Fat Charlie bufava pelo jardim memorial do repouso, com os olhos meio fechados por causa do sol da Flórida. Marcas de suor se espalhavam pelo seu terno, começando nas axilas e no peito. O suor começou a pingar de seu rosto à medida que corria.
O Jardim Memorial do Repouso de fato parecia um jardim, mas um jardim bastante estranho, no qual as flores eram artificiais e cresciam em vasos metálicos que saíam de placas metálicas colocadas no chão. Fat Charlie passou correndo por uma placa: “Cova GRÁTIS para todos os veteranos de guerra com medalhas de honra!” Correu através da Terra dos Bebês, onde havia as covas infantis e onde cata-ventos multicoloridos e ursinhos de pelúcia encharcados nas cores rosa e azul faziam companhia às flores artificiais sobre a grama da Flórida. Um ursinho Pooh em decomposição lançava um olhar meio morto para o céu azul.
Fat Charlie já conseguia ver as pessoas do funeral. Ele mudou de direção, encontrando um caminho que permitia que fosse diretamente a elas. Havia 30 pessoas, talvez mais, de pé em torno da cova. As mulheres usavam vestidos pretos e grandes chapéus pretos circundados por renda preta, como se fossem flores exóticas. Os homens usavam ternos sem manchas de suor. As crianças tinham um ar solene. Fat Charlie diminui o passo até andar de um jeito mais respeitoso, tentando se apressar sem se mover rápido demais para que ninguém notasse que estava com pressa. Ao alcançar o grupo de pessoas enlutadas, tentou assumir lugar mais à frente sem chamar muita atenção. Sua tentativa foi um fracasso, porque ele estava claramente arfando como uma morsa gorda que tentava subir uma escada. Pingava de suor e pisava em vários pés à medida que caminhava.
Sentiu olhares penetrantes sobre ele, mas fingiu não notar. Todos cantavam uma canção que Fat Charlie não conhecia. Ele mexia a cabeça no ritmo da música e fingia cantar, movendo os lábios de uma maneira que talvez pudesse dar a impressão de que participava ativamente da cantoria, sotto voce. Ele bem que poderia estar sussurrando uma prece ou fazendo movimentos labiais aleatórios. Aproveitou para dar uma olhada no caixão. Ficou satisfeito ao vê-lo fechado.
O caixão era uma coisa fantástica, feita de um material que parecia aço pesado, reforçado, de cor cinza-chumbo. “Quando houver a gloriosa ressurreição”, pensou Fat Charlie, “quando o anjo Gabriel tocar sua poderosa trombeta e os mortos saírem de seus caixões, o pai ficará preso em seu túmulo, batendo inutilmente na tampa, desejando que tivesse sido enterrado com um pé-de-cabra e talvez um maçarico.”
O “aleluia” final, profundamente melódico, começou a se dissipar. No silêncio que se seguiu, Fat Charlie pôde ouvir alguém gritando do outro lado dos jardins memoriais, perto do local por onde entrara.
O pastor perguntou:
— Alguém gostaria de dizer algo em memória?
Pelas expressões no rosto dos que estavam mais perto da cova, era óbvio que vários deles planejavam dizer alguma coisa. Mas Fat Charlie sabia que se tratava de um momento agora-ou-nunca. Sabe, você precisa fazer as pazes com o seu pai. Então tá.
Suspirou fundo e deu um passo à frente, até ficar bem na beirada da cova, e disse:
— Ahm. Com licença. Certo... Eu acho que tenho algo a dizer.
Os gritos lá longe ficavam cada vez mais altos. Muitos dos presentes lançavam olhares por sobre o ombro para ver de onde vinham. Os outros tinham os olhos fixos em Fat Charlie.
— Eu nunca fui o que se pode chamar de uma pessoa próxima do meu pai. Acho que nós dois não sabíamos como ficar próximos. Há 20 anos não faço parte da vida dele, e ele não fez parte da minha. Há muitas coisas difíceis de perdoar, mas aí um dia você percebe que não tem mais uma família. — Limpou o suor da testa com a mão e continuou: — Acho que eu nunca disse “eu te amo, pai” em toda a minha vida. Todos vocês talvez o conhecessem melhor do que eu. Alguns de vocês talvez o amassem. Vocês fizeram parte da vida dele, mas eu não. Então não tenho vergonha se vocês me ouvirem dizer isso. Pela primeira vez em 20 anos. — Ele olhou para baixo, para a impenetrável tampa de metal do caixão, e disse: — Eu te amo. E nunca vou te esquecer.
Os gritos ficaram ainda mais altos. Agora, no silêncio que se seguiu a declaração de Fat Charlie, altos e claros o suficiente para todos discernirem as palavras que vinham do outro lado dos jardins:
— Fat Charlie! Pára de importunar essas pessoas e vem pra cá agora mesmo.
Fat Charlie olhou para o mar de rostos desconhecidos, uma mistura de expressões perplexas, chocadas, iradas e horrorizadas. Com as orelhas pegando fogo, ele se deu conta.
