéia para uma mulher que mal conhecia. Cantarolar fazendo “hum-hum” seria moleza.
Reconheceu a nota musical da Sra. Higgler e deixou-a vibrar em sua garganta.
Ele conteve o medo. E começou a cantarolar.
Benjamin parou de rir. Seus olhos se arregalaram. Havia uma expressão de espanto em seu rosto, e Fat Charlie ia parar de cantarolar para descobrir qual era o problema, mas a cantoria estava dentro dele agora, e as chamas das velas tremiam..
— Olhem pra ele! — Benjamin exclamou. — Ele está..
E Fat Charlie teria se perguntado o que exatamente ele estava, mas era tarde demais para isso.
A neblina se dissipou.
Fat Charlie andava sobre uma ponte, uma ponte longa e branca, por cima de uma água cinzenta. Um pouco à sua frente, no meio da ponte, um homem estava sentado numa cadeirinha de madeira. Estava pescando. Um chapéu panamá verde cobria os seus olhos. Parecia tirar um cochilo. Não se moveu quando Fat Charlie chegou perto.
Fat Charlie reconheceu o homem. Pousou a mão no ombro dele.
— Sabe, eu sabia que você estava fingindo. Não achei que estivesse realmente morto.
O homem na cadeira não se moveu, mas sorriu.
— Isso mostra que você sabe muito pouco — disse Anansi. — Estou mortinho da silva. — Se espreguiçou extravagantemente, tirou um charuto pequeno e preto detrás da orelha e o acendeu com um fósforo. — E, estou morto. Acho que vou continuar morto por um tempinho. Se você não morre de vez em quando, aspessoas não te valorizam.
— Mas..
Anansi tocou os próprios lábios com um dedo para pedir silêncio. Pegou a vara de pescar e começou a recolher a linha. Apontou para uma rede pequena. Fat Charlie pegou a rede e a manteve parada enquanto seu pai baixava um peixe prateado, comprido e sacolejante que estava dentro dela. Anansi tirou o anzol da boca do peixe e depois o deixou cair num balde branco.
— Pronto. O jantar de hoje já está arranjado.
Pela primeira vez, Fat Charlie deu-se conta de que já era noite quando se sentara com Daisy e os Higglers mas, onde quer que estivesse agora, o sol ainda não tinha se posto, apesar de estar baixo.
Seu pai dobrou a cadeira e a deu para Fat Charlie carregar junto com o balde. Começaram a andar pela ponte.
— Sabe... Sempre pensei que, se você viesse um dia falar comigo, eu diria um monte de coisas pra você. Mas parece que está se saindo bem sem ajuda. Então por que é que você veio aqui? — perguntou o sr. Nancy.
— Não tenho certeza. Estava tentando encontrar a Mulher Pássaro. Quero devolver a pena pra ela.
— Você não devia ter se metido com gente desse tipo — aconselhou seu pai num tom alegre. — Não sai nada de bom daí. É toda cheia de ressentimento, aquela mulher. Mas ela é covarde.
— Foi o Spider — acusou Fat Charlie.
— Culpa sua. Deixar aquela velha intrometida mandar metade de você embora.
— Eu era uma criança. Por que você não fez nada?
Anansi empurrou o chapéu para trás na cabeça.
— A velha Dunwiddy não poderia fazer nada que você não permitisse. Você é o meu filho, afinal de contas.
Fat Charlie pensou nisso. Depois disse:
— Mas por que você não me contou?
— Você está se saindo bem. Está descobrindo tudo por si só. Você descobriu as músicas, não descobriu?
Fat Charlie se sentia mais desajeitado, mais gordo e uma fonte de desapontamento ainda maior para seu pai, mas não disse simplesmente “Não”. Em vez disso, perguntou:
— O que você acha?
— Eu acho que você está chegando lá. O negócio das músicas é que são exatamente como histórias. Não significam nada se não houver ninguém para ouvir.
Aproximavam-se do final da ponte. Fat Charlie sabia, sem que fosse preciso que alguém dissesse, que essa era a última chance que teriam para conversar. Havia tantas coisas que precisava descobrir, tantas coisas que queria saber. Resolveu falar.
— Pai... Quando eu era criança. Por que você me humilhava?
O velho franziu o rosto.
— Humilhava você? Eu te amava.
— Você me fez ir pra escola fantasiado de presidente Taft. Você acha que isso é amor?
Houve um som agudo saindo da garganta do velho que poderia ter sido uma risada. Depois ele chupou o charuto. A fumaça saía dos seus lábios como um balão de história em quadrinhos meio fantasmagórico.
— Sua mãe teve um dedo nisso. Não temos muito tempo. Você vai querer desperdiçar o tempo que temos para conversar brigando?
Charlie sacudiu a cabeça.
— Acho que não.
Tinham chegado ao final da ponte.
— Bom, quando você vir o seu irmão, quero que entregue uma coisa a ele.
— O quê?
Seu pai estendeu a mão e puxou a cabeça de Charlie para baixo. Depois o beijou suavemente na testa.
— Isso.
Fat Charlie ficou ereto. Seu pai o olhava com uma expressão que, se Charlie a tivesse visto em qualquer outra pessoa, teria achado que era orgulho.
— Me deixa ver a pena.
Fat Charlie meteu a mão no bolso. A pena estava lá, parecendo ainda mais amassada e destruída que antes.
Seu pai fez um som de “tchh” com a boca e ergueu a pena contra a luz.
