CAPÍTULO 19
O Padre Alvito, a cavalo, desceu a colina do castelo, à frente da sua companhia habitual de batedores jesuítas. Estavam todos vestidos como sacerdotes budistas, exceto pelo rosário e o crucifixo que levavam à cintura. Eram quarenta, todos japoneses e filhos bem-nascidos de samurais cristãos, alunos do seminário de Nagasaki que haviam acompanhado o padre a Osaka. Estavam todos bem montados e ajaezados, e tão disciplinados quanto o séquito de qualquer daimio.
Alvito apressava-se num trote ligeiro, sem se dar conta do sol quente, através dos bosques e das ruas da cidade, em direção à missão jesuítica, um casarão de pedra em estilo europeu que se erguia próximo aos desembarcadouros e que se elevava sobre sua aglomeração de anexos, salas de contabilidade e depósitos, onde toda a seda de Osaka era negociada e comprada.
O cortejo atravessou com estrépito os altos portões de ferro abertos nos muros de pedra, entrou no pátio central, calçado, e se deteve perto da porta principal. Já havia criados à espera para ajudar o Padre Alvito a desmontar. Ele deslizou da sela e atirou-lhes as rédeas. Suas esporas cantaram nas pedras quando ele avançou a passos largos por sob a abóbada da construção principal, dobrou a esquina, ultrapassou a pequena capela, e atravessou alguns arcos rumo ao pátio interno, que continha uma fonte e um tranqüilo jardim. A porta da antecâmara estava aberta. Conteve a própria ansiedade, recompôs-se, e entrou.
- Ele está sozinho? - perguntou.
- Não, não está, Martim - disse o Padre Soldi. Era um homem pequeno, benevolente, marcado de varíola, proveniente de Nápoles, secretário do padre-lnspetor há quase trinta anos, vinte e cinco dos quais na Ásia. - O Capitão-Mor Ferreira está com Sua Eminência. Sim, o pavão está com ele. Mas Sua Eminência disse que você devia entrar imediatamente. O que houve de errado, Martim?
- Nada.
Soldi grunhiu e voltou à sua ocupação de apontar o cálamo. - "Nada", disse o sábio padre. Bem, ficarei sabendo bem depressa.
- Sim - disse Alvito, que gostava do velho. Encaminhou-se para a porta. Um fogo de lenha ardia sobre uma grelha, iluminando a bela mobília pesada, envelhecida pelo tempo e brilhando de polida e bem cuidada. Um pequeno Tintoretto - uma Nossa Senhora com a criança - que o padre-lnspetor trouxera consigo de Roma, e que sempre agradara a Alvito, pendia acima da lareira.
- Viu o inglês novamente? - disse o Padre Soldi atrás dele.
Alvito não respondeu. Bateu na porta.
- Entre.
Cario dell'Aqua, padre-lnspetor da Ásia, representante pessoal do geral dos jesuítas, o jesuíta mais graduado, e portanto o homem mais poderoso na Asia, também era o mais alto. Media seis pés e três polegadas, com um físico proporcional. Seu manto era laranja, e a cruz magnífica. Era tonsurado, tinha cabelo branco, sessenta e um anos e era napolitano de nascimento.
- Ah, Martim, entre, entre. Vinho? - disse ele, falando português com uma maravilhosa fluidez italiana. - Viu o inglês?
- Não, Eminência. Apenas Toranaga.
- Foi mal?
- Sim.
- Aceita um pouco de vinho?
- Obrigado.
- Quão mal? - perguntou Ferreira. O soldado estava sentado ao lado do fogo na cadeira de couro e encosto alto, tão orgulhoso e colorido quanto um falcão - o fidalgo, o capitão-mor da Nao del Trato, o Navio Negro daquele ano. Estava com seus trinta e poucos anos, era magro, baixo e temível.
- Acho que muito mal, capitão-mor. Por exemplo, Toranaga disse que a questão do comércio deste ano podia esperar.
- É óbvio que o comércio não pode esperar, nem eu - disse Ferreira. - Vou levantar ferros com a maré. Pensei que estivesse tudo combinado há meses. - Mais uma vez Ferreira amaldiçoou os regulamentos japoneses que exigiam que toda a navegação, mesmo a deles, tivesse licenças de entrada e saída.
- Não deveríamos ser obrigados a acatar estúpidos regulamentos nativos. O senhor disse que esse encontro era uma mera formalidade, para apresentar os documentos.
- Deveria ter sido, mas me enganei. Talvez seja melhor que eu explique...
- Tenho que regressar a Macau imediatamente para preparar o Navio Negro. Já adquiri um milhão de ducados das melhores sedas na feira de Cantão em fevereiro, e estaremos carregando no mínimo cem mil onças de ouro chinês. Pensei ter deixado claro que cada centavo de Macau, Malaca e Goa, e cada centavo que os comerciantes e edis de Macau podem emprestar está investido na especulação deste ano. E cada centavo dos senhores.
- Estamos tão conscientes dessa importância quanto o senhor - disse Dell'Aqua enfaticamente.
- Sinto muito, capitão-mor, mas Toranaga é o presidente do conselho de regentes e é costume dirigirmo-nos a ele - disse Alvito. - Ele não discutiria o comércio deste ano nem as suas autorizações. Inicialmente disse que não aprova assassinato.
- Quem aprova, padre? - disse Ferreira.
- Do que é que Toranaga está falando, Martim? - perguntou Dell'Aqua. - Isso é algum estratagema? Assassinato? O que isso tem a ver conosco?
- O que ele disse foi: "Por que vocês, cristãos, quereriam assassinar o meu prisioneiro, o piloto?"
- O quê?
- Toranaga acredita que o atentado da noite passada foi contra o inglês, não contra ele. Também diz que houve outro atentado na prisão. - Alvito mantinha os olhos fixos no soldado.
- Do que me acusa, padre? - disse Ferreira. - De uma tentativa de assassinato? A mim? No Castelo de Osaka? Esta é a primeira vez que venho ao Japão!