— Ahm. Desculpem. Funeral errado.
Um pequeno garoto de orelhas grandes com um enorme sorriso no rosto disse, orgulhoso:
— Essa era a minha avó.
Fat Charlie saiu da pequena multidão murmurando desculpas pouco coerentes. Ele queria que o mundo acabasse. Sabia que não era culpa de seu pai, mas também sabia que seu pai teria achado tudo aquilo hilário.
De pé na calçada, com as mãos nos quadris, havia uma mulher gorda com cabelo cinzento e expressão zangada. Fat Charlie andava em sua direção como se andasse por um campo minado, como se tivesse 9 anos de idade novamente e estivesse em apuros.
— Cê não me ouviu gritar? — perguntou ela, com seu inglês de sotaque caribenho. — Cê passou direto por mim. Passou a maior vergonha! Por aqui. Cê perdeu o funeral e tudo. Mas tem uma pá de terra te esperando.
A Sra. Higgler não tinha mudado quase nada naqueles últimos 20 anos: estava um pouco mais gorda, um pouco mais grisalha. Comprimiu os lábios e o conduziu por uma das muitas calçadas do cemitério. Fat Charlie suspeitava que não havia deixado uma boa primeira impressão. Ela mostrava o caminho e, envergonhado, ele a seguia.
Um lagarto subiu rápido por um ferro da cerca de metal que circundava o jardim e depois ficou no topo de uma lança da cerca, experimentando o ar abafado da Flórida. O sol escondera-se por trás de uma nuvem, mas a tarde parecia na verdade ter ficado mais quente. O lagarto estufou o pescoço até formar um brilhante balão alaranjado.
Duas garças de pernas compridas, que Fat Charlie inicialmente tomara por ornamentos de jardim, olharam para ele quando passou por elas. Uma delas mergulhou a cabeça e depois ergueu novamente com uma grande rã pendurada no bico. Então começou, fazendo movimentos de deglutição, a tentar engolir a rã, que esperneava e se debatia no ar.
— Anda — disse a Sra. Higgler. — Deixa de enrolação. Já basta você não comparecer ao funeral do teu pai.
Fat Charlie suprimiu a vontade de contar que viajara 6.500 km naquele dia, alugara um carro e viera dirigindo desde Orlando, e pegara a estrada errada — afinal de contas, quem diabos teve a idéia de escolher um cemitério atrás de um Wal-Mart na saída da cidade? Eles continuaram a andar, passaram por um grande prédio de concreto que cheirava a formol e chegaram a uma cova aberta no ponto mais distante do cemitério. Não havia nada além dela, exceto uma cerca alta e, por trás dela, muitas árvores, palmeiras e mato. Na cova, jazia um modesto caixão de madeira. Já havia sobre ele montinhos de terra. Ao lado da cova, uma grande quantidade de terra e uma pá.
A Sra. Higgler pegou a pá e entregou-a a Fat Charlie.
— Foi uma cerimônia muito bonita. Alguns dos velhos amigos de bebedeira do teu pai vieram, e todas as senhoras da nossa rua. Apesar de ele ter ido pro andar de cima, a gente ainda vai se falar. Ele gostaria disso. E claro que teria gostado ainda mais se você tivesse aparecido.
Ela balançou a cabeça. Continuou:
— Agora vamos começar a enterrar. E, se você quiser se despedir dele, faça isso enquanto vai jogando a terra no caixão.
— Eu pensei que eu tivesse que jogar só uma ou duas pás de terra. Para mostrar boa vontade.
— Eu dei ao homem 30 pratas para ir embora — informou a Sra. Higgler. — Disse a ele que o filho do falecido vinha de avião lá da Inglaterra e que ia querer fazer tudo direitinho pro pai dele. Fazer tudo nos conformes. Não só “mostrar boa vontade”.
— Certo. Claro. Entendi.
Fat Charlie tirou paletó e o pendurou na cerca. Afrouxou a gravata, puxou-a pela cabeça e colocou-a no bolso do paletó. Pegou a pá e começou a jogar a terra negra dentro da cova aberta, naquele ar da Flórida tão denso quanto uma sopa.
Depois de um tempo, começou a chover. Na verdade começou a cair o tipo de chuva que nunca se decide se é chuva ou não. Se você dirigisse nessa chuva, jamais saberia se deveria ligar o limpador de pára-brisa. De pé na chuva, jogando terra na cova com uma pá, qualquer um se sentiria mais suado, mais úmido, mais desconfortável. Fat Charlie continuou a jogar terra na cova, e a Sra. Higgler ficava lá, de pé, com os braços cruzados por cima de seu peito gigantesco, com a chuva fininha umedecendo seu vestido preto e seu chapéu de palha com uma rosa preta de seda, observando-o enquanto enchia a cova de terra.
A terra virou lama e ficou mais pesada.
Depois do que pareceu uma eternidade, e uma eternidade muito incômoda, Fat Charlie deu uma batidinha com a pá no último montinho de terra.