— E uma bela pena. Não é bom que fique toda amassada. Ela não vai querer de volta se estiver toda estragada.
O sr. Nancy passou a mão na pena, e então ela ficou perfeita. Fez uma cara séria para a pena.
— Você vai amassar tudo de novo.
Assoprou as unhas e as esfregou no paletó. Então pareceu tomar uma decisão. Tirou o chapéu e colocou a pena na faixa do chapéu.
— Toma, você precisa mesmo de um chapéu bacana. — Pôs o chapéu na cabeça de Fat Charlie. — Fica bem em você.
Fat Charlie suspirou.
— Pai Eu não uso chapéu. Fica ridículo. Vou ficar parecendo um perfeito idiota. Por que você sempre tenta me fazer passar vergonha?
Na luz que diminuía, o velho olhou para o filho.
— Você acha que eu mentiria pra você? Filho, tudo o que você precisa para usar um chapéu é atitude. E você tem isso. Acha que eu diria que você está bem se não estivesse? Você está elegante de verdade. Não acredita em mim?
Fat Charlie disse:
— Não muito.
— Então veja — disse o pai. Apontou por sobre a murada da ponte. A água embaixo deles estava parada e tranqüila como um espelho, e o homem olhando lá de baixo parecia realmente elegante com seu novo chapéu verde.
Fat Charlie ergueu os olhos para dizer ao seu pai que talvez ele, Fat Charlie, estivesse errado, mas o velho sumira.
Fat Charlie saiu da ponte e caminhou rumo ao crepúsculo.
— Muito bem... eu quero saber exatamente onde ele está. Para onde ele foi? O que a senhora fez com ele?
— Eu não fiz nada. Deus do céu, minha filha, isso não aconteceu da última vez — respondeu a Sra. Higgler.
— Foi como se ele tivesse sido teleportado pela nave-mãe — observou Benjamin. — Que máximo! Efeitos especiais na vida real.
— Eu quero que a senhora o traga de volta — exigiu Daisy, nervosa. — Quero ele aqui agora.
— Eu nem sei onde ele está! E não mandei ele pra lá. Ele mesmo fez isso — respondeu a Sra. Higgler.
— De qualquer modo... E se ele estiver lá, fazendo o que tem que fazer, e nós o chamarmos de volta? Pode ser que estrague tudo — sugeriu Clarissa.
— Exatamente — concordou Benjamin. — Como teleportar de volta o grupo de aterrissagem bem no meio da missão.
Daisy pensou a respeito e ficou irritada ao perceber que isso fazia sentido. Pelo menos tanto sentido quanto as coisas que aconteciam nos últimos dias.
— Se nada mais vai acontecer, preciso voltar pro restaurante. Pra ver se está tudo bem — disse Clarissa.
A Sra. Higgler tomou um gole de seu café.
— Nada vai acontecer por aqui — comentou.
Daisy bateu a mão na mesa.
— Olha, com licença. Mas tem um assassino à solta. Agora o Fat Charlie foi chamado para a nave-mestra.
— Nave-mãe — corrigiu Benjamin.
A Sra. Higgler piscou.
— Tá. A gente tem que fazer alguma coisa. O que você sugere?
— Eu não sei — admitiu Daisy, e se odiou por dizer isso. — Sei lá. Passar o tempo.
Pegou uma edição do Williamstown Courier que a Sra. Higgler estava lendo e começou a folhear.
A história sobre as turistas desaparecidas, as mulheres que não voltaram para o navio onde faziam um cruzeiro, aparecia numa coluna da página 3. “As duas que estão lá em casa”, disse Grahame Coats, em sua cabeça. “Você acha que eu ia acreditar que elas estavam no navio?”
Finalmente Daisy transformou-se na policial que era.
— Preciso de um telefone.
— Vai ligar pra quem?
— Acho que podemos começar com o ministro do turismo e o chefe de polícia. E daí em diante.
O sol, vermelho diminuía no horizonte. Spider, se não fosse Spider, teria ficado desesperado. Na ilha, naquele lugar, havia uma linha distinta entre o dia e a noite, e Spider observou enquanto o último vestígio do sol era devorado pelo mar. Tinha suas pedras e duas estacas.
Desejou ter uma fogueira.
Imaginou quando a lua se ergueria. Quando a lua surgisse, talvez tivesse alguma chance.
O sol se pôs. Um último borrão vermelho submergiu no mar escuro, e finalmente era noite.
— Filho de Anansi — disse uma voz na escuridão. — Logo eu poderei me alimentar. Você não saberá que estou aí até sentir minha respiração na sua nuca. Eu estava sobre você enquanto esteve preso em estacas, e poderia ter esmagado seu pescoço ali mesmo, mas pensei melhor. Matá-lo enquanto dorme não me traria nenhum prazer. Quero senti-lo morrer. Quero que saiba que tirei sua vida.
Spider jogou uma pedra na direção de onde achava que vinha a voz e ouviu a pedra bater na grama sem ferir ninguém.
— Você tem dedos — continuava a voz —, mas eu tenho garras que são mais afiadas que facas. Você tem duas pernas, mas eu tenho quatro que nunca se cansam, que correm dez vezes mais rápido do que jamais correrá. Seus dentes podem mastigar carne se ela ficar macia e insípida pela ação do fogo, porque você tem dentinhos de macaco, bons para mastigar frutas macias e insetos que rastejam. Mas eu tenho dentes que arrancam e rasgam a carne viva dos seus ossos, e posso engolir enquanto o sangue vital ainda está jorrando.