- O senhor nega qualquer conhecimento do assunto?
- Não nego que quanto mais depressa o herege estiver morto, melhor - disse Ferreira friamente. - Se os holandeses e os ingleses começarem a disseminar sua imundície pela Ásia, estaremos enrascados. Todos nós.
- Já estamos enrascados - disse Alvito. - Toranaga começou dizendo que tomou conhecimento, através do inglês, de que lucros incríveis estão sendo obtidos pelo monopólio português do comércio com a China, que os portugueses aumentam de modo exorbitante o preço das sedas que apenas eles, portugueses, podem comprar na China, pagando por elas a única mercadoria que os chineses aceitam em troca: a prata japonesa - cujo preço, novamente, os portugueses cotam de modo igualmente ridículo. Toranaga disse: "Como existe hostilidade entre a China e o Japão e todo o comércio direto entre nós é proibido, e só os portugueses têm permissão para realizá-lo, a acusação de `usura', feita pelo piloto, deve ser formalmente respondida - por escrito - pelos portugueses". Ele o "convida", Eminência, a fornecer aos regentes um relatório sobre todo o intercambio - prata contra seda, seda contra prata, ouro contra prata. Acrescentou que não se opõe, naturalmente, a que tenhamos grandes lucros, desde que provenham dos chineses.
- O senhor certamente ignorará essa solicitação arrogante - disse Ferreira.
- É muito difícil.
- Então providencie um falso relatório.
- Isso colocaria em risco toda a nossa posição, que está baseada sobre a confiança - disse Dell'Aqua.
- O senhor consegue confiar num japonês? Claro que não! Nossos lucros devem permanecer secretos. Aquele maldito herege!
- Lamento dizer que Blackthorne parece estar particularmente bem informado. - Alvito olhou involuntariamente para Dell'Aqua, relaxando a própria vigilância por um momento.
O padre-lnspetor não disse nada.
- O que mais disse o japonês? - perguntou Ferreira, fingindo não ter notado o olhar trocado entre os dois e desejando estar a par de toda a extensão do conhecimento deles.
- Toranaga me pediu que lhe forneça, amanhã, ao meio-dia, um mapa do mundo que mostre as linhas de demarcação entre Portugal e Espanha, o nome dos papas que aprovaram os tratados, e as datas. Dentro de três dias, "solicita" uma explanação escrita sobre as nossas "conquistas" no Novo Mundo e, "puramente por interesse meu", foram as suas palavras, o montante de ouro e prata levado - ele na realidade usou o termo de Blackthorne, "pilhado" - levado do Novo Mundo para a Espanha e Portugal. Também solicita outro mapa, que mostre a extensão do império espanhol e do português há cem anos atrás, há cinqüenta anos, e atualmente, juntamente com as posições exatas das nossas bases desde Malaca até Goa - aliás, ele as citou uma a uma com precisão; os nomes estavam escritos num pedaço de papel - e também o número de mercenários japoneses empregados por nós em cada uma das bases.
Dell'Aqua e Ferreira estavam atônitos.
- Isso deve ser categoricamente recusado - trovejou o soldado.
- Não se recusa nada a Toranaga - disse Dell'Aqua.
- Acho, Eminência, que o senhor dá crédito excessivo à importância dele - disse Ferreira. - Parece que esse Toranaga é apenas outro déspota entre muitos, apenas outro pagão homicida, que certamente não é para ser temido. Recuse. Sem o nosso Navio Negro, toda a economia deles entra em colapso. Estão implorando pelas nossas sedas chinesas. Sem seda não haveria mais quimonos. Precisam do nosso comércio. Que Toranaga se dane. Podemos negociar com os reis cristãos - como se chamam, mesmo? Onoshi e Kiyama - e os outros reis cristãos de Kyushu. Afinal, Nagasaki fica lá, nós estamos maciçamente lá, e é lá que acontece o comércio.
- Não podemos, capitão - disse Dell'Aqua. - Esta é sua primeira visita ao Japão, por isso não tem idéia de nossos problemas aqui. Sim, eles precisam de nós, mas nós precisamos deles mais ainda. Sem o favor de Toranaga - ou de Ishido - perderemos a influência sobre os reis cristãos. Perderemos Nagasaki e tudo o que construímos no decorrer de cinqüenta anos. O senhor precipitou o atentado contra o piloto herege?
- Eu disse abertamente a Rodrigues, e a qualquer um que quisesse ouvir, logo de início, que o inglês era um pirata perigoso que contaminaria qualquer pessoa com quem entrasse em contato, e que, por isso, devia ser eliminado de qualquer modo possível. O senhor disse o mesmo com palavras diferentes, Eminência. E o senhor também, Padre Alvito. A questão não surgiu na nossa reunião com Onoshi e Kiyama há dois dias? O senhor não disse que esse pirata era perigoso?
- Sim, mas...
- Padre, o senhor me perdoará, mas às vezes é necessário que os soldados façam o trabalho de Deus da melhor maneira que podem. Devo dizer-lhes que fiquei furioso com Rodrigues por não haver criado um "acidente" durante a tempestade. Ele, dentre todos os outros, devia saber disso! Pelo corpo de Cristo, olhe o que esse inglês diabólico já fez ao próprio Rodrigues. O pobre imbecil está grato a ele por lhe ter salvado a vida, quando esse é o truque mais óbvio do mundo para ganhar-lhe a confiança. Rodrigues não foi logrado a ponto de permitir ao piloto herege usurpar-lhe o tombadilho, certamente quase lhe causando a morte? Quanto ao atentado no castelo, quem sabe o que aconteceu? Deve ter sido ordenado por um nativo, é um truque japonês. Não estou triste por terem tentado, só desgostoso por haverem falhado. Quando eu tratar da eliminação dele, o senhor pode ficar tranqüilo de que ele será eliminado.
Alvito tomou um gole de vinho.
- Toranaga disse que estava mandando Blackthorne para Izu.
- A península a leste? - perguntou Ferreira.
- Sim.
- Por terra ou de navio?
- De navio.