A Sra. Higgler caminhou até ele. Pegou seu paletó da cerca e passou para ele.
— Cê tá ensopado até os ossos e coberto de terra e suor, mas cê amadureceu. Bem-vindo, Fat Charlie.
Ela sorriu e o abraçou contra seu peito largo.
— Eu não estou chorando — explicou Fat Charlie.
— Shhh, calma.
— São os pingos da chuva no meu rosto.
A Sra. Higgler não respondeu. Ela só o abraçava, balançando para lá e para cá, e depois de um tempo Fat Charlie disse:
— Tudo bem. Já estou me sentindo melhor.
— Tem comida lá em casa. Vamos lá pra você comer.
Ele limpou a lama dos sapatos no estacionamento, entrou no seu carro cinza alugado e seguiu a perua vermelho-escura da Sra. Higgler por ruas que 20 anos antes não existiam. Ela dirigia como uma mulher que acabara de descobrir uma caneca enorme de café, da qual precisava muitíssimo, e cuja única missão era beber o máximo que pudesse enquanto dirigia o mais rápido possível. Fat Charlie a seguia o mais de perto que podia, correndo de semáforo a semáforo enquanto tentava adivinhar onde estavam.
Viraram uma rua e, com um sentimento de apreensão cada vez maior, ele se deu conta de que reconhecia o lugar. Era a rua em que havia morado na infância. Até as casas tinham mais ou menos a mesma aparência, embora a maioria delas agora tivesse enormes cercas dr arame à frente dos jardins.
Havia vários carros estacionados na frente da casa da Sra. Higgler. Ele parou atrás de um velho Ford cinza. A Sra. Higgler caminhou até a porta e a abriu com a chave.
Fat Charlie olhou para suas roupas enlameadas e encharcadas de suor.
— Eu não posso entrar desse jeito — disse.
— Já vi coisa pior — respondeu a Sra. Higgler. Então ela suspirou. — Olha só: cê entra, vai direto pro banheiro, lava as mãos e o rosto, limpa tudo, e quando cê terminar nós estaremos na cozinha.
Ele foi até o banheiro. Tudo ali tinha cheiro de jasmim. Tirou sua camisa enlameada, lavou o rosto e as mãos com sabonete com cheiro de jasmim numa pia minúscula. Pegou uma esponja, limpou o peito, esfregou os pontos mais sujos das calças do terno. Olhou a camisa, que era branca quando a colocou pela manhã e agora exibia um marrom bastante encardido, e decidiu não vesti-la. Havia mais camisas em sua bolsa de viagem, no banco de trás do carro alugado. Decidiu sair discretamente da casa, colocar uma camisa limpa e depois encarar o pessoal da casa.
Destrancou a porta do banheiro e a abriu.
Quatro velhas senhoras estavam de pé no corredor, encarando-o. Ele as conhecia. Todas elas.
— Que cê tá fazendo? — perguntou a Sra. Higgler.
— Trocando de camisa — respondeu Fat Charlie. — Camisa no carro. Sim. Volto logo.
Ergueu o queixo, andou pelo corredor com passos largos e saiu pela porta da frente.
— Mas que jeito estranho de falar é esse? — perguntou a pequena Sra. Dunwiddy atrás dele, bem alto.
— Não é uma cena que a gente vê todo dia — comentou a Sra. Bustamonte, embora, por ser ali o litoral da Flórida, o que mais se visse todos os dias eram homens sem camisa, apesar de não usarem calças enlameadas.
Fat Charlie trocou de camisa perto do carro e entrou na casa. As quatro senhoras estavam na cozinha, ocupadas guardando em potinhos Tupperware o que parecia ter sido até então uma grande quantidade de comida.
A Sra. Higgler era mais velha que a Sra. Bustamonte, e ambas eram mais velhas que a Sra. Noles, mas nenhuma delas era tão velha quanto a Sra. Dunwiddy. A Sra. Dunwiddy era muito velha e aparentava isso. Provavelmente não havia eras geológicas tão antigas quanto a Sra. Dunwiddy.
Quando era criança, Fat Charlie imaginava a Sra. Dunwiddy na África Equatorial, olhando com ar de desaprovação, através de seus óculos de lentes grossas, os hominídeos que começavam a ficar eretos. “Fique bem longe do meu quintal”, diria ela a um espécime recentemente desenvolvido (e um tanto nervoso) de Homo Habilis, “ou eu vou dar uma cintada na sua orelha, estou avisando”. A Sra. Dunwiddy cheirava a água de violeta e, por baixo do cheiro de violetas, dava para sentir o che iro de uma mulher bem velha. Era uma senhora miudinha, mas capaz de ofuscar uma tempestade. Fat Charlie, que havia mais de duas décadas seguira uma bolinha de tênis perdida que caíra no quintal dela e acidentalmente quebrara um dos enfeites de seu jardim, ainda morria de medo dela.