Então Spider fez um barulho. Era um som que podia ser feito sem língua, sem nem mesmo abrir os lábios. Era um som de “pfff” de desdém, de chacota. E parecia dizer o seguinte: “Você pode ser todas essas coisas, Tigre, e daí? Todas as histórias que existem são de Anansi. Ninguém conta histórias do Tigre”.
Ouviu-se um rugido na escuridão, um rugido cheio de fúria e frustração.
Spider começou a fazer “hum-hum” com a melodia de “Tiger Rag”. E uma velha canção, ótima para atazanar tigres: “Pega aquele tigrinho, cadê o tigrinho?”, diz a letra.
Quando a voz ressoou na escuridão, estava mais próxima.
— Estou com a sua mulher, filho de Anansi. Quando acabar com você, rasgarei a carne dela. A carne dela sem dúvida terá um gosto mais doce que a sua. — Spider fez “humpf”, o som que as pessoas fazem quando sabem que ouvem uma mentira.
— O nome dela é Rosie.
Spider então soltou um som involuntário. Na escuridão, ouviu-se uma gargalhada.
— E quanto aos olhos... Você tem olhos que vêem o óbvio, à luz do dia, com sorte, enquanto os meus podem ver os pelinhos se arrepiarem no seu braço enquanto falo com você, ver o terror em seu rosto. E consigo ver tudo isso à noite. Tenha medo, filho de Anansi. Se tem alguma prece a fazer, faça agora.
Spider não tinha nenhuma prece, mas tinha pedras, e podia jogá-las. Talvez desse sorte e conseguisse acertar uma pedra no escuro. Spider sabia que seria um milagre se conseguisse, mas passara a vida inteira se valendo de milagres.
Pegou outra pedra.
Sentiu alguma coisa sobre sua mão.
“Oi”, disse a pequena aranha de argila, em sua mente.
“Oi”, pensou Spider. “Olha, eu estou meio ocupado aqui, tentando não ser devorado, então, se você puder ficar um pouquinho quieta.-”
“Mas eu as trouxe”, pensou a aranha. “Como você me pediu.”
“Como eu pedi?”
“Você me disse para buscar ajuda. Eu as trouxe comigo. Seguiram o meu fio de teia. Não há aranhas aqui, nesta criação, então eu saí e fiz teias daqui até lá. Depois voltei, com teias de novo, de lá para cá. Trouxe as guerreiras. Trouxe as mais valentes.”
— O que será que você está pensando agora? — perguntou a voz do grande felino, na escuridão. E completou, com certo refinamento no humor: — Qual o problema? O gato comeu sua língua?
Uma única aranha fica em silêncio. Aranhas cultivam o silêncio. Mesmo aquelas que fazem barulho normalmente permanecem o mais quietas que puderem, esperando. Esperar é basicamente o que as aranhas fazem.
A noite enchia-se lentamente de ruídos suaves sobre a relva.
Spider transmitiu mentalmente sua gratidão e orgulho à pequena aranha de sete patas que fizera com seu sangue, sua saliva e com a terra. A aranha saiu da sua mão com passinhos rápidos e foi até seu ombro.
Spider não podia vê-las, mas sabia que estavam todas ali: as grandes e pequenas aranhas, aranhas venenosas e aranhas que apenas picavam, aranhas grandes, peludas, e aranhas elegantes, quitinosas. Seus olhos absorviam o mínimo de luz que conseguiam encontrar, mas viam por meio de suas pernas, de suas patas, pegando as vibrações e juntando-as para formar uma imagem virtual do mundo ao redor.
Eram um exército.
O Tigre falou mais uma vez, na escuridão.
— Quando você estiver morto, filho de Anansi, quando a sua linhagem não existir mais, as histórias serão minhas. As pessoas ouvirão histórias do Tigre mais uma vez. Ficarão unidas e louvarão minha astúcia, minha força, minha crueldade, minha alegria. Todas as histórias serão minhas. Todas as canções. O mundo será como foi uma vez: um lugar difícil, um lugar obscuro.
Spider ouviu o rastejar de seu exército.
Havia um motivo para estar sentado perto do penhasco. Embora fosse um lugar que não lhe permitia uma saída, também significava que o Tigre não podia pular sobre ele, apenas chegar perto pelo chão.
Spider começou a rir.
— Do que está rindo, filho de Anansi? Ficou louco?
Com isso, Spider riu mais e mais alto.
Uma espécie de uivo soou na escuridão. O Tigre finalmente se deparara com o exército de Spider.
Há diferentes venenos de aranha. Muitas vezes, pode levar muito tempo até se descobrir os efeitos de uma picada. Os biólogos há anos pensam nisso. Há aranhas cuja picada pode fazer o lugar infectado apodrecer e morrer, muitas vezes, mais de um ano depois da picada. E por que as aranhas fazem isso? A resposta é simples. Acham isso divertido e não querem que você as esqueça jamais.
Picadas de viúvas-negras sobre o nariz ferido do Tigre, picadas de tarântulas em suas orelhas. Em poucos segundos, todos os locais sensíveis queimavam e pulsavam, inchados, coçando. O Tigre não sabia o que estava acontecendo: tudo o que ele percebia eram a queimação, a dor, o medo repentino.
Spider riu, mais e mais alto. Prestava atenção no som de uma grande fera caindo na relva, rugindo de agonia e pavor.
Então se sentou e esperou. O Tigre voltaria, sem dúvida. Ainda não tinha acabado.