- Ótimo. Então lamento dizer-lhes que todos os marinheiros podem se perder ao mar, numa lamentável tempestade.
- E eu lamento dizer-lhe, capitão-mor - retrucou Alvito friamente -, que Toranaga disse: "Vou colocar uma guarda pessoal em torno do piloto, Tsukku-san, e se algum acidente lhe ocorrer será investigado até o limite do meu poder e do poder dos regentes, e se por acaso o responsável for um cristão, ou qualquer pessoa remotamente associada aos cristãos, é absolutamente possível que os editos de expulsão sejam reexaminados e muito possível que todas as igrejas, escolas e albergues cristãos sejam imediatamente fechados".
- Deus impeça que isso aconteça - disse Dell'Aqua.
- Blefe - zombou Ferreira.
- Não, está enganado, capitão-mor. Toranaga é tão esperto quanto um Maquiavel, e tão inclemente quanto Atila, o Huno. - Alvito olhou para Dell'Aqua. - Seria fácil nos acusar se alguma coisa acontecesse ao inglês.
- Sim.
- Talvez o senhor devesse ir à fonte de seus problemas - disse Ferreira bruscamente. - Elimine Toranaga.
- Isto não é hora para piadas - disse o padre-lnspetor.
- O que funcionou brilhantemente na Índia e na Malásia, no Brasil, no Peru, no México, na África, e em toda parte, funcionará aqui. Fiz isso pessoalmente em Malaca e em Goa uma dúzia de vezes, com a ajuda de mercenários japoneses, e não tinha nem de longe a sua influência e conhecimento. Usaremos os reis cristãos. Ajudaremos um deles a eliminar Toranaga, se é ele o problema. Algumas centenas de conquistadores seriam suficientes. Divida e reine. Abordarei Kiyama. Padre Alvito, o senhor traduzirá...
- O senhor não pode comparar japoneses com índios ou com selvagens incultos como os incas. Não pode dividir e reinar aqui. O Japão é diferente de qualquer outra nação. Completamente - disse Dell'Aqua, fatigado. - Devo pedir-lhe formalmente, capitão-mor, que não interfira na política interna deste país.
- Concordo. Por favor, esqueça o que eu disse. Foi indelicado e ingênuo falar tão abertamente. Felizmente as tempestades são fato normal nesta época do ano.
- Se ocorrer uma tempestade, será pela mão de Deus. Mas o senhor não atacará o piloto.
- Oh?
- Não. Nem ordenará a ninguém que o faça.
- Sou orientado pelo meu rei para destruir os seus inimigos. O inglês é um inimigo nacional. Um parasita, um pirata, um herege. Se resolver eliminá-lo, será assunto meu. Sou capitão-mor do Navio Negro deste ano, portanto governador de Macau neste ano, com poderes vice-reais sobre estas águas neste ano, e se quiser eliminá-lo, ou a Toranaga ou a quem quer que seja, eu o farei.
- Então fará isso indo contra as minhas ordens diretas e portanto correrá o risco de excomunhão imediata.
- Isto está além da sua jurisdição. Trata-se de assunto temporal, não espiritual.
- A posição da Igreja aqui está, lamentavelmente, tão interligada com a política e com o comércio de seda, que tudo lhe toca a segurança. E enquanto eu viver, pela minha espera de salvação, ninguém colocará em risco o futuro da Madre Igreja aqui!
- Obrigado por ser tão explícito. Vou me empenhar por me informar melhor sobre assuntos japoneses.
- Sugiro que faça isso, por amor a todos nós. O cristianismo é tolerado aqui somente porque todos os daimios acreditam cabalmente que se nos expulsarem e arrasarem a fé, o Navio Negro nunca voltará. Nós, jesuítas, somos procurados e temos alguma influência apenas porque só nós falamos japonês e português e podemos traduzir e interceder por eles em questões de comércio. Infelizmente para a fé, isso no que eles crêem não é verdade. Estou certo de que o comércio continuaria, independentemente da nossa posição e da posição da Igreja, porque os comerciantes portugueses estão mais preocupados com seus próprios interesses egoístas do que com o serviço a Nosso Senhor.
- Talvez sejam igualmente evidentes os interesses egoístas de clérigos que desejam nos forçar - a ponto de pedirem a Sua Santidade os poderes legais para isso - a atracar no porto que escolherem e comerciar com o daimio que preferirem, independentemente dos riscos!
- Esquece de si mesmo, capitão-mor!
- Não me esqueço de que o Navio Negro do ano passado se perdeu entre o Japão e Malaca com todos os homens a bordo, com mais de duzentas toneladas de ouro a bordo e quinhentos mil cruzados em prata, depois de ser desnecessariamente adiado para a estação do mau tempo por causa das suas solicitações pessoais. Ou que essa catástrofe quase arruinou todo mundo daqui a Goa.
- Foi necessário por causa da morte do taicum e da política interna de sucessão.
- Não me esqueço de que o senhor pediu ao vice-rei de Goa que cancelasse o Navio Negro três anos atrás, para enviá-lo apenas quando o senhor dissesse, ao porto que o senhor escolhesse, nem de que ele rejeitou o pedido, vendo-o como uma interferência arrogante.
- Isso foi para dobrar o taicum, para causar-lhe uma crise econômica em meio à sua estúpida guerra contra a Coréia e a China. Foi por causa dos martírios de Nagasaki que ele havia ordenado, por causa do seu ataque insano à Igreja e dos editos de expulsão que ele publicara, expulsando-nos a todos do Japão. Se os senhores cooperassem conosco, se seguissem os nossos conselhos, o Japão inteiro seria cristão numa única geração! O que é mais importante: o comércio ou a salvação das almas?