Naquele momento, a Sra. Dunwiddy estava comendo com os dedos pedaços de carneiro ao curry dentro de uma tigela Tupperware.
— Uma pena desperdiçar isso — disse, e deixou cair os pedacinhos de carneiro num pires de porcelana.
— Quer comer, Fat Charlie? — perguntou a Sra. Noles.
— Não estou com fome. De verdade.
Quatro pares de olhos o observaram com ar de reprovação através de quatro pares de óculos.
— Não faz bem ficar sem comer nessa tristeza — observou a Sra. Dunwiddy, lambendo a ponta dos dedos e pegando outro pedaço de carneiro marrom e gorduroso.
— Não é isso. Eu só não estou com fome. Só isso.
— A tristeza vai te fazer ficar só pele e osso — sentenciou a Sra. Noles, com um misto de entusiasmo e tristeza.
— Acho que não.
— Vou fazer um prato procê e pôr naquela mesa ali — disse a Sra. Higgler. — Vai lá, senta. Não quero ouvir mais nenhuma desculpa. Tem bastante comida, não precisa se preocupar.
Fat Charlie sentou-se onde ela indicou e, alguns segundos depois, colocaram diante dele um prato bem cheio: cozido de ervilha com arroz, torta de batata doce, carne de porco apimentada, carneiro ao curry, frango ao curry, banana pacova frita e mocotó. Fat Charlie nem havia colocado nada na boca e já sentia a azia começar a arder.
— Onde estão as outras pessoas? — perguntou.
— Os amigos de bebedeira do teu pai saíram pra beber. Foram fazer uma sessão de pescaria em memória dele numa ponte — respondeu a Sra. Higgler. Ela derramou dentro da pia o restante do café de sua caneca de viagem, do tamanho de um balde, e substituiu pelo conteúdo recém-passado e fumegante de um bule de café.
A Sra. Dunwiddy lambeu os dedos com sua língua roxa até deixá-los limpos e mudou de cadeira até ficar perto de onde Fat Charlie estava sentado, com o prato ainda intocado. Quando pequeno, ele acreditava piamente que a Sra. Dunwiddy era uma bruxa. Não uma bruxa boa, mas o tipo de bruxa que as crianças tinham que empurrar para dentro do forno se quisessem escapar com vida. Era a primeira vez que ele a via em mais de 20 anos, e sentia que precisava conter a vontade de gritar e se esconder embaixo da mesa.
— Já vi muita gente morrer — começou a Sra. Dunwiddy. — Na minha época. Se você ficar bem velho, vai ver também. Todo mundo morre um dia, basta dar tempo ao tempo. — Ela fez uma pausa. — Mas eu nunca pensei que fosse acontecer com o teu pai.
E balançou a cabeça.
— Como ele era? — perguntou Fat Charlie. — Quando era jovem.
A Sra. Dunwiddy olhou para ele através de seus óculos extremamente grossos, contraiu os dedos e balançou a cabeça. — Isso era antes do meu tempo — foi tudo o que ela disse. — Coma o mocotó.
Fat Charlie suspirou e começou a comer.
Era um de tarde, e eles estavam sozinhos na casa.
— Onde cê vai dormir hoje? — perguntou a Sra. Higgler.
— Pensei em ficar num quarto de hotel barato — respondeu Fat Charlie.
— Ora, cê tem um ótimo quarto aqui. E uma ótima casa, descendo a rua. Cê nem viu a casa ainda. Se quer saber, o teu pai ia querer que cê ficasse lá.
— Acho que prefiro ficar sozinho. Não me sinto muito bem com a idéia de dormir na casa do meu pai.
— Bom, não é o meu dinheiro que tá sendo jogado fora — respondeu a Sra. Higgler. — Cê vai ter que decidir o que fazer com a casa, de qualquer jeito. E com todas as coisas dele.
— Eu não estou nem aí pra isso. A gente pode fazer um bazar e vender tudo. Vender pelo eBay. Jogar tudo fora.
— Ora, mas que atitude é essa? — Ela vasculhou uma gaveta da cozinha e pegou uma chave presa a uma grande etiqueta de papel.
— Ele me deu a chave reserva quando se mudou. Caso perdesse a dele ou ficasse trancado do lado de fora, sei lá. Costumava dizer que, se a cabeça não estivesse pregada no pescoço, esqueceria em algum lugar. Quando vendeu a casa ao lado, ele me disse: “Não se preocupe, Callyanne, eu não vou pra muito longe”. Ele morou naquela casa desde sempre, pelo que me lembro, mas decidiu que era grande demais e que tinha que ir embora...
Ainda falando, ela o acompanhou até o lado de fora da casa e percorreu com ele várias ruas em sua perua vermelho-escura até chegarem a uma casa térrea de madeira.
Ela abriu a porta da frente e eles entraram.
O cheiro era familiar: levemente doce, como se biscoitos de chocolate tivessem acabado de sair do forno da última vez que usaram a cozinha, mas isso acontecera havia muito tempo. Fazia muito calor ali dentro. A Sra. Higgler o levou até a pequena sala de estar e ligou um aparelho de ar-condicionado acoplado a uma janela. O aparelho chacoalhava e fazia barulho, tinha cheiro de cachorro molhado e movimentou o ar quente.