Spider pegou a aranha de sete pernas em seu ombro e a acariciou, percorrendo com os dedos seu corpo largo.
Pouco abaixo do declive, algo brilhava com uma luminosidade verde e fria, e piscava como se fossem luzes de uma pequena cidade à noite. A coisa se aproximava.
O tremular da luz tomou a forma de milhares de vaga-lumes. Uma silhueta iluminada estava no centro daquela luz, no formato de um homem. Caminhava firmemente morro acima.
Spider pegou uma pedra e mentalmente deu a entender a seu exército que devia se preparar. Então ele parou. Havia algo familiar naquela silhueta à luz dos vaga-lumes. Era alguém com um chapéu panamá verde.
Grahame Coats tinha tomado metade de uma garrafa de rum que encontrara na cozinha. Abrira a garrafa porque não queria descer até a adega e também porque imaginava que aquilo lhe deixaria bêbado mais rápido que o vinho. Infelizmente não foi o caso. A bebida não parecia fazer efeito, e muito menos o desligava emocionalmente dos fatos, o que ele precisava. Caminhou pela casa com a garrafa numa mão e um copo meio cheio na outra. Às vezes tomava um gole da garrafa, outras, do copo. Viu seu reflexo num espelho, intimidado, suado.
— Ânimo! — disse em voz alta. — Talvez nunca aconteça. Nunca perder a ishperança. Panela em que muitos mexem shai insossa. Vida é doce maish né mole não.
O rum chegava ao fim.
Voltou para a cozinha. Abriu vários armários até notar que havia uma garrafa de xerez no fundo. Grahame pegou a garrafa e a abraçou com carinho, como se fosse uma pequena velha amiga que ficara anos no mar.
Destampou a garrafa. Era um xerez doce, usado para culinária, mas ele entornou a bebida como se fosse limonada.
Grahame Coats percebera outras coisas enquanto procurava bebidas na cozinha. Havia, por exemplo, facas. Algumas bem afiadas. Numa gaveta, havia um pequeno serrote de aço inoxidável. Grahame Coats aprovou: seria uma solução simples para o problema que se encontrava no porão.
— Hábeas corpus. Ou hábeas delicti. Um desses dois. Se não há corpo, não há crime. Ergo. Quod erat demonstrandum.
Pegou a arma do bolso do paletó e colocou-a sobre a mesa da cozinha. Dispôs as facas num padrão, como se fossem os raios de uma roda. E então disse, no mesmo tom que usou certa vez para persuadir as inocentes boy bands que era hora de assinar um contrato com ele e abrir as portas para a fama, e talvez para a fortuna:
— Bom... o presente é o aqui. É o agora.
Colocou três facas de cozinha no cinto, pôs o serrotinho no bolso e, com a arma na mão, desceu as escadas para o porão. Acendeu as luzes e ficou piscando, olhando para as garrafas de vinho, deitadas, cada uma em seu suporte, cada uma coberta com uma fina camada de poeira. Chegou perto da porta de metal do depósito de carnes.
— Muito bem — gritou. — Vocês ficarão felizes em saber que não vou machucá-las. Vou deixar as duas irem embora. Foi tudo um erro. Mesmo assim, nada de guardar ressentimentos. Sem chorar sobre o leite derramado. Fiquem de pé perto da parededos fundos. Fiquem em posição. Nada de gracinha.
“É reconfortante”, pensou enquanto puxava os ferrolhos da porta, “a quantidade de clichês já existentes para pessoas armadas.” Grahame Coats sentiu-se como um membro de uma irmandade: ao seu lado Bogart, Cagney e todas as pessoas que gritavam umas com as outras em COPS[3].
Acendeu a luz e empurrou a porta. A mãe de Rosie permanecia de pé, perto da parede dos fundos, de costas para ele. Quando ele entrou, subiu a saia e rebolou para ele uma bunda marrom, absurdamente ossuda.
Ele ficou boquiaberto. Foi aí que Rosie bateu uma corrente enferrujada contra o punho de Grahame Coats, o que fez a arma voar pelos ares.
Com o entusiasmo e a destreza de uma mulher muito mais jovem, a mãe de Rosie chutou Grahame Coats no saco e, enquanto ele punha as mãos lá e se dobrava de dor, emitindo sons numa freqüência que apenas cães e morcegos são capazes de ouvir, Rosie e a mãe saíram atabalhoadamente.
Empurraram a porta, fecharam-na, e Rosie empurrou um dos ferrolhos. As duas se abraçaram.
Ainda estavam ali, na adega, quando todas as luzes se apagaram.
— Deve ser algum fusível — disse Rosie, para tranqüilizar a mãe. Mas não tinha certeza de que acreditava no que dizia, embora não houvesse outra explicação.
— Você devia ter trancado a porta com os dois ferrolhos — observou a mãe. Depois fez “ai!” ao bater com o dedão do pé em alguma coisa, e disse um palavrão.
— Se pensarmos pelo lado positivo, ele também não consegue enxergar no escuro. Segura a minha mão. Acho que as escadas ficam para cá.
Grahame Coats estava de quatro sobre o chão de concreto do depósito de carnes, na escuridão, quando as luzes se apagaram. Algo quente escorria por sua perna. Pensou por um desagradável momento que tinha urinado nas calças, mas aí entendeu que a lâmina de uma das facas que colocara no cinto fizera um corte profundo na parte superior de sua perna.