- Minha resposta é almas. Mas já que o senhor me esclareceu sobre assuntos japoneses, deixe-me colocá-los na perspectiva correta. Só a prata japonesa torna acessíveis a seda chinesa o ao ouro chinês. Os imensos lucros que auferimos e exportamos para Malaca e Goa e depois para Lisboa sustentam todo o nosso império asiático, todos os fortes, todas as missões, todas as expedições, todos os missionários, todas as descobertas, e pagam a maioria, se não todos, dos nossos compromissos europeus, impedem os hereges de nos aniquilar e os mantêm longe da Ásia, que lhes proporcionaria toda a riqueza de que necessitam para nos destruir, o à fé. O que é mais importante, padre: a cristandade espanhola, portuguesa e italiana, ou a cristandade japonesa?
Dell'Aqua cravou os olhos no soldado:
- De uma vez por todas, o-senhor-não-se-envolverá-em-política-lnterna-aqui!
Uma brasa caiu do fogo e rolou sobre o tapete. Ferreira, que estava mais perto, chutou-a de volta.
- E se devo ser... ser dobrado, o que o senhor propõe que se faça com relação ao herege? Ou a Toranaga?
Dell'Aqua sentou-se, acreditando ter vencido.
- Não sei, no momento. Mas o simples fato de pensar em eliminar Toranaga é ridículo. Ele nos vê com muita simpatia, e à idéia de aumentar o comércio - sua voz tornou-se mais fraca -, e, em conseqüência, aumentar os seus lucros.
- E os seus - disse Ferreira, tomando os freios novamente.
- Nossos lucros estão comprometidos com a obra de Nosso Senhor. Como o senhor bem sabe. - Dell'Aqua cansadamente verteu um pouco de vinho e ofereceu-o, para apaziguá-lo. - Vamos, Ferreira, não discutamos assim. Esse negócio do herege... é terrível, sim. Mas discutir não serve para nada. Precisamos do seu conselho, dos seus miolos e da sua força. Pode acreditar em ruim: Toranaga é vital para nós. Sem ele para refrear os outros regentes, este país inteiro recairá na anarquia.
- Sim, é verdade, capitão-mor - disse Alvito. - Mas não compreendo por que ele continua no castelo e concordou com um adiamento da reunião. É incrível, mas ele parece ter sido sobrepujado. Deve saber com certeza que Osaka é mais fechada do que o cinto de castidade de um cruzado ciumento. Ele devia ter partido há dias.
- Se ele é vital - disse Ferreira -, por que apoiar Onoshi o Kiyama? Esses dois não se alinharam com Ishido, contra Toranaga? Por que o senhor não os aconselha em contrário? Discutiuse o assunto há apenas dois dias.
- Eles nos comunicaram sua decisão, capitão. Não a discutimos.
- Então talvez devesse ter discutido, Eminência. Se é tão importante, por que não demovê-los? Com uma ameaça de excomunhão?
Dell'Aqua suspirou.
- Gostaria que fosse tão simples. Não se fazem coisas assim no Japão. Eles abominam interferência externa nos seus assuntos internos. Mesmo uma sugestão de nossa parte tem que ser oferecida com uma delicadeza extrema.
Ferreira esvaziou a taça de prata, serviu-se de mais um pouco de vinho e se acalmou, sabendo que precisava dos jesuítas a seu lado, que sem eles como intérpretes estaria desamparado. Você tem que tornar esta viagem um êxito, disse a si mesmo. Você pelejou e suou durante onze anos a serviço do rei para merecer, com justiça - vinte vezes mais -, o mais rico prêmio que ele tinha ao alcance para conceder-lhe: o comando supremo do Navio Negro por um ano e a décima parte do que acompanha essa honra, um décimo de toda a seda, todo o ouro, toda a prata, o de todo o lucro decorrente de cada transação. Você está rico para o resto da vida agora, por trinta vidas, se as tivesse, tudo por causa desta única viagem. Se você a realizar. A mão de Ferreira foi para o punho do florete, para a cruz que fazia parte da filigrana de prata.
- Pelo sangue de Cristo, o meu Navio Negro zarpará no prazo de Macau para Nagasaki e depois o navio do tesouro mais rico da história rumará para o sul com a monção em novembro, para Goa, e em seguida para casa! Como Cristo é meu juiz, é isso o que vai acontecer. - E acrescentou em silêncio: nem que eu tenha que queimar o Japão inteiro, toda Macau e toda a China para fazê-lo, por Nossa Senhora!
- Nossas preces estão com o senhor, claro que estão - retrucou Dell'Aqua, falando sinceramente. - Sabemos da importância da sua viagem.
- Então o que sugere? Sem autorizações e salvo-condutos para comerciar, estou de mãos atadas. Não podemos evitar os regentes? Talvez haja outro meio?
Dell'Aqua meneou a cabeça.
- Martim? Você é o nosso perito em comércio.
- Sinto muito, mas não é possível - disse Alvito. Ouvira a acalorada discussão com uma indignação crescente. Criatura grosseira, arrogante, bastardo cretino, pensara; depois, imediatamente, ó Deus, dê-me paciência, pois sem este homem e os outros como ele a Igreja morrerá aqui. - Estou certo de que dentro de um ou dois dias, capitão-mor, estará tudo resolvido. Uma semana, no máximo. Toranaga tem problemas muito especiais no momento. Dará tudo certo, tenho certeza.
- Esperarei uma semana. E só. - A ameaça subjacente no tom de Ferreira era assustadora. - Gostaria de pôr as mãos naquele herege. Eu lhe arrancaria a verdade. Toranaga disse alguma coisa sobre a suposta esquadra? Uma esquadra inimiga?
- Não.
- Gostaria de saber a verdade sobre isso, porque o meu navio virá chafurdando como um porco cevado, os porões abarrotados com mais seda do que jamais se enviou de uma só vez. Somos um dos maiores navios do mundo, mas não tenho escolta, de modo que se uma única fragata inimiga se dispusesse a nos capturar ao mar - ou aquela prostituta holandesa, o Erasmus - estaríamos à sua mercê. Ela me faria arriar a bandeira imperial de Portugal sem dificuldade alguma. O melhor é que esse inglês não se faça ao mar com seu navio, com atiradores, canhões e munição a bordo.
- É vero, é solamente vero - murmurou Dell'Aqua.
Ferreira terminou o vinho.