Havia pilhas de livros em torno de um sofá muito velho, do qual Fat Charlie se lembrava, e havia fotografias em porta-retratos — em uma delas, em preto-e-branco, via-se a mãe de Fat Charlie quando jovem, com o cabelo preso no alto da cabeça, preto e brilhante, usando um vestido brilhoso. Ao lado dela, uma foto do próprio Fat Charlie, com uns 5 ou 6 anos de idade, de pé ao lado de uma porta com espelho, de modo que, à primeira vista, parecia que dois pequenos Fat Charlie, um do lado do outro, olhavam de um jeito sério para quem observava a fotografia.
Fat Charlie pegou o livro em cima da pilha. Era sobre arquitetura italiana.
— Ele se interessava por arquitetura?
— Era louco por arquitetura. Ah, se era.
— Eu não sabia.
A Sra. Higgler deu de ombros e tomou um gole do café. Fat Charlie abriu o livro e viu o nome do pai escrito com capricho na primeira página. Fechou o livro.
— Eu nunca soube quem ele era. Não de verdade.
— Ele não era um homem fácil de se conhecer. Eu o conhecia há, sei lá, uns 60 anos. E nunca soube quem ele era de verdade.
— A senhora devia saber como ele era quando criança.
A Sra. Higgler hesitou. Parecia tentar se lembrar. Então disse, de um jeito calmo:
— Eu conheci ele na época em que era moça.
Fat Charlie achou que deveria mudar de assunto, e então apontou a foto da mãe.
— Ele tem uma foto da minha mãe ali.
A Sra. Higgler tomou outro gole de café.
— Tiraram num barco. Antes de você nascer. Um daqueles barcos em que se podia jantar, navegar uns cinco quilômetros, para bem longe, e onde tinha muita jogatina. Depois voltavam. Não sei se ainda existe esse tipo de barco. Sua mãe dizia que foi a primeira vez que ela comeu carne. — Fat Charlie tentou imaginar como eram seus pais antes de ele nascer. — Ele sempre foi um homem bonito — observou a Sra. Higgler, pensativa, como se adivinhasse o que ele pensava. — Até o fim. Tinha um sorriso capaz de fazer uma moça ficar sem graça. E sempre se vestia muito bem. Todas as moças gostavam dele.
Fat Charlie sabia a resposta antes mesmo de fazer a pergunta.
— A senhora e ele?
— Como é que cê faz uma pergunta dessas para uma viúva de respeito? — Ela deu um golinho no café. Fat Charlie esperou pela resposta. Então ela disse: — Eu beijei ele uma vez. Há muito, muito tempo, antes mesmo de ele conhecer a sua mãe. Ele beijava muito bem. Eu esperava que ele me ligasse, que me chamasse pra sair pra dançar de novo, mas ele desapareceu. Desapareceu por mais ou menos um ano. Dois anos, talvez. E quando voltou eu já estava casada com o meu marido, o sr. Higgler, e ele trouxe a sua mãe. Conheceu ela nas ilhas.
— A senhora ficou chateada?
— Eu era uma mulher casada. — Outro gole de café. — E não dava para odiar o teu pai. Ninguém ficava bravo de verdade com ele. E o jeito como olhava pra ela... Ah, se alguma vez olhasse assim pra mim, eu morreria feliz. Sabia que no casamento deles eu fui a madrinha da sua mãe?
— Eu não sabia.
O aparelho de ar-condicionado começava a expelir ar frio. Continuava com cheiro de cachorro molhado. Fat Charlie perguntou:
— A senhora acha que eles foram felizes?
— No começo. — Ela ergueu sua enorme caneca térmica e ia tomar um gole do café, mas mudou de idéia. — Só no começo. Nem mesmo ela conseguia prender a atenção dele por muito tempo. Ele tinha muitas coisas pra fazer. Era um homem muito ocupado, o teu pai.
Fat Charlie tentou descobrir se a Sra. Higgler estava brincando ou não. Não saberia dizer. Mas ela não riu.
— Muitas coisas a fazer? Tipo o quê? Pescar numa ponte? Jogar dominó na varanda? Esperar a inevitável invenção do karaokê?
Ele não tinha nada pra fazer. Acho que nunca trabalhou um só dia na vida.
— Você não devia falar assim do teu pai!
— Mas é verdade. Ele não prestava. Era um péssimo marido e um péssimo pai.
— Claro que era! — concordou a Sra. Higgler, com raiva. — Mas não dá pra julgar ele como se julga um homem qualquer. Você tem que levar em conta que o seu pai era um deus, Fat Charlie.
— Um deus entre os homens?
— Não. Só um deus, só isso. — Ela disse a frase sem nenhuma ênfase, de um jeito tão trivial e normal como se tivesse dito que “ele era diabético” ou simplesmente que “ele era negro”.