Parou de se mover e deitou-se no chão. Decidiu que beber tanto foi a coisa certa a fazer: era praticamente uma anestesia. Decidiu dormir.
Não estava sozinho no depósito de carnes. Havia alguém com ele. Alguém que caminhava com quatro patas.
Então ouviu um grunhido:
— Levante-se.
— Não consigo. Estou ferido. Quero dormir.
— Você é uma criatura patética, que destrói tudo o que toca. Agora levante-se.
— Bem que eu queria — respondeu Grahame Coats, na melhor voz que conseguia fazer bêbado. — Não dá. Vou ficar deitado aqui um pouco. De qualquer forma, ela trancou a porta. Eu ouvi.
Ele ouviu um som metálico do outro lado da porta, como se o ferrolho fosse retirado lentamente.
— A porta está aberta. Agora me ouça. Se ficar aqui, você vai morrer.
Ouvia-se um barulho suave e impaciente. Uma cauda a mover-se. Um rugido meio abafado no fundo da garganta.
— Me dê a sua mão. Quero a sua lealdade. Convide-me para entrar em você — disse a voz.
— Eu não enten...
— Me dê a sua mão ou vai sangrar até morrer.
Ali, na escuridão do depósito de carne, Grahame Coats ergueu a mão. Alguém, ou alguma coisa, a pegou e ficou segurando, transmitindo confiança.
— E então? Quer me convidar para entrar em você?
Então um momento de fria sobriedade tomou Grahame Coats. Ele já havia ido muito longe. Nada que fizesse poderia piorar as coisas.
— Absolutotalmente — sussurrou Grahame Coats e, assim que disse isso, começou a mudar. Conseguia enxergar na escuridão como se fosse dia. Pensou, mas só por alguns segundos, ver algo ao seu lado, maior que um homem, com dentes muito afiados. Então a coisa sumiu, e Grahame Coats sentia-se ótimo. O sangue não saía mais de sua perna.
Conseguia enxergar perfeitamente na escuridão. Puxou as facas presas em seu cinto e as deixou cair no chão. Tirou os sapatos. Havia uma arma no chão, mas a deixou lá mesmo. Armas eram para os símios, as aves de rapina, os fracos. Ele não era nenhum símio.
Era um caçador.
Colocou-se de quatro e saiu, com quatro patas, para a adega.
Podia ver as mulheres. Elas haviam encontrado a escada que dava para a casa e se aproximavam dela cegamente, de mãos dadas, na escuridão.
Uma era velha, tinha carne dura. A outra era jovem, com carne macia. Sua boca salivou, a boca de alguém que só em parte era Grahame Coats.
Fat Charlie saiu da ponte, com o chapéu panama do pai enfiado na cabeça, e entrou na luz poente. Caminhou pela praia cheia de pedras, escorregando nelas, caindo em piscinas de água naturais. Então pisou em algo que se mexeu. Tropeçou e saiu de cima.
A coisa ergueu-se no ar, cada vez mais. O que quer que fosse, era enorme. À primeira vista, Fat Charlie pensou que tivesse o tamanho de um elefante, mas era ainda maior.
“Luz”, pensou Fat Charlie. Cantou alto, e todos os vaga-lumes daquele lugar ficaram à sua volta, acendendo-se e apagando-se com uma luz verde e fria. Com aquela luz, conseguia enxergar dois olhos maiores que pratos, que olhavam para ele de um rosto arrogante de réptil.
Ficou olhando para o ser.
— Boa noite — cumprimentou Fat Charlie com uma voz alegre.
— Olá. Ora, ora. Você tem cara de quem vai ser o meu jantar — disse a criatura com sua voz macia como seda.
— Meu nome é Charlie Nancy. Quem é você?
— Eu sou o Dragão. E vou te devorar numa abocanhada só, lentamente, ó homenzinho-de-chapéu.
Charlie piscou.
“O que o meu pai faria?”, pensou. “O que Spider faria?” Não tinha a menor idéia. “Ora, vamos. Afinal de contas, Spider meio que faz parte de mim. Posso fazer tudo o que ele pode.”
— Ahm... Você já está cansado de falar comigo. E vai me deixar seguir em frente, sem nenhum dano à minha pessoa — disse ao dragão do jeito mais convincente que conseguia.
— Uau. Bela tentativa. Mas acho que não vou, não — respondeu o dragão, com entusiasmo. — Na verdade, vou devorar você.
-Você não tem medo de limões, tem? — perguntou Fat Charlie, antes de lembrar que dera seu limão para Daisy. A criatura riu com desdém.
— Nada me dá medo.
— Nada?
— Nada.
— Nada te mata às, medo?
— É. Nada me mata de medo — admitiu o Dragão.
— Sabe, eu nada tenho aqui nos meus bolsos. Quer ver?
— Não — respondeu o Dragão, incomodado. — Não quero ver de jeito nenhum.
As asas bateram, fazendo um barulho semelhante ao de velas de um barco ao vento, e Charlie ficou sozinho na praia.
— Essa foi bem fácil.
Continuou a andar. Criou uma música para sua caminhada. Charlie sempre quisera criar músicas, mas nunca o fizera, em parte porque tinha certeza de que, se escrevesse uma música, alguém pediria a ele para cantá-la, e isso seria tão bom quanto morrer enforcado. Agora ligava cada vez menos para isso, e cantou sua música para os vagalumes, que o seguiam em sua caminhada. A canção falava sobre a Mulher Pássaro, sobre encontrar o seu irmão. Esperava que os vagalumes gostassem. A luz deles parecia pulsar e brilhar no ritmo da música.