- Quando é que Blackthorne será enviado a Izu?
- Toranaga não disse - replicou Alvito. - Tenho a impressão de que será em breve.
- Hoje?
- Não sei. Os regentes devem se reunir dentro de quatro dias. Imagino que seja depois disso.
- Ninguém deve se intrometer com Blackthorne - disse Dell'Aqua lentamente. - Nem com ele nem com Toranaga.
Ferreira levantou-se.
- Volto ao meu navio. Jantam conosco? Os dois? Ao pôr-do-sol? Teremos um frango excelente, um pernil, um madeira e até pão fresco.
- Obrigado, o senhor é muito gentil. - Dell'Aqua animou-se ligeiramente. - Sim, será maravilhoso comer uma boa comida novamente. O senhor é muito gentil.
- Será informado assim que eu tiver notícias de Toranaga, capitão-mor - disse Alvito.
- Obrigado.
Quando'Ferreira saiu e o padre-lnspetor teve certeza de que ele e Alvito não podiam ser ouvidos, perguntou ansiosamente:
- Martim, o que mais Toranaga disse?
- Quer uma explicação por escrito do incidente do transporte de armas e da requisição de conquistadores.
- Mamma mia...
- Toranaga estava cordial, até gentil, mas... bem, eu nunca o vi assim antes.
- O que foi que disse, exatamente?
- "Tomei conhecimento, Tsukku-san, de que o chefe anterior da sua ordem de cristãos, Padre da Cunha, escreveu aos governadores de Macau, Goa e ao vice-rei espanhol de Manila, Don Sisco y Vivera, em julho de 1588, pelo seu calendário, pedindo uma invasão de centenas de soldados espanhóis armados para apoiar alguns daimios cristãos numa rebelião que o chefe cristão estava tentando incitar contra seu suserano legal, meu falecido amo, o taicum. Quais são os nomes desses daimios? É verdade que não se enviaram soldados, mas vasta quantidade de armas foi contrabandeada de Macau para Nagasaki sob sigilo cristão? É verdade que o Padre-Gigante secretamente apreendeu essas armas quando voltou ao Japão pela segunda vez, na qualidade de embaixador de Goa, em março ou abril de 1590, e secretamente as contrabandeou de Nagasaki no navio português Santa Cruz, de volta a Macau?" - Alvito enxugou o suor das mãos.
- Disse mais alguma coisa?
- Não de importância, Eminência. Não tive chance de explicar, ele me dispensou imediatamente. A dispensa foi cortês, mas foi uma dispensa.
- De onde é que esse maldito inglês está obtendo informações?
- Gostaria de saber.
- Essas datas e nomes. Você não está enganado? Ele as disse exatamente assim?
- Não, Eminência. Os nomes estavam escritos num pedaço de papel. Ele me mostrou.
- Letra de Blackthorne?
- Não. Os nomes estavam escritos foneticamente em japonês, em hiragana.
- Temos que descobrir quem está traduzindo para Toranaga. Essa pessoa deve ser surpreendentemente boa. Certamente nenhum dos nossos? Não pode ser o Irmão Manuel, pode? - perguntou asperamente, usando o nome de batismo de Masamanu Jiro. Jiro era filho de um samurai cristão, que fora educado pelos jesuitas desde a infância e, sendo inteligente e devoto, selecionado no seminário a ser treinado para se tornar um padre completo, com os quatro votos, com os quais ainda não havia nenhum japonês. Jiro estivera com a Companhia durante vinte anos, depois, inacreditavelmente, partira antes de ser ordenado e agora era um violento antagonista da Igreja.
- Não. Manuel ainda está em Kyushu, possa ele arder no inferno para sempre. Continua sendo um violento inimigo de Toranaga, nunca o ajudaria. Felizmente ele nunca compartilhou segredos políticos. A intérprete foi a Senhora Maria - disse Alvito, usando o nome batismal de Toda Mariko.
- Toranaga lhe disse isso?
- Não, Eminência. Mas aconteceu de eu saber que ela está visitando o castelo, e foi vista com o inglês.
- Tem certeza?
- Nossa informação é absolutamente exata.
- Bom - disse Dell'Aqua. - Talvez Deus esteja nos ajudando do seu modo inescrutável. Mande buscá-la imediatamente.
- Já estive com ela. Dei um jeito de encontrá-la por acaso. Foi encantadora como sempre, respeitosa, piedosa como sempre, mas disse enfaticamente antes que eu tivesse uma oportunidade de interrogá-la: "Naturalmente, o império é uma terra muito particular, padre, e algumas coisas, por costume, devem permanecer muito em particular. Acontece o mesmo em Portugal, e dentro da Companhia de Jesus?"
- Você é o confessor dela.
- Sim. Mas ela não dirá nada.
- Por quê?
- Ela foi claramente prevenida e proibida de discutir o que aconteceu e o que foi dito. Conheço-os bem demais. Nisso a influência de Toranaga seria maior do que a nossa.
- A fé que ela tem é tão pequena? A educação que recebeu foi tão ineficaz? Certamente que não. É tão devota e tão boa cristã quanto qualquer mulher que eu já conheci. Um dia se tornará, talvez, até a primeira abadessa japonesa.
- Sim. Mas agora não dirá nada.
- A Igreja está em perigo. Isso é importante, talvez importante demais - disse Dell'Aqua. - Ela compreenderia. É inteligente demais para não entender.
- Imploro-lhe que não lhe ponha a fé à prova nessa questão. Nós perderíamos. Ela me preveniu. Foi o que me disse, tão claramente quanto se estivesse escrito.
- Talvez fosse bom pô-la à prova. Pela sua própria salvação.
- Ordenar isso ou não depende do senhor. Mas receio que ela obedeça a Toranaga, Eminência, e não a nós.
- Pensarei sobre Maria. Sim - disse Dell'Aqua. Deixou o olhar vagar sobre o fogo, o peso do seu posto esmagando-o. Pobre Maria. Aquele maldito herege. Como evitarmos a armadilha? Como dissimular a verdade sobre as armas? Como pôde um padre-superior e vice-provincial como Da Cunha, que era tão bem treinado, tão experimentado, com sete anos de conhecimento prático em Macau e no Japão, cometer um erro tão terrível?