Fat Charlie quis fazer uma piada, mas viu o olhar da Sra. Higgler. Subitamente não conseguia pensar em nada engraçado para dizer. Então disse delicadamente:
— Ele não era um deus. Deuses são especiais, míticos. Eles operam milagres e coisa do tipo.
— Isso mesmo. Ele não teria te contado enquanto estava vivo, mas agora que se foi não tem problema.
— Ele não era um deus. Era o meu pai.
— Dá para ser as duas coisas — argumentou a Sra. Higgler. — Acontece.
“É o mesmo que discutir com um louco” pensou Fat Charlie. Percebeu que o melhor a fazer era ficar calado, mas sua boca não obedecia. Naquele momento, dizia o seguinte:
— Olha, se o meu pai era um deus, ele devia ter poderes divinos.
— E tinha. Não fazia muita coisa com eles, é verdade. Mas era velho. De qualquer maneira, como cê acha que ele nunca precisava trabalhar? Sempre que precisava de dinheiro, ele jogava na loteria ou ia até Halendale para apostar nos cavalos ou nos cachorros. Nunca ganhava demais, para não chamar atenção. Só o suficiente para sobreviver.
Fat Charlie nunca ganhara nada em toda sua vida. Nada mesmo. Nas diversas vezes que participara de um “bolão” no trabalho, apostava que seu cavalo jamais passaria do portão de saída ou que seu time seria rebaixado para uma divisão da qual ninguém ouviu falar, uma espécie de limbo do mundo do esporte profissional. Era irritante.
— Se meu pai era um deus, algo em que aliás não acredito de jeito nenhum, então por que eu não sou um deus também? Afinal, você está dizendo que eu sou filho de um deus, não é?
— Claro.
— Bom, então por que eu não aposto no cavalo vencedor, não tenho poderes mágicos nem faço milagres ou coisa do tipo?
Ela deu uma fungada.
— O seu irmão foi quem herdou toda essa coisa de ser deus.
Fat Charlie percebeu que tinha um sorriso no rosto. Suspirou. Aquilo era só uma brincadeira, afinal de contas.
— Ah... Sabe, Sra. Higgler, na verdade eu não tenho um irmão.
— Mas é claro que tem. São você e ele naquela foto ali. Embora soubesse o que havia na foto, Fat Charlie olhou para o retrato. Ela definitivamente estava louca. De jogar pedra.
— Sra. Higgler — começou, do jeito mais gentil que podia. — Aquele sou eu. Só eu, quando era criança. É uma porta com espelho. Eu estou de pé perto dela. Só eu e o meu reflexo.
— É você, e é o seu irmão também.
— Eu nunca tive um irmão.
— Claro que teve. Não sinto falta dele. Você sempre foi bonzinho, sabe. Mas ele era impossível enquanto estava aqui. — Antes que Fat Charlie pudesse dizer alguma coisa, ela acrescentou: — Ele foi embora quando você era pequenininho.
Fat Charlie chegou mais perto dela. Colocou sua grande mão sobre a mão ossuda da Sra. Higgler, a mão que não segurava a caneca de café.
— Isso não é verdade.
— Foi a Louella Dunwiddy que fez ele ir embora. Ele tinha medo dela. Mas voltava de tempos em tempos. Ele sabia ser doce quando queria. — Ela terminou de tomar o café.
— Eu sempre quis ter um irmão — disse Fat Charlie. — Alguém com quem brincar.
A Sra. Higgler levantou-se e disse:
— Este lugar não vai se limpar sozinho. Eu tenho uns sacos de lixo no carro. Acho que a gente vai precisar de muitos sacos.
— Sim — concordou Fat Charlie.
Naquela noite, ele ficou num quarto de hotel barato. Pela manhã, encontrou a Sra. Higgler na casa do pai, e eles colocaram o lixo em grandes sacos pretos. Separaram os objetos que seriam doados à caridade. Encheram uma caixa com coisas que Fat Charlie queria guardar, que tinham valor sentimental, a maioria fotografias de sua infância ou de antes de ele nascer.
Havia um baú velho, parecido com um pequeno baú de tesouro de piratas, cheio de documentos e papéis antigos. Fat Charlie sentou-se no chão e examinou os papéis. A Sra. Higgler veio do quarto com outro enorme saco de lixo, cheio de roupas roídas pelas traças.
— Foi o teu irmão que deu esse baú pro teu pai — disse ela, do nada. Era a primeira vez que mencionava as maluquices da noite anterior.
— Quem dera eu tivesse um irmão mesmo — comentou Fat Charlie. Ele não tinha se dado conta de que havia dito aquilo em voz alta até a sra. Higgler responder:
— Eu já te disse. Você tem um irmão.
— Certo. E onde eu encontro esse meu irmão mítico?
Mais tarde, ele se perguntaria por que havia feito essa pergunta. Será que pretendia diverti-la? Provocá-la? Será que apenas precisava dizer alguma coisa só para preencher o vazio? Qualquer que fosse a razão, ele fez a pergunta. E ela mordia seu lábio inferior e balançava a cabeça.