A Mulher Pássaro esperava por ele no topo do morro.
Charlie tirou o chapéu. Puxou a pena presa à faixa.
— Toma. Acho que isso é seu. — Ela não fez nenhum movimento para pegar a pena. — Nosso trato acabou. Trouxe a sua pena. Eu quero o meu irmão. Você o levou. Quero ele de volta. Não tenho permissão para dar a outra pessoa a linhagem de Anansi.
— E se o seu irmão não estiver mais comigo?
Era difícil discernir, naquela luz dos vagalumes, mas Charlie achou que os lábios dela não tinham se movido. As palavras o cercaram por meio dos gritos dos noitibós, nos “u-úúú” das corujas.
— Quero o meu irmão de volta. E inteirinho, são e salvo. E quero que me traga ele agora. Senão tudo o que aconteceu entre você e o meu pai durante todos aqueles anos será apenas o prelúdio. Você sabe. Só o começo.
Charlie nunca ameaçara ninguém antes. Não tinha a mínima idéia de como levaria a cabo suas ameaças, mas não tinha nenhuma dúvida de que o faria.
— Eu estava com ele — respondeu ela, com o som distante de uma garça. — Mas o deixei, sem a língua, no mundo do Tigre. Eu não poderia causar dano à linhagem de seu pai. O Tigre, sim, assim que tivesse coragem.
Ela fez “shhhhh”. As rãs e os pássaros noturnos ficaram totalmente em silêncio. Olhou para ele, impassiva, o rosto quase como se fizesse parte das sombras. Pôs a mão no bolso do casaco.
— Dê-me a pena.
Charlie colocou a pena em sua mão.
Ele se sentiu mais leve, como se ela tivesse tirado dele mais do que uma simples pena.
Então ela colocou algo em sua mão. Algo frio, úmido. Parecia um pedaço de carne. Charlie teve que reprimir a vontade de fazer um movimento com a mão para jogar aquilo fora.
— Dê isso a ele — disse ela com a voz da noite. — Agora estamos quites.
— Como eu chego ao mundo do Tigre?
— Como você chegou até aqui? — perguntou ela num tom de quem parecia achar graça. A escuridão da noite agora era completa, e Charlie estava sozinho sobre o morro.
Abriu a mão e olhou para o pedaço de carne, mole e estriado. Parecia uma língua, e ele sabia de quem deveria ser.
Colocou o chapéu de volta na cabeça e pensou: “Pondo o meu capacete de raciocínio”. Enquanto pensava, não pareceu tão engraçado. O panamá verde não era um capacete que ajudava a pensar. Era o tipo de chapéu que deveria ser usado por alguém que não apenas pensava, mas também chegava a conclusões importantes e vitais.
Imaginou os mundos como se fossem uma teia. Ela brilhava em sua mente, conectando-o a todas as pessoas que conhecia. O fio que o conectava a Spider era forte e brilhante, e emitia uma luz fria, como se fosse um vagalume ou uma estrela.
Spider já fizera parte dele. Concentrou-se nesse pensamento e deixou que a teia preenchesse sua mente. Sobre sua mão estava a língua do irmão. Aquilo fizera parte de Spider até pouco tempo antes e desejava intensamente voltar a ser parte dele. Coisas vivas têm memória.
A luz insana da teia brilhava ao seu redor. Tudo o que Charlie precisava fazer era segui-la.
Ele a seguiu, e os vagalumes ficavam juntinhos ao seu redor, viajando com ele.
— Ei, sou eu — disse Charlie.
Spider emitiu um som pequeno, horrível.
Sob a luz dos vagalumes, Spider tinha uma péssima aparência. A aparência de alguém que fora caçado, que estava ferido. Havia sangue coagulado em seu rosto e em seu peito.
— Acho que isto aqui talvez seja seu.
Spider pegou a língua com um gesto exagerado de gratidão, colocou-a na boca, empurrou-a e segurou firme. Charlie observava, esperando. Logo Spider parecia satisfeito. Experimentou mexer a boca, empurrando a língua de um lado para o outro, como se estivesse se preparando para raspar o bigode, abrindo bem a boca e movimentando a língua. Fechou a boca e se levantou. Finalmente, numa voz ainda meio mole, disse:
— Bonito chapéu.
Rosie alcançou primeiro o topo da escada e empurrou a porta da adega. Saiu tropeçando para dentro da casa. Esperou pela mãe, bateu e fechou os ferrolhos da porta da adega. As luzes não funcionavam, mas a lua estava alta, quase cheia. Depois de toda aquela escuridão, a luz pálida da lua que atravessava as janelas da cozinha era praticamente uma inundação de luz.
“Meninos e meninas, venham brincar a noite está clara com a luz do luar..” Rosie lembrou-se de uma rima de sua infância.
— Liga pra polícia — sugeriu sua mãe.
— Onde fica o telefone?
— Como é que eu vou saber onde fica o telefone? Ele ainda está lá embaixo.
-Tá bem — disse Rosie, pensando se deveria achar um telefone para ligar para a polícia ou simplesmente sair da casa. Antes que chegasse a uma decisão, era tarde demais.
Ouviu-se um barulho tão alto que fazia doer os ouvidos. Então a porta que dava para o porão foi arrombada.
Uma sombra saiu de lá.