- Como? - perguntou às chamas.
Conheço a resposta, disse a si mesmo. É fácil demais. A pessoa entra em pânico ou esquece a glória de Deus, ou torna-se orgulhosa ou arrogante ou estupidificada. Quem, sob as mesmas circunstâncias, talvez, não cometeria o mesmo erro? Ser recebido pelo taicum ao crepúsculo com distinção, um encontro triunfal com pompa e cerimônia - quase como um ato de contrição do taicum, que estava aparentemente a ponto de converter-se. E depois ser despertado no meio da mesma noite com os editos de expulsão, decretando que todas as ordens religiosas deviam deixar o Japão dentro de vinte dias sob pena de morte, para nunca mais voltar e, pior ainda, que todos os convertidos japoneses, no país inteiro, eram obrigados a abjurar imediatamente ou seriam exilados ou condenados à morte.
Levado pelo desespero, o superior impensadamente aconselhara os daimios cristãos de Kyushu - Onoshi, Misaki, Kiyama, e Harima de Nagasaki - a se rebelarem para salvar a Igreja, e escrevera freneticamente, pedindo conquistadores para dar reforço à revolta.
O fogo crepitou e dançou na grelha de ferro. Sim, tudo verdade, pensou Dell'Aqua. Se ao menos eu tivesse sabido, se ao menos Da Cunha me tivesse consultado antes... Mas como poderia ele? Leva seis meses para enviar uma carta a Goa e talvez outros seis meses para que outra carta chegue, e Da Cunha escreveu imediatamente, mas era o superior, tinha poder de iniciativa e precisava enfrentar a calamidade de imediato.
Embora Dell'Aqua tivesse zarpado imediatamente ao receber a carta, com credenciais de embaixador fornecidas às pressas pelo vice-rei de Goa, levara meses para chegar a Macau, apenas para ser informado de que Da Cunha morrera, e que ele e todos os padres estavam proibidos de entrar no Japão sob pena de morte.
Mas as armas já haviam partido.
Então, dez semanas depois, chegaram as notícias de que a Igreja não fora arrasada no Japão, que o taicum não estava pondo em prática suas novas leis. Apenas meia centena de igrejas tinham sido queimadas. Apenas Takayama fora esmagada. E correu o boato de que, embora os editos oficialmente permanecessem em vigor, o taicum agora estava preparado para permitir que as coisas fossem como eram, desde que os padres fossem muito mais discretos nas suas conversões, seus convertidos mais discretos e mais bem-comportados, e que não houvesse mais ruidosos cultos ou demonstrações públicas, nem queima de igrejas budistas por fanáticos.
Então, quando a provação pareceu prestes a terminar, Del1'Aqua lembrara-se de que as armas haviam partido semanas antes, com a autorização do superior, Padre da Cunha, e que ainda permaneciam nos depósitos jesuíticos de Nagasaki.
Seguiram-se mais semanas de agonia até que as armas fossem secretamente contrabandeadas de volta a Macau - sim, sob a minha responsabilidade desta vez, lembrou-se Dell'Aqua, com a esperança de que o segredo permanecesse enterrado para sempre. Mas esses segredos nunca nos deixam em paz, apesar do muito que se queira ou que se reze.
Qual será a extensão do conhecimento do herege?
Por mais de uma hora, Sua Eminência, sentado imóvel na sua cadeira de couro e encosto alto, contemplou o fogo sem o ver. Alvito esperou pacientemente perto da estante de livros, com as mãos no colo. Raios de sol dançavam sobre o crucifixo de prata na parede atrás do padre-lnspetor. Numa parede lateral estava um pequeno óleo do pintor veneziano Ticiano, que Del1'Aqua comprara na juventude em Pádua, para onde fora enviado pelo pai para estudar direito. Na outra parede alinhavam-se suas bíblias e seus livros, em latim, português, italiano e espanhol. E, da impressora de tipo móvel da Companhia em Nagasaki que ele mandara vir a um custo tão elevado de Goa há dez anos, duas prateleiras de livros e panfletos japoneses: livros religiosos o catecismos de todo tipo, traduzidos com esmero para o japonês pelos jesuítas; obras adaptadas do japonês para o latim, a fim de ajudar os acólitos japoneses a aprender a língua; e por último, dois livrinhos que não tinham preço: a primeira gramática de português-japonês, o trabalho da vida do Padre Sancho Alvarez, impressa seis anos antes, e seu companheiro, o inacreditável dicionário de português-latim-japonês, impresso no ano anterior em caracteres romanos e em hiragana. Fora iniciado por ordem de Dell'Aqua, vinte anos atrás, o primeiro dicionário de palavras japonesas jamais compilado.
O Padre Alvito pegou o livro e o acariciou afetuosamente. Sabia que se tratava de uma obra de arte única. Fazia oito anos que ele mesmo compilava um trabalho assim, ainda longe de estar terminado. Mas o dele seria um dicionário com explicações suplementares e muito mais pormenorizado - quase uma introdução ao Japão e aos japoneses -, e sabia, sem vaidade, que se conseguisse terminá-lo, seria uma obra-prima em comparação ao trabalho do Padre Alvarez, que se seu nome devesse ser lembrado seria por causa do livro e do padre-lnspetor, que era o único pai que ele jamais conhecera.
- Quer sair de Portugal e juntar-se ao serviço de Deus, meu filho? - perguntara o gigante jesuíta no primeiro dia em que o vira.
- Oh, sim, por favor, padre - respondera Alvito, espichando o pescoço para ele com uma ânsia desesperada.
- Que idade tem, meu filho?
- Não sei, padre, talvez dez, talvez onze, mas sei ler e escrever, o padre me ensinou, e sou só. Não tenho ninguém, não pertenço a ninguém...