— Você precisa saber. É sua família. Seu sangue.
Foi até ele e o chamou para mais perto com o dedo. Fat Charlie curvou-se. Os lábios da velha roçavam sua orelha enquanto ela sussurrava: “...precisar dele... dizerpruma...”
— Como?
— Eu disse — repetiu ela, com voz normal — que, se você precisar dele, é só dizer pruma aranha. Ele vem rapidinho.
— Dizer para uma aranha?
— Foi o que eu disse. Acha que estou falando por falar? Pra exercitar meus pulmões? Nunca ouviu falar de gente que fala com as abelhas? Quando eu era menina, lá em Saint Andrews, antes da minha família vir pra cá, eu contava pras abelhas todas as minhas boas-novas. E a mesma coisa. Fale com uma aranha. Era assim que eu costumava mandar mensagens pro teu pai quando ele desaparecia.
— Certo...
— Não fica dizendo “certo” desse jeito aí.
— Que jeito?
— Como se eu fosse uma velha doida que não sabe o que está falando. Você acha que eu sou maluca?
— Ahm, tenho quase certeza de que sim. De verdade.
A sra. Higgler não desistiu. Estava longe de ficar satisfeita. Pegou a caneca de café e a apoiou nas mãos, com ar de desaprovação. Fat Charlie já tinha passado dos limites, e a sra. Higgler estava determinada a fazer com que ele soubesse a verdade.
— Sabe, eu não preciso fazer isso. Não preciso te ajudar. Só estou fazendo isso por causa do teu pai, que era uma pessoa especial, e da tua mãe, que era uma ótima mulher. Estou contando coisas importantes pra você. Cê devia prestar atenção. Devia acreditar em mim.
— Eu acredito na senhora — disse Fat Charlie, do jeito mais convincente que conseguia.
— Que nada. Você só está tentando não deixar uma velha chateada.
— Não — mentiu. — Não estou. De verdade.
As palavras dele tinham um tom de honestidade, sinceridade, verdade. Estava a quilômetros de casa, na casa de seu pai recém-falecido, com uma velha louca prestes a ter um ataque. Se fosse para acalmá-la, diria até que a Lua é um tipo de fruta tropical, e o faria da maneira mais convincente que pudesse.
Ela fungou.
— Esse é o problema dos jovens. Como estão por aqui há tempo suficiente, acham que sabem tudo. Eu já me esqueci de coisas na minha vida que você nem imagina. Você não sabe nada sobre o teu pai, não sabe nada sobre a tua família. Eu te digo que o teu pai era um deus e você nem me pergunta de que tipo de deus estou falando.
Fat Charlie tentou se lembrar do nome de alguns deuses.
— Zeus?
A sra. Higgler soltou um som que parecia o de uma chaleira apitando. Fat Charlie teve certeza de que Zeus não era a melhor resposta.
— Cupido?
Ela fez outro barulho, que começou com um “pff” e terminou como uma risadinha.
— Eu até consigo imaginar o teu pai usando só uma daquelas fraldinhas cheias de penas, com um arco-e-flecha bem grande. — Ela riu mais um pouco. Depois tomou mais café. — Na época em que ele era um deus, era conhecido como Anansi.
Provavelmente você já gonhece algumas histórias sobre Anansi. Talvez não exista uma única pessoa no mundo que não conheça histórias sobre Anansi.
Anansi era uma aranha quando o mundo ainda era jovem e se contavam histórias pela primeira vez. Ele costumava se meter em encrencas e sair delas. Sabe a história do boneco de piche, aquela que contam sobre o Coelho Quincas? Essa história foi primeiro sobre Anansi. Algumas pessoas acham que ele era um coelho. Mas isso é errado. Ele era uma aranha.
As histórias de Anansi são da época em que as pessoas contavam histórias umas às outras. Na África, onde tudo começou, mesmo antes de as pessoas pintarem leões e ursos nas paredes das cavernas, já contavam histórias sobre macacos, leões e búfalos: eram grandes histórias. As pessoas tinham essa tendência de contar histórias. Assim faziam o mundo ter sentido. Tudo o que corria, andava, balançava e se arrastava tinha que aparecer nessas histórias, e diferentes tribos veneravam diferentes criaturas.
O Leão era o rei dos animais, mesmo naquela época. A Gazela era a mais rápida, o Macaco era o mais bobo e o Tigre era o mais terrível, mas as pessoas não queriam ouvir histórias sobre eles.
Anansi deu seu nome às histórias. Toda história é de Anansi. Antigamente, antes de as histórias serem de Anansi, elas todas pertenciam ao Tigre (que é o nome que as pessoas das ilhas dão a todos os grandes felinos), e as histórias eram sombrias e macabras, cheias de dor. Nenhuma delas tinha final feliz. Mas isso foi há muito tempo. Hoje em dia, as histórias são de Anansi.