Era real. Ela sabia que era real. Podia vê-lo. Mas parecia impossível: era a sombra de um felino selvagem, peludo, enorme. Estranhamente, quando a luz da lua a tocava, a sombra parecia mais escura. Rosie não conseguia ver os olhos, mas sabia que aquilo estava olhando para ela. E que estava com fome.
O felino iria matá-la. Tudo acabaria.
A mãe disse:
— Ele quer você, Rosie.
— Eu sei.
Rosie apanhou o objeto grande mais próximo, um bloco de madeira, um suporte para facas agora vazio. Jogou na direção da sombra com o máximo de força que podia. Sem esperar para ver se atingira o animal, ela saiu o mais rápido que podia da cozinha, em direção ao corredor. Sabia onde ficava a porta da frente...
Algo sombrio, algo de quatro patas, movia-se mais rápido: pulou por sobre sua cabeça e aterrissou quase silenciosamente à sua frente.
Rosie encostou na parede, com a boca seca.
A fera encontrava-se entre ela e a porta da casa. Caminhava lenta e suavemente na direção de Rosie, como se tivesse todo o tempo do mundo.
A mãe saiu correndo da cozinha, passou por Rosie e foi pelo corredor até aquela sombra enorme, com os braços agitando-se no ar. Com seus punhos magros, deu um soco nas costelas do animal. Houve uma pausa, como se o mundo segurasse a respiração, e a fera virou-se para ela. Viu-se um vulto, um movimento rápido, e a mãe de Rosie agora estava no chão enquanto a sombra a sacudia, como se ela fosse uma boneca de pano na boca de um cachorro.
E então a campainha tocou.
Rosie quis gritar por socorro, mas em vez disso apenas gritava alto, sem parar. Quando se deparou com uma inesperada aranha numa banheira, ela fora capaz de gritar como uma atriz de filme B ao encontrar na banheira um homem com roupa de mergulho. Agora estava numa casa escura, com um tigre feito de sombra e um potencial assassino em série, e um deles, talvez os dois juntos, acabara de atacar a sua mãe. Pensou em duas possíveis saídas {o revólver: estava lá embaixo, no porão, tinha que descer e pegar a arma; ou a porta; podia tentar passar pela mãe e pela sombra e destrancar a porta da frente), mas seus pulmões e sua boca apenas gritavam.
Alguém bateu bem forte na porta da frente. “Estão tentando arrombar a porta”, pensou Rosie. “Mas não vão conseguir. É muito grossa.”
Sua mãe estava deitada no chão, sob a luz do luar, e a sombra permanecia sobre ela. O tigre jogou a cabeça para trás e rugiu, um rugido profundo, áspero, um misto de medo, desafio, sensação de posse.
“Estou ficando louca”, pensou Rosie, com uma certeza alucinada. “Fiquei trancada num porão por dois dias e estou tendo alucinações. Não há tigre nenhum.”
Da mesma forma, ela tinha certeza de que não havia uma mulher branca à luz da lua, embora pudesse vê-la caminhando pelo corredor. Uma mulher com cabelos loiros, pernas muito compridas e os quadris estreitos de dançarina. A mulher parou perto da sombra do tigre. E disse:
— Olá, Grahame. — A sombra-fera ergueu sua enorme cabeça e grunhiu. — Não vá pensando que pode se esconder de mim nessa fantasia idiota de tigre — continuou a mulher. Ela não parecia muito satisfeita.
Rosie percebeu que podia ver a janela através da parte superior do corpo da mulher e, assustada, caminhou para trás até ficar completamente colada à parede.
A fera grunhiu novamente, mas menos segura de si.
A mulher prosseguiu:
— Eu não acredito em fantasmas, Grahame. Passei a vida toda não acreditando em fantasmas. Aí eu conheci você. Você deixou a carreira do Morris ir ralo abaixo. Roubou da gente. Você me assassinou. Finalmente, como se já não bastasse tudo isso, me obrigou a acreditar em fantasmas.
Agora a grande sombra do felino dava ganidos baixinhos, andando de costas para a parede.
— Não pense que pode me evitar desse jeito, seu vermezinho inútil. Você pode fingir ser um tigre o quanto quiser. Mas não é um tigre. É um rato. Aliás, isso é um insulto a uma nobre e numerosa espécie de roedores. É pior que um rato. É um gerbilzinho. Uma... uma doninha.
Rosie correu pelo corredor. Passou pela fera, pela sua mãe caída. Atravessou a mulher branca, e a sensação era a de atravessar uma névoa. Chegou até a porta da frente e começou a mexer nos ferrolhos.
Em sua mente, ou talvez no mundo real, Rosie conseguia ouvir pessoas discutindo. Alguém dizia:
“Não preste atenção nela, seu idiota. Ela não pode tocá-lo. Ela é só uma duppy. Não é nem real. Pegue a moça! Vá atrás dela!”
E outra pessoa respondia:
“Sem dúvida, o seu argumento tem certo fundamento. Mas não estou convencido de que você levou em conta todos os fatores em relação a... bom discrição, custo-benefício etc... Entende?”
“Eu mando em você. Você é que tem que entender o que eu digo.”
“Mas...”
— O que eu quero saber mesmo é se você, no momento, está pouco ou muito fantasmagórico. Eu não consigo tocar as pessoas. Nem mesmo consigo tocar as coisas. Mas consigo tocar fantasmas.
A mulher branca ensaiou um chute poderoso no focinho da fera. O felino feito de sombras sibilou, como fazem os gatos, e deu um passo para trás. O pé da mulher não acertou o focinho por questão de alguns centímetros.