Dell'Aqua o levara para Goa e depois para Nagasaki, onde ingressara no seminário da Companhia de Jesus, o mais jovem europeu na Ásia. Depois ocorreu o milagre do dom das línguas o postos de confiança como intérprete e conselheiro comercial, primeiro para Harima Tadao, daimio do feudo de Hizen, em Kyushu, onde ficava Nagasaki, e mais tarde, com o tempo, do próprio taicum. Fora ordenado e mais tarde atingira até o privilégio do quarto voto. Era o voto especial, além dos votos normais de pobreza, castidade e obediência, concedido apenas à elite dos jesuítas: o voto de obediência ao papa - para ser um instrumento pessoal seu, para a obra de Deus, para ir aonde o papa pessoalmente ordenasse e fazer o que ele pessoalmente desejasse; para tornar-se como pretendia o fundador da Companhia, o soldado basco Loyola, um dos Regimini Militantes Ecleshe, um dos soldados particulares especiais de Deus, a serviço do seu general eleito na Terra, o Vigário de Cristo.
Tive muita sorte, pensou Alvito. Ó Deus, ajude-me a ajudar.
Finalmente Dell'Aqua se levantou, espreguiçou-se e se dirigiu para a janela. O sol cintilava nas telhas douradas do imponente torreão central do castelo, a elegância da estrutura toda dissimulando sua força maciça. Torre do Demônio, pensou ele. Quanto tempo se erguerá aí para lembrar a cada um de nós? Faz só quinze... não, faz dezessete anos que o taicum pôs quatrocentos mil homens a construir e escavar, e sangrou o país para pagá-lo, o seu monumento, e então, em dois rápidos anos, o Castelo de Osaka foi terminado. Homem inacreditável! Povo inacreditável! Sim. E lá se ergue ele, indestrutível! Exceto para o dedo de Deus. Ele pode pô-lo abaixo num instante, se quiser. Ó Deus, ajude-me a fazer a sua vontade.
- Bem, Martim, parece que temos trabalho a fazer. - Dell'Aqua começou a andar de um lado para o outro, com a voz agora tão firme quanto o passo. - Quanto ao piloto inglês: se não o protegermos, será morto e correremos o risco do desfavor de Toranaga. Se dermos um jeito de protegê-lo ele logo enforcará a si mesmo. Mas ousaremos esperar? Sua presença é uma ameaça para nós e não há como predizer quanto dano ele pode causar antes dessa data feliz. Ou podemos ajudar Toranaga a eliminá-lo. Ou, por último, podemos convertê-lo.
Alvito piscou.
- O quê?
- Ele é inteligente, muito bem informado sobre o catolicismo. Muitos ingleses no íntimo não são católicos autênticos? A resposta é sim se o rei ou a rainha deles for católico, e não se for protestante. Os ingleses são negligentes sobre religião. São nossos adversários fanáticos no momento, mas isso não é devido à Armada? Talvez Blackthorne possa ser convertido. Essa seria a solução perfeita, para a glória de Deus, e salvaria a alma desse herege da danação, para onde ele certamente irá.
"Depois, Toranaga: daremos a ele os mapas que deseja. As explicações sobre `esferas de influência'. Não é para isso, na realidade, que as linhas de demarcação servem, para separar a influência dos portugueses e dos amigos espanhóis? Si é vero! Diga-lhe que quanto aos outros assuntos importantes, ficarei honrado em prepará-los pessoalmente para ele e os entregarei o mais breve possível. Como precisarei verificar os fatos em Macau, poderia ele, por favor, conceder um prazo razoável? E no mesmo tom diga-lhe que está encantado em lhe informar que o Navio Negro zarpará três semanas mais cedo, com a maior carga de seda e ouro que já houve, que a nossa parte da carga e ... ", ele pensou um momento, "e no mínimo trinta por cento de toda a carga serão vendidos através do intermediário indicado pessoalmente por Toranaga."
- Eminência, o capitão-mor não vai gostar de zarpar mais cedo e...
- Será responsabilidade sua conseguir de Toranaga a autorização para Ferreira. Vá vê-lo imediatamente com a minha resposta. Impressione-o com a nossa eficiência. Essa não é uma das coisas que ele admira? Com autorizações imediatas, Ferreira fará concessões quanto ao ponto secundário de chegar mais cedo na estação, e quanto ao intermediário, que diferença há, para o capitão-mor, entre um nativo e outro? Ele receberá sua porcentagem do mesmo jeito.
- Mas os senhores Onoshi, Kiyama e Harima geralmente dividem a corretagem da carga entre si. Não sei se concordarão.
- Então resolva o problema. Toranaga concordará com o adiamento em troca da concessão. As únicas concessões de que ele necessita são poder, influência e dinheiro. O que podemos lhe dar? Não podemos lhe entregar os daimios cristãos. Nós...
- Sim - disse Alvito.
- Ainda que pudéssemos, ainda não sei se devemos ou se o faremos. Onoshi e Kiyama são inimigos ferrenhos, mas juntaram-se contra Toranaga porque têm certeza de que ele destruiria a Igreja - e a eles - se algum dia conseguisse o controle do conselho.
- Toranaga apoiará a Igreja. Ishido é o nosso verdadeiro inimigo.
- Não compartilho da sua confiança, Martim. Não devemos nos esquecer de que, pelo fato de Onoshi e Kiyama serem cristãos, todos os seus seguidores são cristãos, às dezenas de milhares. Não podemos ofendê-los. A única concessão que podemos fazer a Toranaga é alguma coisa relacionada a comércio. Ele é fanático por comércio mas nunca tentou participar pessoalmente. Portanto o que sugiro talvez o tente a conceder um adiantamento que talvez possamos estender para um adiantamento permanente. Você sabe como os japoneses gostam dessa forma de solução - o grande bastão equilibrado, cujos dois lados fingem não existir, hem?