Já que a gente acabou de sair de um funeral, deixa eu te contar uma história sobre Anansi, da época em que a avó dele morreu. (Não, tudo bem: ela era uma mulher muito velha, e morreu enquanto dormia quanto. Acontece.) Ela morreu muito longe de casa, então Anansi atravessa a ilha com o carrinho de mão, pega o corpo da avó, coloca no carrinho e carrega pra casa. É que ele queria enterrar ela perto da figueira que ficava atrás da cabana dele.
Então ele está lá, atravessando a cidade, depois de empurrar o cadáver da avó no carrinho a manhã toda, e aí pensa “Eu preciso beber uísque”. Ele entra na loja — tinha uma loja na vila, uma loja que vendia de tudo, e o dono era um homem muito nervoso. Anansi entra e bebe um pouco de uísque. Bebe um pouco mais e então pensa “vou fazer uma brincadeira com esse sujeito”, então ele diz pro dono da loja: “Leva um pouco de uísque pra minha avó, ela tá dormindo no carrinho lá fora. Talvez você precise acordar ela, porque ela dorme feito uma pedra”.
Então o dono da loja vai até o carrinho com uma garrafa e diz pra velha: “Ei, toma o seu uísque”, mas a velha não diz nada. E o dono da loja fica cada vez mais bravo, porque ele era um homem muito nervoso, e diz: “Levanta, velha, levanta e toma o seu uísque”, mas a velha não diz nada. Aí ela faz uma coisa que os mortos às vezes fazem quando o dia está muito quente: ela solta gases bem alto. O dono da loja fica tão fulo com a velha por soltar gases na cara dele que ele bate nela, depois bate de novo e de novo, e aí ela cai do carrinho.
Anansi vai lá fora e começa a chorar, choramingar e falar sem parar, dizendo: “Minha avó está morta, olha só o que você fez! Seu assassino, seu malfeitor!” Então o dono da loja fala para Anansi “Não conta pra ninguém que eu fiz isso”, e dá a ele cinco garrafas de uísque cheias, um saco de ouro e um saco cheio de banana pacova, abacaxi e manga para ele parar de fazer alarde e ir embora.
(É que ele acha que matou a avó de Anansi.)
Então Anansi leva o carrinho pra casa e enterra a avó debaixo da figueira.
No dia seguinte, o Tigre está passando pela casa de Anansi e sente cheiro de comida. Ele entra sem ser convidado, e lá está Anansi com um banquete. Anansi, sem alternativa, chama o Tigre pra se sentar e comer com ele.
O Tigre diz: “Irmão Anansi, onde você conseguiu toda essa comida? Não mente pra mim. E onde você conseguiu essas garrafas de uísque e esse saco cheio de moedas de ouro? Se você mentir pra mim, vou rasgar a sua garganta’.
Então Anansi diz: “Não posso mentir pra você, Irmão Tigre. Consegui tudo isso porque levei minha avó morta até a vila num carrinho de mão. E o dono da loja me deu todas essas coisas porque eu levei minha avó morta”.
O Tigre não tinha uma avó viva, mas sua mulher tinha uma mãe. Então ele vai pra casa, chama a mãe da mulher e diz: “Vem aqui um pouco porque eu e você precisamos conversar”. Aí ela sai, olha em volta e diz: “O que foi?” Bom, o Tigre mata ela, apesar de a mulher dele amar a mãe, e coloca o corpo dela num carrinho de mão.
Então ele leva o carrinho até a vila, com a sogra morta dentro. Ele grita: “Quem quer um cadáver? Quem quer uma avó morta?” Mas todas as pessoas só caçoavam dele e riam dele. Quando viram que ele estava falando sério e não ia sair dali, jogaram um monte de frutas podres nele, até ele fugir.
Não era a primeira vez que Anansi fazia o Tigre de bobo, e não seria a última. A mulher do Tigre nunca deixou ele esquecer que tinha matado a mãe dela. Em alguns dias o Tigre até deseja nunca ter nascido.
Essa é uma história de Anansi.
Claro que todas as histórias são histórias de Anansi. Mesmo esta aqui.
Antigamente todos os animais queriam que as histórias tivessem o nome deles, na época em que as canções que criaram o mundo ainda estavam sendo cantadas, na época em que ainda estavam cantando o céu, o arco-íris e o oceano. Foi nessa época, quando os animais eram gente, mas também eram bicho, que Anansi, a aranha, fez todos de bobo, principalmente o Tigre, porque queria que as histórias tivessem o nome dele.
As histórias são como aranhas, com pernas compridas, e também são como teias de aranha, onde um homem pode ficar todo emaranhado, mas também são tão bonitas quando você vê elas embaixo de uma folha com orvalho, o jeito elegante que elas se ligam entre si, uma a uma.
Como? Você quer saber se Anansi parecia uma aranha? Claro, exceto quando tinha a aparência de homem.
Não, ele nunca mudava de forma. Tudo depende do jeito que você conta a história. Só isso.