Conseguiu acertar o chute seguinte, e a fera deu um rugido de dor. Outro chute, bem forte, contra o lugar que seria o focinho do tigre, e o animal fez o som que faz um gato ao tomar banho: um único “nhááu” de medo, vergonha e derrota.
O corredor encheu-se da gargalhada de uma mulher morta, uma gargalhada de quem se sentia feliz, exultante.
— Doninha! Grahame Doninha! — gritava a mulher.
Um vento frio soprou dentro da casa.
Rosie puxou o último ferrolho e destrancou a porta. A porta escancarou-se. Lá fora, luzes de lanterna tão fortes que cegavam. Gente. Carros. Uma voz feminina disse:
— É uma das turistas desaparecidas! Meu Deus..
Rosie virou-se.
Com a luz da lanterna, conseguia enxergar a mãe encolhida no chão de cerâmica e, ao lado dela, sem sapatos, inconsciente e sem nenhuma dúvida humano, e não felino, estava Grahame Coats. Um líquido vermelho os circundava, como tinta, e Rosie, por um brevíssimo instante, não conseguia discernir o que era aquilo.
Uma mulher falava com ela. Dizia:
— Você é Rosie Noah. O meu nome é Daisy. Vou achar um lugar para você se sentar um pouco. Não quer se sentar?
Alguém deve ter encontrado a caixa de luz, porque naquele momento todas as luzes da casa se acenderam.
Um homem grande, com uniforme de policial, estava agachado perto dos corpos. Ele olhou para cima e disse:
— E mesmo o sr. Finnegan. E não está respirando.
Rosie respondeu:
— Sim, por favor. Quero me sentar, sim.
Charlie sentou-se na beirada do penhasco, sob a luz da lua, com as pernas penduradas. Então falou:
— Sabe... Você era parte de mim. Quando éramos crianças.
Spider inclinou a cabeça para um lado.
— Ah, é?
— Acho que sim.
— Bom, isso explica algumas coisas.
Spider estendeu a mão. Uma aranha de argila, com sete patas, ficou parada sobre seus dedos, como se farejasse o ar.
— E agora? Você vai me tomar de volta ou coisa do tipo?
Charlie franziu a testa.
— Acho que você teve um destino melhor do que se ainda fosse parte de mim. E se divertiu muito mais.
— Rosie... O Tigre sabe tudo sobre a Rosie. A gente precisa fazer alguma coisa.
— Claro que sim — concordou Charlie.
Era como contabilidade, pensou: você coloca um valor numa coluna, deduz de outra coluna e, se fizer tudo direitinho, sai perfeito ao pé da página. Pegou na mão do irmão.
Ficaram de pé e deram um passo para a frente, para o abismo... ... e tudo ficou claro...
Um vento frio soprava entre os dois mundos.
Charlie disse:
— Você não é a parte mágica de mim, sabia?
— Não?
Spider deu mais um passo à frente. Estrelas caíam do céu, dezenas delas, fazendo riscos pelo céu escuro. Ouvia-se alguém, em algum lugar, tocando uma música alta e doce numa flauta.
Deram outro passo... e agora podiam ouvir sirenes ao longe.
— Não, não é. Acho que a Sra. Dunwiddy pensou que você fosse. Ela nos separou, mas nunca entendeu direito o que estava fazendo. Nós somos como duas metades de uma estrela do mar. Você cresceu e virou outra pessoa. E — continuou, dando-se conta, ao falar, de que aquilo era verdade — eu também.
Ficaram de pé, na beira do penhasco, à luz do dia que começava a amanhecer. Uma ambulância subia a colina, com as luzes piscando, e outra a seguia. Estacionaram do lado da estrada, perto de vários carros da polícia.
Daisy parecia dar ordens a todos eles.
— Não há muito o que possamos fazer aqui. Não agora — observou Fat Charlie. — Vamos.
O último vagalume ao redor de Charlie foi embora. Apagou-se e foi dormir.
Os dois pegaram o primeiro microônibus da manhã de volta a Williamstown.
Maeve Livingstone estava sentada no andar de cima, na biblioteca da casa de Grahame Coats, cercada de seus quadros, livros e DVDs, olhando pela janela. Lá embaixo, enfermeiros colocavam Rosie e sua mãe numa ambulância e Grahame Coats na outra.
Ela ponderou que gostou muito de chutar aquela fera em que Grahame Coats se transformara. Foi a coisa que mais lhe trouxe satisfação desde que fora assassinada. Mas, se fosse sincera consigo mesma, teria que admitir que dançar com o sr. Nancy, em termos de satisfação, só perdia para isso. Ele dançava de modo admiravelmente ágil, os pés leves. Sentiu-se cansada.
— Maeve?
— Morris?
Ela olhou em volta, mas o aposento estava vazio.
— Eu não quero atrapalhar você caso esteja muito ocupada, querida.
— Ah, que gentil. Mas acho que já terminei tudo.
As paredes da biblioteca começaram a desaparecer. Perdiam a cor, o formato. O mundo por trás das paredes começava a surgir e, naquela luz, enxergou uma pequena silhueta de uma pessoa usando um terno elegante, esperando por ela.
Pôs sua mão na dele e disse:
— Para onde nós vamos, Morris?
Ele lhe disse.
— Ah. Bom, então será uma boa mudança. Eu sempre quis ir pra lá.
E, de mãos dadas, eles se foram.