- Na minha opinião, é politicamente imprudente para o Senhor Onoshi e o Senhor Kiyama voltarem-se contra Toranaga nesta época. Deveriam seguir o velho provérbio de manter uma linha de retirada aberta, não? Eu poderia sugerir-lhes que um oferecimento a Toranaga de vinte e cinco por cento - de modo que cada um tivesse uma parte igual, Onoshi, Kiyama, Harima e Toranaga - seria uma pequena consideração para abrandar o impacto da sua aliança "temporária" com Ishido contra ele.
- Então Ishido os destruirá e nos odiará mais, quando descobrir.
- Ishido já nos detesta incomensuravelmente agora. Não confia neles mais do que eles confiam nele, e ainda não sabemos por que se puseram do seu lado. Com o acordo de Onoshi e Kiyama, nós colocaríamos formalmente a proposta, como se se tratasse meramente de uma idéia nossa, destinada a manter imparcialidade entre Ishido e Toranaga. Em particular, podemos informar Toranaga da generosidade deles.
Dell'Aqua considerou as virtudes e os defeitos do plano.
- Excelente - disse afinal. - Ponha isso em prática. Agora, quanto ao herege. Entregue os portulanos dele a Toranaga hoje. Volte a Toranaga imediatamente. Diga-lhe que os portulanos nos foram enviados secretamente.
- Como explico a demora em entregar-lhe?
- Você não explica. Apenas diz a verdade: foram trazidos por Rodrigues, mas nenhum de nós percebeu que o pacote lacrado continha os portulanos desaparecidos. Realmente não o abrimos por dois dias. Foram mesmo esquecidos na excitação causada pelo herege. Os portulanos provam que Blackthorne é pirata, ladrão e traidor. Suas próprias palavras darão cabo dele de uma vez por todas, o que seguramente é justiça divina. Diga a verdade a Toranaga: que Mura os deu ao Padre Sebastio, como de fato aconteceu, que os enviou a nós, certo de que saberíamos o que fazer com eles. Isso desobriga Mura, o Padre Sebastio, todo mundo. Devemos comunicar a Mura, por pombo-correio, o que foi feito. Tenho certeza de que Toranaga entenderá que no fundo demos prioridade aos seus interesses sobre os de Yabu. Ele sabe que Yabu fez um acordo com Ishido?
- Eu diria que sabe com certeza, Eminência. Mas corre o boato de que Toranaga e Yabu são amigos agora.
- Eu não confiaria nesse filho de Satã.
- Tenho certeza de que Toranaga não confia. Assim como Yabu não deve ter assumido nenhum compromisso verdadeiro com ele.
De repente foram distraídos por uma altercação do lado de fora. A porta se abriu e um monge encapuzado entrou descalço na sala, empurrando o Padre Soldi.
- Que as bênçãos de Jesus Cristo recaiam sobre os senhores - disse ele, a voz rascante de hostilidade. - Possa ele perdoar os seus pecados.
- Frei Pérez... o que está fazendo aqui? - explodiu Dell'Aqua.
- Voltei a esta cloaca de país para divulgar a palavra de Deus para os pagãos novamente.
- Mas está sob o edito de nunca regressar, sob pena de morte imediata, por haver incitado tumultos. Escapou ao martírio de Nagasaki por milagre e recebeu ordem de...
- Foi a vontade de Deus, e um imundo edito pagão de um maníaco louco não tem nada a ver comigo - disse o monge. Era um espanhol baixo, magro, com uma longa barba desgrenhada. - Estou aqui para continuar a obra de Deus. Como vai o comércio, padre?
- Felizmente para a Espanha, muito bem - retrucou Alvito, gelidamente.
- Não gasto meu tempo com a contabilidade, padre. Gasto-o com o meu rebanho.
- Isso é louvável - disse Dell'Aqua de modo cortante. - Mas gaste-o onde o papa ordenou: fora do Japão. Esta é nossa província exclusiva. E também é território português, não espanhol. Preciso lembrar-lhe que três papas determinaram que todas as ordens religiosas ficassem fora do Japão, com exceção de nós? O Rei Filipe ordenou o mesmo.
- Poupe o fôlego, Eminência. A obra de Deus ultrapassa ordens terrenas. Estou de volta, vou escancarar as portas das igrejas e rogar às multidões que se ergam contra os ímpios.
- Quantas vezes tem que ser advertido? Não pode tratar o Japão como um protetorado inca, povoado de selvagens sem história nem cultura. Proíbo-o de pregar e insisto em que obedeça às ordens de Sua Santidade.
- Converteremos os pagãos. Ouça, Eminência, há uma centena dos meus irmãos em Manila esperando para embarcar, todos bons espanhóis, e vários dos nossos gloriosos conquistadores para nos proteger, se isso for necessário. Pregaremos abertamente e usaremos nossos hábitos abertamente, não disfarçados por aí em idólatras saias de seda como os jesuítas!
- Não agite as autoridades ou reduzirá a Madre Igreja a cinzas!
- Digo-lhe na cara que estamos retornando ao Japão e ficaremos no Japão. Pregaremos a Palavra apesar do senhor - apesar de qualquer prelado, bispo, rei ou até papa, pela glória de Deus! - O monge bateu a porta atrás de si.
Vermelho de cólera, Dell'Aqua serviu-se de um copo de madeira. Um pouco do vinho derramou-se sobre a superfície polida da sua escrivaninha.
- Esses espanhóis nos destruirão a todos. - Dell'Aqua bebeu lentamente, tentando se acalmar. Finalmente disse: - Martini, mande alguns dos nossos para vigiá-lo. E é melhor avisar Kiyama e Onoshi imediatamente. Não há como prever o que acontecerá se esse imbecil se pavonear em público.
- Sim, Eminência. - A porta, Alvito hesitou: - Primeiro Blackthorne, agora Pérez. E coincidência demais. Talvez os espanhóis em Manila soubessem sobre Blackthorne e o tenham deixado vir aqui só para nos atormentar.
- Talvez, mas provavelmente não. - Dell'Aqua terminou o copo e pousou-o cuidadosamente. - Em todo caso, com a ajuda de Deus e o zelo devido, nenhum dos dois conseguirá prejudicar a Santa Madre Igreja, custe o que custar.